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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.29 Belo Horizonte set. 2006

 

CONVIDADOS DA PRESIDÊNCIA

 

Limites da sublimação na criação literária1

 

Limits of sublimation in literary creation

 

 

Ana Cecília Carvalho

Psicanalista. Escritora e professora-adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde leciona na Graduação em Psicologia e na Pós-Graduação (Mestrado e Especialização) em Psicanálise. É doutora em literatura comparada e autora dos livros A poética do suicídio em Sylvia Plath (BH: Editora da UFMG, 2003) e Uma mulher, outra mulher (BH: Lê, 1993), entre outros

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Discute o conceito de sublimação a fim de examinar os aspectos funcionais e disfuncionais da criação literária na vida e na obra dos escritores suicidas Paul Celan, Anne Sexton, Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar. Defende a idéia de que a sublimação deve ser vista como um conceito metapsicológico e não como um conceito moral, e enfatiza o papel desempenhado pela pulsão de morte no processo criativo.

Palavras-chave: Sublimação, Metapsicologia, Criação literária, Pulsão de morte, Suicídio.


ABSTRACT

In this article the author discusses the concept of sublimation in order to examine the functional and disfunctional aspects of literary creation in the lives and works of suicidal writers Paul Celan, Anne Sexton, Sylvia Plath and Ana Cristina Cesar. She defends the idea that sublimation must be seen as a metapsychological concept and not as a moral concept, and stresses the role taken by death instincts in the creative process.

Keywords: Sublimation, Metapsychology, Literary creation, Death instincts, Suicide.


 

 

Escrevo só porque
Há uma voz dentro de mim
Que não se cala nunca.
(Sylvia Plath)

Sob cada palavra existe o nada.
(Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno)

 

Uma questão tem-me movido em minhas pesquisas sobre o processo da criação literária, revelando um aspecto que, não sendo em geral percebido imediatamente na relação da arte com o psíquico, parece interpelar a psicanálise2. Poderíamos colocar essa questão de um modo simples, embora sua resposta exija um certo esforço: por que será que, para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só não liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo? Na minha exposição tentarei jogar alguma luz, ainda que modesta, sobre esse problema complexo.

Sem nunca ter tido a pretensão de esclarecer completamente o enigma do processo criativo, Freud o relacionava, como sabemos, ao conceito de sublimação, um dos “destinos pulsionais”, como ele a descreveu.3 Neste ponto é importante lembrar a advertência feita por Sarah Kofman, em seu livro A infância da arte4, ao afirmar que devemos pensar na sublimação não como um conceito moral mas sim como um conceito metapsicológico. Vista dessa maneira, a noção de sublimação nos possibilita examinar o processo criativo do mesmo modo que faríamos para analisar qualquer formação relativa ao campo pulsional, levando em conta a dinâmica nela envolvida, sua determinação inconsciente e sua economia. Esta perspectiva permite pensarmos no que estaria envolvido na metapsicologia do processo criativo em geral e na escrita literária em particular, destacando os elementos que se relacionam às suas funções e limites. Na dimensão da escrita literária, podemos descrever esses limites em extremos que ora se distanciam ora se aproximam e se misturam em uma espécie de fertilização cruzada, para produzir o texto: o pólo da vida e o pólo da obra; o pólo do transbordamento pulsional e o pólo da simbolização; o pólo do excesso e o pólo da contenção, o pólo funcional e o pólo disfuncional.

Para continuar respondendo à pergunta formulada no início, precisamos ter em mente três das noções mais conhecidas sobre a criatividade. Vou retomá-las rapidamente para ver em que medida elas nos ajudam. A primeira dessas noções segue as primeiras formulações de Freud sobre a sublimação e atribui a esse peculiar destino pulsional a capacidade de sempre promover uma espécie de apaziguamento do sofrimento psíquico, organizando-o numa direção construtiva e benéfica. Segundo essa visão, ali onde os sintomas são o resultado de um arranjo conciliatório – nem sempre condenado ao fracasso, é verdade – entre as forças antagônicas que fazem parte do psiquismo, a sublimação, não sendo propriamente uma conciliação, seria uma alternativa mais “saudável” do que as defesas desgastantes que possuímos para lidar com nossos conflitos. Desse modo a sublimação seria um processo que transforma o mundo interno daquele que cria, em algo organizado senão prazeroso. Segundo uma outra concepção, de inspiração lacaniana, pelo menos para alguns indivíduos a criatividade, não se opondo à formação dos sintomas e de outros fenômenos, permite também alguma forma de inscrição subjetiva. Na medida em que por meio da criação o sujeito, digamos, firma a singularidade da sua assinatura fazendo, assim, um ponto de amarração em seu posicionamento subjetivo – como nos mostrou Lacan em “Joyce, o Sintoma”5 –, o sofrimento psíquico encontraria na via da criação uma expressão diferente dos sintomas da neurose e das manifestações da psicose, naquilo que os caracteriza como expressão cifrada, repetida e não compartilhável. Uma terceira formulação, derivada desta última concepção, entende que a especificidade da sublimação talvez tenha muito mais a ver com o efeito que resulta na transformação compartilhável de uma experiência subjetiva singular, ou seja, no tipo de laço social estabelecido através do produto artístico, do que com uma suposta interioridade de onde provém o impulso criativo.

Ninguém pode negar que tais possibilidades existem, e certamente é incontável o número de pessoas que conseguiram encontrar uma outra via de expressão e de transformação de seus problemas, através da arte e da criação literária, ainda que isso não tivesse sido o principal motivo que as levou a esse campo. Contudo existem situações, sobre as quais lhes falarei daqui a pouco, em que tudo parece caminhar numa outra direção, e é então que essas concepções que acabei de rever deixam de nos ajudar. Não só porque mantêm inexplicado o fato de que o indivíduo criativo não está livre de desenvolver sintomas ou outros tipos de manifestação de sofrimento psíquico, como também, se nos ampararmos nelas pensando que a sublimação constitui uma saída menos sofrida, logo veremos que não adianta recomendar que alguém pinte um quadro ou escreva um poema, em vez de ficar confinado no sofrimento, mesmo se esse indivíduo possui talento. Além disso, embora essas formulações sobre a sublimação aludam à via de mão dupla que parece existir entre o sofrimento emocional e o processo criativo, elas apenas nos mostram o que, dentro e fora da psicanálise, todos pensam sobre a criatividade, que é o seu lado funcional.

Para irmos um pouco além, é preciso destacar uma importante noção sobre a sublimação que Freud apresentou somente em 1923, em uma formulação mais tardia. Essa noção é geralmente pouco citada, eu diria mesmo que é recalcada, na medida em que contém algo inquietante para aqueles que se apegam à idéia de que a arte e a literatura constituem algo sagrado que deve ser mantido intacto, protegido da profanação perpetrada pelo olhar da metapsicologia psicanalítica. Se de todo já não era fácil admitir a linha de continuidade que Freud estabeleceu entre a sublimação e a sexualidade infantil, mais difícil ainda será concordar em acompanhá-lo quando, em O Ego e o Id, ressaltar a característica desfusão pulsional envolvida na sublimação, aspecto que, em decorrência da dessexua-lização, “coloca o eu a serviço de objetivos opostos aos das pulsões de vida”. A partir do momento em que a pulsão de morte é introduzida na teoria psicanalítica, Freud pensará que da sublimação resulta uma liberação das pulsões agressivas no supereu, pulsões que lutam contra a libido, ficando o eu exposto “ao perigo de maus-tratos e morte”6.

Segundo esta formulação, que a meu ver é imprescindível para uma análise do processo criativo e seus destinos, a sublimação não apenas não pode deixar de se referir à angústia ou à dor psíquica (mesmo se pensarmos na criatividade como um destino “mais nobre”, mais feliz ou menos defensivo para o sofrimento) como também em seu interior a possibilidade – senão o necessário retorno – dos elementos sentidos como perigosos internamente implica um risco que a própria noção de “destino menos defensivo” ressalta ainda mais. Em outras palavras, na sublimação é preciso que o artista e o escritor mantenham algum grau de contato com a fonte desses perigos para poder criar. Se nada disso impede que, por meio da produção artística e literária, alguém canalize, ligue e transforme, em diferentes níveis, os derivados do campo pulsional – já que é por meio dessas ligações e dessas transformações que o psiquismo tenta dominar a intensidade de tais processos – não parece, porém, que o indivíduo esteja protegido dos perigos internos por meio da sublimação, já que, como nos adverte Freud, ela própria é potencialmente desorganizadora. Esses aspectos apontam para a existência de limites na economia da sublimação (limites não do conceito, que a meu ver permanece sendo um bom conceito, mas na função dos processos psíquicos descritos sob esse nome). Talvez fosse interessante considerarmos que é a maior ou menor proximidade dos arranjos sublimatórios em relação ao sofrimento que eles buscam dominar que dará conta dos vários destinos da criatividade, tenham eles êxito ou caminhem para o fracasso. Os destinos desses arranjos devem ser entendidos, descritivamente, como variações na distância da sublimação em relação às fontes pulsionais.

Se considerarmos estes aspectos, estaremos mais preparados para abordar um fenômeno intrigante, que é a morte trágica daqueles escritores (sobretudo aqueles que, confessadamente, acreditavam na função organizadora, senão terapêutica de seu trabalho) que se suicidaram durante um período de intensa produtividade literária. Resguardada a diversidade dos contextos históricos, culturais e individuais em todos os casos que pudéssemos aqui evocar, talvez seja possível avaliar o tipo de envolvimento existente entre a sublimação e o sofrimento emocional, se examinarmos de perto a relação entre a escrita literária e o suicídio do escritor. Portanto, nós nos vemos aqui obrigados a pensar não só no caráter funcional e prazeroso do processo criativo, mas também nos elementos que circunscrevem os limites da sublimação e indicam a presença de aspectos disfuncionais no interior desse campo. É por esta razão que precisamos recorrer à formulação freudiana de 1923, que mencionei agora há pouco, porque, mais do que as outras concepções, ela nos ajuda a esclarecer a natureza desses limites, que dizem respeito à função da escrita como sublimação e à destrutividade potencial que existe entre a ordem pulsional e os recursos disponíveis para a sua contenção e eventual transformação.

Surgindo no esforço literário de certos autores suicidas, como Paul Celan, Anne Sexton, Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar, essa destrutividade faz coro com seus destinos trágicos e aponta para a predominância dos elementos que, mobilizados pela escrita, são os mesmos que os levaram a renovar interminavelmente o sofrimento psíquico. Seus textos parecem alternar-se em uma escrita sem fim, sem finalidade, escrita de excesso (que mergulha sem nenhuma proteção na fonte do sofrimento), e uma escrita com fim, com finalidade, escrita de contenção (esta mais defensiva e distanciada), mostrando a maior e também a menor das distâncias das ligações efetuadas sob o regime da sublimação. O que se perfila na interação escrita-vida-morte, na obra de um autor suicida, é, enfim, o limite da escrita como sublimação, mais precisamente aquilo que acena para o ponto de indizibilidade no coração da linguagem.

Sylvia Plath, por exemplo, dizia suspeitar que a “inundação” (deluge) não poderia ser inteiramente contida pelo “polegar da palavra no buraco do dique”7, mas procurou fazer com que o fluxo das palavras jorrasse com a mesma intensidade da hemorragia psíquica. Curiosamente, em um poema de Celan escrito em 1967, lemos que o “dique de palavras, vulcânico” é “afogado pelo rugir do mar”8, ao passo que, sete anos antes, em seu famoso discurso de recebimento do “Prêmio Georg Büchner”, afirmara: “O poema é solitário. Quem o escreve, a ele fica entregue”9. Nesse empreendimento literário, ao ser colocada à altura, ou melhor, nas profundezas do inominável pulsional, a palavra não é buscada para curar: “O jato de sangue é poesia,/ Não há nada que o detenha”10, lemos no poema “Kindness” (“Bondade”), de Plath, escrito poucos dias antes de seu suicídio. É muito notável a convergência dessas enunciações com as de Ana Cristina Cesar em seu poema “Contagem regressiva”, escrito nas últimas semanas de sua vida, no qual se lê: “Os poemas são para nós uma ferida”11. Anne Sexton diria ainda que “o suicídio é, afinal, o oposto do poema”12. É interessante lembrar que Virginia Woolf, não sem razão, procurava alternar a escrita de livros muito carregados de experiência pessoal, que abalavam seu estado emocional, com a escrita de textos que ela chamaria de “livros de férias” ou “livros que descansam de outros livros”13.

Cada uma a seu modo, essas posições dão testemunho da qualidade da mobilização exigida diante da ameaça de transbordamento dos elementos destrutivos que agem em silêncio, no sentido do desligamento e da não-representação, e que a escrita ao mesmo tempo veicula e elabora. Esses elementos pertencem, como sabemos, ao campo da pulsão de morte. O véu que essa escrita tece é esgarçado, “véu de buracos” (cloak of holes), “manto de impossíveis” (sheath of impossibles), como Sylvia Plath escreveu em um poema14, de outubro de 1962 – para melhor deixar transparecer, sem disfarces, o que não pode ser colocado sob nenhuma metáfora, não podendo, por isso, ser elevado a nenhuma posição sublime. A associação intrigante que se mostra entre a sublimação e o suicídio parece colocar em questão a célebre formulação lacaniana de que na sublimação o objeto seria “elevado à dignidade da Coisa”15.

Talvez por isso o poema seria, de acordo com Celan, “linguagem transfigurada de um indivíduo e, de acordo com a sua mais profunda essência, presente e presença”16, o que nos permite pensar que esse tipo de escrita se constrói, praticamente sem distância, da destrutividade que ali se encontra, permitindo concluir que a aproximação entre o eu que escreve e o eu que sofre implica um risco, cujos dois lados são, como disse um crítico, “o triunfo da literatura e a derrota do autor”17. O que é eficiente do ponto de vista estético nem sempre é bem-sucedido do ponto de vista psíquico.

O que se observa aí – muito além do esforço feito no sentido de se encontrar ou não uma representação para a morte, sobre a qual o texto vai-se construir – é a possibilidade sombria e inevitável de que a morte real do autor seja, num mesmo golpe, inscrição, contenção, limite. Tudo parece indicar que enquanto uns apostam que a potência da escrita reside em sua capacidade de resistência, de contenção, recuperação e transformação, outros denunciam justamente sua insuficiência diante do inominável. Nesse caso, é como se a palavra viesse trazer de novo e sempre algo que ela não pode deter. Ainda que pensemos no texto literário como um derradeiro esforço de contenção do sofrimento emocional, o suicídio do autor só faz ressaltar a precariedade desse recurso, numa situação em que a pressão dos impulsos autodestrutivos é, portanto, considerável.

É preciso levar em conta um último aspecto, que é o da repercussão interna que a escrita pode ter para o escritor, pois o que surge junto à questão da finalidade do processo literário é, precisamente, uma toxidez na própria escrita. Chegamos a um ponto no qual temos de reconhecer que, se existe um lado benéfico na criação literária, existe também um lado nocivo, em um duplo aspecto que Platão, não sem uma certa ironia, discutiu em Fedro18. Nessa perspectiva, a escrita, vindo do exterior e não tendo essência ou valor próprio, pode sempre mudar de sentido: jogando no simulacro, serve tanto à vida quanto à morte, residindo aí a fragilidade da sua proteção.

Esse aspecto é o que permitiu a toda uma tradição Romântica em literatura falar do “mal da linguagem”, que na verdade permeia toda a linguagem, incluindo a “linguagem da restauração, que trabalha incessantemente no silêncio”19. É que, quando escrevemos, permanecemos dependentes da linguagem e se esta nos condena a “fazer soar”, também nos condena à mudez. É dessa interface – ou simultaneidade – da faceta restauradora e desorganizadora da linguagem que parece nutrir-se a criação literária. O primeiro desses aspectos coloca um distanciamento entre o escritor e a experiência sobre a qual ele escreve, e faz com que a escrita cumpra seu papel transformador, inventivo, e mesmo restaurador, para não dizer defensivo. O outro aspecto é aquele que promove a imediaticidade na experiência literária, fazendo com que o texto deixe de ser meramente mimético e apresente o Real, mais do que o represente.20 Assim, se a escrita literária resulta da exigência de um trabalho efetuado num momento em que as experiências são recriadas e necessariamente re-significadas, é nesse momento posterior que tais vivências deixam de ser o que eram para se transformar em texto, este sempre inaugural, sempre originário de uma subjetividade. Nesse sentido, podemos pensar que as palavras mostram ao escritor algo inesperado, “ensinam o seu pensamento”21. Não sem razão, a ensaísta americana Susan Sontag22 costumava dizer que só descobria o que pensava quando escrevia. Se o júbilo, o lúdico e o prazeroso fazem parte do escrever, contudo não estão ausentes dele o perigo e a angústia. Remédio para uns, veneno para outros.

Do jogo entre a movimentação pulsional da escrita e o trabalho das forças defensivas que se lhe contrapõem resulta uma tensão ligada aos limites da sublimação. As marcas dessa tensão estarão presentes na enunciação, embora não se possa dizer que a escrita liquidará o conflito afetivo que ali se produz. Ao veicular o afeto, sem, no entanto, o recalcar, a escrita permite que uma presença se inscreva, muito além do nível mimético, nas marcas semióticas que bordejam a pulsão, cada texto testemunhando a constância de um afeto que sustenta um estilo23 – embora estejamos longe de atribuir essa constância a um traço da personalidade do autor. Por isso não se pode dizer que a angústia da escrita seja um pathos determinado, uma vez que não é essencialmente uma modificação ou um afeto empírico do escritor, mas algo pelo qual a própria escrita seria responsável.24 Provavelmente é isso que faz surgir um determinado posicionamento subjetivo que, se não é pré-existente, é construído na enunciação. Contudo isto não impede o impasse que se refere, de um lado, à possibilidade de conexão prometida pelas palavras, e de outro lado, ao drama afetivo de uma experiência desarticuladora propiciada pelo próprio texto. É nesse litoral, às margens do Simbólico, que a escrita literária nasce, realiza-se e encontra seu limite.

O cenário da criação literária é cercado de riscos, não apenas porque o que se pretende, ao que tudo indica, é ir além dos limites da linguagem, devassando-os, mas também por causa da natureza do afeto que, se não mobiliza essa criação, é mobilizado imprevisivelmente por ela. No caso de Sylvia Plath, pelo menos, e parece que esse também era o caso de Sexton, Celan e Ana Cristina Cesar, o afeto em questão é a dor, que em seus textos ressoa como que para dar a impressão de que provém de um centro ferido que sangra psiquicamente sem cessar. Se uma palavra pudesse estancar essa hemorragia, amordaçaria o sentido. No entanto essa dor – que Freud25 definiu como uma “pseudopulsão” (Pseudotrieb) – consome o eu, que se sente compelido a contê-la. Tendo a escrita levado o eu a se aproximar perigosamente desse centro mortífero, onde não existem garantias para encontrar a “palavra-dique” que detenha o fluxo, ou ficará no lugar do jorro e do fluxo das “palavras de água”26 – palavras que aglutinam, mas liquefazem o sujeito; e que são fusão, mas também separação – , ou então poderá buscar na morte real essa contenção.

Penso ser interessante perseguir, finalmente, o que se tornará visível para o escritor como “leitor” que lê, a “apresentação”, nos signos inscritos sobre a superfície do texto, de algo em relação ao qual ele não pode se distanciar. Se a criação literária resulta em uma transformação da experiência subjetiva, é também uma espécie de encenação, cuja concretude é o texto. O próprio ato de escrever objetiva – senão cria – dessa maneira o que julgamos ser seu conteúdo. Se há algo que o escritor viveu dentro de si, exteriorizou e formalizou na escrita, o fato é que isto se torna, no texto, uma coisa diferente: “O texto é uma saída, mas não é o abrigo”27.

Aproximamo-nos do ponto em que a escrita revela construir-se sobre o elo frágil que une os aspectos essencialmente contraditórios da linguagem: seu caráter excessivo e onipotente, que pretende dizer tudo, e seu caráter insuficiente, que nada pode conter. Em decorrência disso, a escrita caminhará em uma direção que não permite qualquer tamponamento daquilo que a sustenta. Neste sentido, lembro as considerações de Blanchot a respeito da necessidade de escrever. Segundo ele28, essa necessidade está ligada à abordagem do ponto “onde nada pode ser feito das palavras e de onde o escritor projeta a ilusão de que tudo poderá ser dito”, devendo essa necessidade ser “reprimida e contida”. Produzindo-se como se bordejasse um “ponto de fuga”29, a escrita tenta superar a contradição da condição do escritor, que, segundo Marguerite Duras, realizaria “a absurda tarefa de escrever que é também se calar”30. Não deve ter sido sem razão que o título do último poema escrito por Sylvia Plath intitula-se, significativamente, “Edge”31 (“Limite”), pois ele aponta para o ponto limite de sua poética. No poema “Força e dor”, de Celan, um dos últimos que escreveu, lemos a “convicção furtiva/de que isto [deveria] ser dito/diferente”.32 E o sujeito da enunciação no último poema de Anne Sexton, intitulado “Carta de amor escrita em um edifício incendiado”, diz estar escrevendo “debaixo de uma máscara” e que “guardará [suas] últimas palavras na geladeira”, onde “talvez elas se conservem” ao abrigo do “incêndio” que tomou conta do texto, da “caixa” em que o sujeito se confinou.33

Nessa poética do suicídio, haveria como que uma espécie de nostalgia por algo que desse conta do tamanho incomensurável do arrombamento ocorrido na trama dos significantes. Essa deve ser, segundo Lacan34, a razão pela qual toda criação é por si mesma nociva e só engendra as conseqüências positivas e negativas que ela mesma comporta. O escritor faz uso das palavras para proteger-se de algo que, em algum nível, é precipitado por nada mais do que a própria linguagem.

Diria, consoante com André Green em sua análise dos aspectos paradoxais e mobilizadores da escrita, que a criação literária se processa a partir de uma dupla pressão: uma “vertical”, parte dos abismos do corpo que fala sem se exibir, “pulsando” o texto e, sobretudo, para obter prazer; a outra, que Green denomina de “horizontal”, mostra que é da própria linguagem que provém o constrangimento35 – ao que eu acrescentaria: disso provém também o transbordamento. O aspecto determinante aqui parece ser o espaço não eliminável – espaço da pulsão –, último reduto da escrita. Portanto, se há triunfo na criação literária, há também o perigo constante de um salto para uma morte mortífera que revela a precariedade da rede simbólica – essa “pele sim-bólica de palavras” que é o texto36 – com a qual o escritor procura suturar o abismo que se abre entre a pulsão e a simbolização. Ao que tudo indica, portanto, não existe, no processo sublimatório de que resulta a escrita literária, nenhuma garantia para um distanciamento compensador. É por isso que, não sendo possível de ser realizada sem “a força do corpo”, a escrita pode levar ao encontro do que Duras denominava “uma selvageria anterior à vida”. Essa “selvageria”, que não é outra coisa senão o aspecto desorganizado das pulsões, é o que permite Duras afirmar que “a escrita é o desconhecido”, já que, “antes de escrever, nada se sabe do que se vai escrever”37. Quando a sublimação aproxima-se demais desse núcleo, “esse centro torna-se silencioso. Cala-se”, diz André Green.38 Vê-se como esse fundo de silêncio, nunca inteiramente apreensível pelas referências simbólicas às quais o escritor se agarra para distanciar-se, é, ao mesmo tempo, fonte das palavras e razão mesma de sua insuficiência.

Tanto Paul Celan, como Anne Sexton, Sylvia Plath e, em certa medida, também Ana Cristina Cesar, ainda escreviam poemas e cartas até poucos dias antes de se matarem, o que indica na escrita uma função, ainda que precária. Mas tornada excessiva pela irrupção pulsional – que a sublimação propicia sem poder evitar – , a dor, “origem ameaçadora do psiquismo”39, não pôde ser diferida, fazendo desmoronar a organização psíquica em busca de uma contenção. Nesse momento, para esses autores, o recurso da escrita, interminável até então, encontrou o seu fim.

 

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Endereço para correspondência:
Rua Califórnia 729, apto. 401 – Sion
30315–500 – Belo Horizonte – MG
E-mail: anneoakwood@yahoo.com.br

Convite feito em 24/09/2005

 

 

1 Palestra proferida no dia 24/09/2005, em Belo Horizonte, na Sessão Plenária sobre Psicanálise/Arte e Processo Criativo da IV Jornada Centro/Sul do CBP; XXIII Jornada do Fórum de Psicanálise do CPMG; I Jornada de Psicanálise e Arte do CBP- Seção Rio de Janeiro.
2 O que apresento nesta exposição é apenas um dos eixos de um projeto de pesquisa mais amplo, sobre os limites da sublimação no espaço literário, que venho coordenando no Laboratório de Psicanálise do Depto. de Psicologia da Fafich-UFMG, e no qual participam também o Professor Guilherme Massara Rocha, Elisa de Santa Cecília Massa e Priscila Ramalho Drummond (alunas bolsistas do CNPq e da Fapemig), Lívia Santiago Moreira, Mariana Camilo de Oliveira e Nívea de Fátima Gomes. Um desenvolvimento um pouco diferente das idéias aqui apresentadas encontra-se publicado no artigo de minha autoria intitulado “Pulsão e simbolização: limites da escrita” (In: BARTUCCI, G. [Org.]. Psicanálise, literaturas e estéticas de subjetivação e em meu livro A poética do suicídio em Sylvia Plath.
3 Cf. FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes, p. 129-162.
4 KOFMAN, S. A infância da arte, p. 186.
5 LACAN, J. Joyce, o sintoma, p. 560-566.
6 Cf. FREUD, S. O ego e o id, p. 73. Julia Kristeva menciona essa mesma citação em seu ensaio L’amour de soi et ses avatars - démesure et limites de la sublimation, p. 12, no qual aborda a vida e a obra da escritora francesa Colette. Agradeço a Guilherme Massara Rocha por ter-me possibilitado a leitura desse ensaio.
7 PLATH, S. The unabridged journals of Sylvia Plath, p. 318.
8 CELAN, P. Cristal, p. 113.
9 CELAN, P. Cristal, p. 179.
10 PLATH, S. Collected poems, p. 269.
11 CESAR, A. C. Inéditos e dispersos: poesia/prosa, p. 160-164.
12 SEXTON, A. The barfly ought to sing, p. 174-181.
13 Cf. LEHMANN, J. Virginia Woolf, p. 60.
14 PLATH, S. Collected poems, p. 242-244. Lembremos que, em outubro de 1962, ou seja, apenas quatro meses antes do seu suicídio, Sylvia Plath produziu quase todos os poemas do livro Ariel, obra que lhe daria sua fama póstuma.
15 LACAN, J. O seminário: livro 7: a ética da psicanálise, p. 141. Para uma consideração minuciosa das diferentes posições de Lacan sobre a sublimação, que, ao contrário do que se imagina, se estendem muito além dessa conhecida definição, sugiro o excelente artigo “As três estéticas de Lacan”, de Massimo Recalcati. In: Opção lacaniana, n. 42, p. 94-108.
16 CELAN, P. Cristal, p. 178.
17 DAVISON, P. Inhabited by a cry: the last poetry of Sylvia Plath [Ariel]. In: WAGNER, L. W. (Ed.). Critical essays on Sylvia Plath, p. 41.
18 Sugiro a leitura que Jacques Derrida faz dessas noções a partir do texto de Platão. Cf. DERRIDA, J. A farmácia de Platão.
19 Cf. DE MAN, P. Autobiograpgy as de-facement..
20 Cf. RECALCATI. As três estéticas de Lacan.
21 DERRIDA, J. A escritura e a diferença, p. 24.
22 SONTAG, S. Em entrevista publicada no jornal Estado de Minas: BH, 02/12/2002.
23 Apóio-me aqui em Julia Kristeva, que nos lembra que a verbalização dos afetos não os torna conscientes, mas faz com que eles operem duplamente. Por um lado, redistribuem a ordem da linguagem e dão origem a um estilo. Por outro, mostram o inconsciente em personagens e atos que apresentam as moções pulsionais proibidas e transgressivas. Cf. KRISTEVA, J. Sol negro, p. 164.
24 DERRIDA, J. A escritura e a diferença, p. 21.
25 FREUD, S. Repressão, p. 169.
26 Essa expressão, que Lucia Castello Branco vai tomar emprestado de Bachelard, refere-se a uma situação em que as palavras são marcas ou traços, mas são também “coisas amorfas de líquida matéria”. CF. CASTELLO BRANCO, L. A traição de Penélope, p. 136.
27 JUHASZ, S. Seeking the exit or the home: poetry and salvation in teh career of Anne Sexton, p. 263.
28 BLANCHOT, M. O espaço literário, p. 40-42.
29 BLANCHOT, M. O espaço literário, p. 46.
30 DURAS, M. Escrever, p. 26.
31 PLATH, S. Collected poems, p.272-273.
32 CELAN, P. Cristal, p. 157. [grifo meu]
33 SEXTON, A. The complete poems, p.614.
34 LACAN, J. O seminário: Livro 7: a ética da psicanálise, p. 155.
35 GREEN, A. O desligamento, p. 37-55.
36 ANZIEU apud Morel, D. Ter um talento, ter um sintoma, p. 184-185.
37 DURAS, M. Escrever, p. 22-47.
38 GREEN, A. O desligamento, p. 251-252.
39 DERRIDA, J. A escritura e a diferença, p. 187; FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica, 408-413; FREUD, S. Inibição, sintomas e ansiedade, p. 194-198.

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