SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número46Sérgio Buarque de Holanda e essa tal de "cordialidade"O sacrifício: é preciso ver o que o artista preparou para nós índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Fragmentos de sensibilidade contemporânea

 

Fragments of contemporary sensibility

 

 

Mariza Martins Furquim Werneck*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de manifestações estéticas diversas: um filme, alguns livros, um curso, entre outras, o artigo tenta refletir sobre a sensibilidade contemporânea e a dificuldades de partilhá-la em uma sociedade globalizada.

Palavras-chave: Dor, Experiência, Sensibilidade, Viver-junto.


ABSTRACT

Based on several esthetic manifestations such as a film, some books, and a course, this article seeks to reflect upon contemporary sensibility and the difficulties to share it in a globalized society.

Keywords: Pain, Experience, Sensibility, Living-together.


 

 

Viver-não, viver-sem, como viver
Sem conviver, na praça de convites?

Carlos Drummond de Andrade

A vida secreta das palavras, filme exibido recentemente no Brasil (Espanha, 2005, direção de Isabel Costex), tem como cenário uma estranha ilha, feita de estruturas metálicas, que brota do meio do mar. Este mundo inóspito &– na verdade uma plataforma petrolífera &– pode ser confundido com um pequeno pedaço do inferno. Embora possa também ser pensado como uma alegoria do domínio do homem sobre a natureza, não há nada ali, pelo menos em um primeiro momento, que sinalize uma paisagem propriamente humana.Ao contrário,até mesmo as presenças de um ganso e de duas pequenas plantas cultivadas em latas de conserva,ao invés de remeterem a um universo confortável e domesticado, parecem deslocadas e surreais. Tudo ali evoca a idéia de um “não-lugar”, conceito sugerido pelo antropólogo Marc Augé (1992) para nomear alguns espaços produzidos pela supermodernidade: um lugar sem história, sem memória, sem subjetividade possível. Fora isso, só o mar, imenso.

Dentro da plataforma, cerca de meia dúzia de seres humanos leva uma existência no mínimo inquietante. Algum motivo obscuro de suas vidas conduziu-os até lá, e fez com que vissem, na solidão, o único refúgio possível.Vagando entre corredores estreitos e claustrofóbicos, escondem-se de si mesmos, de alguma guerra, da homossexualidade, das traições, de outros medos.

Apesar de tudo, essa grande ilha metálica que emerge do mar parece cumprir o destino desde sempre reservado, no imaginário humano, a todas as ilhas. Com efeito, e nas mais diferentes culturas, a ilha sempre representou, simbolicamente, um mundo em miniatura, uma imago-mundi completa e perfeita. Como em um rito iniciático, todos o que ali chegam, saem de alguma forma transformados.

Em “Causas e razões da ilha deserta”, curioso texto, postumamente publicado, Gilles Deleuze (2006) reflete sobre este poder mítico e regenerador das ilhas, e parece indicar alguns caminhos em direção à Vida secreta das palavras. Toda ilha, afirma ele, é, por excelência, o lugar do recomeço. Não se trata de um começo, enfatiza Deleuze, mas de um re-começo.

Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, toda ilha é um lugar de origem, ou, melhor dizendo, é “a origem radical e absoluta”. Trata-se, porém, de uma origem segunda, de um segundo nascimento, que só pode ocorrer após uma grande catástrofe. Para Deleuze, é justamente “a idéia de uma segunda origem que dá todo seu sentido à ilha deserta”.

Voltemos ao filme. Hannah, a protagonista, vem de um lugar igualmente inóspito: é operária de uma fábrica de plásticos, onde, durante todo o dia, repete, infinitas vezes, os mesmos gestos mecânicos. Protegida por uma surdez que, quando quer, a desliga do mundo ao simples desconectar de um aparelho auditivo, sua vida é um ir-e-vir da fábrica a casa, em que repete gestos igualmente mecânicos e obsessivos, que a impedem de lembrar.

Essa ausência de um dos sentidos em Hannah não é casual. O outro protagonista, Josef, está momentaneamente cego, e é por meio de um terceiro sentido, o tato, que os dois se conhecem e identificam feridas ainda abertas ou já cicatrizadas, e aprendem a cuidar delas. A partir desse primeiro reconhecimento mútuo, Josef e Hannah serão capazes de narrar suas vidas, de comunicar, um ao outro, suas secretas &– e terríveis &– palavras. Palavras que apenas roçam seus corpos, tateiam, e seguem sendo palavras. No caso de Hannah, sobretudo, qualquer imagem mais realista seria inconcebível. Talvez por isso, ela apenas narra.

Esta bela história se presta, como poucas, à reflexão sobre a sensibilidade contemporânea. O filme se passa no limite do humano, ou, dizendo de outro modo, no limite do narrável.

Indo um pouco além dessa perspectiva, Walter Benjamin (1933/1985) afirma, em um texto famoso, produzido no interstício dos dois grandes conflitos mundiais, que a guerra não é narrável. Segundo ele, os homens que regressam dos campos de batalha voltam mudos e empobrecidos, incapazes de uma troca legítima de experiências. Esse texto, “Experiência e pobreza”, datado de 1933, que Benjamin escreve fantasmado pela próxima guerra, que já se anuncia, ainda não esgotou suas “forças germinativas”, para usar uma expressão benjaminiana, e é capaz, ainda hoje, de suscitar novas interpretações. Até porque &– e armando uma cilada para si mesmo &– ao negar a possibilidade de se narrar a guerra, Walter Benjamin &– grande narrador que é &– ainda assim consegue narrá-la, sintetizando, de forma magnífica, essa brutal experiência vivida pelo seu tempo:

Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos, viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (Benjamin, 1933/1985, p.115).

Na sociedade globalizada, porém, parecem ser infinitas as modalidades de se narrar a dor humana e, muitas vezes, as imagens costumam ser mais contundentes do que as palavras. Tudo se torna imagem: a guerra, a lenta agonia de um papa, as mais tenebrosas chacinas, o desabamento das torres gêmeas de Manhattam. No entanto, essas imagens aqui evocadas já se foram. Outras virão, mais fortes ainda, testando diariamente nossa capacidade física e psíquica de suportá-las, de traçar os tênues limites entre a nossa própria dor, a mais interna, a mais íntima, e a dor alheia, à qual somos maciçamente submetidos. Mas dor globalizada &– isso a História nos ensina &– não significa, necessariamente, dor compartilhada.

Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003) tentou captar esse limite tênue, inerente à condição humana contemporânea, e que se passa entre a possibilidade do exercício da compaixão com o outro, e sua impossibilidade mesma, ou seja, o desenvolvimento quase obrigatório de alguma forma de insensibilidade, capaz de fazer-nos sobreviver a todas as catástrofes alheias, a todas as imagens. Nada de novo, afinal. A História, mais uma vez, é suficientemente contundente em seus exemplos para que precisemos evocá-los.

A visão dessas imagens em tempo real, e a nossa impotência diante delas, lembra-nos também que estamos diante de um novo modelo de humanidade e, talvez, não tenhamos desenvolvido ainda os devidos instrumentos para pensá-la. Alguns rótulos (Modernidade, Pós-modernidade, Supermodernidade, Globalização), sempre precários e provisórios, tentaram, em vão, definir o que parece se anunciar como um novo e profundo mal-estar de civilização &– e aqui nos enredamos, mais uma vez, em velhas palavras.

Ao iniciar o século XXI, o homem tem decifrado o seu genoma. Mas, o que significa isso exatamente? Que homem é esse, e com que categorias pensá-lo? As ferramentas epistemológicas, antropológicas, estéticas, psicanalíticas ou outras de que dispomos ainda servem para pensar, entre outras coisas, o pacto civil entre homossexuais, a revolução da clonagem, as novas relações entre arte e ciência?

Para ficarmos apenas no terreno da antropologia, esta ciência tomou para si a tarefa de denunciar permanentemente todas as formas de desrespeito à alteridade. Criou, para isso, eficazes ferramentas metodológicas, capazes de decifrar, pelo menos em princípio, os mais diferentes sistemas simbólicos.

Mas isso foi feito a duras penas. Surgida em meados do século XIX, profundamente comprometida com o colonialismo, a antropologia obrigou-se a pensar contra si mesma para tentar desfazer todos os equívocos gerados pelo etnocentrismo. As ilusões do evolucionismo antropológico fizeram acreditar que a selvageria e a barbárie viviam momentos agônicos, e estavam destinadas a desaparecer à medida que as sociedades avançassem incontornavelmente em direção à “civilização” (leia-se aqui branca, européia e cristã) e às suas promessas de felicidade tecnológica.

Corrigidos os incidentes de percurso iniciais, e pelo menos durante algum tempo, o deciframento das diversas concepções de cultura parecia assegurar uma ampla compreensão da tribo humana, e projetava a esperança de uma convivência, senão pacífica e solidária, ao menos mais respeitosa, entre os diferentes e exóticos atores do teatro do mundo.

Outros problemas surgiram, porém. Entre os de efeitos mais perversos, encontra-se o fato de que a noção de cultura &– pedra de toque do pensamento antropológico &– foi construída em oposição à de natureza. Foi Edward Tylor (1832-1917), antropólogo inglês, o primeiro a sistematizar o conceito de cultura, definindo-a como todo comportamento aprendido, excluindo-se aí toda e qualquer herança genética: “Tomado em seu sentido etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (Laraia, 1986, p. 25).

Depois de Tylor, no entanto, centenas de definições foram formuladas, contribuindo para gerar uma imensa confusão em torno do conceito. Cada escola de pensamento, cada geração, e, como reza o anedotário em torno da questão, até mesmo cada antropólogo tentou, pelo menos uma vez, definir cultura.

O pensamento estruturalista, representado por Claude Lévi-Strauss, vai pensar a irrupção da cultura atrelada à proibição do incesto. Incidindo sobre a natureza humana, ou seja, sobre a própria reprodução da espécie, a proibição do incesto pode ser pensada também como a primeira lei, a primeira regra socialmente definida. Teria, assim, um duplo caráter, natural e cultural ao mesmo tempo, e por isso ilustra, de forma exemplar, a passagem de um estado de natureza para um estado de cultura.

Mas, a partir daí, a aventura humana sobre a terra só fez aprofundar essa cisão, a ponto de não nos reconhecermos mais como parte desse mundo natural. Retirar-se da natureza, pensar-se fora e hierarquicamente superior a ela constitui, sem sombra de dúvida, uma das maiores arrogâncias perpetradas pelo homem, contra si mesmo e contra o planeta, arrogância pela qual, como se sabe, vem pagando um altíssimo preço. A cultura passou a ser pensada como o exato avesso da natureza ou, como bem definiu Serge Moscovici (1972/1975), passou a ser “uma modalidade de esquecimento da natureza”.

Já a contemporaneidade vem sofrendo o que o filósofo francês Dany-Robert Dufour (2003/2005) classifica como um violento processo de dessimbolização, o que pode ser identificado, segundo ele, pelo nome genérico de globalização.

Para Dufour esta dessimbolização está profundamente identificada com o neoliberalismo, e seu limite absoluto “é quando nada mais vem assegurar e assumir o encaminhamento para a função simbólica encarregada da relação e da busca de sentido” (p. 198). Perdemos, entre outras coisas, a identidade e o território de origem. A “banalidade do mal” (Arendt, 1983) assume formas cada vez mais insuspeitadas e a revolução tecnológica busca, a todo custo, a criação de um homem pós-orgânico. Uma nova humanidade resulta disso e, com ela, mais uma vez, tudo é posto em questão. O homem que inaugura o novo século tem a inteligibilidade sobre si mesmo ameaçada.

Na impossibilidade de obter respostas definitivas, resta-nos, ao menos, a perspectiva de improvisar algumas, com a ajuda de autores que, aguçando razão e sensibilidade, penetraram mais fundo no tempo em que viveram.Voltemos, pois, a Walter Benjamin.

Como foi dito anteriormente, em “Experiência e pobreza” Benjamin afirma que diante da barbárie, nossa capacidade de narrar se estanca. No entanto, essa impossibilidade é, em si mesma, produtora de uma nova forma de barbárie, positiva, desta vez, que se manifesta preferencialmente entre artistas e pensadores, entre todos os homens que pensaram o mundo a partir de uma tábula rasa. René Descartes, Albert Einstein, Paul Klee, entre outros, pertencem a esta estirpe, cuja maior característica é uma desilusão radical com seu século, aliada a uma forte fidelidade a ele. Diante da pobreza da experiência, afirma Benjamin, esse novo bárbaro é impelido “a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, sem olhar nem para a direita, nem para a esquerda”. Nem tudo está perdido, afinal.

Explorando as possibilidades semânticas e filosóficas contidas no conceito benjaminiano de “experiência”, que perpassa toda sua obra, Jeanne Marie Gagnebin (1999) distingue duas: a primeira delas é a Erfahrung, a tradição compartilhada, a experiência vivida e transmitida coletivamente, que vem se enfraquecendo dramaticamente no mundo capitalista, e sendo substituída pela Erlebnis, típica do indivíduo solitário, isolado em seu microcosmo. Sobre essa última forma de experiência, afirma Jeanne Marie Gagnebin:

Essa interiorização psicológica é acompanhada por uma interiorização especificamente espacial: a arquitetura começa a valorizar, justamente, o“interior”. A casa particular torna-se uma espécie de refúgio contra um mundo exterior hostil e anônimo. O indivíduo burguês, que sofre de uma espécie de despersonalização generalizada, tenta remediar este mal por uma apropriação pessoal e personalizada redobrada de tudo o que lhe pertence no privado: suas experiências inefáveis (Erlebnisse), seus sentimentos, sua mulher, seus filhos, sua casa e seus objetos pessoais (1999, p. 59).

Mais de quarenta anos depois do texto de Walter Benjamin, um outro autor, interrogando-se sobre as formas contemporâneas do viver compartilhado, coloca na discussão uma inflexão que também oscila da experiência coletiva à mais subjetiva, mas que, diferentemente das experiências benjaminianas, não são excludentes. O autor é Roland Barthes e, em seu curso, ministrado no Collège de France entre 1976 e 1977, denominado Como viver junto (2003), a palavra-chave é “idiorritmia”. O que interessava a Barthes, sobretudo em seus últimos anos de vida, era criar o que chamava de uma“ciência da nuance”. Buscava, na preparação de cada curso uma “introdução ao viver”, um guia de vida (projeto ético):“quero viver segundo a nuance”, dizia ele (p. XXI).

Conhecido pela sua generosidade como professor, sua ambição maior nesse curso seria, segundo ele, a de abdicar da condição de mestre, e reivindicar um lugar mais obscuro, permitindo assim que sua fala fosse mais banal do que aquilo que suscitasse em seus ouvintes. O que seria, claro, inalcançável, em se tratando de Barthes.

Seu projeto, assim como o de Benjamin, é eminentemente estético. Embora, em sua busca de nuances, considere a literatura a grande mestra, nem por isso as artes plásticas deixam de estar presentes nesse aprendizado, tanto em sua escritura, como em sua vida. Não apenas porque desenha e pinta, mas também porque, ao privilegiar uma escrita figural, confere a seus textos enorme plasticidade. É como se seu discurso fosse permanentemente habitado, em seu subsolo, por uma forma, uma imagem que age sobre a superfície e a modifica.

Mas que tipo de nuance buscaria o olhar de Barthes? Seu ponto de partida foi uma palavra ou, antes, uma fantasia, encontrada ao acaso em um livro de História: idiorritmia. Palavra de origem grega, composta de ídios (próprio) e de rhythmós (ritmo), cujo primeiro significado remete ao universo religioso: tem a ver com formas de vida comunitárias em que cada membro segue seu ritmo pessoal, mas depende, ainda que em escala mínima, de uma organização partilhada.

De posse dessa palavra-guia, Barthes passou a acalentar a idéia de um curso que fosse impulsionado apenas pelo imaginário de quem o proferisse. Esse curso permaneceria necessariamente para sempre inconcluso, e consistiria em nada mais do que “abrir dossiês”. Um curso feito de digressões e fugas constantes de seu eixo temático.

Examinando as possibilidades do Viver junto a partir dessa escolha fantasmática, Roland Barthes partiu em busca de seu grau zero, ou seja, do lugar intersticial em que a convivialidade se confunde e coincide com o viver sozinho. Mais do que a demonstração de um método, ele fez de seu curso uma experiência de ascese e imaginação. No limite, interessou-se em inventariar a solidão em suas múltiplas formas, e constatar sua absurda impossibilidade. Por isso, em suas anotações de aula desfilam anacoretas e eremitas, náufragos e loucos, todas as figuras nascidas da estranheza e do delírio, enclausuradas em suas existências mínimas, e reunidas ali, fortuitamente, por um gesto denso de poesia.

Concebido dois anos depois do aparecimento de Vigiar e punir, o curso de Barthes surge como um contraponto forte à idéia de um poder onipresente, defendida por Michel Foucault. Para Barthes, o que está em questão é saber, exatamente, a que distância devemos estar dos outros para construir, com eles, uma existência comum que não implique em alienação e nem na perda de nossos lugares mais secretos. Isso seria, basicamente, o sentido maior da fantasia idiorrítmica, e de uma sociedade concebida a partir dela.

Os organizadores da edição impressa de Como viver junto &– seus alunos &– tiveram a sabedoria de não reescrever as lições barthesianas (são anotações de aula), assim como a sensibilidade de não transformá-las em uma transcrição impressa da versão oral gravada, o que teria dado, como resultado final, apenas um livro póstumo. Permitiram, dessa forma, que Roland Barthes inaugurasse, mais uma vez, um novo gênero &– como aconteceu, aliás, em cada um de seus escritos. Respeitando a incompletude seminal de seu texto, deixaram ao leitor a delicada surpresa de perceber que aulas também podem se transformar em rara experiência estética e, mais do que isso, em experiência estética “compartilhada”. Depois, terminado o curso, exaurida a cintilância de sua fala, desmontaram-se os andaimes, desfez-se a obra. Barthes não só o sabia, como desejava isso: “Durante treze semanas &– disse ele &– vamos ter de nos sustentar sobre o insustentável. Depois, isso se abolirá” (2003, p. XVII).

Pequenos fragmentos produzidos pela sensibilidade e imaginação contemporâneas, o filme, alguns livros, ou um curso, que aqui reunimos ao acaso, têm, em comum, o fato de tentarem pensar a experiência humana em seus limites. Sondam a dor, nossas possibilidades e impossibilidades de vê-la, de narrá-la, ou de compartilhá-la.

Esgotados, pelo menos provisoriamente, os grandes sistemas de pensamento que, explicavam a vida e a morte em dimensões cosmogônicas, talvez eles sejam capazes de expressar, cada um à sua maneira, ainda que de forma precária e “nuançada”, alguma coisa próxima do que poderia ser uma nova compreensão sobre nós mesmos.

Para terminar, voltemos mais uma vez à narrativa desencadeadora de todas essas falas, àquele pequeno fragmento perdido no mar: no final de A Vida secreta das palavras, Hannah e Joseph ficam juntos, evidentemente. E, como dizia Guimarães Rosa, foram felizes e infelizes, misturadamente.

 

Referências

Arendt, H. (1983). Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. (S. O. Heinrich, trad). São Paulo: Diagrama e Texto.        [ Links ]

Augé, M. (1992). Non-lieux: Introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Seuil.        [ Links ]

Barthes, R. (2003). Como viver junto: Simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. (L. Perrone-Moisés, trad.). São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Benjamin, W. (1985). Experiência e pobreza. In W. Benjamin, Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (S. P. Rouanet, trad.). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1933).        [ Links ]

Deleuze, G. (2006). A ilha deserta e outros textos (L. B. L. Orlandi et al., trad.). São Paulo: Iluminuras. (Manuscrito dos anos 50).        [ Links ]

Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud. (Trabalho original publicado em 2003).        [ Links ]

Gagnebin, J. M. (1999). História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Laraia, R. de B. (1986). Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Moscovici, S. (1975). Sociedade contra natureza (E. Ferreira Alves, trad.). Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1972).        [ Links ]

Sontag, S. (2003). Diante da dor dos outros (R. Figueiredo, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Mariza Martins Furquim Werneck
Rua Monte Alegre, 1419/21 &— Perdizes
05014-002 &— São Paulo &— SP
Tel.: 11 3864-9641
E-mail: mmfw@uol.com.br

Recebido: 04/12/2007
Aceito: 20/12/2007

 

 

* Doutora em Antropologia pela PUCSP.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons