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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.27 n.2 São Paulo dez. 2007
HISTÓRIA DA PSICOLOGIA
Avaliação psicológica: ensino e pesquisa na década de sessenta
Psychological evaluation: teaching and research in the 60's decade
Eda Marconi Custódio1
Universidade de São Paulo
RESUMO
Desde a década de 60, do século recém-findo, quando foram criados os primeiros cursos voltados exclusivamente para a formação dos psicólogos, o ensino das técnicas de exame psicológico sempre tiveram suas características peculiares definidas pelas equipes encarregadas de ministrá-las. O presente trabalho busca resgatar algumas dessas características, particularmente as que marcaram os primeiros anos do seu ensino teórico- prático na PUC-SP e no IPUSP e de como essas Universidades caminharam e responsabilizaram-se pela formação de docentes de avaliação psicológica nos cursos criados na região de São Paulo. Discutem-se ainda as intensas tarefas então exigidas dos alunos em confronto com as de hoje deles exigidas; da confiança ilimitada nos instrumentos de avaliação no passado ao questionamento e ceticismo quanto à validade da avaliação psicológica nos dias correntes, qualquer que seja o ângulo de abordagem.
Palavras-chave: Avaliação psicológica, História da psicologia, Formação profissional.
ABSTRACT
Since last century decade of the 60's, when the first courses intended exclusively for the training of psychologists were created, the teaching of psychological examination techniques have always had their peculiar characteristics defined by the teams in charge of ministering them. This work is an attempt to rescue some of these characteristics, especially those which marked the first years of the theoretical-practical teaching in PUC- SP and in the IPUSP, and of how these Universities progressed and were responsible for the graduation of the professors in psychological evaluation, ministering the courses created in the São Paulo region. The great tasks which were demanded from the students are also discussed, in comparison with the ones that are demanded from them nowadays; and also of the unlimited trust in the evaluation of instruments used in the past in regards to the questioning and skepticism as to the validity and psychological evaluation at present, whichever the angle of approach.
Keywords: Psychological evaluation, History of Psychology, Professional training.
1. A experiência de ser avaliada
O presente texto resulta de uma experiência de quarenta anos com a avaliação psicológica na qual a autora viveu diferentes papéis, primeiramente como aprendiz, depois como docente e pesquisadora. É útil que se reflita sobre os desafios nessa área, enfrentados pelos professores e alunos naquele momento crucial. Novos desafios certamente continuarão existindo, possivelmente ainda maiores, diante dos progressos da tecnologia, especialmente a da informação, das profundas transformações sociais, na qualidade de vida e nos novos valores daí resultantes.
A formação da autora em Psicologia ocorreu na década de sessenta do século passado, com a primeira turma do curso de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ou simplesmente PUC-SP que, na época tinha a duração de seis anos. Havia então, no Estado de São Paulo, apenas três cursos desse tipo: o da USP, o da PUC-SP e o do Sedes Sapientiae, totalizando pouco mais de 100 alunos por série/ano empenhados em buscar sua formação nos primeiros cursos autorizados a funcionarem naquele momento, de acordo com a Lei nº. 4.119/62.
Mas o contato com a avaliação psicológica começara, para a autora deste trabalho, bem antes disso. Precisamente no primeiro ano do curso clássico, atual colegial, em São Caetano do Sul, quando o professor de História, muito querido por toda a classe, Maurício Tragtemberg, trouxe à sala de aula uma psicóloga, Raquel Vieira da Cunha, para aplicar alguns testes psicológicos, realizar entrevistas e posteriormente informar suas conclusões sobre as habilidades profissionais dos integrantes do grupo avaliado. A autora foi por ela considerada como tendo aptidões para a área de Psicologia, devendo atuar nesse campo como pesquisadora. Isso se deu ao final da década de cinqüenta, início da de sessenta. Foi esse o primeiro contato real da autora com os testes psicológicos que, entre os que guarda na lembrança, pode citar o Wartegg, o CIA e alguns inventários de personalidade e de interesses.
2. Os testes como ferramenta do processo seletivo
Por volta de 1962, os cursos citados de Psicologia tiveram seu início. O da PUC-SP trazia uma novidade em relação aos demais: o uso da avaliação psicológica como critério de ingresso no processo seletivo. Para muitos alunos, isso foi uma determinação rigorosa, mas bem vista na medida em que se poderia selecionar as pessoas com reais condições para tornarem-se psicólogos. Demonstrava-se a confiança nos resultados dos testes, inclusive os projetivos, entre eles uma forma de aplicação coletiva do Rorschach, o Harrover, publicado em 1943, ou o Z-Teste1 de Zulliger, de 1948 (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975) Seguramente, naquela época, muitas pesquisas foram realizadas com alunos universitários, tal como acontece até nos dias de hoje. Alguns registros indicaram estudos tentando relacionar os resultados do teste Matrizes Progressivas de Raven com o desempenho acadêmico de 186 alunos graduados em Medicina, Engenharia e Odontologia, que buscavam formação pós-graduada
em Saúde Pública (Savastano & Morais, 1963). Segundo esses autores, a pesquisa resultou do interesse de vários professores em conhecer melhor seus alunos e até de criar um Serviço de Psicologia Clínica, visando prestar-lhes assistência psicológica, caso necessário. Mas as pesquisas tinham também o objetivo de conhecer a capacidade dos testes em caracterizar o perfil psicológico de grupos de pessoas. Andrade (1967), durante o período em que trabalhava com os resultados da adaptação brasileira do 16 P.F. de Cattell, estudou especificamente o perfil psicológico ... de 69 estudantes de vários anos de Filosofia em 4 seminários de ordens religiosas e do 1º. ano de Teologia de um seminário secular (p.23) e comparou os resultados da população brasileira investigada com os de seminaristas norte-americanos.
Estar ou não apto para exercer determinada atividade a partir de critérios psicológicos e, no caso, a partir dos testes, teve uma extraordinária expansão nesse período, mas entrou em declínio, principalmente nos anos 70, 80 e 90. Questionou-se, na época, também o desconforto, talvez mesmo a frustração de quem buscava uma colocação no mercado de trabalho, submetia-se a uma bateria de provas, inclusive as psicológicas, e não era, ao final, contratado. Diante disso, se seria eticamente aceitável que alguém fosse discriminado psicologicamente e impedido de obter um emprego, quando possivelmente a necessidade e a vontade de trabalhar já seriam por si só suficientes para garantir o bom desempenho do candidato.
É uma questão que continua em aberto e sem respostas conclusivas, até porque a própria natureza é altamente discriminatória: apenas um espermatozóide entre milhares fecunda o óvulo que dá origem a um novo ser... E possivelmente essa discriminação não se esgote aí, mas que pode assumir outras maneiras de expressar-se durante toda a vida do ser assim gerado.
Outros cursos de Psicologia criados a partir da época a que nos referimos utilizaram o mesmo recurso da PUC-SP para selecionar seus alunos: a PUC de Campinas e também a PUC-RS. Houve outras instituições que consideraram a proposta de promover-se uma avaliação psicológica dos alunos no 8º. semestre do curso, definindo então quem iria estagiar na clínica, quem poderia atender pessoas com sofrimento psíquico e quem iria atuar nas áreas organizacional ou escolar, ou ainda permanecer como bacharel e/ou Licenciado em Psicologia e atuar como professor e/ou pesquisador.
Essa prática, contudo, foi criticada com veemência por muitos candidatos ao curso de Psicologia, que alegavam ser um critério inaceitável, na medida em que poderiam prestar exame em outras instituições formadoras de psicólogos sem submeter-se a essa exigência. Uma dessas críticas partiu de um grupo de alunos e professores reunidos em um dos primeiros encontros de avaliação psicológica realizado em Porto Alegre, promovido pelo CRP da região. Entre os que argumentavam contra a avaliação psicológica como critério seletivo para o ingresso no curso de Psicologia cita-se o Prof. Claudio Hutz, presente no referido encontro (Hutz, 2006). Entre os muitos argumentos ouvidos em vários momentos e em várias faculdades que visitamos ou em que trabalhamos, o que se dizia era não haver amparo legal para essa medida e nem mesmo muitas instituições públicas a utilizavam nos seus processos seletivos. Devido a essa resistência generalizada, em pouco tempo, todas as instituições que ainda a utilizavam deixaram de fazê-lo.
Atualmente a questão da seleção psicológica no âmbito acadêmico volta a ser discutida, principalmente quando até nossos próprios alunos constatam comportamentos de colegas totalmente inadequados nos estágios voltados ao atendimento de pacientes. E o que é ainda mais grave, a inexplicável recusa de muitos deles de submeter-se ao tratamento psicoterápico, que auxiliaria muito na compreensão sobre si e no cumprimento das exigências da atividade.
É diante de tais situações que nós docentes somos questionados: como permitimos que uma pessoa claramente inapta psicologicamente para atender um paciente, mesmo sob supervisão e controle apropriados, possa amanhã realizá-lo livremente como profissional? Considerar que o mercado fará naturalmente a seleção e que em breve esse profissional não terá qualquer cliente no consultório, certamente não responde à questão crucial, ou seja, os riscos a que ficarão expostas as pessoas que nele confiarem, como a própria respeitabilidade da profissão, que não pode ficar exposta a tais agravos.
Está-se, portanto, nessa questão capital, diante do que para muitos é um dilema: utilizar critérios psicológicos para fins seletivos, entre eles os testes e com isso causar provavelmente frustrações, ou não fazê-lo e transferir para a sociedade o problema de realizar por sua conta e risco uma seleção que nem se quer fazer nas instituições encarregadas do preparo profissional do Psicólogo e conscientização das suas responsabilidades sociais e com a saúde mental das pessoas.
3. O processo de ensino-aprendizagem
Retornemos àquela época. Havia então uma confiança irrestrita nos instrumentos de avaliação, entre eles os projetivos, que possibilitavam conhecer melhor os candidatos aos cursos de Psicologia. Era inconteste, portanto, o valor dos testes como diagnóstico do fenômeno que estava sendo observado. E para ilustrar isto, nada como comentar a nossa experiência como alunos de graduação e pós-graduação em Psicologia.
Conhecíamos, manuseávamos e aplicávamos vários instrumentos que eram considerados precursores dos procedimentos atuais de avaliação psicológica, como por exemplo, a Prancha de Formas de Seguin, um tabuleiro escavado onde se encaixa uma série de formas geométricas, utilizado em meados do século XIX para diagnóstico das pessoas com deficiência (Anastasi, 1965) e que deu origem à prova do tabuleiro escavado do teste de Binet e Simon (apresentado em 1905) e incorporado também na Escala de Grace Arthur (apresentada em 1925); os labirintos de Porteus (publicado em 1915), que deu origem às provas de labirintos das escalas Weschler (apresentadas em 1939) e na Escala de Grace Arthur; e os cubos de Kohs (apresentados em 1920), também presentes nas escalas Weschler (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975).
Aplicávamos a escala de Ozeretzky, apresentada pela primeira vez em 1923. Era uma prova de desenvolvimento psicomotor que se propunha a avaliar as habilidades motoras de crianças de 4 a 16 anos, com resultado apresentado sob forma de Quociente de Razão. Usávamos a versão norte-americana denominada Lincoln-Ozeretzky e também a escala de Gesell, apresentada pela primeira vez em 1925, com objetivo de avaliar o desempenho de crianças pequenas (01 a 42 meses); a escala de Maturidade Social de Vineland para pessoas do nascimento a 25 anos de idade, apresentada em 1936 com o objetivo de apurar um quociente de desempenho social, ou seja, o quanto um sujeito progressivamente domina seu meio e adquire responsabilidade social. Àquela época utilizávamos também a Escala de Califórnia de Nancy Bayley (de 1933), a Escala Merrill-Palmer (de 1931) para avaliação do desenvolvimento de crianças bem pequenas, em geral pré-escolares, tal como a proposta da Escala de Gesell já citada (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975).
Tínhamos contato (manuseando, aplicando e interpretando) com as grandes escalas para avaliar o desenvolvimento intelectual, tais como a de Terman-Merrill, formas L e M (de 1937) e sua revisão de 1960, conhecida como Stanford Binet L- M; todas as escalas de Weschler tais como W-B de 1939, WISC de 1949, WAIS de 1955 e no Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) utilizávamos a versão para crianças de 4 a 6 anos de idade, a WPPSI de 1967. Para avaliação de sujeitos portadores de deficiências, aplicávamos as Escalas de Grace Arthur (de 1930) e a Escala de Maturidade Mental Columbia, publicada esta na versão definitiva em 1959; o teste de Goodenough (de 1926) e sua revisão de 1961, as várias escalas das Matrizes Progressivas de Raven (de 1938), bem como outros instrumentos para avaliação do Fator G (Dominós, de 1944; D-48, de 1948; o INV, de 1955; G-
36, de 1966). Também os testes de aptidões como o DAT, de 1947; a Bateria CEPA, de 1962/63; o teste de Meyer, de 1926, para avaliar a capacidade de julgamento estético; o teste de Mac Quarrie, de 1925, para avaliar aptidões necessárias ao trabalho de natureza mecânica; bem como aqueles destinados à avaliação de habilidades supostamente esperadas ao exercício profissional nos escritórios (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975).
Entre as técnicas indicadas por alguns autores para a avaliação de aspectos psicomotores, aplicávamos o Bender Gestáltico Visomotor, apresentado em 1938 (adaptações Koppitz, de 1964, Santucci-Granjon, de 1964 e o pré-Bender, versão para crianças de 4 a 6 anos, também de 1964); o Benton de 1947; o teste de Ritmo de Stambak (de 1960); os de dominância lateral de Harris, de 1944 e de Zazo e Galifret-Granjon, de 1960. Observe-se que o teste Gestáltico Visomotor de Lauretta Bender foi aqui arrolado como teste psicomotor pelo fato de que naquela época buscava-se mais o nível de maturidade da criança submetida à prova e, eventualmente, a possibilidade de haver algum comprometimento neurológico impedindo o pleno desenvolvimento da função gestáltica visomotora. Entretanto, a autora do teste já demonstrava a possibilidade de a prova também permitir avaliar comprometimento da personalidade apresentando casos de esquizofrenia catatônica, depressão e mania (Bender, 1972). A versão Koppitz, por nós estudada, permite também a avaliação de comprometimento emocional e Lourenção Van Kolck (1974 - 1975), levando em conta as características da prova, classificou-o como teste para diagnósticos especiais.
Para avaliar a prontidão para a leitura e escrita havia os testes ABC, de Lourenço Filho, apresentado em 1931, o Metropolitano de Prontidão (de 1949) e o Teste Reversal - TFI (de 1955), também, este último, usado para o diagnóstico da dislexia (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975).
Utilizando os instrumentos de auto-relato, entrávamos em contato com várias escalas para avaliação da personalidade, tais como: Bernreuter, de 1931, DADAHIE (de 1950); MMPI (de1943); Edwards (de 1953); 16 PF de Cattell (de 1950); Eysenck (de 1953). Paralelamente também estudávamos os instrumentos para avaliação de interesses profissionais tais como os inventários de Strong (de 1927), de Kuder (de 1939), de Thurstone (de 1935), de Angelini (de 1963), de Geist (de 1959), Catálogo de Livros (de 1934). Entre as técnicas projetivas, os seguintes testes: o Psicodiagnóstico de Rorschach (de 1921); o Z-Teste de Zulliger (de 1948); o TAT (de 1935/43); o CAT-A (de 1949); o Four Picture Test (de 1930/1948); Teste de Atitudes Familiares de Lydia Jakson (de 1952); o Blacky Picture (de1950) (Lourenção Van Kolck, 1974 - 1975).
Também estudávamos as provas de completar frases como o Sacks (de 1950); o de Madeleine Thomas (de 1937); as Fábulas de Düss (de 1940/1950); e o teste de Frustração de Rosenzweig (de 1935). Os testes projetivos gráficos também foram alvo de estudo, entre eles o H-T-P (de 1946/1948), o Desenho da Figura Humana de Machover (de 1949), Teste da Árvore (de 1949), Desenho da Família de Corman (de 1964), assim como a técnica expressiva do PMK (de 1940). Por último, as técnicas classificadas como lúdicas, segundo Lourenção Van Kolck (1975), tais como as Pirâmides Coloridas de Pfister (de1946), o Sceno - test (de 1951) e para avaliar as tendências funcionais, o Teste de Szondi (de 1939).
É possível termos arrolado até aqui mais de 60 testes ou procedimentos de avaliação psicológica. Seguramente havia muito mais, pois conhecíamos vários outros que não foram aqui mencionados. Como alunos do curso de Psicologia, teríamos que nos ocupar várias horas por semana para dar conta de tanta informação, além das advindas de outras disciplinas do currículo. Para tanto nos debruçávamos sobre os arquivos dos diversos laboratórios e da Clínica Psicológica no afã de dominar o amplo conhecimento da época. Nosso curso era ministrado em seis anos, como já foi comentado, no período vespertino, mas, para dar conta de todas as atividades desdobrávamo-nos, íamos à Faculdade pela manhã e, muitas vezes, varávamos noites estudando. Organizávamo-nos em grupos e com os professores estudávamos as técnicas.
Destaque-se que a disseminação desses conhecimentos não se limitava ao ensino da disciplina TEP (Técnicas de Exame Psicológico), mas permeavam eles várias outras disciplinas, como a Psicologia Organizacional, do Desenvolvimento, do então designado Excepcional, do Diagnóstico Psicológico e assim por diante. E para ter-se idéia mais apropriada sobre as muitas pesquisas na área, freqüentávamos a Biblioteca do Instituto de Administração da USP (hoje Faculdade de Economia e Administração - FEA), na rua Dr. Vila Nova e consultávamos o acervo de periódicos internacionais especializados em Psicologia e avaliação psicológica como o Journal of Applied Psychology.
Era-nos também cobrada uma participação ativa na coleta de informações para pesquisa. Por exemplo: além de cada um de nós termos aplicado o Terman- Merrill completo em um sujeito por nós escolhido, como parte do treino, posteriormente o fazíamos nos alunos do Grupo Experimental da Lapa, provavelmente para compor dados de alguma pesquisa desenvolvida por nossos professores. Ao final do curso, realizávamos um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e muitos de nós utilizavam, para isso, procedimentos de avaliação psicológica. Uma das primeiras padronizações publicadas do Columbia resultou do TCC da colega Sonia Bromberger.
Nosso professor de Estatística, Raul de Morais, atuante também no Instituto de Administração, foi responsável por várias pesquisas com a avaliação psicológica. Provavelmente contribuímos como parte de alguma amostra na coleta de dados. Foi sua equipe que padronizou o Bernreuter, criou o DADAHIE a partir do referencial teórico de Murray, criou o CIA (de 1962), uma adaptação do W-B de Weschler, indicado para aplicação de forma coletiva na população adulta.
A Profª. Lúcia Carvalhaes Bonilha (1969) apresentava-nos um estudo sobre um instrumento com possibilidades de avaliarem-se definições de palavras entre crianças brasileiras de 5 a 14 anos de idade em vários níveis socioeconômicos. A partir da bibliografia utilizada, que incluía obras de Weschler e de Terman e Merrill, bem como das informações contidas no resumo do trabalho, fica claro seu propósito de tornar o instrumento uma espécie de escala para avaliação da inteligência infantil. Seria o teste de Definição de Palavras para facilitar nossos diagnósticos com a Escala Terman-Merrill, formas L e M, prova muito conhecida e utilizada para avaliar-se a capacidade intelectual, notadamente da inteligência da criança. A escala era criticada, entretanto, pela falta de estudos brasileiros pertinentes, principalmente do subteste de vocabulário, prova considerada importante no conjunto dos subtestes.
Em testes mais complexos, como o de Rorschach, o TAT, o PMK, éramos monitorados pelas assistentes da Profª. Aniela Ginsberg, uma das responsáveis pela nossa formação nessas técnicas. Aplicávamos um Rorschach, por exemplo, em sala de espelho, observados por um grupo de colegas da classe e pela professora assistente responsável. Recebíamos um retorno da aplicação imediatamente após seu término. Organizávamo-nos para avaliar nossos protocolos com supervisão constante do corpo docente. Após aplicar e avaliar cada um dos instrumentos, tínhamos uma nova tarefa a ser cumprida em dupla: aplicar o Rorschach, o TAT, o PMK e o Pfister num único sujeito, avaliar todos os protocolos e tentar integrar seus resultados. Era o momento do grande estudo de caso dirigido pela Dra. Aniela na avaliação das características de personalidade.
Para dar conta da interpretação de todas as técnicas, os docentes colocavam à disposição dos alunos várias apostilas com a tradução e adaptação dos textos estrangeiros não encontrados nas bibliotecas, os manuais já existentes e os textos publicados sob forma de artigos, como o de Queiroz (1963), hoje Pérez-Ramos. Nesse a autora apresentou algumas informações, contribuindo às interpretações de várias técnicas para uso em crianças a partir de estudos por ela realizados. Agrupou as técnicas relacionadas, em dois grupos: as que utilizam quadros cênicos, permitindo às crianças elaborarem pequenas histórias de direção livre; as que se utilizam de histórias a serem completadas e que implicam uma elaboração mais dirigida. Entre as de quadro cênico estão: CAT, CATS, Atitudes Familiares de Lidia Jackson e Blacky Picture. Entre as histórias a completar estão: Madeleine Thomas, Fábulas de Düss e Histórias Incompletas de Anderson. Critérios de análise para o Rorschach, CAT e M. Thomas foram postos à prova em pesquisas por ela realizadas, como exemplo a do seu doutorado, um dos primeiros realizados na PUC-SP (Queiroz, 1960).
Ainda como alunos, participávamos dos estágios de Psicologia Organizacional, os professores Efraim Rojas Boccalandro e Waldir Biscaro incumbiam-nos de entrevistar e aplicar o PMK em candidatos à vaga de bancário e depois de terminado, discutíamos os critérios e as possibilidades de aproveitamento ou não dessas pessoas à função pleiteada. Ou seja, realizávamos, durante o curso, atos próprios de profissionais habilitados, conquanto sob supervisão direta e imediata.
Terminado o curso de graduação na PUC, freqüentamos o curso de Pós- graduação em Psicologia na Universidade de São Paulo. Lá, orientada pela Profª. Odette Lourenção Van Kolck, entramos em contato direto com a ampla produção em avaliação psicológica realizada naquele Instituto. Partilhávamos de experiências com vários professores, que também promoviam pesquisas com os mais variados testes em nosso país: a Profa. Odette, assim conhecida, com seus estudos sobre as técnicas gráficas (1954, 1955 e 1971); a Profa. Maria José Aguirre, com seus estudos sobre a prontidão para a leitura e escrita e sobre o Reversal Test; o Prof. Arrigo Leonardo Angelini, com a adaptação do Inventário de Interesses de Thurstone, a criação do seu próprio instrumento de avaliação de interesses e estudos sobre motivação, baseados no TAT e no referencial teórico de McClelland - Método Projetivo para a Avaliação da Motivação - (Angelini e Rosamilha, 1965); o Prof. Romeu de Morais Almeida, sobre a avaliação da lateralidade; o Prof. Nelson Rosamilha com os estudos sobre ansiedade e o desenvolvimento de adaptações brasileiras para as Escalas MAS e CMAS; o Prof. Cícero Christiano de Souza, um dos grandes estudiosos da Rorschach em nosso meio; com Prof. Walter Trinca, autor do Procedimento de Desenhos - Estórias; com o Prof. Ryad Simon e seus estudos sobre a Escala Diagnóstica Operacionalizada (EDAO), apenas para citar alguns.
A própria Profª. Odette foi uma grande sistematizadora dos trabalhos sobre a Avaliação Psicológica, no Brasil, e, em determinado momento, seus colaboradores sentiam-se como herdeiros do seu volumoso acervo de trabalhos produzidos em muitos anos. Esse catálogo foi utilizado para sua tese de Livre- Docência, posteriormente publicada, e que também, como já foi assinalado, utilizamos, em boa parte deste trabalho, por conta das informações relativas às datas de publicação dos testes (Lourenção Van Kolck. 1974-1975). Destaque- se que, naquela época, a disciplina TEP estava estruturada na USP, em nove módulos semestrais, conhecidos como TEP I, TEP II... TEP IX.
4. As pesquisas
Esta retrospectiva nos traz uma constatação, que é também registrada pela seção Reportagem em Diálogos do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2005), a saber: de que, nesta época, a presença da avaliação psicológica era um fato inquestionável. Vivíamos o impulso da Psicologia em nosso meio. Muitos laboratórios existentes, identificados como Experimental, já haviam sido criados (Pires, 1999), formavam-se núcleos de pesquisadores e muitos testes eram por eles traduzidos e adaptados à nossa realidade. E tudo isso graças à dedicação de profissionais e pesquisadores vindos da Europa e dos Estados Unidos. Morais (1999), a propósito, registra, em seu trabalho, o depoimento de vários professores e psicólogos presentes nesse período e que trazem referências sobre esses profissionais estrangeiros que aqui estiveram para colaborar com o campo da Psicologia, enquanto conhecimento científico e conhecimento aplicado. Particularmente se beneficiou desse trabalho pioneiro a área de seleção e orientação profissional, pois estávamos numa região em franco desenvolvimento industrial, vivendo a expansão da rede ferroviária (Custódio, 2000).
Vieram para cá nesse período Roberto Mange, 1º. Presidente da Sociedade de Psicologia de São Paulo (hoje, Associação), instituição criada em 1945 na cidade de São Paulo, antes do surgimento dos cursos voltados para a formação do psicólogo. Também veio para o Brasil o Prof. Emílio Mira y Lopes, autor do PMK, responsável pelo desenvolvimento do ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional) (Rio de Janeiro); a Profª. Aniela Mayer Ginsberg, grande pesquisadora sobre a técnica de Rorschach; a Profª. Betti Katzenstein, autora do Becasse, instrumento de avaliação da prontidão para leitura e escrita; o Prof. Otto Klineberg, pesquisador canadense, que contribuiu para o desenvolvimento da Psicologia Social em nosso país, tendo, entre outras contribuições de relevo, sido co-fundador da Sociedade de Psicologia de S. Paulo; o Prof. Theodorus Van Kolck, pesquisador holandês com a técnica das Pirâmides Coloridas de Pfister, utilizada em grande escala também no desenvolvimento de atividades comerciais.
Um exemplo de pesquisas realizadas por estrangeiros no Brasil, na época, pode ser apreciado no texto publicado por Ginsberg, Azzi e Pires (1965). Tratava- se de pesquisa, cujo objetivo era uma comparação entre métodos projetivos e métodos experimentais no estudo de alguns aspectos da personalidade e, além disso, foi financiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Os instrumentos de avaliação psicológica utilizados pela equipe foram: o Inventário de Personalidade de R. Bernreuter, utilizado para avaliar os 370 estudantes universitários que deram início à pesquisa; o Psicodiagnóstico de Rorschach, o PMK de Mira y Lopes e o Teste de Flexibilidade de Pensamento de Berg. Foram utilizadas algumas provas como critérios ou atitudes experimentais, tais como: prova de imagem especular; prova de percepção visual; prova de atenção difusa, entre outras. Tais critérios e as atitudes referidas ficaram sob a responsabilidade do Prof. Nelson de Campos Pires e eram observados no Laboratório de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da PUC-SP, pelo qual foi responsável durante 15 anos (Pires, 1999).
Os autores citados (Ginsberg, Azzi e Pires) concluíram pela dificuldade em estabelecer-se a validade das técnicas projetivas, e as correlações observadas nos diversos estudos não foram as mais animadoras. É interessante observar o que eles apresentaram, no início do texto pertinente, sobre a validade dos métodos projetivos:
"A polêmica iniciada com o aparecimento do psicodiagnóstico de Rorschach em 1921 continua até os nossos dias. 44 anos! Parece que o psicólogo e o estudioso da personalidade humana só contam com duas alternativas lembradas por H. Murray: ou usar métodos precisos e adequados para estudar problemas sem importância, ou estudar problemas importantes com métodos inadequados" (p. 269).
Essa polêmica parece não se ter resolvido, pois os psicólogos ainda batalham para buscar a validade das técnicas projetivas. No referido Encontro de Avaliação Psicológica, realizado em Porto Alegre, a autora desta contribuição trouxe o seguinte assunto para ser questionado: a necessidade de também preocupar-se com a validade e precisão dos psicólogos que utilizam testes. Opinião que recebeu apoio da Profª. Jurema Alcides Cunha, revelando estar atenta para com a formação dos futuros psicólogos, na medida em que são eles que escolhem, aplicam e avaliam os testes psicológicos.
O ambiente de pesquisa era um fato visível dentro das universidades aqui citadas (PUC-SP e USP), e muitas das investigações realizadas envolviam testes psicológicos. O Prof. Enzo Azzi costumava registrar as atividades do Instituto de Psicologia da PUC-SP e em 1965 assinalou, nas páginas 208-211 do seu trabalho sobre crônicas e documentações, as atividades de defesas de Pós- Graduação em Psicologia e em Psicologia Aplicada ao Trabalho nos anos de 1963 e 1964. Grande parte dos que defenderam eram professores da PUC-SP, formados em outras áreas de conhecimento, e dependiam dessa defesa para assumir as funções de psicólogos. Dos 49 trabalhos arrolados, 39 deles utilizaram, em alguma medida, técnicas de avaliação psicológica (Azzi, 1965). A Profª. Carolina Bori registrava em 1965, na Secção de Pesquisas em Andamento, dez investigações, das quais metade referia-se aos testes, quer como objeto de estudo, quer como instrumento para coleta de dados e seis, das dez, envolvendo nomes de professores da PUC-SP (Bori, 1965).
Havia grande intercâmbio de experiências entre os pesquisadores, que produziam em conjunto e a Sociedade de Psicologia de São Paulo auxiliava na integração desses grupos de pesquisa denominadas Divisões. Estas foram criadas em 1949, à semelhança das Divisões da American Psychological Association (APA) e mantiveram-se por 15 anos (Pérez-Ramos & Morais, 2000). Boa parte de seus membros foi inspiradora da regulamentação da atividade profissional e, assim, do Conselho Federal de Psicologia.
Uma pesquisa que testemunhou os muitos intercâmbios entre essas instituições de ensino foi o estudo psicológico de imigrantes e migrantes. Em 1964, Ginsberg relata a relevância considerada pela Federação Mundial de Higiene Mental ao mencionar, em 1960, sua preocupação com o problema da adaptação dos imigrantes e dos migrantes ao novo meio. O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais incumbiu um grupo de psicólogos sociais e sociólogos a atuarem em pesquisas com esse escopo. Entre os nomes citados por Aniela Ginsberg, além dela própria, estão os de Arrigo Leonardo Angelini, Carolina Marstucelli Bori, Eunice Durhan, Enzo Azzi, Betti Katzestein, Aidyl Macedo de Queiroz, Ana Maria Poppovic e Maria Amélia Mattos. Ginsberg (1964) relatou a criação de um TAT especialmente desenvolvido para investigação de problemas relacionados à vida de imigrantes no novo ambiente cultural. Esse TAT especial recebeu a identificação de TAT-I.
5. Da confiança ilimitada à resistência teórica e ideológica
Coincidentemente, o início dos cursos regulamentados por lei em nosso país que ocorreu durante o governo militar de 1964, de ideologia de direita, e a atividade de avaliação psicológica, especialmente a de seleção profissional, era identificada com o capitalismo, sendo assim rejeitada pela ideologia de esquerda. Na mesma época, a influência das correntes psicológicas como a humanista, propagada em âmbito internacional, fez-se presente nesse período, e entre nós popularizou-se a psicanálise. A partir daí o uso dos testes foi declinando-se na área clínica. Questionava-se a possibilidade de identificar algum transtorno mental, algum déficit de inteligência a partir de instrumentos considerados inadequados para nós, por serem criados e adaptados a outras culturas. Além disso, esses instrumentos poder-nos-iam remeter ao diagnóstico de uma patologia mais grave quando, na verdade estaríamos diante de um quadro que provocaria humilhação ou estigmatização e o diagnóstico a partir dos testes iria confirmá-lo. Se esses transtornos eram explicados, segundo alguns autores, pela dificuldade de viver- se, na época, em uma sociedade coercitiva, que se propunha a excluir os membros não considerados pertencentes a uma elite, na qual predominava o reconhecimento dos méritos de alguns em detrimento de outros, a avaliação psicológica, pelas suas características nosológicas, deveria ser excluída. Além disso, não poderia ser utilizada antes de um processo psicoterápico, por interferir nas relações transferenciais que ocorrem durante a análise psicanalítica, como já acusaram Ocampo e Arzeno (1985).
Esse período também influenciou o avanço muito grande do behaviorismo, notadamente nos Estados Unidos e, em breve, a proposta teórica foi adotada no Brasil por vários centros de pesquisa, inclusive na USP e logo a seguir na PUC- SP. Watson foi considerado um dos precursores do comportamentismo como também é conhecida a corrente teórica, conforme assinalaram Herrnstein e Boring (1971). O texto de Watson, publicado em 1913, escolhido pelos autores é considerado como aquele que fundou o movimento dominante na Psicologia norte-americana. Watson considerava a Psicologia como um ramo objetivo e experimental da ciência natural que visava à predição e ao controle do comportamento. Esse autor afirmava que o comportamentismo, em seu esforço para conseguir um esquema unitário da resposta animal, não reconhece linha divisória entre o homem e os animais irracionais (ob.cit.,p.267). A introspecção também não seria parte essencial de seus métodos. Qualquer emoção deveria ser operacionalmente descrita para poder ser medida. Muitos alunos adeptos dessa corrente perguntavam aos seus professores de TAT: o que é id, o que é inconsciente, é possível descrevê-los operacionalmente? Não? Então não existe e o teste não mede nada. Também dentro da perspectiva fenomenológica, em desenvolvimento na época, não seria válido utilizar um teste de personalidade, pois estaríamos introduzindo um suposto saber baseado em referencial teórico já publicado, para colher dados, dirigindo as respostas de uma pessoa, dificultando a expressão autêntica de seus sentimentos. Assim essa abordagem somava-se à influência humanista, psicanalítica e a comportamental sobre a apreciação relativa ao uso dos testes.
A proposta de uma Psicologia científica, que busca estabelecer leis para explicar o comportamento humano tentando entendê-lo como o do animal logo passou a ser repudiada por alguns autores. Holzkamp (1977) não acreditava na continuidade da Psicologia como estava formulada por não se preocupar com as raízes históricas dos homens para quem suas práticas estariam dirigidas, bem como por não se perceber como uma disciplina particular que se estabeleceu ao final do século XIX, dentro de um determinado momento histórico. Não haveria sentido investir numa forma de conhecimento que buscasse categorizar, classificar e avaliar as pessoas sem levar em conta as possibilidades da (...) modificação da situação humana, em direção a uma autolibertação do homem de seus próprios condicionamentos (p. 198).
Continuando com a experiência brasileira, os testes também foram criticados pelos nossos psicólogos escolares por causa do emprego dessas técnicas no diagnóstico de deficiência mental em crianças de nível sociocultural carente, como portadoras daquele quadro clínico quando, na realidade, eram normais. Assim, confirmava-se um estigma já pré-existente pela condição de pobreza e por este motivo eram também conduzidas, em forma discriminatória, a classes especiais. A Profª. Maria Helena de Souza Patto, retomando a história desta prática com o uso dos testes em nosso meio, critica em forma veemente esse fato no seu artigo Para uma crítica da razão psicométrica (1997) e constata ainda, a autora, que esta prática contribuiu sobremaneira para a evasão escolar de crianças pobres. As mais ricas poder-se-iam beneficiar dos diversos recursos picoterápicos e garantiriam a continuidade de seus estudos. As idéias dessa psicóloga foram muito divulgadas e discutidas já a partir da década de sessenta, e permitiram a formação de muitos pesquisadores que defendiam os mesmos princípios.
Após a graduação em Psicologia, pudemos supervisionar vários processos sobre avaliação psicológica e constatamos que, de fato, vários diagnósticos de crianças provenientes de população de baixa renda acusavam certa limitação intelectual quando na verdade o próprio processo de diagnóstico era "deficiente", realizado à custa de um único instrumento de avaliação intelectual, inadequado para aquele objetivo, cujo resultado selara o destino da criança na classe especial. E na verdade, na reavaliação constatava-se que a criança era normal..
Entretanto, não fora isso o que nós aprendemos quando ainda alunos do curso de Psicologia na PUC-SP. É possível lembrar das palavras da Profª. Sylvia Morbach Portella, supervisora na clínica psicológica, que nos aconselhava sabiamente para que quando recebêssemos uma criança com queixa de dificuldades escolares, que tomássemos cuidado para não nos prendermos apenas aos resultados dos testes de inteligência. Seria conveniente fazer uma pesquisa mais ampla, buscando saber se essa criança estaria em sofrimento psíquico, utilizar técnicas projetivas, procurar conhecer melhor sua família, sua professora, sua escola, pois se não o fizéssemos, poderíamos não perceber o verdadeiro problema e encaminhar erroneamente a referida criança. Ela alertava- nos para o fato de que muitos psicólogos adotavam, por princípio, aplicar apenas testes de inteligência, no caso de queixa de dificuldades escolares, pois acreditavam tratar-se de algum déficit intelectual.
Assim, os psicólogos em geral passaram a desconsiderar a avaliação psicológica somente pelos resultados, como já apontado, mas também por não haver sustentação teórica e nem empírica, operacionalmente descritível, para os muitos constructos hipotéticos que se tentava analisar, segundo os cânones do behaviorismo, e seria desnecessária segundo outras perspectivas humanistas, incluindo-se aqui a fenomenologia e a psicanálise. Quem a utilizava era considerado um técnico a serviço dos médicos ou apenas um "testólogo" e não um psicólogo, e nem mesmo um psicanalista. Aliás, muitos destes últimos, quando identificados como psicólogos, corrigiam imediatamente sua identidade: psicanalista.
Em decorrência, passou-se a investir menos na avaliação psicológica e quem o fazia poderia ser discriminado por outros psicólogos. O próprio Conselho Federal de Psicologia (CFP) apoiou esse movimento pelos seus dirigentes, sem atentar ao que ocorria na comunidade científica internacional. O mais interessante a notar é que, enquanto seus dirigentes pronunciavam-se questionando o uso de instrumentos de avaliação psicológica, os documentos lavrados pelo CFP reconheciam ser a avaliação uma prerrogativa do psicólogo.
Em 17/10/1992, encaminha ao Ministério do Trabalho a sua contribuição para integrar o catálogo brasileiro de ocupações. No referido documento, intitulado Atribuições Profissionais dos Psicólogos no Brasil, o Conselho informa que o psicólogo
...elabora e aplica técnicas de exame psicológico, utilizando seu conhecimento e práticas metodológicas específicas, para conhecimento das condições de desenvolvimento da personalidade, dos processos intrapsíquicos e das relações interpessoais, efetuando ou encaminhando para atendimento apropriado, conforme a necessidade. E acrescenta: "participa da elaboração e construção de instrumentos e técnicas psicológicas..." (CFP, 2007).
A Lei nº. 4.119 de 27/08/1962, que regulamentou a criação de cursos destinados à formação dos psicólogos, registra no Cap. III, referente aos direitos conferidos aos diplomados, art.13, & 1º:
Constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos:
a) diagnóstico psicológico;
b) orientação e seleção profissional;
c) orientação psicopedagógica;
d) solução de problemas de ajustamentos. (CFP, Lei nº 4.119/62, 2007)
Registra ainda, em seu Código de Ética (2007), instituindo em 02/02/1975, que o psicólogo deve:
...zelar para que a comercialização, aquisição, doação, empréstimo, guarda e forma de divulgação do material do psicólogo sejam feitas conforme os princípios deste código. (Art. 1º, item i).
Ao psicólogo é vedado: interferir na validade e fidedignidade de seus instrumentos e técnicas psicológicas, adulterar seus resultados ou fazer declarações falsas. (Art.2º, item h).
No artigo 15, que trata das possibilidades de interrupção do trabalho do psicólogo, por qualquer motivo, o profissional deverá zelar pelo destino de seus arquivos confidenciais, entre eles os testes e os laudos.
No artigo 18 consta:
O psicólogo não divulgará, ensinará, cederá, emprestará ou venderá a leigos instrumentos e técnicas psicológicas que permitam ou facilitem o exercício ilegal da profissão.
Hoje estamos vivendo a retomada da avaliação psicológica na pesquisa e na atividade prática porque, apesar dessa resistência local, a comunidade psicológica em geral continuou a ver nesse recurso um instrumento eficaz para auxiliar as atividades da Psicologia e contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), agência da Organização das Nações Unidas, com o objetivo de desenvolver ao máximo possível o nível de saúde de todos os povos, jamais se afastou dos caminhos por ela delineados para compreensão dos fenômenos que afetam o comportamento das pessoas. Com esse propósito, institui grupos de trabalho para criar um instrumento de avaliação da qualidade de vida a ser adaptado e utilizado inicialmente em 20 paises (Fleck., Louzada, Xavier et al. 2000). O primeiro instrumento desenvolvido foi o WHOQOL - 100 (WHOQOL - 100, 2007), um inventário do tipo auto-relato com 100 questões, cobrindo seis domínios considerados importantes para a avaliação da qualidade de vida das pessoas, notadamente dos idosos e dos que padecem de doenças incapacitantes ou crônico-degenerativas. O domínio II, psicológico, por exemplo, visa conhecer os sentimentos positivos, a capacidade de pensar, aprender, memória e concentração, auto-estima, imagem corporal e aparência, sentimentos negativos. O domínio IV, relações sociais, visa conhecer como as pessoas julgam suas relações pessoais, o suporte (apoio) social recebido e sua atividade sexual.
Há, contudo, que se apontar um outro fato ocorrido em nosso meio nesse período. Conquanto a produção de conhecimento sobre a Avaliação Psicológica tenha, de certa forma, estagnado no Brasil, a criação dos cursos de Psicologia em nosso país cresceu sobremaneira, a ponto de afirmarmos que seria impossível ministrar o ensino de TEP tal como o vivido nos anos sessenta do século precedente. Imagine-se, por exemplo, propor um estudo de caso de avaliação da personalidade com os quatro instrumentos designados pela Profª. Aniela Ginsberg nos atuais cursos de Psicologia: seria simplesmente uma tarefa muito difícil. Não haveria tempo e várias questões éticas preliminares seriam levantadas antes de autorizar-se cada uma das avaliações indicadas.
E se no passado tivemos boa formação no curso de Psicologia sobre a Avaliação Psicológica, notadamente com utilização, inclusive, de técnicas projetivas, hoje esta formação só poderá iniciar-se na graduação e aperfeiçoar-se em cursos de especialização ou de formação continuada. Não podemos esquecer que a pesquisa e sua aplicação prática nessa área deve e necessita ser estimulada, até mesmo em função do constante progresso verificado com os instrumentos disponibilizados na comunidade científica internacional.
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Endereço para correspondência
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E-mail: edamc@cebinet.com.br
Enviado em: 01/09/2007
Aceito em: 10/10/2007
1 Docente da graduação e pós-graduação do IPUSP e do Curso de Psicologia da UMESP.
1 Vários testes serão elencados com as datas de sua apresentação. O leitor poderá buscar mais informações sobre eles na obra de Van Kolck (1974-1975) indicada nas Referências Bibliográficas.