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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar e Subj. v.4 n.1 Fortaleza mar. 2004
ARTIGOS
O mal-estar na literatura: uma leitura comparatista
José Henrique da Silva Prado
Aluno do Programa de Pós-Graduação do Mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. End.: Av. Mello Moraes, 1235, Bloco B, ap. 404 Bairro Butantã, São Paulo. CEP: 05508-900. e-mail: dani_pradofr@yahoo.fr
RESUMO
O objetivo deste trabalho é desenvolver um estudo comparativo entre dois importantes contos da literatura mundial: A queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe, e Casa Tomada, de Julio Cortázar. Inicialmente, procederemos a uma análise individual de cada um dos contos, para, em seguida, confrontar os dois textos, buscando identificar suas semelhanças e diferenças. A metodologia utilizada em nosso trabalho se apoiará na teoria da intertextualidade, que procura mostrar, em linhas gerais, de que forma um autor utiliza outro como fonte, ou seja, como uma obra encontra sua própria originalidade, tendo por ponto de partida uma base já existente. No presente caso, isso significa analisar o aproveitamento feito por Cortázar, de elementos presentes na obra de Poe, isto é, quais as contribuições trazidas pelo autor argentino, ao fazer uma releitura do conto do escritor norte-americano. Convém ressaltar que nossa intenção não é tentar identificar qual dos dois autores é o melhor, e sim procurar salientar pontos marcantes comuns aos dois contos, as características que se sobressaem em ambos os textos. A bibliografia que utilizaremos, em nosso estudo, contém não somente obras relacionadas especificamente aos escritores estudados, mas inclui também textos, livros e artigos voltados para as áreas de literatura comparada e teoria literária.
Palavras-chave: mal-estar, literatura comparada, influência, intertextualidade, subjetividade
ABSTRACT
The aim of this work is developing a comparative study between two important short stories of world-wide literature: The fall of the house of Usher, by Edgar Allan Poe and A house takenover, by Julio Cortázar. First we're going to make an individual analysis of each one of the stories in order to, after that, compare the two texts, searching to identify its similarities and differences. The methodology used in our work is based upon the theory of the intertextuality, that tries to point up, in general lines, how an author uses another one as his source, i.e., how a work finds its own originality taking for base another work already done. In this particular case, that means analyzing the uses made by Cortázar of given elements found in Poe's short story, i.e., the contributions brought by the Argentine author when making the re-reading of the story of the North American writer. It's important to say our intention is not to try to identify which one of the two authors is best, but look for common points in the two short stories, the distinguishing marks that stand out in both texts. The bibliography that we will use in our study contains not only works related specifically to the studied writers, but it also includes texts, books and articles linked to the areas of comparative literature and literary theory.
Keywords: uneasiness, comparative literature, influence, intertextuality, subjectivity
Introdução
O objetivo primordial deste trabalho é analisar e comparar dois contos: A queda da casa de Usher (1839), de Edgar Allan Poe, e Casa Tomada (1951), de Julio Cortázar. Inicialmente, analisaremos cada um dos contos separadamente e, em seguida, tentaremos fazer uma abordagem comparativa associando as duas histórias; mostrando o que as aproxima e o que as distancia, destacando suas semelhanças e diferenças.
Para darmos uma idéia introdutória da relação entre Poe e Cortázar, podemos observar a seguinte passagem:
Sente-se em toda a teoria do conto de Julio Cortázar a presença de um Edgar Allan Poe, que Cortázar admirava, que Cortázar traduziu e estudou. (Gotlib, 1985, p.71).
Sendo assim, não se deve ignorar a presença de Poe na obra de Cortázar. Após o estudo dos contos propostos, talvez possamos notar, com mais nitidez, a relação existente entre os dois autores.
A queda da casa de Usher
Comecemos, então, nosso trabalho, com a análise do conto de Poe. A queda da casa de Usher anuncia, de certo modo, no próprio título, qual será o desfecho da história, ou seja, a destruição da casa. Vejamos a seguinte passagem:
Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras (...) finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. (Poe, 1981, p.7).
A estação em que a história se passa - outono - pode ser compreendida como uma metáfora da queda - palavra exposta no título do conto - , já que o período outonal é a época em que as folhas das árvores caem ao chão. Isso indica, também, uma mudança ; porém, no contexto da história, tal mudança guarda um sentido negativo, pois o outono marca o declínio, a decadência. E, como sabemos, a casa de Usher passará por várias mudanças, até chegar ao declínio e à queda total.
É válido notar que, desde o começo, o narrador - em primeira pessoa - procura inserir o leitor numa atmosfera fria e depressiva, marcada por um certo mistério e por um mal-estar generalizado. Ao observar a casa de Usher do lado externo, o narrador descreve o que sente:
Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime. (Poe, 1981, p.7).
Podemos afirmar que as sensações experimentadas pelo narrador são preparatórias para algo que irá acontecer mais tarde. O leitor vai sendo, aos poucos, exposto ao clima reinante e à atmosfera do conto. São sensações que despertam os sentidos do amigo visitante de Roderick Usher para algo de estranho e inexplicável, como se ele já estivesse prevendo que alguma coisa fora do comum iria ocorrer.
Convém ressaltar a seguinte passagem do conto:
(...) a simples casa, a simples paisagem característica da propriedade, os frios muros, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios, algumas fileiras de carriços e uns tantos troncos apodrecidos (...) (Poe, 1981, p.7).
O trecho acima apresenta alguns indícios que nos levam a pensar na idéia de morte. Como exemplo, podemos citar as janelas da casa, que lembram "olhos vazios", além dos "troncos apodrecidos". A expressão "olhos vazios" pode ser relacionada a olhos mortos, sem vida. Da mesma forma, aquilo que está "apodrecido" representa algo que não tem mais utilidade, algo que não serve para mais nada, pois já se encontra em estado de decomposição, ou que está estragado. À medida que a história avança, todas essas indicações começam a fazer sentido. A casa de Usher - e tudo o que está dentro dela - passa a impressão de estrago, de decomposição, de perecimento :
O mobiliário geral era excessivo, incômodo, antigo e estragado. Muitos livros e instrumentos musicais jaziam espalhados em torno, mas não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. (Poe, 1981, p.11).
A citação acima expressa muito bem as questões relacionadas à morte que estamos discutindo. É preciso observar que até mesmo os "muitos livros e instrumentos musicais" remetem à morte, uma vez que o narrador afirma que esses objetos "jaziam espalhados em torno". A palavra "jazer" guarda, justamente, o sentido de algo morto, ou que parece estar morto. Sendo assim, todo o décor, a disposição dos objetos e até mesmo os móveis, em vez de criar um ambiente aprazível e aconchegante, causam uma reação contrária, levando o narrador ao incômodo. Temos a impressão de uma ambientação pesada, que produz um grande mal-estar, fazendo com que o aposento e, por conseguinte, toda a casa, torne-se um local opressivo e sufocante.
Para reforçar o clima opressor e negativo do qual estamos tratando, convém ressaltar a seguinte passagem, em que o narrador descreve a aparência de seu amigo, o personagem Roderick Usher:
Tez cadavérica, olhos grandes, transparentes, luminosos sem comparação ; lábios um tanto finos e muito pálidos (...) cabelos que lembravam a maciez e a suavidade de uma teia de aranha. (Poe, 1981, p.11-12).
As características físicas de Roderick Usher parecem não diferir muito do ambiente em que ele vive. Sua "tez cadavérica", os lábios "muito pálidos" e os cabelos que lembram uma "teia de aranha" são demonstrações de identificação com a morte, com a destruição e com a ruína. Assim como o aposento em que se encontrava o narrador era destituído de vitalidade, o mesmo ocorre com Usher, que se assemelha a um cadáver, a alguém que já morreu e continua vagando, apesar dessa afirmação ser paradoxal. A "teia de aranha", por sua vez, nos remete a mais de um sentido. Ela pode ser associada tanto a algo velho, gasto pelo tempo, em quase estado de abandono (casas muito velhas possuem teias de aranha), quanto a algo frágil, debilitado, que a qualquer momento pode se romper e quebrar, já que as teias de aranha são muito finas - essa característica pode ser aplicada ao estado físico de Roderick Usher e, por extensão, à sua casa, que mais adiante cai e se desfaz.
A questão da fragilidade de Usher fica mais evidente quando se lê o trecho abaixo:
Sofria muito de uma agudeza mórbida dos sentidos: suportava somente os alimentos mais triviais; não podia usar senão roupas de determinados tecidos; o aroma de todas as flores o oprimia; a luz, por mais fraca que fosse, torturava-lhe os olhos - e apenas alguns sons peculiares, os dos instrumentos de corda, não lhe causavam horror. (Poe, 1981, p.13).
A partir dessa passagem, é possível afirmar que Roderick Usher é um personagem em desacordo com o mundo, caracterizado por uma completa aversão a tudo aquilo que nos remete à vida, como as flores e a luz. Na verdade, ele parece ter criado um meio próprio e particular de subsistência, e qualquer alteração em sua rotina causa-lhe transtorno e irritação. Usher representa alguém inadaptado ao mundo que vai além de sua casa; aliás, sua casa é seu mundo, "estava acorrentado a certas impressões supersticiosas relativas à mansão em que vivia, de onde, durante muitos anos, não ousara sair (...)" (Poe, 1981, p.13). Para ilustrar essa questão, convém ressaltar a seguinte citação:
E sua especial inadaptação começou a manifestar-se precocemente. (Cortázar, 1999, p.279).
O trecho acima faz parte do texto A vida de Edgar Allan Poe, escrito por Julio Cortázar. Não é nossa intenção fazer, aqui, uma analogia entre a vida de Poe e sua obra, mas é inegável que algumas características do autor podem ser identificadas no personagem do conto. Se a mansão representa o mundo particular de Usher, é válido afirmar que a escritura, a criação artística representa o habitat e o mundo de Poe.
Retornando ao conto, vamos tratar, a partir desse momento, da personagem Lady Madeline, irmã de Roderick Usher. A próxima passagem descreve a visão que o narrador teve a respeito dessa personagem:
Enquanto falava, Lady Madeline (...) passou, lentamente, pela parte mais distante do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a tomado de profundo assombro, não destituído de terror - e, no entanto, percebi que me era impossível explicar tais sentimentos. (Poe, 1981, p.14).
O narrador não dá detalhes ou características físicas sobre Lady Madeline, mesmo porque ela havia passado "pela parte mais distante do aposento". Além disso, a personagem desaparece rapidamente, dando a impressão de uma aparição, de um ser etéreo, de alguém alheio àquilo que o cerca. Mesmo parecendo tão distante do narrador, a irmã de R. Usher desperta assombro e terror:
Às vezes, é um idealismo angélico, uma visão assexuada de mulheres radiantes e benéficas; às vezes, essas mesmas mulheres incitam ao enterro em vida ou à profanação de uma tumba, e o halo angelical se transforma numa aura de mistério, de enfermidade fatal, de revelação inexprimível(...) (Cortázar, 1993, p.107).
A opinião de Cortázar a respeito das personagens femininas em Poe é bastante pertinente e pode ser utilizada para descrever o caráter de Lady Madeline. Esta se mostra um ser distante, etéreo e fugaz; mas, mesmo surgindo de maneira rápida e misteriosa, mesmo se desfazendo metaforicamente como uma névoa que paira no ar, consegue despertar o terror e o assombro no narrador, revertendo uma imagem que poderia ser angelical e celeste. Lady Madeline assemelha-se a um fantasma de si mesma.
Um fato interessante presente no conto é a questão do incesto, que não é revelado de forma direta, mas é sugerido em alguns pontos. Por exemplo:
(...) à morte e à decomposição evidentemente próxima(...) de uma irmã ternamente amada, sua única companheira durante longos anos, e sua última e única parenta sobre a terra. (Poe, 1981, p.14).
(...) fiquei sabendo que a morta e ele eram gêmeos, e que sempre existira entre ambos certa simpatia de natureza quase inexplicável. (Poe, 1981, p.20).
A partir do momento em que começamos a vislumbrar a existência de uma relação incestuosa entre os dois irmãos, é possível pensar que essa seja uma das causas que levam R. Usher a tomar certas atitudes e a demonstrar determinadas reações um tanto estranhas. O próprio personagem revela algumas de suas apreensôes:
(...) devo morrer desta deplorável loucura. Assim, assim, e não de outra maneira, é como devo morrer. Aterram-me os acontecimentos futuros, não por si próprios, mas pelos seus resultados. (Poe, 1981, p.13).
(...) sinto que chegará logo o momento em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com o horrendo fantasma: o medo. (Poe, 1981, p.13, grifo nosso).
Ao que parece, R. Usher já previa o que o destino lhe reservava. A mansão onde ele mora representa um repositório de lembranças, de fatos passados. A impressão que temos é de que o medo nutrido por Usher está ligado justamente a essas reminiscências, aos acontecimentos pretéritos; medo de que um dia uma verdade dolorosa e traumática venha à tona, causando maiores estragos. Talvez esse seja o motivo que o levou a enterrar a irmã viva, porque a presença dela representa sua própria lembrança, na medida em que os dois compartilhavam todos os momentos de suas vidas. A esse propósito, o narrador afirma a respeito de Usher:
(...) eu pensava que seu espírito, incessantemente agitado, se achava em luta com algum segredo opressor, que ele não tinha coragem de divulgar. (Poe, 1981, p.21).
Um desses segredos é o fato de Usher ter enterrado viva sua irmã. Outro segredo que poderíamos supor é, basicamente, o problema do incesto. Roderick parece tomado por um sentimento de culpa muito grande, que o afligia, que trazia o medo de que algum dia sua relação com sua irmã lhe trouxesse conseqüências desagradáveis. Ao enterrá-la viva, ele procura eliminar seu próprio objeto de desejo, além de procurar enterrar as recordações de seu passado. Porém, a nosso ver, o passado pode até ser enterrado, mas nunca apagado. Em algum momento ele reaparece. Em A queda da casa de Usher, o passado que tanto incomoda o personagem Roderick está presente não só na figura da irmã, como em toda a casa, em todos os objetos e espaços. Após ser enterrada, Lady Madeline, que ainda não morreu, continua a manifestar-se por meio de ruídos e sons indefinidos, até que "surgiu alta e amortalhada" (p.27):
Durante um momento, permaneceu, trêmula e vacilante, sobre o umbral; depois, com um grito abafado e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão e, em sua violenta e, agora, final agonia, o arrastou para o chão já cadáver, vítima dos terrores que havia previsto. (Poe, 1981, p.27).
Finalmente, as conseqüências dos atos anteriores haviam chegado, e R. Usher estava sendo tragado por seu próprio mundo e por seu próprio medo. O surgimento de Lady Madeline marca a volta de tudo aquilo que deveria ficar recôndito, o resgate de todo um passado caracterizado por segredos perigosos e inconfessáveis. A destruição final da mansão remete à expiação de todos os erros e pecados mantidos ocultos durante tanto tempo.
Casa Tomada
Podemos passar, agora, à análise do conto Casa Tomada de Julio Cortázar. Logo no início, a casa - pertencente ao narrador em primeira pessoa e a Irene, sua irmã - é apresentada como índice da memória:
Gostávamos da casa porque (...) guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância. (Cortázar, 1986, p.11).
Podemos dizer que a casa do conto de Cortázar adquire um sentido análogo ao da mansão do conto de Poe, uma vez que as duas moradas constituem-se como um "repositório de lembranças, inacessíveis ou esfumadas e vagas" (Passos, 1986, p.10). Entretanto, em Cortázar, a casa adquire o status de um personagem, assim como Irene e o narrador. Isso pode ser comprovado a partir de alguns exemplos:
Às vezes, chegamos a pensar que foi ela [a casa] que não nos deixou casar. (Cortázar, 1986, p 11).
É da casa, porém, que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho importância. (Cortázar, 1986, p.12).
A casa parece decidir o destino dos personagens, já que conseguiu impedir o casamento de seus habitantes, além de ser o assunto de interesse do narrador e de sua irmã. Como pode ser notado, assim como ocorre em A queda da casa de Usher, em Casa Tomada também temos a presença de um casal de irmãos e, uma vez mais, indícios de uma relação incestuosa. Nas palavras do narrador:
(...) simples e silencioso matrimônio de irmãos (...) (Cortázar, 1986, p.11).
Apesar de ser uma grande casa, os irmãos preferem viver sós e isolados:
Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem se molestarem. (Cortázar, 1986, p.11).
O leitor pode fazer suas suposições a respeito do motivo que levou os personagens a tal isolamento. Uma das hipóteses que podemos salientar está relacionada ao medo de expor uma vida tão reservada a terceiros, o receio de que alguém descubra o "silencioso matrimônio", que deveria continuar sendo mantido em silêncio. Mas não é só o medo de que alguém venha a saber da verdade. É um medo que os próprios personagens possuem por ter de assumir uma verdade com a qual nem eles mesmos sabem como lidar. Sendo assim, é melhor deixar tudo quieto como está.
Um outro ponto interessante que nos chama a atenção diz respeito à questão da "limpeza", presente em diversas passagens do conto. Os personagens de Casa Tomada têm uma excessiva preocupação com a limpeza:
Fazíamos a limpeza pela manhã (...) (Cortázar, 1986, p.11).
(...) quase nunca íamos além da porta de carvalho, salvo para fazer a limpeza (...) (Cortázar, 1986, p.14).
A limpeza ficou tão simplificada que mesmo nos levantando muito tarde, às nove e meia por exemplo, não eram onze e já estávamos de braços cruzados. (Cortázar, 1986, p.15).
Sobre esse assunto, cabe mencionar que:
O limpo significaria puro, sem mancha, sem mácula. A mitologia cristã, cumpre assinalar, aproveita bem tal relação para criar preceito oposto ao pecado. (Passos, 1986, p.16).
Sendo assim, a grande preocupação com a limpeza da casa pode ser vista como uma tentativa de compensar uma sujeira invisível, escondida, que não pode ser enxergada, mas que está presente e faz parte da vida dos personagens. Assim como em Poe, aqui também podemos pensar que os personagens agem com o intuito de se livrar de alguma culpa por erros cometidos. E o incesto pode ser um dos motivos dessa culpa. A poeira da casa, a sujeira física causa um mal-estar aos personagens porque faz com que eles se lembrem da mácula incutida em suas almas. Ao limpar sua morada, têm a ilusão de que estão se purificando. Mas essa purificação não atinge a essência do sujeito, limitando-se apenas à superfície.
A partir de um determinado momento da história, a casa começa a ser invadida por ruídos, por sons inexplicados. Ao ouvir os sons que se propagavam, a reação do narrador é a seguinte:
Atirei-me contra a porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a violentamente, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava do nosso lado e, além disso, passei nessa porta o grande ferrolho para maior segurança. (Cortázar, 1986, p.14).
O mais interessante é que em nenhum momento os personagens se preocupam em verificar a causa dos ruídos. Eles, simplesmente, se abrigam numa parte da casa. A casa passa, então, a ser separada pela grande e pesada porta de carvalho. Aliás, o narrador ressalta que, antes da invasão dos sons:
Irene e eu vivíamos sempre nesta parte da casa, quase nunca íamos além da porta de carvalho (...) (Cortázar, 1986, p.13-14).
A porta de carvalho separa dois mundos, duas instâncias distintas. Por algum motivo, os personagens não freqüentavam muito o outro lado da casa e, quando este lado é tomado, procuram adaptar-se às suas novas limitações. De forma alguma eles tentam reaver o que lhes foi tomado. Mais tarde, o narrador percebe novos ruídos, "notando claramente que eram deste lado da porta de carvalho, na cozinha e no banheiro, ou mesmo no corredor, onde começava o cotovelo quase ao nosso lado" (Cortázar, 1986, p.17). Então, "apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta, sem olhar para trás" (Cortázar, 1986, p.17). Em primeiro lugar, podemos interpretar os ruídos que invadiram a casa como o afloramento incontrolável do inconsciente, como a pulsação do passado, um passado que tinha a necessidade de se manifestar, de se revelar, mas que é mantido recalcado. Por outro lado, os personagens revelam toda a sua negação, todo o seu medo de encarar as lembranças e reminiscências. Eles nem sequer procuram saber o que significam os ruídos que tomam a casa, apenas tentam ignorá-los. O problema surge quando os ruídos - as lembranças, as memórias - ultrapassam a porta de carvalho que os mantinha temporariamente afastados. Os ecos do passado são mais fortes que o desejo de mantê-los distantes e, assim, nem a pesada e maciça porta de carvalho consegue conter a manifestação impetuosa do inconsciente. Quando o narrador foge com sua irmã "sem olhar para trás", e ao concluir que "Pode-se viver sem pensa" (p.16), temos mais algumas indicações da negação que os dois se impõem. Convém mencionar a seguinte passagem:
Casa Tomada não significa só angústia e perda, mas também o preço imposto ao indivíduo que recusa sua história (pessoal e social). (Passos, 1986, p.21, grifo nosso).
A passagem citada resume de forma adequada tudo o que acabamos de debater. À medida que os ruídos vão aumentando e ocupando novos espaços, a casa vai-se tornando cada vez mais opressiva e sufocante para os personagens. Em A queda da casa de Usher, como já mencionamos, a atmosfera não é menos desagradável. A diferença é que, no conto de Poe, o mal-estar está presente desde o começo, representado nos móveis, nos personagens, etc, enquanto no conto de Cortázar, esse clima opressivo se constitui aos poucos, causando pequenas alterações nas atitudes dos personagens, que visam a uma adaptação, a uma tentativa de se livrar da sufocação ou, pelo menos, de tentar manter o clima opressor sob controle, fechando portas e mantendo-se distantes. Pode-se verificar que a reação dos personagens de Casa Tomada funciona apenas como um paliativo, pois, a certa altura, eles não conseguem mais controlar os ruídos que tomam conta da casa.
Em A queda da casa de Usher, os personagens deparam-se com a verdade, com aquilo que queriam negar. R. Usher procura apagar o passado, enterrando a irmã viva, mas isso é inútil, pois Lady Madeline traz consigo tudo o que era interdito, fazendo com que seu irmão encare a verdadeira realidade vivida naquela mansão. Em Casa Tomada, ocorre algo diverso, isto é, os personagens continuam tentando fugir do passado que os persegue, continuam negando sua história. A casa, que normalmente se caracteriza como um ambiente familiar e aconchegante, acaba tornando-se "um 'território-surpresa', de dupla face, onde se estabelece um jogo entre o familiar e o estranho, a rotina prosaica e a inesperada ruptura." (Passos, 1986, p.11).
Conclusão
Não sabemos se há uma palavra correta e perfeita que possa definir a relação entre Poe e Cortázar. O que podemos afirmar é que Cortázar conseguiu fixar-se num ponto de partida - o conto de Poe -, criando uma nova forma de chegada. Isso significa que o autor argentino (nascido na Bélgica), teve a capacidade de transformar aquilo que leu no autor norte-americano, imprimindo em Casa Tomada suas próprias características e sua originalidade. Isso não desmerece nem um nem outro autor, simplesmente faz somar novos valores.
A partir dessa constatação, podemos dizer que a intertextualidade permeia nosso estudo:
(...) o fim último da análise intertextual da obra literária é verificar de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou e não se deter nas semelhanças entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem. (Nitrini, 1997, p.166).
Cortázar, ao se inspirar num conto de Poe, consegue dar uma nova roupagem ao seu texto, trazendo outras possibilidades de interpretação e entendimento do conto. Fica estabelecido um ponto de vista diverso daquele encontrado em A queda da casa de Usher. Isso vem enriquecer os sentidos do texto e a percepção do leitor, que encontra novos mistérios à sua frente. Mistérios que nem sempre têm solução.
Referências
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Cortázar, Julio (1993). Valise de Cronópio (Davi Arriguci Jr., & João Alexandre Barbosa, Trad.) (2a ed.). São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Cortázar, Julio (1999). Obra crítica. Vol. 2. Organizado por Jaime Alazraki (P. Wacht & A. Roitman, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. [ Links ]
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Passos, Cleusa Rios Pinheiro (1986). O desejo: o «outro» lado do fio. In Cleusa Rios Pinheiro Passos, O outro modo de mirar: Uma leitura dos contos de Julio Cortázar (pp. 9-29). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
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Todorov, Tzvetan (1969). A narrativa fantástica. In Tzvetan Todorov, As estruturas narrativas (Leyla Perrone-Moisés, Trad.) (pp. 147-166). São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Recebido em 12 de agosto de 2003
Aceito em 26 de agosto de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2004