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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Fito-me frente a frente*

 

I see myself face to face

 

 

Liana Pinto Chaves**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto utiliza-se do filme Infiel, dirigido por Liv Ullmann, para fazer uma aproximação com a construção de um espaço analítico: a premência para falar e ser ouvido, para narrar uma história pessoal dramática que encontra uma escuta atenta e engajada. É abordada a luta pela expressão numa e noutra situação – na obra de arte e no processo analítico.

Palavras-chave: Escuta. Identificação. Narração.


ABSTRACT

The text uses the film Faithless, directed by Liv Ullmann, to make an approximation with the construction of the analytic space: the urge to talk and to be listened, to narrate a dramatic personal history that meets an attentive and engaged listening. The struggle for expression in both situations is examined – in the work of art and in the analytical process.

Keywords: Listening. Identification. Narrative.


 

 

Quando eu estava no colegial, uma professora de português inspirada, dona Clélia (mesmo nome da minha nonna), nos explicava o que era poesia e como exemplo da expressão sintética da linguagem poética citou um poema, de Ungaretti, que consiste praticamente num único, condensadíssimo, verso. O poema é de 1917 e se chama “Mattina” (1917/1969, p. 65). Ei-lo:

M’illumino
d’immenso

Nós, adolescentes, sorvíamos avidamente suas palavras. Ali estava se consumando um ato de amor.Meu coração de estudante se iluminou com o universo que se deixava entrever naquele brevíssimo enunciado. Nunca me esqueci daquele momento; foi uma pequena, porém duradoura epifania.

O anseio por expressão e por transcendência está em cada um de nós e é imorredouro. Thomas Ogden (2001), este mestre da escrita psicanalítica, da escuta poética, diz que falar com um outro é uma questão de vida e de morte; nossa vida depende de conversarmos, para podermos dar voz ao inarticulado. Nós nos nutrimos, nos enriquecemos – seja quando conseguimos pôr em palavras o indizível, seja quando nos valemos da produção de outros para que ela fale por nós. É esta a função da arte em geral e da poesia em particular: capturar o inusitado, o instante, o fugaz, o pequeno ou o grande demais, o terrível, e dar-lhes alguma forma.

Vou me utilizar do filme Infiel (2000), dirigido por Liv Ullmann com roteiro de Ingmar Bergman, como apoio/ponto de partida para uma divagação sobre a linguagem e uma aproximação com a situação analítica. Trata-se de um belíssimo filme de suspense, ainda que seja basicamente feito de closes de rostos e falas.

A história trata das lembranças evocadas por um velho diretor/escritor chamado Bergman, em seu isolamento na ilha de Faro. Ele abre uma caixinha de música e contempla o mar, pensativo, através da janela. Em seguida, abre a gaveta de sua escrivaninha, cheia de papéis com anotações, e dali tira a foto de uma menina. Sente, então, uma presença na sala e indaga: “Tem alguém aí?”. Uma voz de mulher responde: “Só eu”. Primeiro é só uma voz, depois um vulto se aproxima. O velho é visitado por uma personagem de quem em parte se lembra e que em parte ele cria e que se torna sua musa-criatura. Ele a interroga, a estimula a falar. Um jogo de adivinhação e construção do enredo é posto em movimento entre os dois. Desde logo fica a pergunta: quem é quem?

Ela diz: “Meu nome é Marianne, e isto é o que eu me lembro. Aconteceu num tempo de que eu já não mais consigo lembrar por razões que não posso mais dizer. Eu tinha um marido que me amava, uma filha que confiava em mim e um amigo que me tentava”.

Com essa afirmação, o filme se abre qual uma sinfonia. Ela se põe a contar a história de um triângulo amoroso. Markus é um maestro de grande sucesso, casado com Marianne, uma atriz de teatro, e David é diretor de teatro. Os três são muito amigos e estão sempre juntos. Marianne e Markus formam um casal feliz e bem-sucedido e têm uma filha, Isabelle, de nove anos, uma criança misteriosa e sensível.

Resumindo ao máximo o plot: uma noite em que Markus está fora, numa turnê, David visita Marianne em busca de conforto. Janta com ela, eles conversam, ele põe a menina para dormir e então pede para dormir com Marianne. Ela fica espantada, mas depois de alguma hesitação, aceita. Ela lhe dá uma escova de dentes, um pijama do marido e ambos dormem na cama do casal, um ao lado do outro, de mãos dadas. Depois disso nada mais seria como antes. Uma fronteira havia sido ultrapassada. Um não consegue deixar de pensar no outro. Começamos a pressentir a tragédia, previsível, que vai em frente até a consumação final. O pensamento do senso comum é: por quê?! Pra quê?! Pára!

No início do relato de Marianne, Bergman toma notas em seus cadernos. Ele parece conhecer a história, mas não tudo; podia ser algo que escrevera ou vivera. Não sabe estabelecer bem a diferença. A narrativa vai num crescendo, em seus desdobramentos dramáticos. O velho diretor, que no início indaga, comenta, passa a falar cada vez menos, vai emudecendo, hipnotizado, subjugado pela vertigem do drama. Envelhece a olhos vistos. Em seu rosto expressivo vemos compaixão, horror e culpa.

Marianne planeja uma viagem a Paris com David. Lá ela o presenteia com a caixinha de música do início do filme. Lá eles passam duas semanas de paixão intensa.Na volta tentam sem sucesso retomar a vida antiga. Incapazes de outra coisa, paralisados, levam uma vida dupla. Marianne sabe que o que faziam estava errado: “É duro, eu não tenho palavras. Eu nunca falo sobre isso. Como eu posso falar sobre aquilo que não tem palavras?”. O velho escritor vai ficando contrito, sucumbido, e aos poucos como que ocupa o lugar de um analista. Ela descreve uma pessoa crescendo dentro da outra, David crescendo dentro de Marianne, algo que não pode ser detido, quase biológico.

Essa situação é, por fim, denunciada com violência pelo marido. O filme ganha então velocidade e entra numa espiral de refinadas crueldades com a revelação de uma traição atrás da outra.

Marianne sai de casa, vai viver com David, deixa a filha. Depois de um tempo, engravida de David.Markus move uma guerra implacável, um divórcio litigioso, na tentativa de ficar com a guarda exclusiva da filha. As cenas de violência psicológica se sucedem no melhor estilo bergmaniano. A criança doce, sensível, é a testemunha silenciosa da loucura dos adultos e sua maior vítima. Ela é o cordeiro do sacrifício.A câmera pousa sobre o rostinho angustiado de Isabelle.

Marianne fica submetida à extraordinária violência dos dois homens. As cenas de briga se multiplicam e Isabelle dos grandes olhos cheios de espanto tudo ouve, silenciosa.

Markus acaba se suicidando, tendo antes tentado fazer um pacto de morte com a filha. Ele é levado ao hospital por uma mulher desconhecida, que mais tarde revela ter sido sua amante durante os últimos vinte anos. As duas mulheres se encontram para conversar e reconstituir os fatos. David começa a deteriorar, a ter casos, Marianne faz um aborto e os dois por fim se separam.

A maior parte do filme se passa nessa longa confissão/ desabafo de Marianne a Bergman. Marianne indaga: “Isso tem que ser tão doloroso? É esse o preço?”.

Mais adiante no filme, é David quem comparece ao estúdio da ilha de Faro, devastado pelo peso de sua culpa para uma confissão pungente pela violência cometida contra Marianne. Bergman, mais consternado ainda, passa a mão na cabeça de David e acaricia seu rosto num gesto de profunda compaixão. Ele parece saber muito bem do que David está falando. No instante seguinte David não está mais lá. O escritor/analista cobre o rosto com as mãos, com uma dor imensa, e grita, porém a música abafa seu grito. Ele sai alquebrado da sala. Quando volta para seu estúdio, acende as luzes, sente uma tontura. Fica imóvel, aturdido, diante da escrivaninha, do papel em branco. Marianne o observa.

No final da narrativa, ela diz: “Não estou muito satisfeita com a sua Marianne”. Ele: “‘Minha’ Marianne?!”, e isso nos remete ao começo do filme – quem cria quem. Ela passa a se referir a si própria em terceira pessoa. Parece já estar de partida. Ele indaga, interessado: “Ela naufragou?”, ao que Marianne responde: “Sim, ela morreu”. Ele diz: “The end”. Ela: “É assim que é”. Ele: “Obrigado pela ajuda”. Ela: “Estou certa de que voltaremos a nos encontrar, no teatro ou em algum outro lugar”. Ele: “Parei de fazer planos”. Ela: “Agora eu tenho mesmo que ir embora”. Ele: “Vou ficar tão só sem você!”. Ela: “Obrigada, foi gentil dizer isso. Boa noite”.

Ela parece ter chegado ao término do que fora fazer ali e está pronta para ir embora.

Ele dá um suspiro fundo, guarda o caderno de anotações na gaveta, empurra a foto de Isabelle para debaixo de outros papéis. Tira a caixinha de música da gaveta, indício material junto com as fotos de que tudo aquilo acontecera, e a põe para tocar. Fica à janela pensativo e depois sai para andar pela praia.

Daria para comentar infinitamente esse extraordinário filme: a precisão, o apuro técnico, as cores, a música, o movimento da câmera, a alternância de narração propriamente dita com ação etc., mas não é o caso. Vou deixar de lado a linguagem cinematográfica, ainda que ela seja de tamanha potência, para me ater ao conteúdo profundo ou subjetivo da trama, vazado num grande texto, o script de Bergman.

Quem é quem aqui? Onde termina um e onde começa o outro? Quem chora? Ela ao narrar, ele ao ouvir. Essa mulher tem que falar até esgotar o que traz dentro de si e põe à prova a capacidade de escuta do seu parceiro. De quem é a análise? Quem é o analisando – ele ou ela? Vemos que só dá para mergulhar no universo de um passando pelo universo do outro, ele se prestando como instrumento de ressonância para a experiência dela e ela, aos poucos, trocando de lugar com ele.

Liv Ullmann foi uma das musas de Ingmar Bergman; atuou em nove de seus filmes. Eles também se tornaram amantes e tiveram uma filha.No filme em discussão, ela dirige um roteiro de autoria dele, muitos anos mais tarde. Foi ele que a convidou para dirigi-lo e só quis ver o filme depois de pronto, isto é, quis lhe dar total liberdade. É a criação de um em cima da criação do outro. O estilo de dirigir dela é bastante semelhante ao dele: os close-ups são intensos e reveladores, num auto-exame dilacerante. Os rostos são telas de pura expressão. O ator que faz o papel de Bergman é Erland Josephson, também um de seus atores mais importantes – trabalham juntos há mais de cinqüenta anos. É tão próximo de Bergman que pôde encarná-lo perfeitamente. Traz Bergman no sangue. Lena Endre, a atriz que interpreta Marianne, faz o mesmo tipo de papel complexo que a própria Liv Ullmann representou tantas vezes (por exemplo, em Persona, Gritos e sussurros, Cenas de um casamento, Sonata de outono, Saraband).

Aproximações com a situação analítica. A personagem que ouve se chama Bergman. O filme se passa na casa de Bergman, na ilha de Faro. Bergman foi casado com a diretora, que por sua vez foi sua atriz principal durante longos anos. Bergman está em Liv Ullmann, que está profundamente entranhada nele (lembremo-nos da frase de Marianne: “uma pessoa crescendo dentro de outra pessoa...”). David é Bergman quando jovem e por isso este o compreende tão bem. Ao pedir que Marianne reconte os fatos a partir da sua perspectiva, pode estar pedindo explicações para o seu próprio comportamento no passado. É um filme muito forte, cujo roteiro, que levou décadas sendo germinado, conta com os grandes temas bergmanianos: traição, perda, culpa e remorso. É ficção e semi-autobiográfico, como todos os seus filmes. Na busca de um sentido para tanta dor e sofrimento, algo que o ultrapassa, o escritor/diretor transforma seu passado numa obra de arte, num trabalho de elaboração e de auto-análise.

Hanna Segal (1993) estabelece uma relação direta entre a necessidade de reparação e a origem do impulso criativo. A obra de arte de qualidade tem a ver com uma reparação verdadeira e um embate com a própria noção de verdade. O enfrentamento de percepções verdadeiras e agudas sobre os conflitos, a agressividade, o desastre interno, é trabalhado pelo artista como uma necessidade, é transformado, para desembocar por fim numa forma inteiramente nova. Todo grande artista cria um mundo que pode ter elementos autobiográficos, ao mesmo tempo que cria um mundo que pertence exclusivamente à obra em si. Esse mundo nos habita, pode nos albergar; fala a nós o que não sabíamos que também somos. A qualidade de elevação proporcionada por uma experiência estética nos permite participar do ato criativo, pois nos identificamos com os elementos da obra, e aprofundar nossa percepção a respeito de nós mesmos.

O filme evoca a situação analítica: essa necessidade premente de estabelecer contato, olho no olho na busca da expressão franca, abertura máxima para ouvir e procurar dar sentido à experiência, mesmo com grande dor. E fascínio, também, pelos abismos humanos, perplexidade de constatar como pessoas tão refinadas se revelam tão brutais ao dar livre curso a suas emoções mais elementares. O realismo bergmaniano não elimina a subjetividade de quem escuta, antes a supõe: seu modo de antecipar, de completar, de deturpar ou de se identificar com o outro.

A concentração hipnótica do velho diretor, seu emudecimento à medida que a história se desdobra, o rosto que vai envelhecendo diante de tanto sofrimento, é pura atenção, ele se sente impotente para intervir. Isso nos é familiar como analistas. Quando recebemos um paciente em análise, permitimos que essa pessoa entre em nossas vidas, deixamos que ela cresça dentro de nós, nos dispomos a entrar num campo, quarto, palco, arena em sua companhia, dependendo da violência emocional de cada caso. A diferença é que temos que nos recuperar dessa imersão e sair dos estados de fusão para recuperar nossa identidade própria, momentaneamente perdida e, com ela, a fala.

Outro ponto de aproximação diz respeito às relações do passado com o presente. Como em toda História, o passado informa o presente. Tal como numa sessão de análise, a turbulência vivida e agora evocada entra na sala, criando um presente particular que traz embutido em si esse passado. Ela vai se manifestar no próprio narrador (analisando) e também naquilo que suscita neste ouvinte, o analista.

A permanente indagação sobre o que é mais atuante numa análise se justifica aqui: em que medida o efeito transformador de uma análise se deve a essa identificação profunda com a condição e o sofrimento do paciente na intimidade do analista? Em que medida se deve à capacidade deste de encontrar as palavras para suas interpretações? Conhecemos tão bem a angústia de ter que falar... Estamos com freqüência de volta ao ponto zero da fala. Diante das inundações, da paralisia, é preciso aprender a desenvolver a escuta poética, é preciso educar o ouvido. É isso que fazemos em nossas análises e auto-análises e no alimento que vamos buscar e encontramos na arte: concedemo- nos um tempo de deixar que as questões nos habitem para delas nos apropriarmos – uma educação sentimental, por assim dizer.

 

Referências

Ogden, T. H. (2001). Conversations at the frontier of dreaming. Northvale: Jason Aronson.        [ Links ]

Pessoa, F. (1990). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

Segal, H. (1993). Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago.

Ungaretti, G. (1969). Vita d’un uomo: Tutte le poesie. Milano: Mondadori. (Trabalho original publicado em 1917).

 

 

Endereço para correspondência
Liana Pinto Chaves
Rua José de Freitas Guimarães, 304 – Pacaembu
01237-010 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3871-5458
E-mail: lpc@terra.com.br

 

 

* Primeiro verso do poema número 652, de Fernando Pessoa (1990, p. 527).
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.