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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

Diante de uma filiação estranha: sofrimento e luto de mães1

 

Facing a strange affiliation: mothers' suffering and mourning

 

 

Anabela Silva QueirozI, II

I Círculo Psicanalítico da Bahia
II Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho reflete sobre a experiência de atendimento clínico às famílias com bebês acometidos pela síndrome congênita do Zika vírus . A partir da especificidade da escuta psicanalítica das mães, destaco a singularidade da função materna desenvolvida, as feridas narcísicas de difícil cicatrização e a ameaça de uma gravidez interminável. Discuto as situações de sofrimento psíquico e risco para o desenvolvimento da criança na compreensão da primeira infância como o tempo prioritário para a constituição psíquica. A reflexão sobre a condução clínica de algumas intervenções justificadas pela angústia sentida pelos pais em função da perda do filho esperado, do trauma e das limitações impostas pelo diagnóstico apontam para as respostas e produções fantasmáticas. A apropriação dessubjetivante do filho pela ciência e a consequente destituição de saber dos pais dificulta-lhes o fazer das esperadas marcas espontâneas sobre o filho.

Palavras-chave: Síndrome congênita do zika vírus, Maternagem, Ferida narcísica, Gestação interminável.


ABSTRACT

This work reflects on the experience of clinical care for families with babies affected by congenital Zika virus syndrome. Based on the specificity of the mothers' psychoanalytic listening, I approach the singularity of the maternal function developed, the narcissistic wounds of difficult healing and the threat of an endless pregnancy. It discusses the situations of psychic suffering and risk for the child's development in the understanding of the first childhood as the priority time for psychic constitution. The reflection on the clinical conduct of some interventions, justified by the anguish felt by parents due to the loss of the expected child, the trauma and limitations imposed by the diagnosis, point to the answers and fansmatic productions. The desubjective appropriation of the child by science and the consequent dismissal of knowing from parents makes it difficult for them to make the expected spontaneous marks on the child.

Keywords: Congenital Zyka virus Syndrome, Motherhood, Narcissistic wound, Endless pregnancy.


 

Inicio com uma assertiva de Lacan para justificar e contextualizar o drama de vida sobre o qual concernem estas considerações. Tal assertiva encontra-se em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, texto de 1953, o conhecido Relatório do Congresso de Roma. Texto inicial de Lacan, porém decisivo e desafiador em relação à prática da psicanálise de então.

Aí vamos encontrar a seguinte ‘recomendação':

[...]; que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época (LACAN, [1953]; 1998, p. 322).

Isso significa que o analista não deve recuar a pensar, a operar sobre as demandas e acontecimentos históricos de seu tempo. É assim que abordarei um fato importante no campo da saúde, causador de intenso sofrimento, entendendo, pois, que lidamos com uma psicanálise histórica, que atravessa os muros do privado e dialoga com outras ciências refletindo sobre as questões dos sujeitos no campo do Outro.

Lacan apontava com essa advertência para os riscos de endossarmos uma identidade pétrea do analista (bem a propósito à época de 1953, quando o analista americano se oferecia como modelo egoico (ao modo de uma psicanálise made in USA). Freud, antes de Lacan, também demonstrou forte interesse nas questões culturais, contemplando a subjetividade e os modos de sofrer de sua época.

No final de 2015, aqui, no Brasil, enfrentamos uma epidemia, que posteriormente veio a ser identificada sob a alcunha de ‘síndrome congênita do zika vírus' (SCZV). Trata-se de uma síndrome grave, causada pela picada de um mosquito identificado como aedys aegypti, o qual tem potencial para provocar, além desta síndrome, outras enfermidades. Porém, a especificidade da SCZV diz respeito ao fato de ser provocada em bebês ainda em formação no ventre da mãe quando picada durante a gestação.

Pesquisas realizadas nestes últimos anos atestam uma correlação estreita entre o período gestacional em que se encontra a gestante quando picada e a abrangência e a gravidade dos danos causados pela síndrome: quanto mais precoce o período gestacional, maiores os danos. Por ser uma síndrome nova, primeira aparição em nosso continente, à época as respostas eram escassas, e as perguntas, abundantes.

Apresento algumas reflexões produzidas sobre a experiência de atendimento às famílias, sobretudo às mães de bebês acometidos pela SCZV em uma unidade de saúde pública. O trabalho é no campo da intervenção precoce em que se presta atendimento interdisciplinar a bebês até 03 anos de vida.

Busco discutir aqui, a partir da especificidade da escuta psicanalítica das mães envolvidas, a singularidade da maternagem desenvolvida nessas condições difíceis, os sofrimentos enfrentados e o processo de elaboração da perda, de luto pelo filho que não nasceu conforme desejado.

Este trabalho se apoia inicialmente em um entendimento, um princípio que enquadra a apreensão do que está em questão e, ainda que aparentemente óbvio, é necessário para nos posicionar bem longe de ideologias sumárias sobre a maternidade – ‘a boa maternidade'.

Refiro-me à ideia de que o amor materno inato é mítico, não existe como tal. A autora dessa ideia é a historiadora e filósofa francesa Elizabeth Badinter (1985) cujo livro Um amor conquistado, o mito do amor materno desmonta a concepção do amor maternal como sendo natural, incondicional e indefectível. Badinter demonstra exaustivamente que se trata de uma idealização mítica, sustentada sobre bases religiosas, morais e sociopolíticas, pois se trata de um amor construído, que nem sempre se fará presente, não é automático como ocorre nas fêmeas animais e que as mães são em sua maioria medianas e nada ideais. Em uma entrevista, Badinter chega a afirmar que a mãe ideal é tão rara quanto um Mozart!

Considerando o conceito de pulsão, e não de instinto, a esse respeito somos todos deficientes. Ao longo da história, essa crença mítica reforçou o atrelamento da vida da mulher à maternidade quase como único destino, uma vida voltada às atividades de cuidado e ao sacrifício do seu corpo em prol do outro, refletido no verso “ser mãe é padecer no paraíso”. A recusa a priori dessa naturalização do amor materno nos possibilita acolher mães que podem ser inviáveis, mães que recusam ou lamentam a maternidade, sem que isso as desqualifique como mulheres plenas.

Faço esse esclarecimento porque o universo de nosso trabalho não corresponde à vinda de bebês sonhados, e as mães se debatem com essa exigência de amar e cuidar de quem não se deseja. Trata-se aqui de bebês atingidos precocemente, antes mesmo de nascerem, por danos à sua conjuntura orgânica, anatômica, neurológica e psicológica.

Antecipo a dimensão psíquica considerando que a data da concepção de um bebê é, em termos lógicos simbólicos, antecedida em muito daquele momento X do parto e, paradoxalmente, o nascimento do sujeito, a constituição do sujeito será, por sua vez, ainda posterior à data do dito nascimento biológico.

Como se trata de uma experiência de atendimento e de uma problemática complexa e transdisciplinar, faço três recortes centrais, não necessariamente nesta ordem:

• os efeitos estruturais da comunicação da má notícia;
• a singularidade da maternagem desenvolvida;
• o processo de luto e gestação interminável.

Nossa primeira reflexão recai sobre o impacto da comunicação da má notícia acerca das condições de desenvolvimento do bebê acometido pelo que veio a ser posteriormente diagnosticado como SCZV. Além da microcefalia, a síndrome caracteriza-se por lesões cerebrais, responsáveis por significativas afetações das funções auditiva, visual, cognitiva e motora, pobre interação com o outro implicando em importante atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e déficit de capacidades. A olhos vistos, é indisfarçável!

As mães vivenciam a comunicação do diagnóstico como um trauma. A compreensão não se dá no “ instante de ver” ; é preciso um tempo mais alargado até que algum entendimento ocorra – “um tempo para compreender”.

Nesse intervalo, entre a primeira comunicação (comumente feita pelo médico) e o entendimento efetivo, as reações são de choque, negação – nada querer saber –, incompreensão, descontrole emocional e raiva pelo portador da má notícia.

A acusação é, um tempo depois, invertida e são as mães que, posteriormente, acusam o ‘comunicador' de maus-tratos, descuido no falar, ausência de empatia. A questão que se impõe é: poderia alguém comunicar algo tão devastador e ser bem interpretado? Ou se trata de uma reação de recusa estruturalmente inevitável, não importa o nível de cuidado desse dizer, necessariamente ‘mal-dito'?! Ou seja, o quanto há, nessa recusa de saber que faz a mãe, uma luta por garantia da própria saúde mental? Será que haveria tantos profissionais inaptos para a tarefa de poder comunicar de modo minimamente aceitável?

Eis o que nos esclarece Alfredo País (1995):

Que las respuestas que darnos ante la comunicación de cualquier noticia inesperada en la que nos encuéntrenos involucrados, son absolutamente subjetivas y, por lo tanto, impredecibles; que ciertas noticias pueden implicar riesgos para quien las recibe y que, quien tiene la misión de transmitirlas, se encuentra invariablemente em una posición, por lo menos, dificultosa (PAÍS , 1995, p. 19).

No texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud ([1914] 1974) utiliza a expressão em inglês His majesty, the baby numa suposta referência a um quadro da Academia Real, que retratava a interrupção do concorrido trânsito de carros em favorecimento de um carrinho de bebê. Era uma alusão ao lugar privilegiado de intenso investimento libidinal ocupado pela criança, assim colocada em uma posição de exceção frente aos infortúnios da vida e às leis da natureza como marca reprodutora do próprio narcisismo dos pais.

Conhecemos bem seu olhar sobre a economia libidinal dos pais:

Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho – o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele.[...] A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão (FREUD, [1914] 1974, p. 108).

Esse pacto narcisista reflete a possibilidade de a criança ocupar um lugar no desejo dos pais. Encontro essas mães feridas narcisicamente, com restos não simbolizados, restos reais da gestação, do parto e puerpério, atordoadas com as urgências próprias postas pelo nascimento de um bebê e desamparadas diante de um diagnóstico que retira dela as possibilidades de fazer marcas originais e espontâneas sobre o filho.

Diante de um bebê estranho, tomado como objeto da ciência médica, a mãe se ‘des-orienta' por um saber estranho a ela, estranho como o filho. As marcas identificatórias são perdidas, e o filho não é visto como alguém que possa representá-la. A relação mãe-filho porta, assim, uma centelha de morte, muitas vezes de morte negada. Possivelmente disso nos falem os muitos silêncios mortíferos.

Durante os atendimentos, busco escutar algo que resgate o saber materno sobre o próprio filho, uma filiação familiar, não o referenciando ao saber médico científico circulante, buscando introduzir na linguagem o que aparece imobilizado no microcérebro. Reagem com surpresa ao ouvirem “me fale de seu filho” produzindo um corte em um discurso explicativo sobre as calcificações cerebrais.

Winnicott faz referência ao nascimento de um bebê, estruturalmente, como uma decepção no sentido de não correspondência entre a antecipação por parte dos pais do bebê esperado e o bebê que nasce.

Corrobora esse mesmo pensamento a assertiva de Mannoni (1964, p. 18):

Qualquer que seja a mãe, o nascimento duma criança não corresponde nunca exatamente ao que ela espera.

Essa distância entre o bebê imaginarizado e o bebê que nasce porta uma diferença que se faz espaço para o desejo. Mas no caso da SCZV, a distância é demasiada dificultando sua elaboração e afetando a função materna. De um só golpe, o bebê idealizado perde os significados imaginários dos quais os pais o revestiam; perde a potência para sustentar os sonhos, ideais e as promessas de reparação narcísica da mãe. Esse bebê sindrômico que lhes é anunciado, então, não poderá saldar suas dívidas simbólicas, não lhes promete mais nada. O temor e o desamparo se instalam.

Algumas mães reagiram depressivamente; outras processam ainda seu luto pela perda de um sonho do qual foram destituídas tão precocemente. A maioria das mães, entretanto, elaboradas as feridas narcísicas, se engajou em grupos reivindicatórios de direitos à plena assistência clínica e ao suporte social, o que vem lhes dando um novo sentido de vida. Outras se ocupam missionariamente dos cuidados ao filho.

Sabemos que a primeira infância é o tempo prioritário para a constituição psíquica e o estabelecimento do laço pais-bebê. Mesmo em se tratando de uma situação em que o determinismo orgânico representa um papel importante – preponderante? – nos cabe levantar algumas questões concernentes à maternagem desenvolvida por essas mães e a singularidade do estabelecimento do vínculo mãe-bebê.

Para além do caráter determinante dos fatores orgânicos, perguntamo-nos sobre as lesões fantasmáticas que recobrem o real da lesão. Ainda que haja uma condição neurológica tão explícita, o destino da criança vai depender também do modo como a mãe vai interpretar, vai traduzir essa lesão de acordo com os seus fantasmas.

Naquela específica constelação familiar, que sentido tomou o diagnóstico da SCZV?

“Estragou a minha vida e a do meu filho”, vociferou uma mãe que, precocemente, decide realizar (atuar?) uma ligadura de trompas encerrando sua fertilidade precocemente.

“Minha filha é meu troféu”, diz uma outra em tom reparador, firmemente voltada para a reivindicação dos direitos e benefícios sociais que lhes cabem, ocupando uma posição de prover intensamente a filha, e a si própria.

Eis como sintetiza Maud Mannoni (1964, p. 19):

Porque pode acontecer que sejam os fantasmas da mãe que orientam a criança para o seu destino. Mesmo nos casos em que está em jogo um fator orgânico, a criança não tem só que fazer face a uma dificuldade inata, mas ainda à maneira como a mãe traduz este defeito num mundo fantasmagórico que acaba por ser comum aos dois.

Diante do caráter irrecuperável do que institui o diagnóstico, resta renunciar à idealização do filho e vivenciar uma angústia muito difícil de partilhar. A escuta testemunha falas autoculpabilizantes reveladoras da admissão da própria falta de valor de si como mãe: “devo ter merecido isso”; “minhas irmãs disseram que eu tinha que pagar”; “devo ter feito algo que precisava pagar”. Pergunto-me se isso reflete algo que já estava no seu fantasma.

Alguns autores referem o temor pela saúde do filho e a culpa sentida ao retorno de fantasias incestuosas: “O que fiz para merecer isso?”, são ecos que não admitem resposta.

O ponto central recai sobre a estranheza sentida pelo filho que nasce: onde encontrar ancoragem para uma maternagem suficientemente boa? Os sinais produzidos pelo filho não são decifráveis, estão fora do código e do léxico materno: espasmos, hipertonia, convulsões, microcefalia, calcificações...

A angústia surge na impossibilidade de nomear, de interpretar, de traduzir o que se passa com seu bebê estabelecendo as demandas. Algo resta não simbolizado, não traduzido em palavras, o real resiste. Assim, nas modulações da maternagem desenvolvida, mãe e filho mal se separam. As mães não cessam de fazer apelos aos médicos e vão, de consulta em consulta, preenchendo o cotidiano da vida numa gestação interminável. Por isso, qualquer menção ao desejo de voltar ao trabalho é considerada bem-vinda.

Assim como o drama de uma vida é tecido muitas vezes bem antes do seu nascimento, é a um tempo só-depois deste evento que se mira: a criança espera ser apropriada pelo desejo de seus pais no plano pulsional. Em função das infindáveis urgências de cuidados especiais, a criança fica reduzida ao estado de objeto, manipulado e falado pelo Outro, ali onde é preciso se fazer brechas e se deixar interrogar para além da funcionalidade do corpo do filho.

A escuta psicanalítica possibilita às mães encontrar na linguagem palavras que possam simbolizar aquelas vivências tão fortes como a gestação e o parto. Historicizar esses eventos busca humanizar, construir narrativas próprias, o suficiente para que possam emprestar suas referências ao filho, fazer-lhe inscrições simbólicas.

A criança que nasce com problemas fere o narcisismo materno, torna-se objeto de exame frequente, é conduzida pela mãe para lá e para cá, onde um vai o outro vai, a criança colada ao seu corpo de forma parasitária. Explicita-se o desejo por um corpo funcional, comemora-se cada pequena aquisição, contentam-se com o quase nada: “Tudo que quero é ver minha filha andar”.

Andar, sim, como um corpo autônomo, em relação com o outro. Não pernas que se movem, ou uma boca que abre, um corpo retalhado, sem unificação possível. São crianças mantidas como objeto dos alongados cuidados maternos; o pai, na maioria das vezes, mergulhado no trabalho de prover a família, tampona melhor sua angústia? Outras vezes entendendo que a criança ‘é mais da mãe', afinal trata-se de uma gestação interminável.

A aparição da SCZV em bebês diz respeito a uma questão de saúde pública bastante complexa, em grandes proporções e com caráter inédito. Ao tempo em que se acolheram as famílias atingidas, se pesquisava e se identificava a causalidade em jogo. Diversos setores no campo da saúde e os organismos governamentais se mobilizaram em torno da questão e, por longo tempo, o interesse da sociedade se concentrou e fez desta questão o objeto de abordagem maciça dos meios de comunicação.

Esse cenário social rondou os lares dessas crianças, colocando as famílias sob o holofote intenso da mídia e do interesse público gerando reações contraditórias: ao tempo em que foram geradas informações sobre prevenção e contágio, foram gerados também, como efeito de rebote, certo pânico e o excessivo aguçamento do olhar alheio curioso sobre os bebês acometidos da síndrome.

Nada disso passou incólume. O mesmo se registre da importância do suporte social de caráter humanitário, fruto de ações solidárias de agrupamentos da sociedade organizados para esse fim e que ainda hoje ajudam na função prioritária de provisão de itens e serviços de outro modo inacessíveis para as famílias de baixo poder aquisitivo. Não houve inércia social.

A enorme mobilização da mídia, conforme descrevemos, contribuiu para o fortalecimento de políticas públicas de saúde e, como efeito de rebote, mães se politizam lentamente, ainda que calcadas na reivindicação de ações de reparação: “Era um sonho que virou pesadelo”.

Aponto, ainda, para o paradoxo evidenciado pelas produções subjetivas daí advindas: ao se verem em um lugar social que as identifica como ‘as mães dos bebês acometidos pela SCZV', se veem sendo reconhecidas, saídas do anonimato de sua vida, empoderadas pela própria batalha, ainda que por uma marca original tão custosa.

Assim, a existência dessas mães passa a englobar a enfermidade do filho, ou seja, paradoxalmente, o que passa a dar sentido a sua vida é a luta travada, como afirma Collete Audry, prefaciando o livro de Mannoni A criança atrasada e a mãe (1964, p. 10)

[...] lutando pelo filho – para o curar sem o curar – era antes por si que lutava, com risco de acabar por lutar também contra ele [...]; será isso que atesta a mãe quando me diz “minha filha é meu troféu!?

Esse processo de coisificação da criança é outra face do que aqui chamo de gravidez interminável.

E para que este texto não se contamine com esse caráter de infinitude, encerro aqui, reiterando o caráter de reflexão sobre um atendimento clínico que tem sua singularidade e insiste em apresentar muitas questões.

 

Referências

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VANIER, A. Lacan. Tradução Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.         [ Links ]

WINNICOTT, D. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: anabelaqueiroz@hotmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Anabela Silva Queiroz
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB).
Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Especialista em diagnóstico e tratamento dos problemas do desenvolvimento na infância/adolescência pelo Centro Lydia Coriat.
Docente da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Psicóloga do Centro de Prevenção e Reabilitação de pessoas com deficiência (CEPRED) da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia.

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.
2 Último verso do soneto Ser mãe, de Coelho Neto (1864-1934). Disponível em: https://www.portaldafamilia.org/artigos/texto054.shtml.

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