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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Escrever em corpos, escrever no papel*

 

Writing on bodies, writing on paper

 

 

Sérgio Telles*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor mostra como o filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway, ilustra dois importantes temas teóricos. Primeiro, as vicissitudes do complexo de castração da personagem feminina, decorrentes das especificidades do desejo paterno; segundo, os processos de formação simbólica.

Palavras-chave: Complexo de castração. Desejo do Outro. Objeto. Representação. Símbolo.


ABSTRACT

The author thinks that two important theoretic themes are illustrated by The pillow book, Peter Greenaway’s 1996 film: first, the specificities of the main female character´s castration complex; second, the processes of symbolic formation.

Keywords: Castration complex. Other’s desire.Object. Representation. Symbol.


 

 

Peter Greenaway é um dos maiores criadores do cinema atual. De sua instigante obra, o filme O livro de cabeceira [The pillow book, 1996] ilustra com muita acuidade questões próprias à linguagem, como a representação e a simbolização.

Ao comentá-lo, deixo de lado seus extraordinários aspectos cinematográficos e me restrinjo àqueles que iluminam nosso conhecimento psicanalítico.

Nesta abordagem, mantenho-me na trilha que venho seguindo, há algum tempo, a saber, a leitura psicanalítica de filmes (Telles, 2004) e que Gabbard explicita bem quando diz:

(...) esperamos ilustrar o potencial do pluralismo na crítica psicanalítica de cinema. Baseamos nosso trabalho (...) nos conceitos derivados de um largo espectro de escritos clínicos psicanalíticos. Como o clínico que adota diferentes posições teóricas de acordo com as necessidades dos diferentes pacientes, usamos uma variada gama de perspectivas para iluminar uma quantidade de filmes marcadamente diferentes. Enquanto a abordagem lacaniana produziu intrigantes relatos de filme enquanto processo, estamos mais interessados nos filmes em si – em seus textos, subtextos, temas e personagens. Cada filme convida diferentes níveis do poder explanatório de uma variedade de formulações teóricas (Gabbard, 1999, pp. 201-202).

 

Sinopse

Nos aniversários da menina Nagiko Kiohara cumprese um ritual. Seu pai, escritor e calígrafo, escreve o seguinte texto em seu rosto e nuca: “Quando Deus fez o primeiro modelo de barro do ser humano, pintou-lhe os olhos, os lábios e o sexo. E então pintou o nome da pessoa, temendo que ela pudesse esquecê-lo. Se aprovasse sua própria criação, Deus daria vida ao modelo de barro pintado ao assinar sobre ele seu próprio nome”.

Aos quatro anos,Nagiko vê pela primeira vez o pai em práticas homossexuais com seu editor.

Aos seis anos, a tia lhe fala de Sei Shonagon, uma extraordinária mulher que vivera quase mil anos antes e escrevera um livro, O livro de cabeceira. Com isso, a tia procura estimular Nagiko a também escrever um diário.

No dia em que começa a escrever seu diário, Nagiko conhece seu futuro marido, sobrinho do editor de seu pai. Fora encontrar o pai na gráfica e ali, mais uma vez, percebe o envolvimento sexual do pai com o editor.

Para seu desgosto, o editor freqüenta sua casa e, numa ocasião, toma o pincel do pai e tenta, ele mesmo, escrever a frase ritualística, o que Nagiko recusa.

O casamento de Nagiko com o sobrinho do editor se realiza com grande pompa, mas logo fracassa. O marido se recusa a reproduzir o gesto paterno de escrever-lhe a frase no rosto em seu aniversário e, posteriormente, a ridiculariza por suas ambições literárias. Queima seu diário em meio a grandes exibições como arqueiro, atirando setas num alvo.

Como vingança, Nagiko incendeia a casa e foge para Hong Kong, onde passa a exercer funções humildes antes de trabalhar como designer e, posteriormente, como modelo de moda. Sozinha, constata ser impossível escrever sobre si mesma a frase paterna. Passa a procurar escritores e calígrafos para escreverem sobre seu corpo os mais variados tipos de ideogramas, pagando seus serviços com relações sexuais.

Numa ocasião, tendo seu corpo coberto de ideogramas, Nagiko se deixa fotografar por um profissional que por ela se apaixona, sem reciprocidade de sua parte. Em sua busca,Nagiko termina por encontrar Jérôme, poliglota, escritor e tradutor inglês, que atende a seu pedido de escrever sobre seu corpo e, diferentemente dos demais, pede que ela escreva sobre o corpo dele também, o que Nagiko inicialmente recusa. Declara só ter prazer quando escrevem em seu corpo. Jérôme insiste, dizendo: “Use meu corpo como uma página de um livro”. Posteriormente, mergulhada na banheira de casa,Nagiko,meditativa, escreve no espelho embaçado “Trate-me como a página de um livro”. E, pensa: “Agora serei também o pincel e não mais só o papel” e passa a escrever em corpos masculinos.

Ao terminar sua primeira escrita no corpo de um homem, ela chama o fotógrafo e ele decide copiar o texto escrito e mandá-lo para um editor, que vem a ser justamente o antigo amante do pai de Nagiko, naquele momento morando também em Hong Kong. Para a grande decepção de Nagiko, o editor recusa o texto, dizendo que este não vale o papel no qual está escrito.

Sem se identificar, Nagiko vai à gráfica do editor e – para sua surpresa – vê Jérôme saindo de seu escritório e, tal como presenciara anteriormente com o pai, constata haver uma ligação erótica entre eles.

Disposta a honrar o pai tornando-se escritora, Nagiko não desiste. Uma amiga sugere que seduza o editor para conseguir a publicação de seu livro. Reflete que como não pode seduzir o editor homossexual, só lhe resta seduzir o amante do editor.

Jérôme aceita sua proposta, dispondo-se a servir como mensageiro, levando para o editor o texto que Nagiko escrevera em seu próprio corpo.

O editor fica encantado simultaneamente com o corpo de Jérôme e o texto de Nagiko nele escrito.Manda seus secretários copiarem o texto e, em seguida, vai para a cama com Jérôme.

Jérôme não retorna para Nagiko como ela esperava, permanecendo por um longo tempo com o editor.

Enciumada,Nagiko passa então a procurar outros homens para escrever em seus corpos e enviá-los para o editor. Faz assim cinco novos livros-corpos, o que, por sua vez, provoca ciúmes em Jérôme.

Nagiko rechaça a tentativa de reaproximação de Jérôme, que procura então se aconselhar com o fotógrafo. Este, de certa forma agindo como Iago, sugere a Jérôme que, para facilitar a reaproximação e punir Nagiko pela rejeição, encene um suicídio como em Romeu e Julieta. Para tanto, dá a Jérôme os comprimidos a serem ingeridos.

Não fica claro se, por ciúmes, o fotógrafo deliberadamente provoca seu envenenamento ou se isto ocorre por acidente, o fato é que a tentativa causa a morte de Jérôme, para desespero de Nagiko.

Sobre o corpo morto, Nagiko escreve um poema de amor.No enterro,Nagiko encontra a mãe de Jérôme, que expressa sentimentos muito ambivalentes em relação ao filho.

Informado pelo fotógrafo, o editor toma conhecimento da morte de Jérôme. Desesperado, viola o túmulo e rouba o cadáver. Retira sua pele, na qual está escrita a poesia de Nagiko, separando-a do resto de suas carnes, e com ela faz um livro. Usa o livro como objeto erótico, envolvendo seu próprio corpo com as páginas feitas da pele do amante morto.

Ao saber do fato, Nagiko resolve resgatar o livro-pele de Jérôme e para tanto volta a escrever, completando, desta forma, um total de treze livros escritos em treze diferentes corpos masculinos enviados ao editor.

Nagiko escreve em lugares inusitados do corpo de seus mensageiros, forçando o editor a procurar o texto, como nas pálpebras, língua, entre os dedos, etc.

O último livro vai com a sentença de morte do editor escrito no corpo de um lutador de sumô, que o assassina e resgata o livro-Jérôme.

Nagiko, que tinha queimado tudo num segundo incêndio, volta para o Japão. Numa cerimônia íntima, em sua casa, enterra o livro-Jérôme sob um bonzai. Ali dera a luz a uma filha de Jérôme e a vemos, tatuada, amamentar a criança.

O filme termina no dia do vigésimo oitavo aniversário de Nagiko, data que a distancia exatos mil anos de Sei Shonagon. Ela diz que agora, sim, pode escrever seu próprio “livro de cabeceira”. E repete no rosto da filha o gesto inicial de seu pai, ao som do mesmo velho disco que ouvia quando criança.

 

Comentários

O filme permite várias linhas interpretativas. A primeira implica evidentemente numa identificação de Nagiko com o pai, com sua função de escritor e na obrigação de resgatar sua honra, humilhada pelo editor. Diz Braunstein:

Quem dentre nós não leva em sua carne as escrituras feitas pelo pincel e a tinta de um pai derrotado e humilhado? Sim, humilhado e ofendido pelos poderes do destino, da lei, da morte, da dependência de outros, por ter que inclinar-se – assim é a sorte dos homens ante a prepotência do Outro. Humilhado, como todos, pelo pecado original, que o fez servo da lei em sua passagem pelo Édipo. E nisso reside o heroísmo de Nagiko (...) Nagiko expressa o fantasma generalizado de uma fuga superadora (Aufhebung) do trágico destino que nos amarra a todos ao fracasso do pai (Braustein, 2001, p. 222).

A relação com o pai é mostrada através da inscrição literal de um texto no corpo de Nagiko, de óbvia expressão edipiana. Não só enquanto expressão direta do amor do pai pela filha, como uma metáfora do nome-do-pai, da Lei que organiza o desejo. Diz Saal:

Nagiko busca os amantes que saibam escrever em seu corpo. É que é a escritura o que desperta o corpo para o erotismo, dos odores, dos sabores, das pressões do desejo. Mas não seria todo corpo, enquanto corpo humano, o lugar de uma escritura? Desde as primeiras carícias e os primeiros olhares, cada corpo é o espaço de uma tatuagem invisível que as mãos do amor saberão ou não despertar.Nagiko necessita que escrevam sobre ela, sem metáfora, ela é a metáfora dessa escritura (Saal, 1998, p. 85).

É também, como mostra Brausntein, uma imagem que aponta para o fato de sermos escritos pelo desejo do Outro:

Somos o que vemos, uma seqüência de imagens, “quadros”, tatuados na carne, uma soberba catedral de letras, um texto escrito como uma extravagância, um palimpsesto de gravações de desejos superpostos, de mensagens enigmáticas, de um gozo cifrado em um corpo que é uma charada, um rebus. Como um cristal escuro, como um sonho. Chego assim a um momento lacaniano em minha visão interpretante do filme: o gozo está cifrado, é um hieróglifo escrito em nossa carne pelo desejo do Outro, é um texto insensato, alheio à significação. (...) Como, com que alfabeto, poderíamos decifrar o que o Outro, com seus inescrutáveis desígnios, escreveu em nossa carne? (Braunstein, 2001, p. 224). ( nfase do autor).

Essa é uma experiência constituinte que marca Nagiko de forma indelével. Na vida adulta, ela exige que o marido repita tal gesto, o que ele recusa, indício do iminente fracasso do casamento. Posteriormente, Nagiko paga com favores sexuais aos calígrafos e escritores que escrevem em seu corpo. Ou seja, a inscrição tem uma conotação erótica e a posiciona como mulher, posta em posição passiva, receptora da escrita e, em seguida, possuída por um homem.

Tudo muda quando, ao invés dos parceiros heterossexuais para seus jogos de escrita em seu corpo, Nagiko encontra Jérôme, o tradutor bissexual.

É ele, possivelmente em função de sua bissexualidade, quem sugere a inversão de papéis, assumindo a posição passivo-feminina, enquanto Nagiko ocupa o lugar ativomasculino, ao escrever no corpo dele. Ela reluta, temendo perder o prazer até então circunscrito à posição passiva. Como termina por aceitar a idéia e passa a escrever nos corpos masculinos, conclui-se que isso se torna também prazeroso para ela. Nagiko se apaixona por Jérôme e fica enciumada quando ele não volta imediatamente para sua companhia, preferindo ficar com o editor.

O encontro de Nagiko com Jérôme é decisivo. Parece decorrer da compulsão à repetição, pois, com ele, Nagiko vai passar por situações muito semelhantes às vividas com o pai bissexual, reatualizando suas experiências traumáticas e procurando elaborá-las de forma mais satisfatória.

Como vimos acima, em nível manifesto, a atitude do pai, escrevendo com o pincel no rosto d e Nagiko, pode ser entendido como a expressão do amor edipiano existente entre pai e filha, base da identidade sexual de Nagiko como mulher.Mas, em nível latente, a situação é mais complexa, nela jogando papel decisivo a bissexualidade do pai.

Nesse sentido, parece-me de fundamental importância o momento em que Nagiko conclui que, como mulher, não poderia seduzir o editor. Seria a atualização do momento em que teria feito essa mesma descoberta em relação ao pai, o que dá a seu complexo de castração um curso específico.

Ao se deparar com as diferenças anatômicas sexuais, a menina se considera castrada e, ressentida, se afasta da mãe que não lhe proveu com tão valorizado órgão. Procura o pai, esperando dele receber um pênis, ou, posteriormente, um filho. Para tanto, precisa crer que pode seduzir o pai com seus atributos femininos. Mas Nagiko descobre que não pode seduzir o pai, pois não tem aquilo que mais o interessa, o pênis, como constata nas relações dele com o editor. Como conseqüência dessa descoberta, só lhe resta desprezar, com mais intensidade seu próprio sexo feminino, invejar ainda mais o falo, tentar dele se apoderar de qualquer maneira, pois somente assim terá os encantos para seduzir o pai.

Reatualizado o antigo conflito, Nagiko explicitamente resolve vingar seu pai contra o editor que o teria humilhado, violentado e extorquido.

Entretanto, tal deliberação comporta outras explicações. Ao colocar o pai como vítima submetida e humilhada, Nagiko estaria negando o desejo homossexual do pai, negando “a cumplicidade existente entre ele e o editor, tal como constata existir entre Jérôme e o mesmo editor”. Ao perceber a intimidade existente entre o editor e Jérôme,Nagiko se depara com uma faceta da ligação do pai com o editor que até então reprimira, negara e transformara numa relação de força e humilhação. Com isso estaria protegendo o pai contra seu próprio ódio por tê-la desprezado, ignorando seus encantos femininos, não a desejando por ela não ter o falo-pênis, por não ser um homem. Saal parece sugerir isso ao dizer:

Trata-se da história de um pai humilhado sexualmente pelo editor e que está no centro das reivindicações de Nagiko, que só pode concluir com a morte do editor. Fica pairando uma pergunta nesse clima pletórico de sugestões. O pai humilhado, não é um fantasma de Nagiko? Somos testemunhos de um intercâmbio sexual numa relação de poder, como, a partir daí, Nagiko constrói sua própria versão? Salvar o pai impotente é uma das fantasias mais recorrentes das histéricas, que salvaguardam para si mesmas o papel de falo vingador (Saal, 1998, p. 86). ( nfase do autor).

O fantasma do “pai humilhado”, que é a versão até então mantida por Nagiko sobre o relacionamento do pai com o editor, não mais se sustenta quando ela constata o prazer e a concordância existentes entre Jérôme e o editor. Nagiko entende que o pai poderia não ser uma vítima do editor e sim um amante cúmplice, tal como Jérôme.

Nagiko se dá conta de que odeia o pai que não a desejava, fazendo-a com isso rejeitar sua própria feminilidade, forçando-se a usar próteses fálicas no vão anseio de seduzilo, sabendo, de antemão, do fracasso dessa empreitada.

Mesmo assim, não lhe é possível abandonar a idealização do pai e desloca para o editor o ódio destinado ao pai. Nagiko, então, não estaria vingando o pai ao matar o editor, e sim, vingando-se do pai na figura do editor.

Enquanto fixada ao desejo do pai, Nagiko está aprisionada a um lugar fálico, tendo de ostentar muitos pênis alugados que a poupem da humilhação de ser castrada e desprezada enquanto mulher. Somente após a morte de Jérôme e o assassinato do editor – homens que desprezam o sexo feminino e representam o pai –, pode Nagiko se libertar do encarceramento fálico, identificar-se plenamente com Sei Shonagon, essa mulher escritora que gozava da literatura tanto quanto do sexo. Está desfeita a confusão entre potência criativa e falicidade.

Ainda sob este aspecto, é de se pensar se as inscrições que o pai lhe faz sobre o rosto e a nuca não seriam os suplementos fálicos, a aposição de elementos até então faltantes no corpo de Nagiko.

Um outro aspecto interessante no texto que o pai escreve no rosto de Nagiko é a afirmação de que Deus desenhava, no modelo de barro, o sexo. Essa curiosa formulação parece ignorar as diferenças anatômicas sexuais e reafirmar a crença na existência de um único sexo, o fálico, que é o predominante em grande parte da narrativa.

Observa-se ainda quão apagada é a figura materna de Nagiko, ocultada pela tia que lhe apresenta a idealizada figura feminina de Sei Shonagon.

Assim, os treze livros escritos por Nagiko em corpos masculinos implicariam a elaboração de seu complexo de castração, a estabilização de sua identidade feminina após o abandono da crença de que só seria potente, amada e reconhecida se armada com o emblema fálico. Essa estabilização poderia estar representada pela extensa tatuagem visível ao amamentar sua filha, bem diferente das inscrições laváveis e efêmeras que deixava fazer em seu corpo e executava nos corpos masculinos.

Somente ao expressar seu ódio assassino dirigido ao pai, elaborar o luto por sua morte e pelo falo para sempre perdido, Nagiko pôde aceitar sua sexualidade feminina. Da mesma forma, somente então pôde acreditar em seu talento como escritora, no poder de seus textos, que são valorizados per se, sem nenhuma necessidade do concreto reforço fálico.

Agora Nagiko sabe que não existe apenas o sexo fálico, como dizia o texto escrito pelo pai, e sim os dois sexos – o masculino e o feminino. E é isso que possibilita seu efetivo acesso à produção da escrita.

Se, no correr do texto, muitas vezes superpus “pênis” e “falo”, não foi por desconhecer a diferença desses conceitos, mas para refletir a maneira complexa com a qual Greenaway os apresenta-nos em seu filme, em que aparecem intimamente imbricados, dificilmente dissociáveis, enquanto objetos e representações de desejo e referências identificatórias. Da mesma forma, as relações masculinidade-feminilidade são diretamente referidas ao binômio atividade/passividade, ecoando a visão que o autor expressa na obra.

Num outro nível, O livro de cabeceira, evoca muitas questões sobre a representação, a simbolização e a linguagem, todas de extraordinária importância.

A criação e o manejo de símbolos estão intimamente ligados à psicanálise, como dizem Laplanche e Pontalis (1983, p. 626). A razão dessa intimidade logo fica clara quando lembramos que o sonho, essa formação princeps do inconsciente, configura-se com um conteúdo manifesto e outro latente, em que o desejo inconsciente se articula e se expressa de forma indireta, figurada, camuflada, uma formação “simbólica” a ser decifrada.

Ao interpretar os sonhos e os conteúdos inconscientes de modo geral, Freud mostrou que é impossível compreender isoladamente qualquer elemento e que as correspondências entre conteúdo manifesto e conteúdo latente – ou seja, entre o que podemos chamar, lato senso, de “símbolo” e “simbolizado” – não são fixas e definitivas, mas dependem do contexto associativo produzido pelo analisando.1

O funcionamento do aparelho psíquico, tal como entendido no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, repousa sobre um sistema de inscrições, traços mnêmicos configurados como representações, divididas entre “representação de coisa” – derivada da coisa, de fundo visual e característica do inconsciente – e “representação de palavras” –derivada da palavra, de origem acústica e característica do pré-consciente e da consciência (Freud, 1900/1972, p. 636-647).

As “representações de palavra” remetem diretamente à linguagem, cujo papel decisivo se evidencia na constituição do processo secundário, com suas cargas inibidas que possibilitam a identidade de pensamento, ao contrário do processo primário, com suas descargas desinibidas que levam à identidade de percepção característica da realização alucinatória de desejo.

Observando a proximidade existente entre essas teorizações freudianas e o modelo estrutural de lingüística criado por Saussure, no qual se estabelece que o significante lingüístico tomado isoladamente não tem ligação interna com o significado e que a significação só se produz em função de sua integração num sistema de oposições diferenciais, Lacan encontra as bases para sua teoria do simbólico.

Nestas formulações reconhecemos a matriz de toda representação em psicanálise – o processo pelo qual a relação fusional do bebê com a mãe é substituída pela implantação de um sistema representacional simbólico. Isso faz com que seja possível ao bebê tolerar a perda do objeto primário (das Ding, mãe, seio), que não deve mais ser alucinado e sim representado através de palavras, o que evidencia a fundamental importância da linguagem.

Freud ilustra este processo de maneira muito clara ao descrever o jogo de seu neto.2 A criança brinca com um carretel que está amarrado com um cordão. Ela lança fora do berço o carretel e simultaneamente emite um som que os familiares entendem como sendo proveniente da palavra alemã fort, que significa “saiu, foi-se”, e, com grande satisfação, recolhe o carretel pelo fio gritando da (“eis aqui”). Ou seja, a criança “representa, simboliza” as dolorosas separações da mãe e sua desejada volta por meio do carretel e das palavras fort e da. Paulatinamente, a criança abandonará o manejo do carretel, dando primazia à palavra, à linguagem, como meio privilegiado de expressão (Freud, 1920/1976, pp. 25-29).

É por esse motivo que Pontalis diz:

No detalhe, no ínfimo, no passo a passo dos restos, quando nada a comanda a não ser seu próprio impulso, a fala reconduz ao objeto perdido, para dele se desligar.(...) Separarse, desunir-se do objeto e de si, desligar-se do semelhante ao idêntico, medir incessantemente a distância entre a coisa possuída e a palavra que a designa, e que, ao designá-la, diz de imediato que ela não está ali (Pontalis, 1991, p. 143).

É o que Pontalis chama de “melancolia da linguagem”, a linguagem como substituto do objeto amado perdido, a mãe (seio, das Ding). As palavras tornam presente uma ausência, ou ausente uma presença, são como “presenças-ausências”, para sempre perdidas da mãe fusional, aquela com quem não era necessário falar, pois dela se fazia parte.

Até aqui seguimos Freud, enfocando a linguagem a partir do bebê, observando como ele estrutura um sistema simbólico para representar o objeto perdido.

Mas a linguagem não é só “melancólica”, não diz respeito exclusivamente à recuperação, por parte do bebê, do objeto perdido. A linguagem é também intrinsecamente “estranha, estrangeira”, é a marca da distância e da separação entre a criança e a mãe. A linguagem vem de fora, do Outro que é a mãe enquanto sujeito diferente e separado da criança e, ao mesmo tempo, é a “língua da mãe”, é o que há de mais próximo, íntimo e familiar, aquilo que se confunde com a própria criança.

Mas a linguagem não é só “melancólica”, não diz respeito exclusivamente à recuperação, por parte do bebê, do objeto perdido. A linguagem é também intrinsecamente “estranha, estrangeira”, é a marca da distância e da separação entre a criança e a mãe. A linguagem vem de fora, do Outro que é a mãe enquanto sujeito diferente e separado da criança e, ao mesmo tempo, é a “língua da mãe”, é o que há de mais próximo, íntimo e familiar, aquilo que se confunde com a própria criança.

A criança infans, que não fala ainda, ouve, absorve, apreende, aprende a fala dos adultos, estes sons desconhecidos, misteriosos, surpreendentes, enigmáticos, fascinantes.

É o discurso do Outro, discurso que expressa o desejo deste Outro, discurso que vai constituir o sujeito para sempre alienado de si mesmo, como diz Lacan:

O significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito (Lacan, 1979, p. 197).

Assim, em última instância, para a psicanálise, a linguagem se instala em função da perda do objeto, do qual se faz representante. A base da linguagem está na simbolização do objeto, na discriminação entre o objeto e sua representação simbólica, na substituição do objeto por sua representação.3

Este é justamente um dos aspectos importantes de O livro de cabeceira. A história de Nagiko pode ser entendida como a ilustração dos processos de formação da representação simbólica, desde os momentos primeiros, nos quais “objeto” e “representação” coexistem, até o momento final, em que a representação se autonomiza do objeto definitivamente perdido.

Quando Nagiko escreve nos corpos masculinos que vão despertar o desejo do editor, ela não discrimina o objeto de sua representação. O mesmo ocorre com o editor, que – no início – goza com o texto (representação) e com o corpo (objeto). Paulatinamente o texto começa a ter certa autonomia para o editor. Ele não se deixa encantar inteiramente pelo corpo e procura o texto, que Nagiko ardilosamente coloca em lugares inacessíveis à primeira vista. Num determinado momento, o editor chega a rejeitar o corpo, quando não encontra o texto.

Nagiko e o editor representam a fase arcaica do pensamento em que a representação não se autonomiza do representado, o “objeto” (simbolizado) e sua “representação”(símbolo) ainda não estão inteiramente separados, estão apostos, superpostos. O símbolo não é suficientemente potente para substituir o objeto, que persiste. O apego ao objeto é tanto que sua simbolização, sua representação, tem que coexistir diretamente com ele. A linguagem, que representa o objeto perdido, vai apostar no próprio objeto, ainda não perdido.

Uma forma evolutiva intermediária ocorre quando o corpo “morto” de Jérôme é resgatado e transformado literalmente em livro. O objeto já está morto, mas ainda não totalmente perdido, ou abandonado, substituído e representado pelo símbolo, pela linguagem. Coexistem o texto e o corpo morto, a pele separada do resto das carnes, que é jogado no lixo. Esse fragmento pareceria ilustrar um momento ou uma formação “transicional”, não no sentido winnicottiano de intermediário entre o narcísico e o objetal, mas entre a coisa em si – já desvitalizada, morta – e sua representação.

O estágio final se dá quando efetivamente Nagiko pode escrever no papel. Sua escrita é puro símbolo, pura representação. O objeto já não mais impõe sua concretude, sua presença. Somente então Nagiko se transforma numa verdadeira escritora, numa sucessora de Sei Shonagon, tem seu pensamento simbólico, não mais mistura objeto e sua representação.

A partir da teorização kleiniana, esse processo é descrito por Hanna Segal através dos conceitos de “símbolo” e “equação simbólica”. Diz ela:

Na equação simbólica, o substituto-simbólico é tido como o objeto original. As próprias propriedades do substituto não são reconhecidas ou aceitas. A equação simbólica é usada para negar a ausência do objeto ideal ou controlar um objeto persecutório. Pertence a etapas mais primitivas do desenvolvimento. O símbolo, propriamente dito, disponível para a sublimação e impelindo o desenvolvimento do ego, representa o objeto; suas características são reconhecidas, respeitadas e usadas. O símbolo surge quando os sentimentos depressivos predominam sobre os esquizo-paranóides, quando a separação do objeto, a ambivalência, a culpa e a perda podem ser toleradas e vivenciadas. O símbolo é usado não para negar a perda, mas para sobrepujá-la (Segal, pp. 87-88). ( nfase do autor).

A evolução na representação simbólica é vista sob outro prisma por Paula Willoquet-Maricondi, ao apontar como em O livro de cabeceira a linguagem escrita é mostrada em vários tipos de caligrafias orientais antes de ser introduzido nosso alfabeto. Isso se dá, significativamente, quando Jérôme escreve com letras do alfabeto a palavra Brusten – “seio” em iídiche – nos seios de Nagiko. Diz ela: “Cada desenvolvimento lingüístico – a partir dos primeiros ideogramas, para os rebus, o aleph-beto semítico, o alfabeto grego, introduz um novo nível de abstração e separação, ou distância entre linguagem e corpo, entre a cultura humana e o resto da natureza”.

Esse progressivo movimento de afastamento entre o objeto e sua representação, entre simbolizado e o símbolo, culmina com a completa abstração e autonomia do mundo representacional simbólico, como mostra Derrida. Diz ele:

Com efeito, uma vez que os objetos podem ser substituídos por outros a ponto de deixar nua a própria estrutura substitutiva, a estrutura formal – ela mesma – se deixa ler, se expõe à leitura: o que passa a ocorrer não mais diz respeito ao afastamento deste ou daquele ausente, ou a reaproximação levar a esta ou àquela presença; o que passa a ocorrer diz respeito mais ao distanciamento do distante e à proximidade do próximo, à ausência do ausente ou à presença do presente. Mas o distanciamento não está distante, nem a proximidade está próxima, assim como a ausência não está ausente nem a presença está presente (Derrida, 1992, p. 321).

A linguagem e o mundo simbólico por ela engendrado são marcos definitivos de distanciamento entre a cultura humana e a natureza.

Se a relação de Nagiko com o editor, baseada no envio de corpos escritos, ilustra a perda do objeto e sua simbolização, não é indiferente que o falo ocupe nesse processo um lugar central. Ainda mais se lembrarmos, como vimos acima, que o editor é uma figura substitutiva do pai e que o diálogo entre os dois se refere à luta de Nagiko para afirmar sua feminilidade.

 

Referências

Braunstein, N. (2001). El libro de cabecera (The pillow book), Peter Greenaway y el psicoanálisis. In N. Braunstain, Ficcionario de psicoanálisis, pp. 216-229. México: Siglo Veintiuno.        [ Links ]

Derrida, J. (1992). The post card: From Socrates to Freud and beyond. Chicago: The University of Chicago Press.

Freud, S. (1972). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols.4/5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).

Freud, S. (1976).Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).

Gabbard, G. & Gabbard K. (1999). Psychiatry and the cinema. Washington: American Psychiatric Press.

Gabbard, G. & Gabbard K. (1999). Psychiatry and the cinema. Washington: American Psychiatric Press.

Lacan, J. (1979). O campo do Outro e o retorno sobre a transferência. In J. Lacan, O seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (pp. 193-245). Rio de Janeiro: Zahar.

Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1983). Simbolismo. In J. Laplanche & J.-B. Pontalis, Vocabulário da psicanálise (pp. 626-631). São Paulo: Martins Fontes.

Pontalis, J.-M. (1991). A melancolia da linguagem. In Perder de vista: Da fantasia de recuperação do objeto perdido, pp. 143-146. Rio de Janeiro: Zahar.

Saal, F. (1998). Greenaway, un libro para ver, um film para escribir. In F. Saal, Palabra de analista, p. 82-86. México: Siglo Veintiuno.

Segal, H. (1983). A obra de Hanna Segal. Rio de Janeiro: Imago.

Telles, S. (2004). O psicanalista vai ao cinema. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Willoquet-Maricondi, P. (1999). Fleshing the text: Greenaway’s pillow book and the erasure of the bod. Comparative literature department of Indiana University. Texto recuperado em 15.03.07: http://www3.iath.virginia.edu/pmc/text-only/issue.199/9.2willoquet.txt.

 

 

Endereço para correspondência
Sérgio Telles
Rua Maestro Cardim, 560/194 – Cerqueira César
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* Algumas idéias em torno de O livro de cabeceira (The pillow book, 1996), de Peter Greenaway.
** Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo), autor de Fragmentos clínicos de psicanálise (São Carlos/São Paulo, EdUFSCar/Casa do Psicólogo, 2003), Visita às casas de Freud e outras viagens (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006), entre outros.
1 Freud também usa “simbolismo” como uma forma específica de representação onírica, caracterizada pela relação fixa entre símbolo e simbolizado, como se evidencia nos sonhos ditos “típicos”, que usam elementos independentes do discurso pessoal de cada um.
2 Derrida (1992, pp. 303-337) desenvolve interessante argumentação em torno do caráter autobiográfico desse episódio.
3 Em outro texto, abordo mais extensamente esse tema. Vide Telles, S. (2002). O dom de falar línguas. Percurso, São Paulo, 28, 23-35.