SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número46Fragmentos de sensibilidade contemporâneaDo mal-estar das pobrezas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

O sacrifício: é preciso ver o que o artista preparou para nós*

 

The sacrificie: it is necessary to see what the artist has prepared for us

 

 

Cecilia Maria de Brito Orsini**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Comentário ao debate que se seguiu à projeção do filme O sacrifício, de Andrei Tarkovsky, em que a autora observa as conseqüências para o psiquismo do trauma da ameaça de destruição nuclear, a partir de algumas análises da obra do cineasta e de revisões da noção freudiana da pulsão de morte.

Palavras-chave: Ameaça nuclear, Pulsão de morte, Psicanálise e cinema, Sacrifício, Trauma.


ABSTRACT

This is a commentary on the discussion that followed the showing of Andrei Tarkovsky’s film “The Sacrifice”, in which the author examines the effects on the psychism of the trauma of the threat of nuclear destruction, on the basis of an analysis of the director’s work and revisions of the Freudian concept of the death instinct.

Keywords: Nuclear threat, Death instinct, Psychoanalysis and cinema, Sacrifice, Trauma.


 

 

Estranhos cantos de pastores suecos, gritos esparsos, ruídos de pássaros e do mar, gaivotas... Tudo isso compõe uma melodia sinistra, “i-ó-iluru-iluru-i-ó-iluru-iluru”.Ela invade minha mente, não me abandona e fala de alguma coisa que eu ainda não sei dizer. Rostos com faces distantes, indistinguíveis, paralisia, angústia. O que tudo isso significa?

O objeto de análise, no caso, o filme O sacrifício de Andrei Tarkovsky, impregna minha mente e, durante vários dias, sequer consigo chegar ao final da projeção. Mas, subitamente, o que foi no princípio alvo de resistência, (pois eu adormecia implacavelmente depois de certo tempo de projeção), transmudou-se, após a cena final do sacrifício, em objeto de fascinação. Foi assim que se deu meu contato com o filme. É esse o nosso método de trabalho: se deixar impregnar vivamente pelo objeto, emprestar seu corpo e alma a ele e devolver algo a partir de seu interior &– o seu e o do objeto fundidos &– mediante um laborioso trabalho de interpretação.

O filme, fazendo uma pequena sinopse, narra o encontro de alguns familiares e amigos para a comemoração do aniversário do protagonista, Alexander, setentão desiludido, ex-professor de filosofia e ex-dramaturgo. O pequeno grupo se reúne em sua casa localizada numa remota ilha de beleza incomum, ao norte da Suécia. Lugar especialmente escolhido para passar a velhice em paz,na companhia da mulher e do filhinho de quatro ou cinco anos, chamado no filme de “o menino”. Na cena de abertura &– e todos conhecemos a importância das aberturas &– Alexander planta e “o menino”, que parece ter operado a garganta, rega uma árvore seca. Ao mesmo tempo em que Alexander reflete desiludido sobre os rumos que a humanidade vem seguindo, ele conta ao filho a lenda da árvore ressequida: aquela que renasce por intermédio da crença de um monge de que ela reviveria desde que fosse regada, persistentemente, todos os dias. O tema, portanto, já está anunciado: é de vida e de morte, de desesperança e de crença, amor e sacrifício (a rega diária) o que vai se tratar. Depois, os convivas passam à casa, os diálogos são tensos. Parece haver um certo desconforto, uma grande angústia contida em cada gesto, em cada olhar. Nas intermináveis cenas que antecedem o jantar de comemoração, inopinadamente, todos ouvem pela tevê, estarrecidos, que devem permanecer em casa devido à iminente ameaça da eclosão da guerra nuclear. Explica-se o arrastar-se das cenas numa angustiosa paralisia: é do terror sem nome que também se vai tratar. Alexander, apesar de ateu, aterrorizado como todos, reage à terrível ameaça oferecendo-se a Deus em sacrifício, por intermédio de uma promessa que lhe faz: afastar-se de tudo o que mais preza e ama e calar-se para sempre, para que Deus impeça que a hecatombe aconteça. Passa-se o dia, angustiante e estranho, com conversas e emoções surpreendentes, bizarras, partilhadas pelos personagens. Até que, num dado momento, a ameaça se desfaz e a hecatombe não acontece. Então, numa espécie de anticlímax final, Alexander cumpre sua terrível promessa: toca fogo a casa e emudece para sempre, para horror dos demais. É aí que “o menino”, que estava “mudo” devido à uma inflamação da garganta recupera a fala e dirige-se de modo comovente à árvore e ao pai, retomando a cena inicial, nos instantes finais da projeção.

Este não é um filme fácil de se assistir e menos ainda de comentar. Seja pelo seu conteúdo, seja pela sua forma eivada de angústia e de sentimentos de paralisia. Aqui, forma e conteúdo estão magistralmente fundidos. E mais, pelo seu implacável compromisso poético, é uma obra difícil de abordar. O que falar da poesia, se ela já fala por si mesma? Um filme simples, dirá Tarkovsky, que demanda expressamente que seus filmes sejam vistos como as imagens que veiculam, nada mais, nada menos. Este é o seu segredo, está tudo lá, para quem quiser ver. A narração passa a ser conseqüência das imagens sensíveis.

Seja como for, resolvi enfrentar a tarefa de comentá-lo como um solene desafio. E com muita reverência. Trata-se de um filme magnífico, que me fez entender de modo cabal aquilo que uma de nossas decanas, Lygia Amaral, sempre dizia, malgrado nossa falta de tempo, quando insistia que fôssemos ver alguma produção artística: “é preciso ir ver o que o artista preparou para nós!”. Foi esta aindagação que me guiou: “o que o artista preparou para nós?”.

Para começo de conversa, o filme nos emudece, ficamos “mudos como um peixe”, traumatizados como “o menino”, tão pequeno e inocente, com sua garganta inflamada. A garganta, o “bolo na garganta”, é um dos lugares privilegiados de representação de sentimentos de angústia. “‘No princípio era o verbo’, por que papai?”, pergunta o menino, quando recupera a fala, na fantástica e comovente cena final. E assim, ao findar a projeção, saímos do filme e do trauma revigorados, porque descobrimos, novamente, que é preciso falar para recriar o mundo, principalmente quando se trata de destroços, de ausência de inscrição, do trauma. E Alexander, o protagonista, emudece de uma fala vazia, tecnocrática, que afasta o homem de si, da natureza e dos outros homens. É essa bela trajetória, que descreverei melhor mais adiante. Ademais, o “artista” consegue esta proeza em meio ao maior caos pessoal. Tarkovsky encontrava-se exilado com a mulher e longe do filho,como uma estratégia das autoridades soviéticas de enlouquecê-lo, de vez que não permitiam a saída do “menino” da Rússia. É ao filho a quem não via há quase quatro anos que o cineasta dedica, não sem razão, esse fantástico filme testamento, conforme o pungente relato em seudiário. Causa forte impacto observar, nos relatos de seu diário referentes ao período de execução do filme, como o artista prossegue incansável o seu trabalho, mergulhado em dificuldades das mais diferentes ordens: montando comitês de ajuda político-financeira à sua família, procedendo a démarches incríveis com a produtora do filme em torno de verbas e outros que tais, escrevendo cartas para os presidentes de França e Estados Unidos, além de diversas autoridades, montando e desmontando apartamentos. E o pior ainda estava por vir: na época da montagem do filme, Tarkovsky é acossado por um gravíssimo câncer pulmonar. Seja como for, o filme já estava gestado antes de todos estes terríveis acontecimentos que, em realidade, só fizeram enriquecê-lo. Em meio a tudo isso, ou melhor, incentivado a viver por tudo isso, o artista conseguiu preparar para a posteridade seu libelo de amor e liberdade. Tinha razão D. Lygia... É mesmo fundamental conhecer o que “o artista preparou para nós”, quando se trata de grande arte. Como um complemento a esta idéia, Ingmar Bergman dirá que foi para ele como um milagre travar conhecimento com Tarkovsky, foi como abrir uma porta cuja chave lhe faltava.

O filme tematiza algo que não se inscreve, que não está no filme &– o absoluto da catástrofe nuclear. É impossível representar diretamente a catástrofe, a qual se inscreve pelo negativo (Nestrovski 2000), nessas dissonâncias do canto dos pastores suecos, no início do filme, o estranho distanciamento do rosto dos personagens nas primeiras cenas e nas súbitas e estranhas mudanças de coloração. Essas impressões formam um conjunto sígnico que expressa um mundo exaurido, esgotado, que precisa ser urgentemente recriado, nem que seja por um ato extremo, de tocar fogo a casa, cujo calor torna, surpreendentemente, verde a grama ao redor, pois derrete o gelo glacial que a cobria e ao filme. A casa de Alexander, metaforicamente, figura a nossa casa mundial, o nosso planeta. Fabio Herrmann (2006) propõe que, desde a guerra fria, a humanidade sofre, em silêncio, de um trauma da ordem do totalmente impensável, portanto indizível: o trauma relativo à ameaça de o ser humano ser capaz de explodir o mundo,por um único ato de apertar os botões das bombas nucleares, trauma que é vicariamente vivido em causas menores, como as ecológicas, frente à magnitude e desproporção do ato de destruição instantânea e final da humanidade. Em absoluto não se menciona esta possibilidade; melhor, é como se nunca chegássemos, verdadeiramente, a acreditar naquilo que poderia ter acontecido em 1961, na chamada“crise dos mísseis”: a destruição completa a partir de um ato único.

Frente a essa ameaça, Alexander quer começar de novo, com novos custos, como diria Lacan (1991), quando reinterpreta a noção de pulsão de morte. A pulsão de morte, na concepção freudiana, impele tudo aquilo que é vivo para um estado anterior de coisas; no limite, para a quietude do inanimado. A chamada compulsão à repetição que, se de um lado tenta, toscamente, cicatrizar o traumático e o inominável por intermédio de um comportamento repetitivo, por outro lado clama pelo retorno à quietude do inanimado. Onde está o ruidoso prazer erótico aí? Somente em 1929, em O mal-estar na civilização é que a pulsão de morte, além de um eterno retorno, será também colocada como uma ânsia cega de destruição. E será a partir de Lacan que vamos reencontrar a pulsão de morte numa dimensão vitalizante: zerar tudo para recomeçar com novos custos. É exatamente o que propõe o até há pouco descrente Alexander, em sua barganha com Deus : “permita, senhor, que tudo volte a ser como era antes de hoje [do inominável, da destruição nuclear] e me desfarei de tudo o que me é mais caro: minha casa, meu filho que tanto amo, minha família e por fim minha fala”. É assim, mediante essa oferta, queAlexander destrói tudo. E aqui, contudo, é preciso bastante atenção, pois Alexander não o faz com um sentido tanático, mortífero, e,sim,com um sentido cheio de esperança e vitalidade, para que “o menino” possa viver, pois, nessa dimensão, a pulsão de morte é aquilo que põe em causa tudo o que existe. É esse o seu legado &– me auto-imolo para que meu filho possa sobreviver, para que eu mesmo, contido em meu filho, possa prosseguir vivendo. Do mesmo modo, a repetição no filme não tem natureza tanática. É a repetição diferencial, não é aquela mortífera, que leva sempre ao mesmo e que redunda em nada, mas sim aquela outra, que tenta uma re-ligação, como a extraordinária lenda da árvore ressequida &– a fábula da tentativa, bem sucedida, de religação com seus frutos. Está aí a dimensão profundamente religiosa do filme, neste re-ligare, na etimologia mesma da palavra religião. Sabemos, por intermédio dos relatos de sua trajetória e de suas concepções estéticas, que Tarkovsky (2002), em seu livro Esculpir o tempo, critica duramente a estreiteza do materialismo dialético por negar sua relação com outras dimensões do existir, para além do determinismo econômico.

O que vale uma vida frente à ameaça da catástrofe nuclear? Como em todo o sacrifício ritual, o protagonista toma a parte pelo todo &– minha casa pela casa dos homens. Minha casa, pela casinha do menino, comovente oferenda feita por ele e por Otto, o misterioso carteiro, que também está no encontro do aniversariante e que anuncia, quando lhe oferece seu presente: todo presente implica em algum sacrifício. Todo ato de amor que se pretenda genuíno envolve alguma dose de sacrifício. De outro lado, o sacrifício, na acepção antropológica de René Girard (1990), é um ato desde sempre violento, que recobre uma outra violência, uma violência mais fundamental,como o sacrifício do animal totêmico recobre o parricídio original. O sacrifício de Alexander, que recobre a violência fundamental da destruição do mundo, não se insere numa cultura arcaica, ritualística. O mais pungente é que o sacrifício de Alexander acontece, na verdade, fora do ritual; portanto, ele só pode ser decodificado como um ato de demência. Por isso, no final do filme, nosso herói sucumbe à internação hospitalar, já que uma ambulância, surgida do nada, vem apanhá-lo. Na verdade, Alexander é uma espécie de herói trágico moderno. Ele figura o sacrifício do herói trágico para lidar com as coisas do mundo, para a criação de novas forças. O herói encarna esse embate com as forças vitais para incrementá-las, seja às próprias forças, seja ao próprio embate (Meiches 2000).

Tarkovsky também não menciona claramente no filme a catástrofe absoluta. Como disse mais atrás, ela aparecerá antes em negativo no filme, na sua linguagem sígnica: no escondido dos rostos que quase nunca aparecem de frente ou em closes, em seus estranhos ruídos, nas quedas súbitas de coisas e personagens, no misterioso ruído de supostos aviões caça, no aflitivo ranger de portas e janelas, em seus componentes bizarros, na apreensão do invisível.

Frente a esse inominável, Tarkovsky preparou um testamento, uma oração, uma pungente liturgia, um comovente ritual sacrificial de um pai para um filho,especialmente dirigidos para uma cultura que se esqueceu como se faz para rezar. Em Esculpir o tempo, o cineasta conclama o homem na sua responsabilidade em relação à sua disposição para o sacrifício. Não, entretanto, o sacrifício como castigo e sim como uma dimensão essencial do existir:

O que me impeliu foi o tema da harmonia que nasce apenas do sacrifício, da dupla dependência do amor. Não se trata de amor mútuo: o que ninguém parece entender é que o amor só pode ser unilateral, que não existe outra espécie de amor, que, sob qualquer outra forma, não é amor ... Acima de tudo, estou preocupado com o indivíduo capaz de sacrificar a si mesmo e a seu modo de vida &– sem se preocupar em saber se o sacrifício é feito em nome de valores espirituais, pelo bem do próximo, para sua própria salvação, ou em nome de tudo isso. Tal comportamento exclui, por sua própria natureza, todos aqueles interesses egoístas que constituem uma base lógica “normal” para a ação; recusa as leis de uma visão de mundo materialista. É sempre absurdo e pouco prático. E, apesar disso &– ou, na verdade, justamente por isso &– a pessoa que age desse modo realiza mudanças fundamentais nas vidas das pessoas e no curso da história. (p. 260).

É de uma radicalidade tão impressionante que nos soa muito estranha. Continuo a citá-lo:

O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido. O homem moderno, porém, não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício (p. 41).

E o cineasta cita Gogol, que afirmava ser a arte uma homília. Nada mais estranho ao hedonismo de nosso tempo que o espírito do sacrifício. Tarkovsky é consciente disso:

No mundo de hoje, porém, as relações pessoais fundamentam-se quase que exclusivamente na ânsia de nos apropriarmos de tanto quanto for possível daquilo que pertence ao próximo, ao mesmo tempo que defendemos com unhas e dentes os nossos próprios interesses (p. 280).

Já a própria apresentação do filme, na exibição de seus créditos, exemplifica magistralmente essa posição estética: no início da projeção, Tarkovsky condensa tudo o que está por vir; ao fundo,escutamos a belíssima música de Bach,“A paixão de Cristo segundo são Mateus”, e nos deparamos com a tela de Leonardo, A adoração dos reis magos, em que o mago oferece ao “menino”, Jesus, naturalmente, seu futuro terrível e único (expresso na beleza e poesia da “Paixão” de Bach que toca em contraponto). Já está colocada a preocupação do cineasta na apresentação mesma dos créditos: a menção à paixão de Cristo e ao seu destino: o seu ato sacrificial. A “citação” é por demais direta para exigir qualquer interpretação. Será abordada a dimensão cristã do sacrifício, como contraponto ao desenvolvimento material. Basta lembrar mais um expressivo detalhe do filme, que a rigor não exatamente um detalhe: a mulher que ama Alexander e“o menino”é a criada que se chama Maria, como a virgem. É uma mulher simples, tida como uma espécie de “feiticeira”, com quem Alexander oniricamente copulará para salvar os homens do desastre. A propósito, é a única personagem que desde a primeira aparição tem seu expressivo rosto filmado nitidamente e em close. Não há nada do “embaraço”, ou do embaçamento burguês que se observa nos outros personagens.

Sutilmente, logo após os créditos, e, ainda confundidos com a apresentação, a tela de Leonardo e a música de Bach, entram o som do mar e gaivotas, o pai, a árvore ressequida e o filho. O pai diz: “Agora você tem que me ajudar filho”, ao mesmo tempo que está plantando uma árvore japonesa, acredito eu que qualquer citação à Hiroshima, como também à proverbial paciência e amor aos rituais no mundo oriental é praticamente auto-evidente. Depois da primeira frase, que condensa tudo, pois assim como Jesus veio para “ajudar o pai”, o “menino” de Tarkovsky impele o pai ao sacrifício, que o faz como uma oferenda à sua posteridade. Enquanto plantam a desolada árvore, o pai conta ao filho a bela lenda da árvore ressequida, que cumpre molhar todos os dias, dia após dia, até que frutifique. Aparece, então, Otto, o estranho carteiro emissário, colecionador de eventos extraordinários. Chega e cumprimenta Alexander, pelo seu natalício. Ficamos sabendo então que ele é um homem culto e descrente. Já Otto, não. Otto crê e ao mesmo tempo descrê, e teme o vazio do eterno retorno. Enquanto os dois trocam interminável palavrório, o menino brinca, prende a roda da bicicleta do carteiro que cai ao tentar sair com ela; cai e ri, pois acabava de dizer que “creia que à vós é dado, e à vós acontecerá”. Do ponto de vista da criança, perspectiva sempre privilegiada no cineasta, todo este palavrório não passa de uma brincadeira, palavras jogadas ao vento, o menino brinca com o eterno retorno,que não significa nada frente à sua vida e à sua inocência. “Words, words, words”, dirá Alexander, citando Hamlet.

A brincadeira começa pouco a pouco, depois de alguns minutos de projeção, a se tornar sinistra: ouvimos ao fundo o tonitroar de uma tempestade que se anuncia também nas atormentadas falas de Alexander e que vai desabar sobre todas as cabeças, mais adiante, na cena em que todos assistem ao aviso da catástrofe nuclear pela televisão.

No entanto, sobra uma importante interrogação, espécie de efeito residual do filme: será a idéia de sacrifício cristão suficiente para recobrir tal traumatismo?

Seja como for, a cena final retoma o começo. É um verdadeiro poema: voltamos à rega da árvore, à maravilhosa música de Bach, ao belo cenário natural, à esplêndida fotografia de Sven Nikvist, o fotógrafo de Bergman, uma ode ao belo, renovando as esperanças nas gerações que estão por vir.

“No princípio era o verbo, por quê, papai?”

Porque a linguagem, o nosso absoluto, cria das trevas do inominado, o mundo das coisas.

Parafraseando Freud, no final de O mal-estar na civilização, nesse eterno combate entre Eros e Tânatos, só nos resta esperar. Esperar que Eros consiga vencer o seu não menos imortal inimigo &– Tânatos. “Apenas não sabemos se e por quanto tempo” (Freud, 1930/1974, p.171), acrescenta Freud este aviso sinistro, em 1933, que advinha a ameaça hitlerista que estava por vir e que começava, debilmente, a se insinuar.

Dirá Tarkovsky em Esculpir o tempo: “As obras primas, nem sempre distintas ou perceptíveis entre todas as obras com pretensão à genialidade, estão dispersas pelo mundo como sinais de advertência num campo minado. E só por muita sorte não voamos pelos ares!” (p. 61).

O banho de dignidade em que nos submerge Tarkovsky, descubro que é, por fim, o que nos redime e fascina. E de onde emergimos, renovados.

O filme aviso, sua obra-prima final, faz o espectador percorrer todo o caminho do trauma, tudo aquilo que se anuncia, sem necessidade de maiores explicações. O espectador vive a pura angústia do mais importante e renegado trauma da humanidade, para dali emergir com “o menino”, que entra na ação mudo, mais não sai calado! E que se pergunta sobre o mistério da criação, como o faz o homem desde tempos imemoriais. E por que não dizer, junto com a obra aviso do autor, que desde o holocausto nos perguntamos também sobre o mistério da destruição. Pois o verbo, ao passo que é capaz de criar a vida, é capaz, também, de criar a radiação.

O sacrifício repete, recobre e substitui, então, como desde sempre, uma violência fundamental. A violência da vida por referência ao inanimado, a violência do silêncio face ao rumor vital, a violência do rumor vital na quietude: a violência do ruído da vida por sobre o silêncio do inanimado.

E, para terminar, cito um trecho da carta de uma espectadora, dos mais impressionantes dentre todos os relatados por Tarkovsky (2002): “Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela iluminado pelo seu talento, senti pela primeira vez que não estava só” (p. 5). O respeito à obra é o nosso mais profundo agradecimento ao artista e ao seu divino talento.

 

Referências

Chnaiderman, M. (1991). No começo era o verbo?: Vida e morte em Tarkovski. In Anuário Brasileiro de Psicanálise (pp. 171-174). Rio de Janeiro: Relume Dumará.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 13-85) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 75-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930). Rio de Janeiro: Imago         [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (1990). O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (1993). Acaso e repetição em psicanálise: Uma introdução à teoria das pulsões (4. ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Girard, R. (1990). A violência e o sagrado. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Herrmann, F. A. (2002). Como conclusão: Daqui p’ra frente. In L. Barone (Org.), O psicanalista hoje e amanhã.; São Paulo: Casa do Psicólogo, 281-291

Herrmann, F. (2006). Psicanálise e política: No mundo em que vivemos. Percurso: Revista de Psicanálise, 18 (36), 5-24.         [ Links ]

Lacan, J. (1991). O seminário: Livro 7 (2. ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Meiches, M. P. (2000). A travessia do trágico em análise. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Nestrovsky, A. (2000). Vozes de crianças. In A. Nestrovski & M. Seligmann-Silva (Orgs.), Catástrofe e representação (pp. 185-205). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Tarkovsky, A. (2002). Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Tarkovsky, A. (2004). Journal 1970-1986. Paris: Éditions du Cahiers du Cinéma.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cecília Maria de Brito Orsini
Rua Artur de Azevedo, 1857/74
05414-015 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3083-0796
E-mail: ceciliaorsini@uol.com.br

Recebido: 15/09/2007
Aceito: 05/10/2007

 

 

* Comentário sobre a projeção do filme de mesmo nome, de Andrei Tarkovsky, no debate com o crítico de cinema Alcino Leite Neto. I Ciclo de Cinema e Psicanálise: “Trauma e Representação”, promovido pela Sala Cinemateca de São Paulo em parceria com a Comissão Científica da SBPSP. São Paulo, julho de 2005.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.