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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.2 Fortaleza jun. 2008
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Escrita poética e elaboração analítica: fazer com o impossível de ser dito
Poetic writing and psychoanalytic listening: making something out of what is impossible to be put into words
Juliana de Miranda e CastroI; Anna Carolina Lo BiancoII
IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicanalista Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. End.: PG em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da UFRJ, Av. Pasteur, 250. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22290-240. E-mail: ju.castro@terra.com.br
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicanalista Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. End.: PG em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da UFRJ, Av. Pasteur, 250. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22290-240. E-mail: aclobianco@uol.com.br
RESUMO
O artigo toma como objeto a impossibilidade envolvida no ato do escritor para aproximá-la da que está em jogo para o sujeito no percurso de uma análise. Recorre aos testemunhos de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, entre outros autores, que ao se depararem com uma constante defasagem entre o vivido e seu relato, encontram também com o impossível de alcançar na escrita, ou seja, com uma inatingível completude do texto. Reconhece aí elementos que causam os embaraços com que se depara o escritor para melhor identificar aqueles que rondam o analisante. O objetivo do trabalho não se reduz à mera analogia entre o fazer do escritor e o do paciente, mas busca estender para o trabalho em análise as questões cruciais apresentadas àquele que escreve. Conclui que o escritor, ao ver que nem tudo cabe em palavras, se submete a esse impossível para paradoxalmente achar a via que o leva a sua obra. Trata-se de examinar a operação que resulta nesse achado para iluminarmos a travessia do sujeito do inconsciente.
Palavras-chave: escrita, indizível, elaboração, inconsciente, desejo.
ABSTRACT
The present article deals with the dimension of impossibility involved in the act of writing in order to approach a subject's course of analysis. It refers to the testimony of writers such as Guimarães Rosa and Clarice Lispector who among others face a constant difference between what they experience in life and what they can put into words. They face a point in writing which is impossible to reach, that is, they meet a point where a text can never be completed. It examines these obstacles to better identify those obstacles with which the analysand is faced. The work does not intend a mere analogy between writing and going into a psychoanalytical treatment but search to extend to the work pursued in analysis the crucial questions presented to those who write. It ends by observing that the writer when he/she notices that everything will not fit into words, submits him or herself to this impossibility to paradoxically find his way into his text. The article exams the writer's findings, in order to make clearer the course taken by the citizen of the unconscious in the analytical process.
Keywords: writing, unutterable, working through, unconscious, desire.
Traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço
Como revela Guimarães Rosa, o ato do escritor consiste em escutar e reescrever; ou traduzir:
Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse traduzindo, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no plano das idéias, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa tradução (Guimarães Rosa & Bizarri, 2003, p.99).
A escrita é para Rosa a própria tentativa de tradução de um indizível. Clarice Lispector (1998) igualmente testemunha a coragem necessária ao escritor1 em sua empreitada de, frente à impossibilidade de fazer o relato repetir a vida ponto a ponto, dizer e se arriscar à surpresa da "pobreza da coisa dita". Mal a terá dito e terá que acrescentar: não é isso! "Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. (...) Precisarei com esforço traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço" (p.21). É por se encontrar com esse impossível da tradução em palavras que voltando a Guimarães Rosa vemo-lo referir-se a seus livros como pouco harmoniosos, cheios de ingenuidades e defeitos.
Trata-se de reconhecer que é através dessa dimensão própria da linguagem - seu fracasso - que o indizível é veiculado. Por outro lado, é importante vermos que é nesse mesmo ponto que pode ser situada a vitalidade da poesia. Bizzarri (Guimarães Rosa & Bizarri, 2003) lembra a lenda da tocha ardente de Palante, que não se apaga, permanecendo acesa por séculos, para se referir a uma edição de Corpo de Baile2, e comentar que não importa o que os editores façam, "a tocha daquela poesia continuará intacta, e a obra acabará por se assentar, quase que espontaneamente, na ordem interior de sua verdade poética" (p.127). Benjamin (2001), por sua vez, marca uma semelhança entre o texto e as sementes de trigo, fechadas por milhares de anos nas pirâmides, que, quando descobertas, vê-se que conservam sua força germinativa. É o vigor dessa tocha e a força das sementes conservadas que estão em jogo na escrita poética - trata-se para o poeta de mantê-los, vigor e força, pondo-os em palavras, traduzindo-os em palavras, fazendo a tradução a cada vez que se defronta com o impossível de tudo dizer.
Tomamos o termo tradução no sentido em que os autores o utilizam. Um sentido que podemos considerar metafórico, mas que ao mesmo tempo conserva a característica trazida da etimologia de traductione que se refere ao "ato de conduzir além, de transferir". (Rey, 2004, p.3874). As dificuldades assim reconhecidas no ato do escritor vão estar presentes também na psicanálise. Freud (1915/1998e) mostra que o trabalho analítico implica a tradução do inconsciente. Afirma que só temos acesso ao inconsciente "depois que sofreu uma transposição ou uma tradução ao consciente" (p.161). Entendemos a tradução de que fala Freud do mesmo modo que os escritores mencionados, ou seja, não se trata apenas de uma tradução ponto a ponto, da passagem de uma língua original a outra estrangeira. Mesmo que empreguemos o termo em seu sentido corriqueiro, não visa a apenas manter o sentido ou seguir a literalidade, trata-se, antes, do ato de conduzir além, que leva em conta aquilo que escapa, que excede as palavras. Ou seja, trata-se de ultrapassar a concepção em que a tradução se ateria ao sentido da "língua original", o orador não sabe o que diz e não sabe o que quer, ou seja, ele não fará o viver tornar-se "relatável" - a tradução traz então uma dimensão de impossibilidade. O que resta ao escritor é, pois, a urgência da submissão ao significante e seus efeitos, ou seja, submeter-se e tirar as conseqüências disso, responsabilizando-se por elas.
Podemos aqui nos referir ao que fala Melman (1983): ao lidar com a língua, o escritor procura saber, o que é diferente de conhecê-la: sabê-la significa ser falado por ela, o que ela fala em nós. A submissão à fala, demandada do escritor-tradutor, é a mesma exigida do sujeito, o qual será novo ver surgir na clínica. Em ambos trata-se de fazer algo a partir do ponto em que se constata que a correspondência perfeita entre a coisa e seu relato ou a completude do texto são inatingíveis, ou seja, a partir do ponto em que se confrontam com a impossibilidade que aí se apresenta.
Procuraremos aproximar o que vimos se colocando como o impossível no ato do escritor ao impossível que ronda o sujeito no trabalho com o inconsciente.
O mal escrito pode ser o bem lido
Benjamin (2001) afirma que quanto mais uma obra é comunicação, menos a tradução pode se beneficiar dela, até ser inviabilizada pela predominância total do sentido, e quanto maior sua poética, mais ela permanece traduzível. Entendemos a comunicação de que fala Benjamin como uma visada meramente informativa da obra que, portanto, esgota-se nisso, encerra-se na informação pura e simples. A tradução diz respeito menos a comunicação e sentido - estes, próximos da retórica e do enunciado - do que à enunciação que aponta para a presença de um sujeito de linguagem. Lo Bianco (2007) traz à tona a diferença estabelecida por Freud (1939/1997c) entre tradição herdada e tradição comunicada. Enquanto a última se refere apenas à informação incapaz de transmissão, pois se encerra em si, a primeira se apóia sobre marcas que no texto ganham valor de "fósseis de referência", como diz Freud (1939/1997c). A autora observa que "a cada vez que esses traços são reanimados, são atualizados, a cada nova tentativa de retomá-los, de conquistá-los, encontramos a transmissão em operação". São esses traços que mantêm a vivacidade da obra e permitem que o texto mantenha a força de tocar o leitor.
Uma outra forma de caracterizarmos o que se passa nessa tradução pode ser acompanhada no comentário de Borges (2001) à primeira tradução de As mil e uma noites. O autor destaca: "Palavra por palavra, a versão de Galland é a mais mal escrita de todas, a mais mentirosa e mais fraca, mas foi a mais bem lida. Quem nela se embebeu conheceu a felicidade e o assombro" (p.80-81). Quando ele afirma que "a mais mal escrita é a mais bem lida", podemos pensar que ela carrega essas marcas que, como mencionado, ganham valor de "fósseis de referência" e, por isso, podem transmitir a felicidade e o assombro - lembramos a "pobreza da coisa dita" a que Lispector se remete acima. Borges atribui a Galland a imposição nas mentes universais de que as Noites são um repertório de maravilhas. Segundo ele, os árabes são menos felizes do que nós por terem em pouca conta o original, o qual é mais apreciado aqui do que no Oriente. Isso porque eles já conhecem os homens, costumes, talismãs, desertos e demônios que as histórias revelam. O texto afeta-nos porque é novo e enigmático, o que o torna vivo; aí reside sua capacidade de tocar aquele que o lê.
Voltamos à discussão sobre duas formas gerais de traduzir: o modo literal, que retém todas as singularidades verbais e produz contínuos e pequenos assombros; e a eliminação total dos detalhes que distraem ou fazem com que se pare, proporcionando a uniformidade. "Mais grave que esses infinitos propósitos é a conservação ou supressão de certos pormenores; mais grave que essas preferências e esquecimentos é o movimento sintático" (p.84), diz Borges. Isto é, não se trata de uma eliminação total da literalidade, na direção da maior comunicabilidade.
A voz do texto
A passagem à escrita, então, não é um ato premeditado ou voluntário, posto que não há um eu da vontade ou da intenção - não existe o que o escritor gostaria que o livro fosse, pois, na arte, não vale a intenção (Guimarães Rosa & Bizarri, 2003) -, mas é, para o escritor, sobretudo, passagem à leitura, a sua e a do outro. Trata-se de uma "maneira de operar que implica quem está escrevendo para além de sua vontade, ou seja, a operação não é automática e a garantia não está dada de fora: o que garante o achado que o texto traz é o ato de quem escreve" (Lo Bianco, 2006, p.50). O escritor circunscreve o livro que, sem que o saiba, o comanda. Sua ética poderia enunciar-se: "submeta-se ao livro que o domina" (Jabés apud Winter, 1984, p.4). Ele apaga-se como sujeito, submete-se e, desse modo, pode deixar marcas com seu texto. Essa experiência não é exclusiva dele e pode ser encontrada na vida cotidiana, como Lispector (2005) afirma: "Foi tudo meio cegamente... eu elaboro muito inconscientemente. Às vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase..." (p.150). Da mesma forma, Guimarães Rosa (2001) testemunha:
Quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino-cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase mediúnico e elaboração subconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele muita coisa; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente. Muita coisa dele, livro, e muita coisa de mim mesmo. Os críticos e analistas descobriram outras, com as quais tive de concordar (p.89-90).
No seu ato de escrever, o poeta é escrito em suas palavras. Ele sofre a ação de suas palavras, no entanto elas só podem afetá-lo quando, só depois, na posição de leitor passa a escutá-las, como revela Rosa ao "vir achando" em seu escrito "muita coisa". Segundo Moulin (1984), trata-se de falar a voz que o fala - ser falado por ela, para retomar Melman. Ou seja, o escritor, escrito nas suas palavras, fala a voz que o fala. Ele é sua fala, e lê o que os traços deixados por sua fala no papel o desvelam. Ademais ao ser escrito em suas palavras, ele se apaga e o livro é a escrita desse apagamento, conforme exprime Guimarães Rosa (2001): "Nessas tão minhas lembranças, eu mesmo desapareci" (p.130).
Logo, não só o seu leitor, mas ele próprio é surpreendido pela novidade do seu escrito, isto é, o escritor, então na posição de leitor, pode experimentar um sentimento de estranheza diante de seu próprio texto. Em seu processo criativo, o artista se experimenta como exterior a si, ele "desaparece nas tão suas lembranças" - o que vem de dentro e é tão seu é, ao mesmo tempo, uma novidade para ele -, há uma submissão ao saber que o sabe, no seu ato. Ou se rende à música que o compõe, como diz Zeca Pagodinho, não é ele que faz a música, "ela é que vem".
Nesse ponto, vale a pena tomar a discussão que viemos fazendo sobre os efeitos que a escrita tem para aquele que escreve, pelo viés da temporalidade em que está envolvida. Essa escrita é reconhecida num tempo posterior, que a psicanálise considerará como futuro anterior. Trata-se de um tempo paradoxal sobre cenas apenas depois de acontecidas nas quais reconhecemos o que teria ocorrido desde o início. Nachträglich, se terá sabido delas, no tempo "que um dia vou saber, não sabendo eu já sabia" (Guimarães Rosa, 2001, p.188). Essa temporalidade não pode ser concebida senão num instante seguinte, através do trabalho do escritor sobre seu livro. Só ao ler-se ou ao chegar a um momento de conclusão reconhece o que sempre esteve em seu texto. Ou, como coloca Lispector (1998): "Eu, que havia vivido no meio do caminho, dera enfim o primeiro passo de seu começo" (p.178). Em sua prática, ela afirma nunca saber de antemão o que escreverá, ela vai se seguindo sem saber no que vai dar e, só depois, acha o que queria (Lispector, 2005, p.163). Segundo ela, do buscar e não achar nasce o que ela não conhecia quando do ato de escrever e que, instantaneamente, vem a reconhecer (Lispector, 1998, p.176).
Estendendo a discussão para o que acontece no trabalho de análise é que podemos fazer um contraponto entre essas características presentes no ato do escritor e as que circundam o paciente em seu percurso analítico. Também na análise ele é surpreendido pelo estranho a si próprio. Mesmo tendo-o dito, o sujeito é surpreendido por seu dizer - vale fazer a ressalva: se decide isso, se está numa posição em que pode escutar o que fala, como a do escritor, que se coloca (ou não) numa posição de ler o que escreveu. Ponto crucial para aquele que se lança aí, de encontro com a oportunidade de uma transformação. O sujeito só escuta seu próprio dizer depois de tê-lo dito, sai de dentro e ele se espanta quando ouve, é traumático, pois indizível, e aqui a contingência o fará transformador: ele não será mais o mesmo depois do seu dito.
Vimos que são os fósseis de referência, reanimados na leitura do texto, que permitem a transmissão desse indizível ao qual não se tem acesso, o intraduzível. A isso, que se transmite e excede as palavras, chamaremos "voz do texto". O poeta, segundo Ferreira Gullar (2002), "desafia o impossível em seu ato e tenta dizer o indizível", permitindo o "ressoar da voz" do poema:
O que o poeta quer dizer no discurso não cabe e se o diz é pra saber o que ainda não sabe. Uma fruta uma flor um odor que relume... Como dizer o sabor, seu clarão seu perfume? Como enfim traduzir na lógica do ouvido o que na coisa é coisa e que não tem sentido? A linguagem dispõe de conceitos, de nomes, mas o gosto da fruta só o sabes se a comes. (...) No entanto, o poeta desafia o impossível e tenta, no poema, dizer o indizível. (...) O poema é uma coisa que não tem nada dentro, a não ser o ressoar de uma imprecisa voz que não quer se apagar (p.450).
Acerca do indizível que no discurso não cabe - Guimarães Rosa (2001) dizia: "o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber" (p.40); e Lispector (1998): "Eu tenho à medida que designo - e esse é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar" (p.176). Da mesma maneira que não se tem acesso diretamente ao que excede a palavra na escrita, ao inconsciente só se aponta através de seus retornos, disfarçados. O disfarce vela o que não pode aparecer como tal. Este é o fado do poeta, disfarçar o que não deve ser desnudado, como está em Drummond (2001): "Para disfarçar, para farçar o que não ousamos compreender. (...) Seu fado era saber para contar sem desnudar o que não deve ser desnudado e por isso se veste de véu novo" (p.11). Aqui também escutamos, nos disfarces do poeta, o ressoar da voz de seu texto. "O poeta é um fingidor", na pena de Pessoa (2001), "finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente" (p.104). A forma que encontra de tocar no indizível de sua dor é pretender vestir o véu condimentado das palavras, o que de outro modo não poderia ser dito, posto que mudo.
A passagem do incomunicável, que não deveu caber nos disfarces dos vocábulos, não é sem essa mentira do disfarce. Não que se faça de uma forma "mentirosa", para trapacear. É que não se pode dizer sem esse engano, não é sem a mentira, que, de certa forma, seria até uma ferramenta para veicular o que não pode ser dito de outro modo, pois não é da ordem do dizível. Lispector (1998) assegura que não poderia dizer sem que a palavra mentisse por ela. Mas é necessário construir toda uma voz para alcançar a despersonalidade da mudez, pois é apenas através do fracasso da linguagem que se acede ao indizível (p.176-179).
A mesma dimensão em jogo para o escritor coloca-se no trabalho na análise, ou seja, o sujeito está confrontado com a impossibilidade de tudo dizer e é no fracasso da linguagem, nos lapsos, que acede ao indizível. E é do fracasso que se trata na análise, é na falha de um ato por exemplo, que emerge algo do inconsciente.
Artistas sabem de coisas
Lispector (2005), sobre o escrever, exprime a solidão e a angústia que vivencia em seu ato, o qual descreve como um fardo, a ponto de declarar que sua libertação seria poder não escrever (p.170). Ela não escreve para desabafar, para isso conta com os amigos. Na solidão de escrever, ela busca a coisa em si (p.155). Quando termina um livro, sente uma exaustão e um silêncio horrível (p.147), uma náusea no corpo todo, na alma toda (p.151). Ela se cansa do personagem, de tanto lidar com ele. "Todo escritor é um ator inato. (...) Ele representa profundamente o papel de si mesmo. Escritor é uma pessoa que se cansa muito, e que termina com um pouco de náusea de si, já que o contato íntimo consigo próprio é por força prolongado demais" (p.116). Ela tem náusea de se reler: depois que publica, ela não quer mais saber, é como um livro morto. Quando o faz, acha ruim e estranho. Embora a atividade como tradutora profissional tenha representado papel importante em sua vida, ela também não lê as traduções de suas obras para não se irritar, pois sabe que não foi ela quem escreveu (p.153) e tem medo do que o tradutor possa ter feito com seu texto (p.117). Esse estranhamento, a decepção testemunhada pelos escritores ao relerem seus livros, achá-los ruins e cheios de defeitos, ao se colocarem na posição de leitor, implica a angústia do reconhecimento do estranho a si próprio e que é também seu. Como já vimos, isso é semelhante ao que ocorre no processo analítico, no estranhamento do sujeito quando se coloca numa posição de poder escutar sua fala, no estranhamento do que é tão seu, sua própria fala. Lispector (1974) espanta-se com a contundência de suas próprias histórias e fica chocada com a realidade. Não tinha outra coisa a fazer senão sucumbir, vítima de si. "E quem mais sofreu fui eu mesma. (...) Se há incidências nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram comigo, com minha família e com meus amigos. Como é que sei? Sabendo. Artistas sabem de coisas" (p.9).
Ou seja, à possibilidade de escrever, e de se escutar - como no caso da análise, que "não se faz sem angústia" (Lacan, 1962-63) -, paga-se com a angústia, pois as páginas do livro revelam no escritor uma angústia da qual jamais escapará. Lispector (1998) nos fala dessa transmissão:
Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, sem antes teres que ser bipartido pela porta de um guarda-roupa, sem antes ter quebrados os teus invólucros de medo que com o tempo foram secando em invólucros de pedra, assim como os meus tiveram que ser quebrados sob a força de uma tenaz até que eu chegasse ao tenro neutro de mim - se tu puderes saber através de mim... então aprende de mim, que tive que ficar toda exposta e perder todas as minhas malas com suas iniciais gravadas (p.115).
Freud (1900/1998a, 1907/1998b, 1908/1998c, 1916/1998d, 1927/1997a, 1939/1997c), em diversos momentos de sua obra, se viu às voltas com a questão de como o poeta consegue nos afetar tanto com suas histórias. No intuito de complementar o que viemos discutindo, retomamos, com ele, a propriedade da escrita poética de iluminar o trabalho analítico, ou seja, sua característica antecipatória a um saber que só nos será dado - aos analistas - através da escuta dos que vêm nos falar. Lacan ressalta que, com a ajuda da escrita poética, podemos ter a dimensão da interpretação analítica (Lacan apud Chemama, 1984, p.61). Segundo ele, Freud era ávido por literatura, porque esta lhe serviu para franquear a via da idéia do inconsciente: a arte é como um testemunho do inconsciente (Lacan apud Jorge, 1987, p.5). Por isso, Freud (1907/1998b, p.9) afirma que os poetas nos ensinam, pois detêm o conhecimento da alma, tendo bebido em fontes que ainda não alcançamos. O artista sabe das coisas antes de nós, como atesta o artista plástico Arlindo Daibert (2000):
Tudo isso é conseqüência de seu ato. (...) Diabolicamente, o artista está sempre pensando um pouco mais à frente. (...) O artista (...) é alguém que escolheu se afastar um pouco para poder se entregar integralmente à sua experiência existencial. Esse distanciamento é, na verdade, a busca de uma aproximação maior com algumas coisas essenciais (p.68).
Freud (1907/1998b) indaga como o escritor pôde chegar ao mesmo saber que o analista ou, ao menos, comportar-se como se soubesse o mesmo. O define como profundo conhecedor da vida anímica (p.9), capaz de apreender o indispensável dos processos anímicos patológicos (p.44), descrevê-los no seu domínio mais autêntico e figurar estudos psiquiátricos corretos, que podem iluminar para o analista o funcionamento da vida anímica. O poeta precede a ciência e a psicologia científica em todos os tempos. Gradiva3 constitui-se em uma exposição poética de uma história clínica e de tratamento, e demonstra a possibilidade de um tema psiquiátrico ser abordado com propriedade de maneira poética (p. 36-37).
A transmissão da voz do texto - considerações finais
Se interrogarmos o poeta sobre onde busca as suas histórias e como consegue comover-nos com elas provocando excitações das quais não nos julgávamos capazes, ele responderá que, sobre isso, nem ele próprio sabe (Freud, 1908/1998c, p.127). Ou seja, a intelecção sobre o seu fazer não nos ajudará a nos tornarmos poetas, porque não se trata de conhecimento, de um saber sabido, mas de um saber de outra ordem, de um savoir-faire, como a análise. Trata-se, nesta, de escutar os substitutos do que não pode aparecer diretamente, a que só se pode ter acesso por estar disfarçado.
Freud (1908/1998c) afirma que o fantasiar é a continuação das brincadeiras infantis. Posto que a criação poética deriva do mesmo processo de substituição do brincar, por seu mecanismo de encobrimento do não desvelável, ela nos ensina em nossa escuta.
Ao circunscrever esse vazio inevitável, que podemos aproximar do real da castração (Lacan, 1975) o artista lhe dá substância, ele acede a isso e vai além, produz algo em que isso está cristalizado e, dessa forma, é transmitido, ou seja, na redução a significante a voz do texto é transmitida.
Para finalizar, mais uma vez ressaltamos que a escrita pode ser aproximada do percurso analítico porque ela própria é tradução de um indizível, o mesmo com que nos confrontamos em análise. Não se acede ao inconsciente como tal, apenas a seus retornos disfarçados. Este é também o testemunho do poeta: o indizível passa através dos condimentos das palavras. O escritor transmite ao outro o seu encontro com o que excede a palavra. Este - tanto para o paciente quanto para o poeta - acontece a partir da posição de leitor - leitura do escrito no seu livro ou do texto em sua fala. A escrita é uma tradução que opera no momento de sua leitura. Com o que avançamos ao longo do texto, pudemos ver como esses elementos iluminam o que se passa no trabalho analítico de um modo que estende os limites de sua operação. Na análise, o sujeito escreve/constrói a tradução do inconsciente. Esta tradução exerce efeitos de sentido quando ele escuta seu dizer a partir da posição de submissão ao texto inconsciente que o comanda. É recolhendo tais efeitos, responsabilizando-se por eles, e só aí, que experimentará a novidade do dito. Como para o poeta, resta ainda constatar: essa construção é sempre solitária.
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Recebido em 15 de junho de 2007
Aceito em 23 de abril de 2008
Revisado em 15 de maio de 2008
Notas
1. Usamos os termos 'escritor' e 'poeta' no sentido lato de 'criador literário' [Dichter].
2. Obra de Guimarães Rosa.
3. Livro de Jensen.