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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Narcisismo e adolescência: as (im)possibilidades de aprender

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Analisa as manifestações do narcisismo e suas marcas na estrutura psíquica e no desempenho escolar de adolescentes com sucesso e insucesso na aprendizagem. As entrevistas apontaram para o que o autor denominou transtorno narcísico na aprendizagem, visíveis em comportamentos nos quais predominaram o processo primário, o empobrecimento do conhecimento pessoal e escolar, as oscilações de estima inferiorizada ou grandiosa e a dificuldade de manutenção da autoria de pensar e tornar sublimada, produtiva a capacidade intelectual para obter êxito nos investimentos sociais e escolares. Esses adolescentes mostraram quanto estavam presos nas malhas familiares, oscilando entre a infância e vida adulta, com medo de assumir responsabilidades, de seguir um caminho rumo à independência e com prejuízos na construção de vínculos com a realidade e com o conhecimento escolar.

Palavras-chave: Adolescência, Aprendizagem, Narcisismo, Transtorno narcísico na aprendizagem.


ABSTRACT

The present study focused narcissistic manifestations and their repercussions on adolescents' psychological structures and on their successful and unsuccessful school performance. The results indicate a narcissistic learning disorder characterized by primary process behaviors, precarious knowledge of themselves and of school experiences. They indicate also great oscillations between low and high self-esteem, difficulty to maintain organized thought and to preserve intellectual capacity apt to obtain success on social and school investments. Thus, the adolescents are caught in familiar nets, their development oscillates between childhood and adulthood, they are afraid of taking responsibilities and of pursuing their autonomy and they have deficits on establishing connections with real life and with school knowledge.

Keywords: Adolescence, Learning, Narcissism, Narcissistic learning disorder.


 

 

Sobre o Narcisismo de quem se Guarda do Outro

A análise das manifestações do narcisismo de adolescentes com (im)possibilidades de aprender propiciou uma revisão teórica do conceito de narcisismo na Psicanálise e uma reavaliação da posição do psicanalista, às vezes tão distante do cotidiano dos sujeitos, quando trabalha com histórias de vida que seguem um fluxo do passado para o presente, ou do presente para o passado, para que esses tomem consciência de seus conflitos, sintam algum alívio dos sintomas, mas não atua teórica e tecnicamente com seus conhecimentos em âmbitos institucionais. A experiência de trabalhar com uma realidade distinta a partir do conhecimento psicanalítico ampliou meu olhar sobre a clínica desenvolvida por Freud e suas contribuições teóricas, pois estas podem subsidiar outros campos de investigação como o proposto neste trabalho.

Neste transcurso, percebi, de modo mais claro, que o narcisismo é um modo do funcionamento egóico. Um investimento sobre o próprio Eu em contraste com o investimento no mundo objetal. E sem a síntese ego-narcísica, a sobrevivência do sujeito está comprometida, pois essa dá uma temperatura, um matiz ao desenvolvimento, às aprendizagens de cada um e às suas representações sobre a realidade.

Para Costa (1998), a síntese ego-narcísica representa o primeiro anteparo imaginário na luta contra a angústia derivada da impotência e do desamparo do Eu em face de um Outro. O ego é o primeiro "não" dado à onipotência do Eu. É a primeira reação imaginária capaz de objetivar a fonte e o objeto de angústia. Com o ego e seus contornos imaginários, o sujeito depara-se com o outro sujeito assim como com o dentro e o fora, o antes e o depois.

O ego não existe desde o início, desenvolve-se na relação com o Outro. A identificação é o processo que decorrerá dessa relação e que irá propiciar o meio pelo qual o ego fará investimentos ligados ao imaginário e ao simbólico a partir da história de cada pessoa.

O imaginário humano é inseparável do simbólico. A constituição do sujeito psíquico representa esta singularidade indizível, revelada na ação e no discurso, que fundamenta o início da vida, do novo, do imprevisível na teia das relações humanas.

"Onde há início há sujeito; e onde há sujeito há desejo, mundanamente objetivado por ações e por discursos. No mais é o ego narcísico que, de acordo com sua constituição imaginária, tenta historicizar o início imprevisível, criando representações positivas de quem age e quem fala, como sendo o que sou Eu ou o que é o outro" (Costa, 1998, p. 9).

A adolescência foi vista sob o referencial teórico psicanalítico, assim como as dificuldades escolares, os encontros e desencontros entre professores e alunos, as parcerias e as diferenças entre esses grupos.

A meta foi refletir sobre as vicissitudes do narcisismo, do ponto de vista teórico e clínico, e sobre suas repercussões na vida dos adolescentes, considerando as esferas pessoal, social e estudantil.

Nessa trajetória percebi que as pessoas mais jovens apresentam novos sintomas, ligados a novas formas de se situarem num mundo que se distancia da moral sexual civilizada descrita por Freud. Acredito que uma das maneiras pelas quais essa mudança de hábitos civilizatórios e valores pode ser discutida é através dos distintos modos ou estilos de vida que fazem parte do cenário das cidades contemporâneas, influenciando as manifestações patológicas do narcisismo na construção do conhecimento escolar.

Desde o início vi que esse fenômeno é facilmente observável nos grupos de adolescentes, os quais parecem sustentar-se na indiferenciação, no sujeito coletivo das ruas e das instituições de ensino.

A falta de identificações adequadas na família e na escola, através de adultos confiáveis, parece determinar a falta de metas e de capacidade sublimatória, impedindo o jovem de tolerar a frustração e a realidade limitadoras da onipotência infantil.

Hoje a Psicanálise pergunta e se pergunta se o Édipo, ou o pai, ou a lei não ocupam mais a função central na constituição subjetiva, que ocupavam na sociedade burguesa dos séculos passados. Se isso pode ser visto dessa maneira, precisamos pensar em outros dispositivos que nos ajudem a compreender a organização e a estruturação da personalidade das crianças e dos adolescentes na tentativa de evitar seus fracassos sociais e escolares.

 

Os Contextos de Vida e de Aprendizagem dos Adolescentes

A partir de algumas constatações, na minha função de psicanalista e professora de jovens adultos, escolhi trabalhar com um grupo de adolescentes igual e diferente a tantos outros grupos que vivem separados dos pais, pois moram num internato no qual podem instrumentalizar-se com os conhecimentos do Ensino Fundamental e das práticas de trabalho. São todos meninos que, por carências econômicas e familiares, conseguiram uma vaga nesta instituição. Podem sair apenas nos fins de semana. Vivem entre outros meninos e adultos, funcionários que atendem aos serviços gerais do internato, vivem e aprendem muitas coisas sozinhos, com o desamparo de quem tem muito para esperar e às vezes pouco ou nada para encontrar. Escolhi esses meninos como poderia ter escolhido outros meninos e meninas adolescentes, institucionalizados ou não. Penso que as características sadias e patológicas do narcisismo podem ser encontradas em todos os lugares, em adultos, adolescentes e crianças, desde que tenhamos coragem e tolerância de caminhar entre Narciso e Édipo, compreendendo o acesso que cada um teve ao próprio desejo, quando se viu alienado do desejo do outro.

Na Psicanálise as idéias sobre o narcisismo apontam para diferentes perspectivas conceituais na tentativa de compreender esse termo e de integrá-lo aos estudos da personalidade.

O conceito de narcisismo tem sido amplamente discutido, desde o seu aparecimento, nos trabalhos de Freud, até os dias atuais, em termos de normalidade e patologia, no desenvolvimento emocional e social do indivíduo. O narcisismo está presente em todos os contextos humanos. Nas histórias de ligações e perdas do sujeito, nas atitudes e ações, o narcisismo está presente, alterando e submetendo a consciência, o discernimento da realidade, bem como a convivência com diferentes grupos e culturas.

No narcisismo o ego é tomado como objeto de amor e é investido pela libido. É a partir do narcisismo e suas transformações decorrentes das identificações com os pais, com os seus substitutos e os ideais coletivos, que irá constituir-se o ideal do ego.

Nos estudos psicanalíticos a singularidade remete a um processo inconsciente, a uma marca simbólica na qual cada sujeito adquire sua identidade. A constituição narcísica do Eu envolve um desejo inconsciente, um desejo que precisa tornar-se conhecido. Birman (1999) enfoca as novas subjetividades em torno da chamada "cultura do narcisismo", expressão usada por Lasch (1983), em que um ego inflado, em exclusivo autocentramento, procura a estetização de si mesmo, ignora o Outro. A alteridade deixa de existir como um valor, exceto o de uso para engrandecimento do próprio sujeito.

Para estudar este conceito, foi fundamental retomar as idéias de Freud e de outros psicanalistas de diferentes escolas, antes de analisar as falas dos adolescentes e a imagem que trazem de si mesmos e de suas aprendizagens. Uma imagem, às vezes, ofuscada pela dependência do Outro, ou pela impossibilidade de se responsabilizarem pelo próprio crescimento.

Nas escolas há um número crescente de crianças e, principalmente de adolescentes, que permanecem paralisados diante dos conhecimentos científicos e dos vínculos grupais por falhas nos processos identificatório e de castração simbólica, com freqüentes fracassos no desempenho das atividades acadêmicas e sociais.

Evidencia-se um idealismo e uma exaltação das diferenças, os quais se tornam explícitos na adolescência. Uma promessa de singularização que, no entanto, jamais é alcançada do modo como foi prometida, pois a lógica do saber e do ter está articulada com a desigualdade. Os sentimentos de identidade e de pertencimento apóiam-se na materialidade e o subjetivo fica cada vez mais remetido às imagens de um aluno ideal.

Muitos confrontos entre professores e alunos se dão pela escassez de vínculos, pela falta de desejo de ensinar e aprender. Muitos jovens precisam de apoio e mostram uma precariedade de laços, com uma imagem e estima equivocadas de si mesmos. Tratam das suas experiências, no presente, sem perceber que essas estão pautadas em inadequadas, distorcidas e interrompidas ligações com o passado, com aqueles que deveriam ser sustentadores e frustradores das necessidades e desejos infantis.

Para alguns, foi insuficiente o registro que deveria recalcar os sentimentos de grandiosidade e voracidade, levando-os à incapacidade de tolerar as frustrações e a realidade, interferindo na simbolização e superação do desamparo e da onipotência.

Acredito que a pessoa aprende quando confia, quando passa a enfrentar o desafio de estar só, mesmo junto com os outros, quando suporta a frustração imposta pela separação e diferenciação, pois foi barrada nos desejos infantis de apropriar-se ou manter-se fusionada com a outra pessoa.

A dificuldade de aprendizagem, sem incapacidade orgânica, reflete uma intersecção sintomática do sujeito com a estima de si mesmo e a estima do Outro, um transtorno narcísico na aprendizagem. O sujeito que não aprende necessariamente não tem um déficit mental, por isso é importante questionar os parâmetros adotados na avaliação e compreensão desse fenômeno. É preciso considerar seu modo de viver e ver a si mesmo, seu modo de aprender, seus medos e fantasias, seu narcisismo. O crescimento biológico e emocional transforma as posições das crianças e dos adolescentes diante dos adultos, produzindo desequilíbrios que algumas vezes são compensados e outras vezes não o são.

As dificuldades de aprendizagem, nos casos estudados, representaram contratos malfeitos na identidade e autoria de pensar, sentir e agir com responsabilidade no difícil encontro com o conhecimento e o saber.

Se considerarmos a aprendizagem como uma função que leva à expansão das estruturas mentais e afetivas, o não-aprender pode ser encarado como um sintoma que reflete as paradas no desenvolvimento individual por impasses nos processos de filiação e de reconhecimento diante de um grupo social (Paín, 1987).

Os sujeitos com dificuldades escolares têm problemas de ordem vincular, conflitos, indiscriminações e fantasias impedidoras, não conseguem superar os limites impostos na realidade escolar. Aprender representa tolerância com o tempo e o espaço de comunicação e convivência com o Outro. Ao aprender, o sujeito classifica, ordena, questiona, experimenta e expõe o que sabe, o que é. O conhecimento do mundo não é separado do conhecimento de si mesmo. A conexão com a curiosidade, a inquietação e as idéias depende das motivações internas, do amor por si mesmo.

 

Narciso Adolescente, o Castigo de Afrodite

As histórias dos meninos têm muito em comum pois moravam no internato desde os oito ou nove anos e apenas nos fins de semana mantinham contato com as famílias de origem, principalmente, a mãe e os irmãos.

Considerando-se as mudanças que esses jovens experimentaram, regularmente, quando retornaram às famílias com o compromisso de voltar à escola na segunda-feira, é possível imaginar a "bagagem" de desilusão e dano narcísico que carregam. Eles não puderam ser cuidados e amparados, não puderam ficar em casa.

Eles vivem hospedados, albergados tanto em casa quanto na escola. Nesta situação a constituição narcísica do Eu, pensável à luz dos investimentos parentais, sustentou-se na falta e na conflitiva pré-edípica. Esses meninos têm relacionamentos precários não só pela falta do objeto, mas pela falta no objeto que não pode ser continente das necessidades, desejos e expectativas de ligação e segurança emocional, pois não fortaleceram os processos de identificação e estima de si mesmos, o narcisismo, alicerçado nas identificações com pessoas significativas em suas vidas.

Os adolescentes do internato têm de escapar da dor psíquica de não poder tocar e ser tocado pelo Outro, pois isso representaria o confronto com a dependência necessária para o estabelecimento de relações objetais diferenciadas e maduras, dependência que não podem manter. Ir e vir, olhando para os lados, procurando sempre alguma coisa, sem identificar o que está sendo procurado e sem identificar-se. Eles têm de cuidar de si mesmos desde cedo, evitar os perigos que não sabem muito bem quais são, mas que existem, porque foram contados ou mostrados nas comunicações sobre eles e sobre suas vidas.

Desde os primeiros contatos com o grupo procurei compreender suas falas psicanaliticamente. Acredito que a interpretação psicanalítica pode estender-se às produções de fala dos sujeitos, em situações institucionais mesmo que seu campo de aplicação privilegie a área clínica. Ainda que não dispondo das associações livres, das interpretações transferênciais, entendi que, desde que fossem atendidas as combinações feitas com cada um na manutenção do sigilo e da confiança nas comunicações, seguindo as regras de abstinência analítica, era possível utilizar o referencial psicanalítico na análise das conversas que tivemos.

O estudo psicanalítico é subjetivo, lida com sintomas, sonhos, mitos, produções que devem tornar-se conscientes à pessoa. A Psicanálise produziu um saber desde Freud sobre a sexualidade infantil, o inconsciente, o recalque, a conflitiva edípica através do percurso clínico, no tratamento individual de pacientes denominados neuróticos. O trabalho psicanalítico encontrou inconscientes para a maioria de nós, complexos de idéias carregadas de afetos que, se fossem conscientizadas, provocariam desprazer, por isso o recalque primário e depois a repressão como defesa das necessidades e dos desejos proibidos. Essas idéias fundamentais mostraram que emoções e comportamentos são, em boa parte, determinados por fatores inconscientes. Esses fatores podem ser impulsos, temores, desejos que cada um guarda sem dar-se conta de sua existência. São sentimentos que tendem a seguir uma lógica racional, consciente, mas geram conflitos entre si ou com a realidade na qual se situa o sujeito.

As resistências do inconsciente podem manifestar-se, visto que não ocorrem somente por uma censura moral, mas também intelectual, como uma certa ameaça à razão e à lógica. Apesar da censura, os desejos reprimidos conseguem encontrar uma satisfação através de um pensamento que assegura o princípio do prazer, o denominado processo primário que não tem uma lógica implícita, ignora o tempo, não leva em conta a negativa, não tolera a demora. Os processos primário e secundário são complementares e competitivos, obedecem a diferentes tipos de razão. Daí por que muitos sujeitos não conseguem suportar o princípio da realidade, o processo secundário, pautado na espera e na frustração. Isso leva à situação analítica, na qual as duas partes que constituem uma verdadeira essência são reunidas e separadas, experimentadas pelo analista e pelo analisando. A forma para que isso seja estabelecido acontece no discurso, que indica que parte de si próprio o analisando pretende pôr em contato com o analista.

Na perspectiva psicanalítica, o discurso é e não é o próprio sujeito, uma vez que se constitui da racionalização e da negação, atuando ao mesmo tempo. O discurso é produzido pela atividade simbólica que tenta reunir o que está separado com outra forma de reunião. No ato de interpretar, o analista trabalha com esse vai-e-vem.

Nos encontros com os adolescentes procurei não intervir em suas vidas, pois estes eram pré-determinados em tempo e espaço. E nas entrevistas foram solicitados a falar livremente sobre a percepção de si mesmos, suas preocupações, receios, metas e expectativas futuras, contextos de relacionamento e aprendizagem escolar. Também não privilegiei os aspectos transferenciais e contratransferenciais, fundamentais na técnica psicanalítica em função do tipo de interação que se estabelece entre analisando e analista no setting terapêutico.

No decorrer das três entrevistas individuais, fui revendo o mito e compreendi que Afrodite desejava que Narciso atraísse o amor da humanidade e saísse de seu encantamento e paralisia ao ver a própria imagem refletida numa fonte. Enviou ninfas para despertá-lo, entre elas Eco, mas de nada adiantou. Afrodite, então, castigou Narciso de modo revelador, em uma versão transformou-o em estátua e em outra na flor conhecida como Narciso.

Narciso se estruturou na busca, no encontro com a imagem refletida e na rejeição a Eco, ou melhor, na aceitação e cumplicidade dessa nessa rejeição. As manifestações de Eco não foram adequadas para retirar Narciso das fantasias e das resistências, para enfrentar as perdas, a vaidade e a incapacidade de aprender a olhar a si mesmo e ao Outro de forma realista, tão característica no narcisista.

Em parte, compreendi o sentido das repetências de N., a dificuldade de comunicação de A. com colegas e professores e as fugas de M. do internato.

Os personagens do mito foram condenados por um amor proibido, no qual o conservar e o entregar tudo para si próprio ou para o outro destruiu a chama da vida.

 

Egoísmo, Medo, Entrega ou Esquecimento: Reflexões Finais

O adolescente precisa viver o luto, a perda do objeto, no sentido psicanalítico do termo, através de separações sucessivas. A perda envolve sentimentos de amor, ódio, ambivalência; e o adolescente é levado a conquistar sua independência, a libertar-se das figuras parentais e a conviver com a conflitiva edipiana. Porém, os ideais, a onipotência infantil, os desejos infantis, a percepção da realidade evocam defesas, regressões, depressões e atuações. Na tentativa de proteger-se do conflito interiorizado e do sofrimento psíquico, o adolescente pode travar toda e qualquer possibilidade de maturidade progressiva com uma incessante repetição das situações que experimentou na infância como se fosse sua única saída.

Os dados que obtive nas entrevistas me fizeram considerar que o transtorno narcísico na aprendizagem decorre de regressões e paralisações no processo de socialização e de aprendizagem em função das experiências iniciais do desenvolvimento emocional da criança.

No que se refere às dificuldades de aprendizagem, acredito que o adolescente já construiu, em parte, uma atitude diante da possibilidade de aprender, no modo como percebe a si mesmo. Uma atitude que se estabeleceu desde os primeiros anos de vida, com as trocas e expectativas familiares quanto ao destino de cada um. Um destino baseado nos conhecimentos subjetivo e objetivo, ancorado nas fantasias e nos vínculos estabelecidos com a realidade, com a circulação de papéis apresentados no âmbito familiar.

Nesse sentido, destaco o valor das condições parentais para responder às curiosidades da criança e do adolescente, sem excesso de repressão e liberdade, aceitando a existência de medos e segredos, que não podem ser contados; ou as manifestações das onipotentes ilusões narcísicas que os jovens trazem em seus contatos com o Outro e a realidade.

Nas entrevistas com os adolescentes, observei a labilidade afetiva dos que têm danos narcisistas, quando tentam manter e sustentar as identificações com os companheiros e os adultos, a partir das ligações do passado, na maioria das vezes idealizadas. Suas mutações de comportamento desde a auto-idealização até o autodenegrimento, com reprovações melancólicas diante das possíveis perdas ou fracassos, atestam a precariedade de seus vínculos. A necessidade do Outro, como destinatário de identificações projetivas e como doador de amor, é imprescindível no jogo ilusório das semelhanças e no estabelecimento da fantasia e das defesas narcisistas, entre elas a onipotência.

Para esses sujeitos foi difícil lidar com a diferença e a exclusão, com a representação distinta do Outro e com a perda, por isso mantêm uma atitude de controle e isolamento em seus relacionamentos.

Penso que todos precisam do reconhecimento, do olhar refletor, da palavra para apoiar a estima pessoal e para suportar as demandas externas, sem isso advêm o colapso, a ausência, a dor de nada ser e, portanto, ascender ao Ter. Por isso as histórias de aprendizagem social e escolar desses adolescentes apresentam tantas falhas.

Os jovens que conheci demonstram uma ambivalência no Ser e no Ter decorrente da intolerável separação dos pais, da casa, da intimidade de um lugar para viver. Eles moraram com alguém, com um grupo, uma família, que continua responsável por eles, mas sentem-se abandonados. Alguns tiveram a presença de uma mãe e de um pai que por algum motivo se afastaram, levando-os a defrontarem-se com a realidade dos que não têm privilégios sociais, dos que têm de superar, desde cedo, a perda dos laços parentais.

N. e A. ficam em casa nos fins de semana. Não gostam de sair, não têm amigos fora da escola, não gostam da situação que vivem no internato. M. também não gosta, mas diferentemente de N. e A . foge de lá sempre que pode. Eles dizem aceitar a separação da mãe, mas o fazem para tolerar as mágoas do abandono. As famílias são pobres, têm uma renda mínima, eles são sustentados pela Instituição, os pais não oferecem ajuda e quando o fazem não é suficiente para prover o narcisismo desfigurado dos meninos que moram no internato.

N. tem vontade de ser livre, não ser machucado por ninguém, não ser feito de bobo. Tem medo da agressão, de perder o respeito dos outros. A. é dócil, quer ser valorizado, bem tratado, admirado pelas pessoas. Tornou-se um bom aluno, para ganhar prestígio, ter privilégios diferentes dos colegas de internato. Ainda assim, A. é impotente diante das acusações dos colegas, sem capacidade para reagir e defender-se, prefere o silêncio, a mansidão para não ser maltratado.

M. não se preocupa com os companheiros, com a maneira como é visto. Encara as situações de forma desafiadora, não mostra interesse nos estudos. Quer ser jogador de futebol e namorar. Mostra um narcisismo frágil, uma forma onipotente de encarar a realidade e fantasias grandiosas. Impõe-se causando receio nos outros, ataca, porque isso lhe traz um certo prazer e alívio. Desliga-se, faz rupturas com o conhecimento e com as pessoas na escola. Não parece confiável, vive em deslizamentos, bordejando ganhos imediatos.

Entendi, com as histórias desses jovens, que a função materna é essencial na organização e fortalecimento do ego, que a função paterna é imprescindível na sustentação da estruturação psíquica e na verticalização do filho.

O pai representa um pólo articulador na vida da criança. Para o menino um esteio narcísico, um modelo identificatório. O pai tem uma função estruturante, separadora da ligação mãe-filho, enraíza a criança na filiação do sobrenome e na linhagem que transmite. Alguns meninos da Instituição não receberam o sobrenome do pai, não o conheceram, foram alijados de suas representações desde o início da vida.

Para Dolto (1999), desde o nascimento, o narcisismo da criança cruza-se com a linguagem não-verbal e verbal da mãe, dando uma sensação de continuidade e coesão para o sujeito. O narcisismo segue um continuum que vai da vida fetal até a morte, ligado à imagem do corpo, construindo-se no dia-a-dia na relação com a mãe, com o pai e com os outros familiares. As pessoas parentais respondem pelo narcisismo da criança constituído num espaço triangular.

Avalio que os sintomas das crianças e dos adolescentes que têm dificuldades para aprender, sem uma causa orgânica, são perguntas mudas, mensagens por decodificar, mal-entendidos e expressões de enganos, que se manifestam em prejuízos na aprendizagem escolar. Compreendo que esses sintomas advêm da frustração do objeto real, representado na falta imaginária do objeto simbólico ou na privação deste, bloqueando a capacidade de pensar.

Como formulou Bion (1988), a incapacidade de pensar é resultante da incapacidade do grupo familiar, principalmente da mãe, em acolher as angústias dos filhos. Bion se referia ao pensar baseado nos vínculos humanos como um esforço para compreender a si mesmo, a realidade própria e a do Outro a partir das experiências emocionais da infância.

Compreendo que, na adolescência, o efeito de estruturas familiares desarticuladas gera um predomínio de fantasias de abandono e solidão, associadas a uma incapacidade de lidar com os sentimentos pessoais. O abandono pode ser interpretado como impossibilidade de satisfazer os pais, acentuando o sentimento de desvalorização, a sensação de ser ruim. Os adultos não podem responder por nada, afinal eles estão sós e devem passar por tudo que vivem no momento. Isso gera mais desconforto e insegurança, um ir e vir que os aprisiona. Não podem confiar, dar significação aos sentimentos, estão sozinhos, por isso burlam a realidade, burlam para sobreviver aos encontros e às separações.

Acredito que precisamos "morrer" muitas vezes em vida para aceitar e enxergar nossa história, a história da nossa família, das expectativas de acolhimento e salvação, que foram impregnando nossas fantasias e medos infantis.

Vejo que esses jovens precisam abandonar o desejo bizarro de mudar de corpo e de alma, mesmo que insatisfeitos com o papel que representam no mundo. Mas eles continuam olhando os outros como se fossem melhores, ou piores, têm medidas para quase tudo, não podem dar-se conta de que em toda a vida há dramas que, na maior parte do tempo, permanecem reprimidos.

Talvez o mais sensato seria aceitar o que são, como são, com os limites que derivam da relação com os pais, substituindo a fuga, o isolamento, a falsa aparência, a impulsividade pelo Ser, pela autoria de Ter uma solução para os problemas da vida. Tal caminho poderia ser a saída para evitar o transtorno narcísico na aprendizagem, um caminho que exploraria as fantasias, trabalhando-as de forma criativa, sem angústias, transformando-as em produções.

Talvez o mais sensato seria pensar que o pior abandono é se abandonar e viver de forma abandonada e inter-romper a visão onipotente e ameaçadora do mundo, para testar a realidade e modificá-la, sempre que necessário, assegurando o acesso ao mundo simbólico com sentimentos mais amigáveis a respeito de si mesmo.

Identifiquei que os problemas narcísicos representam um dano, um obstáculo na aprendizagem, mas podem ser uma força motivacional para o sucesso, desde que não se voltem contra o sujeito, escravizando-o na procura da admiração e da submissão incondicional dos outros. Essa seria a outra prisão do narcisista, não poder errar, não poder falhar, tão ruim quanto a do não poder ver, escutar, só dominar, independentemente da dor que provoca em si mesmo e nas outras pessoas.

Entendo que ser amado e aceito significa uma restauração parcial do narcisismo inicial do ser humano e da tentativa de alcançá-lo ou superá-lo. O amor por si mesmo só poderá ser conseguido com novos vínculos, com a ampliação do mundo das fantasias e desejos, com a entrada de novos personagens, novas identificações e conhecimentos.

Os adolescentes que conheci estão sós, pois seus pais estão envolvidos com as próprias necessidades, não têm condições de ajudá-los e compreendê-los, nem ser continentes de suas angústias. São pais que outorgaram à escola e ao internato o dever de criá-los com a esperança de um futuro melhor. Para que tal projeto aconteça, outros adultos se farão necessários, os professores e educadores da Instituição, desde que esses aceitem a solidão que os meninos carregam, o sofrimento, não só físico, mas sobretudo psíquico.

Para finalizar um poema de Carlos Drummond de Andrade, "Fim da Casa Paterna":

É chegada a hora negra de estudar.
Hora de viajar
rumo à sabedoria do colégio.
Além, muito além de mato e serra,
Fica o internato sem doçura.
Risos perguntando, maliciosos
no pátio do recreio, imprevisível.
O colchão diferente.
O despertar em série (nunca mais
acordo individualmente soberano).
Até o céu diferente: céu de exílio.
Eu sei, que nunca vi, e tenho medo.
Vou dobrar-me
à regra nova de viver.
Ser outro que não eu, até agora
musicalmente agasalhado
Na voz de minha mãe, que cura doenças
escorado
no bronze de meu pai, que afasta raios.
Ou vou ser - talvez isso - apenas eu
unicamente eu, a revelar-me
Na sozinha aventura em terra estranha?
Agora me retalha
o canivete desta descoberta:
eu não quero ser eu, prefiro continuar objeto de família.

Penso que para N., A. e M., é imprescindível crescer mesmo exilados da casa materna. Eles precisam cumprir a missão de adaptar-se no insólito e "frio" internato mantido por religiosos na companhia de outros meninos, tão desamparados quanto eles. Precisam passar do Ser para o Ter ainda que tenham pouca coesão e estabilidade afetiva para isso. Precisam viver sem a voz da mãe e a proteção do pai, que afasta os perigos.

Eles têm um futuro, uma história para ser contada. Espero que o transtorno narcísico na aprendizagem não os faça repetir as misérias vividas com os pais.

Espero que Zeus permita que a caixa de Pandora seja fechada depois que a ESPERANÇA aponte um futuro melhor para esses adolescentes que, desde a infância, foram alijados de uma mãe e de um pai confiáveis, que lhes dessem saudosos laços de família.

 

Bibliografia

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