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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Mito e alteridade infantil1

 

Myth and chilhood alterity

 

 

Dominique Ottavi
Tradução: Marília Etienne Arreguy

I Université Paris X

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A discussão sobre o valor pedagógico dos contos (de fadas) é pouco explorada e menos ainda esclarecida. O conto, ligado ao folclore e ao mito, seria supostamente exclusivo à superação do infantil nas crianças. Dominique Ottavi vai além da simples asserção acerca das funções cognitivas e maturacionais do uso dos contos. A autora resgata a crítica de Wittgenstein ao preconceito em relação a um certo primitivismo dos contos nas posições de autores clássicos nesse domínio, como Van Gennep e Frazer, e seu destino prioritário à infância, rebaixando seu valor. A autora recorre, então, ao conceito de “inquietante estranheza”, de Sigmund Freud, para demonstrar a função de medo, imposta à infância como forma de controle pela via da alteridade, o que também, de certo modo, afeta o infantil nos adultos.

Palavras-chave: Mito, Alteridade, Infantil, Pedagogia, Psicanálise.


ABSTRACT

The discussion about the educational value of the short stories (fairy tales) is not so exploited and even less clarified. The short stories, linked to the myth and to the folklore, is supposed to be exclusively devoted to the overtaking of the infantile in the childhood. Dominique Ottavi goes far from the simple assertion about the cognitive and maturational use of the short stories. The author rescues the Wittgenstein's critiques to a certain “primitivism” on the classical author's, as Van Gennep and Fraze's positions in the domain of short stories, and their priority destiny to the childhood, underestimating their value. Then the author rescue the freudian's concept of “uncanny” to show the fear's function of short stories, imposed to childhood as a condition to control children bias the alterity, that's also, in a certain way, affects the childish in adults.

Keywords: Myth, Alterity, Infantile, Education, Psychoanalysis.


 

Enquanto o mito é, hoje em dia, no senso comum, similar à mentira e à ‘mistificação', parece ponto pacífico que o conto,2 semelhante a isso, entretanto, convenha às crianças. O uso pedagógico do conto seja falado, seja lido ou, mais frequentemente, contado com a ajuda de álbuns com base numa evidência, e o conto, uma vez transmitido na sociedade dos adultos pela tradição oral, está de algum modo refugiado na escola.3 Se, nos anos 1980, particularmente após os trabalhos de Bruno Bettelheim, a psicanálise tirou uma utilidade educativa disso,4 qual o fundamento desse tipo de atividade hoje em dia? O fato de as práticas escolares correntes serem suportadas por uma ou mais teorias, seja literárias, seja psicológicas, seja antropológicas justifica o recurso a esse patrimônio? Somos forçados a constatar que, frequentemente, o hábito é tomado como justificativa, sem falar desse preconceito pernicioso segundo o qual a experiência da ficção permite distinguir o falso do verdadeiro: argumento de vista curta, que denega todo valor à metáfora e à poesia. Responsabilizar os educadores por esse aspecto frágil na justificação das práticas seria de muito má-fé, sobretudo nesse período de desaparecimento da formação. Seria também se livrar, em larga escala, de um problema de raízes complexas, que nós gostaríamos de desemaranhar um pouco.

A convicção de uma adaptação recíproca do conto à criança não contém outro preconceito, a saber, que a infância estaria sob o império da fantasia, de uma lógica primitiva, em que a infância estaria do lado de uma alteridade ultrapassada ou enfurnada? Uma ideologia que reúne a criança, o primitivo, as sobrevivências está sempre presente na cultura contemporânea e faz com que o que não ‘convém' mais aos adultos seja dado a convir ainda à criança em virtude de sua natureza, de modo que esse imaginário, esse amálgama define em parte a alteridade infantil. Se as ciências humanas fizeram justiça ao pensamento primitivo e se elas venceram os aspectos mais regressivos do pensamento racial colocando em evidência o interesse no pensamento ‘selvagem', notoriamente através da obra de Claude Lévi-Strass, teriam, para tanto, esclarecido essa relação do mito com a infância? Ainda além de seu uso educativo, o conto endereçado às crianças e, mais em geral, o recurso ao imaginário são de algum modo órfãos de justificação. Se parece intuitivamente irracional confinar a educação das crianças a um pragmatismo estreito, podemos nos satisfazer com práticas rotineiras, mesmo que elas não pareçam prejudiciais? Sem pretender responder completamente à questão do ‘porquê' dos contos na escola, queremos reunir alguns elementos de reflexão para tomar distância em relação a essa dita harmonia preestabelecida entre infância e contos.

 

Algumas definições

Mas, diremos, há grandes diferenças entre mito, lenda, conto e mesmo no conto para crianças. Essas nuances são importantes, mas nós não as consideraremos como centrais para pensar o estatuto atual do conto e do mito. É necessário adotar algumas definições para não ter que parar em problemas de fronteira e para, ao contrário, considerar as passagens entre essas noções. Fundamentalmente, não há diferença entre o que ressalta do mito, do conto, da lenda, e, quando há diferenças, elas são mais de ordem literária e histórica. A esse respeito, a classificação de Arnold Van Gennep permanece válida, mesmo se não permitir classificar com certeza os objetos encontrados. A fábula, em primeiro lugar, é sem dúvida o gênero mais afastado da mitologia, mesmo que esta possa lhe fornecer seus temas. Ela põe em cena os animais intencionalmente, com o objetivo de reflexão e edificação. O conto, que Van Gennep estima corresponder às representações do mundo da infância, será não localizado, caracterizado por sua indiferença moral. A lenda, ao contrário, tem frequentemente um aspecto etiológico. Ela tem relação com um lugar como exemplo. O mito faz intervir personagens divinos e pode apresentar uma ligação com os fenômenos naturais. Van Gennep evoca também o problema da crença e adianta que cremos nos mitos, não nas lendas, nos contos ou nas fábulas. Vemos que essas distinções instituem limites porosos entre esses gêneros. A noção de ‘folclore' (etimologicamente Volkskultur) é suposta, em Van Gennep , transcender essas diferenças instáveis em proveito da ideia de criações devidas à cultura popular. Essas definições deixam intocada a questão de saber por que transmitimos narrativas às quais não cremos jamais e por que se instituiu uma proximidade entre infância e imaginário folclórico, enquanto até mesmo o conto, em nossa sociedade racional e industrial, ocupa um lugar residual e é frequentemente considerado como o inverso da razão.

 

O valor educativo do conto em face às ciências humanas ambivalentes

James Frazer (1854-1941), o criador d 'O Ramo de ouro5 e um dos fundadores da antropologia, viu seguidamente criticada sua ambivalência a respeito de seu objeto. De um lado, ele realizou uma somatória universal e insubstituível de mitos, de outro lado, considerou que se tratava de testemunhos de um estado passado da civilização. Por exemplo, a propósito da Création et évolution dans les cosmogonies primitives6 [Criação e evolução nas cosmogonias primitivas], em que ele passa em revista as narrativas de criação a partir da argila e o totemismo (ou narrativas de descendência a partir dos animais), ele revela um princípio de organização na oposição entre criação e evolução. Cada concepção será um reflexo dos “tateamentos do espírito humano nas sombras do abismo do passado”,7 e “cada uma foi, resguardadas todas as proporções, a grotesca antecipação da teoria moderna da evolução”.8 Esse ‘presentocentrismo' foi criticado notadamente por Ludwig Wittgenstein, que o acusou de ser um inglês conformista que não pode entender nada de mitologia: “Que incapacidade de compreender outra vida que não seja a inglesa de seu tempo!”.9 Essa crítica é severa e ao mesmo tempo justa, pois Frazer permanece mesmo assim um grande descobridor do pensamento mítico, ainda que suas próprias declarações não permitam compreender a coerência de sua abordagem.

O próprio Arnold van Gennep não escapa do ponto de vista evolucionista: para ele, o folclore é útil, pois está ligado às atividades de um povo. Em relação às necessidades materiais e modos de vida, ele se torna inútil quando esses modos de vida mudam e progridem. Mas há ainda outra evolução, aquela que vai do mito em direção ao conto, o conto contado ‘por prazer', que agrada os indivíduos transmitir e constitui o patrimônio cultural do povo. É assim que os contos, para Van Gennep, mantêm a lembrança de uma moral antiga em que predomina a influência de fenômenos naturais e que eles também comportam uma ‘moral realista' que mantém um valor pedagógico seja qual for o sistema ético que teoricamente esteja superposto à vida prática.10 O valor do conto vem de sua relação universal com uma vida simples, frustrada e das imagens e dos sentimentos que ela suscita na humanidade inteira. Essa arte popular contém, portanto, uma moral adequada a uma boa parte da existência, cuja lição pode ser transmitida por intermédio de um prazer.

As teorias mais recentes que subentenderam um uso não somente educativo, mas ainda escolar do conto romperam com esses pontos de vista tão diretamente evolucionistas. Utilizado no ensino literário, o conto é analisado formalmente por Vladimir Propp, que lança luz sobre estruturas constantes: esquemas e funções da narrativa organizam a diversidade das mitologias, permitindo a memorização, a transmissão e mesmo a produção.11 A pedagogia pode esperar aí ganhar em exatidão, pois os objetivos pedagógicos podem ser libertados desse evolucionismo ao usar o imaginário do conto e talvez ter como objetivo a maestria dessas estruturas, abrindo a via para a análise da narrativa em geral.

Quanto à teoria psicanalítica, representada nesse domínio principalmente por Bruno Bettelheim ([1976] 2007) e sua obra Psicanálise dos contos de fadas, ela se revelou particularmente fecunda ao mostrar como, para além da moral, da lógica, da verdade, a ficção dos mitos e contos mantinha uma relação com o inconsciente. A superação dos fantasmas e dos conflitos inconscientes é para Bettelheim uma verdadeira função do conto, simultaneamente sobre o plano subjetivo e sobre o plano da cultura. Essa abordagem explica e justifica o fato de que transmitimos os contos sem querer emendá-los e sem adaptá-los ao tempo presente. É esse tipo de abordagem que a antropóloga contemporânea Nicole Belmont utiliza para dar conta da existência dos contos e da permanência de sua transmissão, assim como de sua utilidade pedagógica. Esse empréstimo se estabelece a partir da ideia de que a catharsis 12 operada pelo conto sobre o plano psicológico é um elemento das transposições entre as idades da vida e entre os papéis sociais estudados pelos antropólogos do ponto de vista das sociedades.

Sobre Claude Lévi-Strauss, sem nos engajarmos na recapitulação de sua obra, podemos dizer que sua antropologia tem a especificidade de introduzir um grão de areia nessa relação. Com efeito, ela resiste à explicação dos mitos por sua função; e é bem a função que interessa à escola quando faz dessas narrativas um objeto educativo: sabedoria prática, lógica da narrativa, superação das fantasias, afetos, tudo isso convergindo em direção à ideia de utilidade. A aposta no pensamento mítico para Lévi-Strauss vai bem além: para ele, o mito e suas estruturas organizam o real, que é feito tanto de relações econômicas e materiais dos homens para com seu meio ambiente, quanto das palavras mesmas que eles utilizam para disso falar, além dos afetos que se ligam às significações, aos grandes interditos que eles encenam. Não há espaço entre o mundo e o mito que permitiria fazer disso uma pedagogia e de lhe atribuir efeitos.13 Estruturas e significações, por essa razão, concernem à sociedade em geral e não podem ter seu escopo limitado ao mundo da infância e da educação, mesmo que lhes caiba organizar as passagens e os papéis sociais. O mito impregna a sociedade vivente ou desaparece enquanto tal. A ele não se pode atribuir uma função parcial nem educativa, menos ainda se for a favor de traços deixados por uma evolução à qual o antropólogo recusa o caráter civilizador.14

Se a infância se tornou o último bastião da legitimidade das narrativas cujo desaparecimento dá uma terrível nostalgia, isso não ocorre sem duplicidade. A transmissão dessas narrativas se apresenta como uma concessão feita a esse paraíso perdido. A gratuidade, o charme, o prazer se adaptam mais ou menos por certa proximidade com a utilidade da leitura ou dos ‘objetivos cognitivos'. Ao lado desse utilitarismo, o antigo esquema evolucionista, por outro lado, continua a existir, considerando o imaginário como uma reserva de ideias desatualizadas, à margem do mainstream15 da história. Isso torna a associar a infância a uma alteridade enterrada ou ultrapassada. Cultura popular ancestral, lenda ingênua, estrutura da narrativa de ficção e mesmo inconsciente, ali são toleradas zonas obscuras ou primitivas do pensamento assim como a alteridade infantil, a alteridade do primitivo em relação ao universo civilizado, racional, dos adultos evoluídos, sérios e dominantes.

 

O caminho do conto rumo à infância

O processo pelo qual o conto se viu historicamente anexado ao domínio da infância é conhecido, embora para tanto não seja perfeitamente compreendido. A salvação das tradições orais antes de seu desaparecimento coincide com os tempos modernos, em que se desenrola o processo, posto em evidência por Phillipe Ariès,16 da ‘descoberta' da infância, da especificidade de suas necessidades, em que a sociedade e suas artes lhe dão espaço. Nesse sentido, a relação da criança com o conto é mais antiga que sua relação com a escola, e ela é portadora de questões.

A fixação do patrimônio oral marca de imediato uma relação da criança com o conto.17 Jakob e Wilhelm Grimm começaram em torno de 1806 a reunir o que estimaram ser os vestígios da antiga mitologia germânica, subsistentes nas tradições populares orais. Eles contribuíram para a coleção de Clemens Brentano e Achim Von Arnim, Le cor enchanté de l'enfant [O coro/canto encantado da criança18].

Persuadidos de que é preciso evitar redigir de forma literária e reescrever os contos, eles publicaram sua própria coletânea – Les contes de l'enfant et de la maison [ Contos maravilhosos infantis e domésticos19], de 1812 a 1819. Quanto a Perrault, ele redigiu os contos – Les contes de ma mère l'Oye20 [Os contos de minha mãe Oye] para seus filhos. Ele lhes deu uma forma literária, que tem a reputação de ter traído a autenticidade das narrativas, contudo, negligenciando a suavizar certos aspectos trágicos neles, já que é em Perrault que Chapeuzinho Vermelho se faz irremediavelmente comer pelo lobo. O recurso a esse personagem indica também outro traço dessa literatura: tanto em Perrault quanto em Grimm, a literatura popular e a oralidade são reavaliadas de uma forma paradoxalmente ‘moderna' em face de uma cultura sábia, clássica, por um humanismo centrado sobre a herança greco-latina, como se essa cultura tivesse se tornado de tacada pesada demais de se suportar.21

A transcrição do oral ao escrito, a fixação patrimonial dos contos e seu endereçamento à infância vão, portanto, pareados. É de notar também que a transcrição dos Contos , de Perrault, tem um lugar importante para a contadora, introduzindo, assim, uma distância da escrita em relação a sua fonte. A criança ali está, com o povo, frente uma autenticidade e, ao mesmo tempo, frente a uma cultura ‘dominada' que clama por vingança, isso posto sob uma forma elaborada pelos sábios linguistas.

O endereçamento do conto à infância é, portanto, de alguma maneira impuro, pois significa, antes de mais nada, a reivindicação de um ‘outro' da cultura, esquecido, desprezado pelas elites religiosas e políticas. É assim que um poeta como William Butler Yeats pôde desenvolver a ideia de haver uma proximidade entre as crianças, o povo, os pobres e os marginais. Os simples de espírito que veem rodas de elfos em roupas coloridas, os transmissores domésticos de lendas irlandesas, são os primeiros mestres em poesia:22

Já alguns que são consagrados ao estudo das visões e das crenças desses camponeses se perguntam se somos nós, ainda pouco numerosos, que somos as exceções na ordem da natureza, ou as pessoas primitivas e bárbaras, sempre inumeráveis, e se não é aquele que tem as visões e ouve vozes o homem normal e são.23

As crianças, depositárias de um saber mítico minorado, se tornam destinatárias privilegiadas disso a partir da pedagogia inspirada na psicanálise, como lembramos previamente. A presença não eliminável de angústias, conflitos e fantasias que a teoria psicanalítica lança luz nos contos, não somente fala de seu escopo educativo, mas ainda fornece um apoio à antropologia. É assim que, para pensar a relação da infância com o mito, Nicole Belmont se perguntou “como provocamos medo nas crianças”.24 Para responder à questão de saber por que e como certas narrativas são endereçadas às crianças para lhes causar medo e para então esclarecer o laço entre a transmissão desse patrimônio imaginário e aquele da infância, ela recorreu ao esquema de interpretação de Bruno Bettelheim. A autora evocou diversos tipos de personagens assustadores através dos quais podemos reencontrar medos primitivos. Por exemplo, entre os seres “antropomorfos” desse folclore, ela detalhou o caso do homem de areia. Trata-se de um personagem dos Contos noturnos, de Hoffmann, apresentado de forma ambivalente: a mãe do narrador conta a história de uma maneira neutra e tranquilizadora, enquanto a empregada das crianças lhes dá uma versão não suavizada, ou seja, longe de proteger o sono, o homem de areia arranca os olhos das crianças desobedientes. Nicole Belmont pousa nessa história a evocação ao horror da castração e a culpa quanto ao desejo de ver a cena primitiva. Os monstros aquáticos zoomorfos, raptores de crianças, evocam a fantasia de um nascimento invertido, quando eles levam suas vítimas para o fundo das águas. Os seres puramente verbais como a Babou, feiticeira dos contos do Midi da França, são a quintessência do medo e prescindem de atributos pelo tanto que mobilizam os impulsos psíquicos dos sujeitos. Assim, as narrativas nas quais não acreditamos são revestidas de bastante potência para cativar a memória, mobilizar os afetos e, como diz Bettelheim, elas contribuem, assim, para fazer [a criança] crescer, para liberar o psiquismo do império de suas angústias.

A última função do mito é garantir, sob essa forma de folclore devotado à infância, um processo de maturação e uma espécie de gestão do inconsciente. Há uma passagem da infância ao infantil, pela qual terrores e fantasmas são ‘tratados' pedagogicamente aquém da idade adulta. A infância, que deve ser psiquicamente superada, se encontra assimilada ao infantil, cujo destino é ser ultrapassado.

Há, portanto, no conto uma alteridade que uma visão ‘política' como a de Yeats assimila a uma cultura dominada e que uma concepção evolucionista persistente confina na infância em nome de certo primitivismo provido de uma imaginação fértil. Enfim, certo funcionalismo atribui prioritariamente à infância a tarefa de domesticar os afetos.

Não há aí certa redução da potência dos contos, e uma relegação a uma subcultura, ou uma ‘pré-cultura', em detrimento da compreensão daquilo que ali está verdadeiramente em jogo?

 

Rumo a uma experiência fundamental

O recurso a Freud em si mesmo pode nos colocar sobre a via da compreensão da potência do conto, no que possui de uma ‘alteridade' em relação a outras narrativas e a outras utilizações da linguagem e da ficção. Alteridade cuja percepção é a fonte da tentativa dos românticos para salvar o patrimônio popular oral e que não se reduz talvez a um caráter primitivo ou infantil.

Freud (1919) fala, ele também, da história aterrorizante do homem de areia dos Contos , de Hoffmann, no texto O estranho.25 Ele chama atenção sobre o princípio que permanece em obra na Psicanálise dos contos de fadas, de Bettelheim, a saber, a superação das fantasias ao colocá-las a distância, graças à linguagem e à ficção; assim, [destaca-se] o complexo de castração, presente na narrativa de defenestração. Mas tomando a narrativa ao pé da letra, Freud vê ali ainda outro ensinamento. Nesse conto formulado por Hoffmann, o universo da lenda está misturado ao romance com uma intriga policial ‘real'. O pai do herói foi verdadeiramente assassinado por um homem que continua a perseguir o filho, que foi, por isso, levado ao suicídio. Durante sua infância, esse filho testemunha discussões entre o pai e o futuro assassino. Ele concebe, então, uma angústia que se alimenta nas histórias da babá a respeito das transgressões do homem de areia, que arranca os olhos de suas vítimas para alimentar seus filhotes, personagem associado à perseguição homicida. Esse aspecto da narrativa não é considerado por Freud como um acréscimo puramente literário ou como uma racionalização do mito, mas como um complemento justificado que reforça sua significação. A saber que o mito, mesmo que tenha um papel na resolução dos conflitos interiores e no domínio das fantasias, contém [também] um elemento absolutamente real: ele não libera somente, ele atrai a atenção sobre aquilo de que não se pode liberar. No conto de Hoffmann, o folclórico homem de areia, mais que existe e é um perigo ‘real', nos informa sobre isso. Ao contrário do conto puramente lúdico, o conto de visada mítica, diremos, introduz uma dúvida sobre a realidade da coisa de que fala. Daí sua potência “estranhamente inquietante” para Freud, a qual ele reporta pela análise dessa famosa noção. O estranho inquietante é paradoxalmente familiar: é a irrupção na realidade cotidiana de alguma coisa que transtorna porque se trata do retorno do recalcado. Essa coisa, muito bem conhecida e esquecida, não se deixa ignorar, donde [surge] uma emoção sui generis, o Unheimlich.26 Quando a empregada da criança detalha o suplício das vítimas do homem de areia, não estaria ela a descrever um cadáver com as órbitas ocas e cheias de terra, um cadáver real?

O narrador, ao tornar real a ameaça que plana sobre o herói, não evacua a esperança de retorno ao normal, ao familiar, ao racional? Esses elementos convergem no sentido da dúvida quanto ao tema da realidade, o que faz dessa narrativa uma obra excepcionalmente cativante. Ele põe em cena uma ameaça vital anunciada e expressa em todo seu horror pelo mito, que não fala apenas da fantasia, mas também da realidade e da fronteira sutil entre o pensamento elaborado, o universo da civilização e o ‘outro' da ameaça e da morte. Com certeza, Freud dá crédito à ideia de que as fantasias e a etiologia da obsessão levam à infância do herói, e que seu presente mobiliza os estratos passados da sua personalidade. Isso não impede de colocar em evidência que essa narrativa particularmente potente, baseada sobre elementos míticos, não resolve nem ultrapassa nada, mas fala do reverso da vida, por isso é estranhamente inquietante.

Ludwig Wittgenstein também ultrapassou, de outro ponto de vista, a ideia de que a existência do mito se explicaria inteiramente por uma função social ou psíquica, função subentendida por um processo de superação do primitivo, do infantil ou mesmo do inconsciente.

Sua crítica de Frazer, a quem ele censura, como assinalamos, pela pesquisa das origens, do pré-histórico, o leva a recusar a tentativa de explicar os mitos ou relatá-los por outra coisa senão [apenas] eles mesmos. Ele expõe, por exemplo, a propósito da narrativa inaugural d' O ramo de ouro ( Frazer , 1982), a história do rei sacerdote da Diane de Nemi, na Itália, que, ao renunciar de nela encontrar um sentido é que temos alguma chance de apreender sua realidade. Um extrato antigo da religião romana, cuja origem é anterior à famosa educação de Roma pela Grécia, apresenta um rei, uma figura religiosa com destino trágico, residindo na floresta de Nemi. O acesso a esse título é obtido pelo assassinato do rei precedente, o que supõe, então, uma vigilância constante para ser conservada essa honraria e, ao mesmo tempo, a vida. Isso dá lugar a uma evocação lírica de Frazer, que imagina a vida desse personagem perseguido, armado, alerta ao menor barulho de folhas, à espera de eliminação por seu sucessor. O rito, assim como a narrativa que o evoca, apresenta um enigma. Reencontrar seu sentido ou sua explicação mágica não acrescentaria em nada para Wittgenstein, que prefere reter, antes de mais nada, o caráter “estranho e apavorante” da narrativa, incluindo a narrativa de Frazer:

Quando Frazer começa a nos contar a história do rei da floresta de Nemi, ele o faz com um tom de que ele sente, e de que ele quer nos fazer sentir que alguma coisa estranha e assustadora está prestes a acontecer. Mas a verdadeira resposta à questão ‘por que isso é produzido?' é a seguinte: porque é estranho e assustador. Isso quer dizer que o que nos faz perceber o evento como assustador, grandioso, horrível, trágico, etc., como alguma coisa que não é nem um pouco trivial e insignificante, é exatamente o que está na origem desse acontecimento.27

Para Wittgenstein, a pesquisa das causas de tal costume resultaria num labirinto de fatos – admitindo que possamos reconstituí-los – que não tocaria no essencial: as palavras, os gestos, os sinais, se referem não apenas a uma lógica causal mas também à realidade dos afetos, às emoções fundamentais como a da “majestade da morte” que Wittgenstein vê ser celebrada nesse ritual pagão. Estamos lidando aqui com uma experiência dos limites,28 com uma manifestação de realidades contraditórias, não com uma representação, mas com uma organização do medo. Por outro lado, não é necessário ‘acreditar' no que quer que seja para se submeter à emoção que está no cerne do ritual. Wittgenstein, de certa forma, dobra o mito sobre si mesmo para ligá-lo mais a uma experiência do que a uma crença, livrando, assim, o mito de qualquer traço de “primitivismo”.

A alteridade do imaginário mítico está, para nós, confinada no universo infantil, a ponto de aparecer como uma característica da infância e de marcá-la com o selo da alteridade. Entretanto, aquilo de que falam os mitos, mesmo que eles possam ter uma função educativa, não se reduz a um estrato superado ou infantil do pensamento, mesmo que sua existência sobreviva, e mesmo que sua ligação ao inconsciente seja inegável. O “bastante bem conhecido” do qual as barreiras do familiar (Heimlich) nos protegem ressurge necessariamente com um cortejo de emoções e de terrores para os quais o adulto contemporâneo está frequentemente muito pouco preparado. Nosso mundo racional com seu universo material aparentemente dominado, suas normas comportamentais sem dúvida mais severas que se queira admitir, deixa de algum modo a emoção fora da cultura. Essa experiência dos limites estranhamente inquietante, que a mitologia implementa, também se apresenta através da arte, como Freud demonstrou bem.29 Talvez, então, antes de transformar o conto em objeto escolar provido de objetivos bem delimitados, seria sábio relançar a reflexão sobre a educação estética em geral, sobre o que, de maneira radicalmente ‘ inútil' , e para além das ‘ explicações' , produz a experiência e a experimentação no domínio dos afetos. E, de modo ainda mais relevante, sobre a natureza da pedagogia: uma prática que não pode nem deve se dispensar de uma reflexão sobre os seus princípios, mesmo apesar de que ela estaria de acordo com o preço das tradições.

 

Referências

BETTELHEIM. B. A psicanálise dos contos de fadas (1976). 21. ed. Tradução de Arlene Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: dominique.ottavi@u-paris10.fr

Recebido em: 03/05/2017
Aprovado em: 22/05/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Dominique Ottavi
Professora de Ciências da Educação na Université Paris X – Nanterre.

 

 

1Artigo original: OTTAVI, D. Mythe et alte´rite´ enfantine. Le Te´le´maque 2011/2, n. 40, p. 33-42. DOI 10.3917/tele.040.0033. Tradução, resumo e abstract estabelecidos por Marília Etienne Arreguy, psicanalista, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mariliaetienne@id.uff.br.
2Aqui e na maior parte do texto a autora se refere aos contos de fadas e não aos contos num sentido literário mais amplo. (N.T.).
3Ele faz parte da junção da literatura infantil ao “enquadramento educativo e social” do qual fala Alain Vergnioux num artigo recente, intitulado La littérature de jeunesse à l'école, des fictions “sur mesure” [A literatura da juventude na escola, ficções “sob medida”], La lettre de l'enfance et de l'adolescence, 79, 2010, p. 41-46.
4BETTELHEIM, B. The Uses of Enchantment [Os usos do encantamento], tr. fr. La Psychanalyse des contes de fées [A psicanálise dos contos de fadas], Paris: Robert Laffont, 1976. Publicado em português em 1980 pela Editora Paz e Terra, o livro já conta com diversas edições. (N.T.).
5Sir James Frazer, Le Rameau d'or (1911-1915), édition fr. par Nicole Belmont et Michel Izard, Robert Laffont, coll. Bouquins, 1981-1984. Frazer, Sir James George. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. (N.T.).
6Do original Sir James George Frazer. Creation and Evolution. In: ______. Primitive Cosmogonies and Other Pieces. London: Macmillan, 1935. (N.T.).
7Tradução livre.
8Sir James Frazer. Essais et souvenirs [Ensaios e lembranças]. Librairie orientaliste Paul Geuthner: 1936. p. 28. Tradução livre. Não encontrei tradução em português deste livro na internet. (N.T.).
9WITTGENSTEIN, L. Remarques sur le rameau d'Or de Frazer (1936, 1967) [Observações sobre O ramo de ouro, de Frazer], Philosophica, III, 2001. Versão em português em PDF, disponível em: https://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/Vol2_2/observacoes_ramo_de_ouro.pdf. Acesso em: 27 maio 2017. (N.T.).
10Arnold van Gennep, La formation des légendes [A formação das lendas], Flammarion, 1912, p. 19. Não foi localizada tradução em português deste livro na internet. (N.T.).
11PROPP, V. Morphologie du conte [Morfologia do conto], 1928. PROPP, V. Morfologia do conto maravilhoso. São Paulo: Forense Universitária, 2006. (N.T.).
12Em grego, no original. Catarse. (N.T.).
13LÉVI - STRAUSS , C. Mythologiques. Paris: Plon, I, Le cru et le cuit (1964); II, Du miel aux cendres (1967); III, L'Origine des manières de table (1968): IV, L'Homme nu (1971). LÉVI - STRAUSS, C. Mitológicas - 4 v. [O cru e o cozido, v. 1 (1964); Do mel às cinzas, v. 2 (1967), A origem dos modos à mesa, v. 3 (1968); O homem nu, v. 4 (1971)]. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
14LÉVI-STRAUSS, C. Race et histoire [Raça e história], Paris, Denoël-Gonthier, 1975.
LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história. In: ______. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. cap. XVIII, p. 328-366. (N.T.).
15Em inglês no original. Via convencional. (N.T.).
16Vide ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2011. (N.T.).
17Encontraremos essas referências históricas especialmente em Nicole Belmont , Poétique du conte [Poética do conto], Gallimard, 1999, bem como no catálogo Figures futur 2004, jeunes et nouveaux illustrateurs de demain [Figuras do futuro 2004, jovens e novos ilustradores do amanhã], Centre de Promotion du Livre de Jeunesse Seine Saint Denis, 2004, que apresenta, especialmente, diversas versões do conto Chapeuzinho Vermelho, do qual [surge] uma diretamente saída da literatura oral. Não foram encontrados os textos de Nicole Belmont em português na internet. (N.T.).
18Não encontrado em português na internet. (N.T.).
19IRMÃOS GRIMM (1812-1815). Contos maravilhosos infantis e domésticos. São Paulo: Cosac Naify, 2015. (N.T.).
20PERRAULT, C. Les contes de ma mère l'Oye. Paris: Barbin, 1697. (N.T.).
21Deixamos de lado aqui os contos de Madame d'Aulnoye, nos quais o teor educativo e moral é muito mais explícito. A autora não especificou a bibliografia de Madame Marie-Catherine d'Aulnoy. (N.T.). Vide breve biografia em português em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Marie-Catherine_d%27Aulnoy. Acesso em: 27 maio 2017.
22William Butler Yeats. Enfance et jeunesse resongées [Infância e juventude repensadas], Paris: Mercure de France, 1990. Texto em português não encontrado. (N.T.).
23Tradução livre. William Butler Yeats. Les croyances aux fées en Irlande [As crenças em fadas na Irlanda]. In: ______. Prose inédite [W. B. Yeats, Prosa inédita], comentários e artigos reunidos e publicados por John P. Fraye et Colton Johnson, traduzidos sob a direção de Jacqueline Genet e Elisabeth Hellegouarc'h, Presses Universitaires de Caen, 1989. Bibliografia em português não encontrada. (N.T.).
24Nicole Belmont, Comment on fait peur aux enfants [Como nós provocamos medo nas crianças]. La Lettre de l'enfance et de l'adolescence, 56, 2004. Esse texto é uma versão abreviada de um artigo publicado em Mercure de France, em 1999. Texto em português não encontrado. (N.T.).
25FREUD, S. (1919) L'inquiétante étrangeté [O estranho]. In: ______. L' inquiétante étrangeté et autres essais. Paris: Gallimard, 1985. Este artigo foi publicado no Rio de Janeiro pela Imago Editores e consta na edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 17. Temdiversas reedições em português. (N.T.).
26Em alemão no original. (N.T.).
27Tradução livre. WITTGENSTEIN, L. Remarques sur le rameau d'or, de Frazer (1936, 1967). Philosophica, III, 2001, p. 28. Cf. nota 9.
28Fazemos alusão a Philippe Sollers: L'écriture et l'expérience des limites [A escrita e a experiência dos limites]. Paris: Seuil, 1971, que fez da transgressão uma característica do texto. Texto não encontrado em português. (N.T.).
29A estranheza se manifesta, por outro lado, voluntariamente na arte contemporânea, como mostra, por exemplo, o filme Oncle Boonmée, celui qui se souvient de ces vies antérieures [Tio Boonmée: aquele que lembra de suas vidas passadas] , do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul (2010), premiado no Festival de Cannes. Título não encontrado em português na internet. (N.T.).

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