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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

ENTREVISTA

 

A estranha arte de produzir efeito sem causa*

 

 

Lourenço Mutarelli

 

 

Reconhecido por sua obra como desenhista de histórias em quadrinhos, em que se destacam as grafic novels Transubstanciação, de 1991 e a “Trilogia de 4”, do detetive Diomedes, dos álbuns: O dobro de cinco, O rei do ponto e A soma de tudo I e II, Lourenço Mutarelli marcou sua estréia na literatura com o perturbador romance O cheiro do ralo, de 2002, roteiro adaptado por Marçal Aquino para um longa filmado por Heitor Dhalia, em 2007. Em seguida escreveu as ficções: O natimorto: Um musical silencioso, São Paulo: DBA, 2004, adaptado para o cinema por Paulo Machline, em 2008 e para o teatro por Mario Bertolloto, e A arte de produzir efeito sem causa, São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Escreveu também peças de teatro e atuou em curtas-metragens e nas adaptações de seus livros.

***

ide: O que nos mobilizou fundamentalmente a realizar esta entrevista com você foi a experiência de estranhamento familiar, uma espécie de espanto mas também de empatia, despertada na platéia, da qual fazíamos parte, por ocasião da sua apresentação, aliás com um tom trágico-cômico impressionante, de seu romance O cheiro do ralo, na Flip (Festa Literária de Parati) em 2006. À medida que você foi contando a respeito do protagonista, a maioria das pessoas da platéia foi passando a detestá-lo e ao mesmo tempo a se empatizar com ele. Algumas pessoas mudavam de lugar, tentando se aproximar de você, enquanto outras levantavam e deixavam a sala... E assim foi... O fato é que esta vivência teve a força de resistir dentro de nós até hoje sustentando o desejo de marcar este encontro.

Lá na Flip, você mencionou sua experiência com a psicanálise e ficou em aberto dentro de nós um possível elo entre a psicanálise e a sua criação literária. Gostaríamos que você nos contasse se e como a psicanálise tem sido um instrumento indireto de criação ficcional para você.

Lourenço Mutarelli: A minha primeira graphic novel, Transubstanciação (1991), é um trabalho totalmente terapêutico. Estava em depressão profunda, tinha tido muitos ataques de pânico com agorafobia bem violentos, estava há três meses deitado no mesmo lugar e era carregado pelos meus pais três vezes por semana para o psiquiatra. Quando consegui melhorar, comecei a fazer esse trabalho, que foi muito terapêutico. A partir daí, fiz dez anos de psicanálise freudiana e tomo medicação há muitos anos. Já fui diagnosticado como bipolar, mas, meu atual psiquiatra não tem certeza disso, portanto venho me medicando somente com antidepressivos e tranqüilizantes. Costumo dizer que meu trabalho é um mergulho. Em casa, trabalho em um lugar separado, no quarto da empregada, onde eu mergulho e não gosto que minha família entre lá. E, quando saio de lá, sou essa figura sociável e agradável que está aqui (risos). Acho que é um bom começo, né?

Eu não me conheço inteiramente, mas o fato de me conhecer bem me leva a dizer que, naquele intervalo de três meses em que passei no inferno, pude fazer um mapa do inferno e então posso voltar para lá quando quiser. Só que, da última vez em que voltei de lá, percebi algumas pequenas portas e aberturas que não havia antes, e isso me preocupou um pouco. Encontrei caminhos que não existiam no meu mapa. Eu acho que o inferno se ramifica, e aí é mais fácil se perder. Mas não vou deixar de ir até ele porque a minha vida é isso, é meu esporte radical, é minha auto-exploração. Meu hobby é a demonologia. Eu gosto e acho divertido ler sobre isso. Eu e meu filho de doze anos costumamos a assistir juntos filmes meio fortes. Eu tenho um histórico familiar complicado e ele, desde pequeno, acompanha um irmão meu muito problemático, esquizofrênico, viciado em crack, que já virou mendigo, vive preso e internado. Desde muito pequeno meu filho percebeu isso e, desde então, a gente conversa sobre isso, porque ele presenciou cenas muito fortes quando criança. Meu irmão não mora comigo, não mora com ninguém, vive internado ou nas ruas. Então, como tem filmes que eu gosto e assistimos juntos, sempre conversei muito com ele... Tenho muito medo, é muito difícil ser pai, muito mais do que ser filho. Mas é isso, meu filho existe. Tento ser bastante... pai com ele. Faço o possível.

Eu costumo dizer que, se eu fosse mais espiritualista, diria que eu psicografo o que escrevo porque escrevi O cheiro do ralo em cinco dias, em um carnaval em que estava sozinho, quando minha mulher e meus filhos tinham ido viajar. Escrevo muito por cadência... ouço muito música concreta, minimalista, porque sinto, nitidamente, que esse tipo de música atinge áreas do meu cérebro &– quando estou em estado de concentração &– que não seriam atingidas de outra forma, e isso me traz idéias que talvez não tivesse sem esse momento de fruição. Eu escuto obras muito longas, muito complexas, e gosto de ficar ouvindo-as até que elas se transformem em uma música para mim e me tragam emoção. Quando em algum momento algo se torna familiar e me emociona, escolho a emoção que quero desenvolver. É mais ou menos assim que é meu trabalho criativo com texto.

Quando acabo um livro, não acho que ele seja meu. Não tenho nenhum livro, nenhum quadrinho, não acho que nada do que fiz seja meu. Acho que o livro é de quem lê. Então, sobre participar da adaptação não é mais comigo. O livro O cheiro do ralo foi publicado em 2002 e eu o li somente uma vez, logo após sua chegada da gráfica, depois nunca mais li. Escrevi e li só uma vez.

ide: E como foi a leitura?

L. Mutarelli: Foi estranha. Na primeira leitura não sabia o que era aquilo ainda. Eu tinha escrito muito rápido e depois fiquei uns dez dias mexendo em alguns trechos &– mais enxugando do que acrescentando &– e mandei para a gráfica. Quando ele voltou de lá, me acomodei como faço quando leio um livro que não foi escrito por mim, e me tocou em muitos pontos. Gostei de muitas coisas, como a cadência. Quando a gente foi, não sei quantos anos depois, filmar, disse a eles que eles conheciam o livro melhor do que eu, já que nunca mais eu o tinha lido. Disse que adoraria participar, fazer qualquer personagem, mas que não podia opinar. Adaptação já é outra coisa, não é o livro, o livro já era. Então, eu tenho uma relação não problemática com a adaptação, porque não tenho apego. O único livro ao qual tinha certo apego era O natimorto, mas tive que me desapegar porque tinha uma dívida ruim que precisava pagar. Mas, enfim, fui muito feliz com as pessoas que foram escolhidas para adaptar meus dois livros.

Quero muito que as pessoas assistam O natimorto. Vi recentemente o segundo corte e gostei muito. Não sei como é para as pessoas que não leram o livro, não sei se o filme dá a dimensão do livro... Não dá, não dá em profundidade, porque no livro você entra na cabeça do personagem em que ele explica e amarra uma série de questões. Mas, acho que o filme está bem interessante.

ide: Como foi para você a experiência de estar nesses dois lugares tão diferentes entre si, como o da criação e o da atuação como personagem nos filmes, feitos a partir da adaptação de suas obras O cheiro do ralo e O natimorto?

L. Mutarelli: O Heitor Dhalia, diretor do filme O cheiro do ralo, queria que eu atuasse de algum modo no filme, porque eu já fazia os testes com os atores, quando o Selton Mello não podia, e também porque eu já tinha feito um curta-metragem como ator. Então, ele pediu para eu escolher um personagem e eu respondi que era para ele escolher. Ele escolheu que eu interpretaria o segurança, por causa do meu porte (risos) e aí virei o segurança.

Já me propuseram também a direção dos filmes de adaptações de meus livros, mas não quero dirigir cinema. Tenho vontade de dirigir teatro, já me ofereceram um espaço e eu só preciso administrar meu tempo para isso. Mas não tenho a menor vontade de dirigir cinema, porque envolve trabalho de equipe e, como criador, eu não acredito em equipe, não seria uma coisa boa para mim, acho que eu viraria um ditador ou alguma coisa assim e eu não costumo ter essa postura (risos).

O cinema é muito difícil, porque é muito fragmentado. Você faz uma cena dentro de milhões de limitações. Há uma fita crepe no chão, até onde você pode caminhar e estar em foco, é preciso prestar atenção na luz para não causar sombra na pessoa com quem está contracenando, tem que ter seu texto e esperar o momento certo de falar, porque, se os dois falarem ao mesmo tempo, atrapalha o som. Há muitas limitações. A gente ensaia ou estuda, a cena vai se passar aqui, mas quando estamos nela, ela vai ser totalmente limitada e é preciso fazer, às vezes, cinco vezes a mesma cena. Existe emoção, existe uma coisa que prefiro chamar de “evocação” ou até “invocação”, mas tudo isso tem que estar dentro de uma série de restrições. Como acontece também em outras coisas &– por exemplo, na própria escrita &– quando você quer dizer uma coisa e não tem palavras. É mais ou menos isso, mas na filmagem são muitas, são restrições geográficas, espaciais. As pessoas, infelizmente, não percebem, não vêem. Parece que foi tudo filmado em uma seqüência e nem sempre é assim. Ainda mais quando se trabalha com uma única câmera e não há como cobrir um mesmo momento, em dois pontos distintos. Mas, existe emoção também.

Eu tenho um problema com a técnica, com toda e qualquer técnica. Por exemplo, tive a preparação física para O natimorto e foi incrível: abri um leque gigantesco de possibilidades que não sabia que existiam em mim. Quando se descobre a técnica, você expande, mas depois de um tempo, vira prisioneiro dela. A técnica não é nada mais do que um truque. São truques que você vai aprendendo &– como manipular certos instrumentos com um pouco mais de destreza ou precisão &– até que se chega a um ponto em que não se consegue mais fazer sem a técnica. E isso não é uma coisa que venho buscando, não quero ter técnica demais na atuação. Por isso também não quero atuar no teatro, por que lá tem que ter muita técnica, como, por exemplo, para projetar voz. Você vive muito mais aquela cena, integralmente, quando está lá, mas é preciso ter muita técnica e não pretendo adquiri-la.

Pretendo dirigir só teatro, porque, o que faço, é brincadeira, experiência. Mas não vou fazer um curso de direção, por exemplo. Minha primeira peça: O que você foi quando era criança, foi indicada para o Prêmio Shell. Eu não considero o teatro uma coisa sagrada. Respeito muito, mas estou brincando, não vou ser Shakespeare. Acho que, às vezes, as pessoas respeitam demais algumas coisas e por isso elas se repetem tanto. Acho que deveriam colocar assim: é isso que quero fazer e posso fazer desta forma e pronto; e é isso que talvez possa ser diferente, novo, inovador: estar liberto da técnica. Até a faculdade, por exemplo, nunca estudei nenhuma técnica de desenho, não sabia nada. Comecei pintando com remédio e tinta que minha mãe usava para tecido. Todos os remédios que tinham cor, e que eu tomava, eu usava para pintar. Trabalhei em uma farmácia e experimentei todos os remédios, até anticoncepcionais, nem sabia o que era isso. Disse: “quero tomar todos”. Aí tive uma reação alérgica e quase morri.

ide: Umas das personagens que mais nos impressionou em O cheiro do ralo é aquela moça viciada que transborda dor por todo o corpo. Queríamos te ouvir como você pensa a relação entre a dor e a criação.

L. Mutarelli: O Heitor me apresentou a atriz que interpreta a viciada no dia em que ela veio fazer o teste. Ela era toda bonitinha, gordinha, pequenininha. Acho que emagreceu oito quilos para fazer o papel. Todo fim de cena eu a abraçava e pedia desculpas porque uma coisa é o texto que escrevo para um livro em que o leitor entra, se quiser, participa e cria também. A imagem já é algo que te prende e que te manipula demais e por isso estava cansado dos quadrinhos. A imagem retira a parte criativa do fruidor. Então, quando vi a primeira cena com a viciada em que o vendedor da loja se masturba na frente dela, pensei: “Pô, esses caras são loucos, que coisa horrível...”. Porque uma coisa é um texto escrito, num livro, e outra é aquela imagem. Eles me dizem que fui eu que criei aquilo, mas eu criei para um texto que seria construído por cada leitor. Algumas cenas parecem de maneira muito mais horrível do que eu tinha visualizado. Então, outra coisa é você ver isso. Conversei um pouco com esta atriz sobre o meu irmão, sobre quanto sofrimento existe no vício e que eu achava que há uma tendência a não mostrar esta dor. Por ex., no filme Meu nome não é Johnny não há sofrimento, então, não é uma história de vício. Ah, a criação... eu sofri bastante e tinha, de alguma forma, que trabalhar com isso.

Nos meus personagens recentes, tenho trabalhado muito uma sensação que tenho tido. Eu durmo pouco, tomo medicação e bebo &– agora voltei a beber, meu médico não gosta, depois de quase uma década sem beber &– e às vezes, quando estou acordando, tenho muita dificuldade de lembrar dos meus sonhos. Mas, percebo quando estou entrando e saindo da vigília e me deu uma impressão um pouco forte e assustadora de que todo dia, nesse percurso de voltar para a vigília, a gente tem que reinventar tudo, toda a nossa história, em segundos. E não é lembrar. É inventar. Então, cada vez confio menos nas minhas lembranças, que aparecem por imagens. A gente lembra como imagens, como um filme, mas elas me convencem cada vez menos. Acho que existe uma grande manipulação nossa nisso. Por outro lado, como tive uma vida sempre muito difícil, e ela foi melhorando &– costumo brincar que era muito maltratado e agora estou me acostumando a ser bem tratado &– talvez isso também esteja mudando alguma coisa, talvez até floreando meu passado.

Vou contar exemplos do que eu acredito serem verdades. Meu pai era delegado de polícia, um artista frustrado, fazia teatro, desenhava e pintava, mas não conseguiu nada com isso e entrou para a polícia, tornando-se um homem muito violento. Eu apanhava quase diariamente e a razão de eu apanhar era o fato de ter uma irmã mais velha e um irmão mais novo. Um exemplo clássico foi quando meu irmão subiu no beliche, junto com meu primo, e pulava na cama da minha irmã, e eu fiquei do lado do meu pai porque eles iam quebrar a cama e eu não queria apanhar. Eles quebraram a cama e meu pai ficou muito furioso. Ele me chamou e disse que precisava bater em alguém porque estava muito nervoso por terem quebrado a cama, mas que não poderia bater no meu primo e nem no meu irmão, por ser muito pequeno, e que então iria bater em mim. Pediu para que as pessoas saíssem de dentro do quarto e me espancou de tal forma que fiquei uma semana sem conseguir andar direito. Uma outra era a de que ele não podia bater na minha irmã, porque era mulher, e ele não iria agüentar. Então, um personagem meu diz uma vez que a vida sabe bater e que ele aprendeu a apanhar. E foi isso, eu aprendi a apanhar. A nossa relação melhorou muito com o tempo, mas eu tive episódios assim, por exemplo: quando tinha dezessete anos, ele me ligou para que eu fosse para delegacia com uma desculpa qualquer, e, na verdade, era para que eu assistisse a uma sessão de tortura. Ele entrou com dez policiais, me apresentou uma pessoa e falou que aquele era um homem inocente e que ia me mostrar como se transforma um inocente em culpado. Eles tinham perdido um prisioneiro que precisavam entregar e levaram esse outro para lá... Dava para ouvir uma música do Black Sabbath, que eu já havia escutado em casa e meu pai associou com tortura; eu tinha respondido que não tinha nada a ver, porque tinha muita gente rindo... - a música termina com uma pessoa chorando e muitas outras rindo. Mas aí ouvi a música lá dentro! Tive que ter uma força absurda para... Era tortura mesmo... e durou até a pessoa se converter em culpado para eles. Então, sempre convivi com esse tipo de peso. Era uma pessoa que eu amava, era meu pai. Tive que tentar lidar com essas coisas e acho que consegui. A terapia me ajudou muito.

Quando tinha dez anos de idade, minha mãe me perguntou o que eu queria de aniversário e respondi que queria ir a um psiquiatra, porque tinha umas coisas na cabeça, tinha umas sensações, via umas coisas muito coloridas, via umas coisas com halos... Eu sentia que precisava ver o que era. Uma vez fiquei perdido em um lugar aonde a gente sempre ia. Perdi totalmente o senso de direção, então eu achava que precisava de alguma ajuda. E quando pedi isso, ela me deu um tapa na cara, que a minha cabeça deu quase três voltas, porque naquela época psiquiatra era coisa de louco. Quando tinha dezesseis anos, tive problemas com drogas, e aí eles me levaram e foi quando comecei a fazer psicanálise. E foi muito bom para mim, porque eu queria isso. Eu queria entender, queria ir junto. Eu tive vários analistas, até este atual, com quem fiz mergulhos extremamente profundos, em uma época em que, obviamente, devolvia toda essa carga de violência que recebi. A minha adolescência foi uma adolescência bastante conturbada.

Meu pai morreu de mão dada comigo, enquanto tomava uma injeção de morfina por causa de um câncer que ele tinha. Esse foi outro momento... Foi o fim de um ciclo, um dos momentos mais intensos que já vivi.

ide: Isso causou algum impacto na sua produção?

L. Mutarelli: A morte de meu pai? Sim, eu resolvi parar de fazer quadrinhos, porque o que meu pai mais gostava eram os quadrinhos e eu os fazia para ele. Então, não havia mais sentido continuar. É muito trabalho e ele não pode mais vêlos, então não tenho por que fazer, não iria fazer só para mim. O meu primeiro álbum eu assinei com meu nome de batismo que é Lourenço Mutarelli Junior. Aí, percebi que precisava tirar o Junior, como um presente para meu pai, de certa forma. Meu pai tinha uma coleção muito interessante de quadrinhos, ele gostava muito. Ele tinha os clássicos dos quadrinhos. Tínhamos muitos livros em casa e a gente sempre teve total acesso e liberdade em relação a isso. Foi um momento em que a gente tinha alguns diálogos. No começo, teve uma coisa curiosa... Ele acompanhava meus desenhos, mas de modo distante. Eu publicava em revistas. Mais tarde, voltamos a dialogar sobre cinema, porque ele amava cinema e a gente via muitos filmes juntos. Ficamos muito amigos, não no fim da vida dele, mas antes disso, quando ele se aposentou, principalmente. Então, desde cedo eu via muito quadrinho e, sempre que escrevia alguma coisa, fazia um desenhinho e sempre que desenhava alguma coisa, escrevia uma frasezinha. Percebi que era a melhor forma para conseguir me expressar e, depois, para conseguir me comunicar, o que foi mais difícil e levou mais tempo também.

Na verdade, a minha vida foi um drama mexicano, mas agora está tudo em ordem. Houve momentos que não foram fáceis e o meu trabalho sempre foi uma válvula de escape.

ide: O desenho e a escrita fluíram desde cedo na sua vida...

L. Mutarelli: Eu desenho desde muito pequeno. Lembro que, quando fiz meu primeiro desenho, foi a primeira vez que fui tratado de maneira respeitosa. Aí comecei a desenhar bastante, porque queria ser tratado assim, com respeito. Também nunca soube fazer mais nada, era uma negação em tudo.

ide: Você acha que sua literatura pode ser considerada como uma obra mítica, no sentido de estar revestida por uma história pessoal?

L. Mutarelli: Tento fugir da história pessoal, às vezes a utilizo como experiência para um novo personagem, mas sempre percebo que, num determinado ponto, estou misturado, bem misturado. Às vezes, enquanto estou fazendo a obra, não percebo isso. Mas percebo depois, na publicação, quando começo a identificar alguns aspectos com minha história. Tem uma coisa que eu adoro: identificar de onde veio cada peça daquela estória na minha história. Às vezes consigo perceber um caco, que se junta com outro, e com outro, e me surpreendo com a origem das experiências. Gosto também de criar metáforas para certas situações. Minha mulher insistia para que eu escrevesse minha biografia, mas não posso, pois colocaria muita gente em julgamento, e não quero isso. Acho que, de alguma forma, eu já o faço de forma dissimulada. Meu trabalho é muito verdadeiro.

ide: Uma autobiografia ficcional?

L. Mutarelli: É, acho que misturo bastante. O personagem que o Selton Mello interpreta em O cheiro do ralo é uma antítese de mim, porque eu não sei comprar nem vender nada, sem tomar prejuízo. Sou muito mal tratado no comércio. Isso me revolta, porque às vezes me visto muito mal, tenho esse cabelo do palhaço Bozo (risos). E aí fica só um lado... (faz um gesto mostrando o cabelo arrepiado só de um lado). Certa vez, entrei em uma loja e o comerciante me tratou muito mal. Ia comprar um tapetinho e acabei comprando o tapete mais caro; é uma coisa da qual me arrependo até hoje. Foi só para mostrar que eu podia comprar aquela merda, que ele não precisava me tratar daquele jeito. Então, queria criar uma antítese, mas estou muito misturado com o personagem.

ide: Logo após a Flip, nós compramos o romance e o lemos quando ainda nem se sabia que existiria o filme. No romance, os personagens são todos anônimos. Quando mais tarde fomos assistir ao filme, levamos um susto ao ver logo de cara o protagonista com o nome Lourenço, mas não era você em carne e osso, porque ele é interpretado pelo Selton Mello; depois apareceu você, Lourenço, em carne e osso, interpretando o segurança...

L. Mutarelli: Imagino que daí tenha dado um nó na cabeça de vocês... Em O cheiro do ralo e O natimorto os personagens não têm nome, têm funções. Eles me disseram que o nome do protagonista ia ser Lourenço, como uma homenagem, mas eu respondi que não sabia se seria bem uma homenagem (risos), “mas ... vocês é que mandam”.

ide: Os personagens também adquirem nomes na adaptação do romance O natimorto para o cinema?

L. Mutarelli: Não. Um personagem é o agente e o outro é a voz. Ah... tem também a esposa. Sempre tem que ter a esposa. E sempre acham que é a minha esposa, coitada, que é tão boazinha. Em O natimorto, tem um momento romântico quando o agente descobre uma cantora que tem uma voz incomum e, em uma conversa entre eles, acaba se envolvendo e se apaixonando. Mas ele é assexuado &– é um pouco complicada a história, não sei se vocês conhecem &– mas aí ele diz para ela que ela é tão legal e ainda fuma. E minha mulher, que não fuma, começou a fumar por causa dessa frase. Não era ela, mas ela também sempre acha que é. Está fumando bem.

Essa campanha contra o cigarro me irrita porque eu fumo. E porque agora voltei a beber depois de uma década, saí da tumba e não posso dirigir! Antigamente, quando você ia ao shopping, o cachorro ficava fora e o fumante entrava; agora, o cachorro entra e o fumante fica de fora. Tem alguma coisa aí. Por que alguém diz que não pode? A gente vive em um mundo em que o importante é morrer com saúde. Acho muito hipócrita. O ar que a gente respira, tudo que a gente vive... Respeito não fumar em restaurante, em lugares fechados, mas... Já falei, vou parar de dar palestras em lugares onde não posso fumar, porque é a única forma de contra-atacar isso. Às vezes fico quatro horas em uma palestra e não posso fumar.

ide: Mas você está liberado para fumar aqui hoje!

L. Mutarelli: Mas aqui é muito fechado, também tenho bom senso. Só não gosto da hipocrisia. Acho uma questão delicada, é muita censura, muito policiamento. Tem coisas que não entendo mesmo!

ide: Na sua literatura, você acha que há hipocrisia com relação à recepção por parte do público ou do leitor? A sua literatura é uma descida para o inferno, o subterrâneo, o porão... Como você percebe que esse tipo de literatura é recebido pelo público?

L. Mutarelli: Sempre, antes mesmo de O cheiro do ralo, tive um público muito restrito, porém fiel, que acompanhou meu trabalho durante muito tempo. Evito um pouco o contato com o público porque já passei por várias situações. Algumas pessoas se tornaram meus amigos. Não falo muito do meu trabalho na minha vida particular. O meu padrinho de casamento nunca leu nada meu, e eu acho isso ótimo, porque tem tanta outra coisa de que falar sem precisar ficar falando do meu trabalho. Um trabalho é só um trabalho. Mas, não sei... tem gente que fica perturbada. Já tive problemas com uma pessoa que veio à minha casa dizendo que eu havia botado aquilo na cabeça dele e agora eu é que tinha que tirar. Era uma pessoa bastante agressiva &– que fez uma oficina comigo, por isso teve acesso à minha casa. Eu o recebi e depois tive que mandá-lo embora na marra, porque ia dar trabalho. Então, não sei, algumas pessoas gostam outras não. Quando estou fazendo um trabalho, não penso que ele vai sair dali e nem sei o que vai surgir dali, ou do papel em que estou desenhando, ou do que estou escrevendo. Estou experimentando aquilo, depois surge algo e a responsabilidade é minha, naturalmente. O livro não é o meu, mas a responsabilidade sim. Mas é só ficção. É só um livro.

ide: Seus personagens são demoníacos, beiram o grotesco e deixam o espectador muito perturbado, no sentido de agüentar, ou não, até o fim...

L. Mutarelli: Isso eu sinto com bastante força. Acho que, por mais que eu envelheça ou amadureça, muito do meu trabalho tem a ver com as minhas primeiras impressões das pessoas, das coisas. E não eram imagens agradáveis. Isso está muito dentro, enraizado em mim e é difícil mudar esse olhar no meu trabalho. Posso tentar com alguns personagens... Na minha vida, felizmente, não tenho isso. Adoro as pessoas, mas não convivo com ninguém. Adoro minha solidão, gosto de encontrar as pessoas esporadicamente, não telefono para ninguém &– as pessoas sabem disso &–, não respondo e-mails, e, às vezes, atendo ao telefone. Mas, quando encontro as pessoas, gosto de ter um tempo de entrega, gosto muito de contato físico, gosto de abraçar, de encontrar...

ide: Você disse que gosta de criar metáforas...

L. Mutarelli: O ralo é metafórico. Quando escrevia o livro, vinham muitas imagens, que são ícones. Como o ralo, buraco para onde vão os excrementos &– os nossos excrementos &–que se relaciona com o inferno, com meu interior. São símbolos nada agradáveis, mas estão muito ligados ao interior, ao que a gente come e, de alguma forma, não quer cheirar ou enxergar. É um olhar para o que a gente às vezes vê &– a gente sempre vê, aliás, e sente o cheiro, mas tem muitas coisas assépticas que ajudam a suavizar.

ide: Você disse que o que você faz é trabalho; só que tem uma qualidade esse trabalho, a de ser arte. Você disse também que sua vida não é seu trabalho, é mais do que o trabalho. Mas, ao mesmo tempo, a gente vê &– pelas histórias que você nos conta e por alguns livros &– que o seu trabalho está impregnado da sua vida; quanto ao contrário, você acha que não?

L. Mutarelli: Na verdade, gostaria de achar que não. Naturalmente, se você vai toda hora para o fundo de uma mina...Eu tento uma divisão, entre meu local de trabalho e minha casa. Mas eu volto com poeira dessa mina. Tento limpar, mas ela está ali. O que tento, na verdade, é fazer o que fazia quando era criança. Lembro que, quando era muito pequeno, mas muito pequeno, tive uma sensação de morte, de uma morte nada agradável, da inexistência, de inexistir. Devia ter uns seis anos de idade. Senti isso muito profundamente e pensava que meus pais não podiam saber disso, nem perceber, pois tinham que acreditar nas coisas em que acreditavam: que a gente vai para o céu e... E aí eu tentava me distrair. É a mesma coisa que faço com minha família que segue agora, que são minha mulher e meu filho. Naturalmente, quando meu filho tinha três anos de idade, como trabalho em casa, uma vez ele veio até a minha mesa &– na época só fazia quadrinhos, não sei se vocês conhecem meu desenho, mas ele é pesado, disforme &– e perguntou por que só desenhava monstro e só ouvia música triste. Respondi que não eram monstros, eram pessoas, e comprei um fone de ouvido (risos). Então, acontece isso, tento não misturar, mas há mistura. Consigo até me distanciar disso, consigo me divertir, ter momentos muito bons, tranqüilos, e tenho visto cada vez mais melhorias em tudo isso.

ide: Como foi seu percurso na faculdade?

L. Mutarelli: Foi muito bom por causa de alguns professores. Tive um professor que abriu minha cabeça com um machado. Ele me levava na casa dele, mostrava, falava... nada diretamente, mas me fez perceber muita coisa. Foi incrível, muito importante para mim. E a faculdade dá uma bibliografia incrível. Eu precisava trabalhar. Minha família sempre cobrava que tinha que ter o tal do “fixo”. Minha namorada disse para eu fazer artes plásticas. Eu nem sabia o que era isso, mas, quando entendi o que era, fui fazer. Aproveitei muito, havia sido sempre um péssimo aluno, mas na faculdade fui um bom aluno. Conto sempre essa história. Cheguei a ser o pior aluno da classe, porque tinha o que hoje em dia se chamaria de déficit de atenção &– TDAH. Mas, é que eu olhava para a professora falando, olhava a boca e a mão dela se movendo e achava interessante e aí me distraía.

ide: Aí você desenhava?

L. Mutarelli: Não, porque meu pai numerava as páginas para que eu não desenhasse, assim eu não podia arrancar. Desenhava na carteira, que dava para apagar. Mas o desvio não era pelo desenho. Era para ver os detalhes, focar em coisas que me raptavam, não é que eu decidisse: “vou olhar”. Mas, de repente, estava olhando. Faço isso ainda hoje.

Tem uma coisa curiosa em relação ao desenho. Sempre quis entender por que algumas pessoas param de desenhar. Toda criança desenha, e bem &– adoro desenho de criança &– então queria entender por que pára. Usei meu filho de cobaia e descobri que ele parou de desenhar quando aprendeu a escrever. È muito mais rápido escrever “montanha” do que desenhá-la. Acho que é isso... Fiz uma peça - que nunca vai ser montada, porque fiz um monólogo completamente doido para uma atriz, mas de que gosto muito. Ela explica o que diferencia a pessoa comum do artista. Ela diz que ela conseguia brincar com as bonecas, dava vida a elas, falavam, e em um momento não conseguiu mais. Acho que um artista é o que consegue dar vida a qualquer coisa inanimada e consegue continuar brincando. Não é necessariamente a coisa infantil, mas é somar a isso, deixar a coisa acompanhar. Não é a questão da infantilidade, de não querer crescer, mas a de não atrofiar uma sensibilidade. Você vai adquirindo outras, sem perder essa. Acho que essa é a característica.

ide: Que autores você leu desde a sua infância?

L. Mutarelli: Lembro que li Kafka e depois Dostoievski. Quando li Kafka, achei &– é por isso que não tenho apego com o que faço &– que ele havia feito o livro para mim. Pensei: “Esse livro é meu. Obrigado, Sr. Kafka, isso aqui também é meu”. Então, não é só influência, é mais do que isso. Ele me tocou de uma forma... São aquelas pessoas que nos encorajam a ser nós mesmos, a nos expressarmos. Identifico-me muito com A metamorfose, que é incrível.

ide: Você fala que não tem apego, mas tem responsabilidade...

L. Mutarelli: Sinto-me responsável e acho que seria imprudente um autor não se sentir assim. Quero me dar para as pessoas, me dividir. No começo, eu era mais natural nos meus trabalhos, alguns até me proibi de publicar. Mesmo que fosse muito inconscientemente, eu queria talvez agredir ao me manifestar, dizia algo em que me expressava, mas não comunicava. Hoje, quando apresento um personagem, por mais difícil que seja &– do O cheiro do ralo ou do O natimorto &–, tento dar toda a profundidade aos personagens para que a pessoa possa entender a complexidade dele, gostar ou não, aceitar ou não. Assim, eu me entrego muito. Não escrevo porque quero, escrevo porque preciso. O meu trabalho é terapêutico. Se parar de trabalhar não vou ficar bem, vou ter que aumentar a dose de tudo que tomo.

ide: Parece que este fato é uma característica do artista. Fellini dizia que era compulsivo, que se não filmasse, enlouqueceria. A criação é uma necessidade?

L. Mutarelli: Exatamente. Sem criação, essa energia acaba saindo de outra forma, vai para o braço, o corpo. É visceral. É como gritar: você pode segurar, mas uma hora vai estourar a sua garganta. A responsabilidade é essa, preciso ter certa lucidez sobre o que faço, preciso dialogar, preciso ir a palestras. Às vezes os autores não gostam, mas estou lá para me expor porque sou responsável por isso. Se alguém tem uma pergunta, eu estou lá. Posso não ter a resposta, mas vou tentar pensar junto com a pessoa. Mostro honestamente o meu processo. Não é importante que as pessoas tentem entender o que eu quis dizer com certa obra. Não é isso que importa. O importante é o que aquilo quis dizer para ela e, a partir daí, talvez a gente consiga dialogar. È para que o leitor possa se misturar internamente com aquela construção. Algumas coisas eles vêem, outras não.

Quando eu sou o fruidor de alguma obra, também não é tudo o que percebo, que me toca. Mas, existem também artimanhas quando estou escrevendo, sem querer... É como a sedução. Um livro é muito parecido com a sedução: é preciso saber chegar, trazer, ganhar segurança para poder seduzir. É um processo: como você coloca as palavras, como se apresenta o personagem. O cheiro do ralo e O natimorto são contrários. No primeiro, apresento um personagem detestável e meu objetivo é tentar reverter a expectativa do leitor. No segundo, apresento um banana, inofensivo, assexuado, e vou virar para o outro lado. É meio uma brincadeira, uma sedução, uma dança.

ide: A temática deste número da revista é o Estrangeiro. O protagonista do O cheiro do ralo é um personagem detestável e ao mesmo tempo fascinante... Sua literatura traz questões que incomodam e perturbam a maioria das pessoas. Seus personagens são bizarros, esquisitos, estranhos... Como psicanalistas, lidamos muito com questões parecidas e estamos pensando em especial na questão da sexualidade, que no O cheiro do ralo é muito forte: aquela coisa insuportável da sexualidade, aquela tensão...

L. Mutarelli: Esses personagens sou eu. Sou isso aí. A sexualidade é muito presente no meu trabalho e, infelizmente, na minha vida também. Não tinha identidade nenhuma com o personagem de O natimorto. Há apenas duas coisas em que gostaria de ser como ele: o fato do cara que sai para comprar cigarro e nunca mais volta &– que é o sonho da minha infância &– e o fato de ele querer ser assexuado, coisa à qual venho me dedicando há muito tempo. Eu me “assexuo” sozinho, no banheiro. Sou igual a um macaco e isso me incomoda muito, essa bestialidade... Não quero isso, me atrapalha. Com o tempo, acalma um pouco, mas é a compulsão que me atrapalha. Não gosto disso, não gosto disso no meu trabalho. Quando a gente trabalha com o teatro, por exemplo, ou com cinema, com arte coletiva, é impossível que as pessoas envolvidas não misturem o trabalho com a sexualidade. Eu não posso misturar. Quando acaba, eu comemoro, mas, durante o processo de trabalho, não quero isso. Tem diretores que fazem um filme para conseguir comer uma menina e fazem um filme inteiro... Para mim, a arte, ou seja lá qual for o nome disso, não é isso, não é esse o objetivo. Não é uma ratoeira. Essa é uma conseqüência que acontece sempre, porque as pessoas misturam, ou porque as pessoas mitificam... É uma extensão de conhecimento, um abraço um pouco mais longo que as pessoas se dão, só isso... acontece e pronto, acabou. Mas não durante o trabalho. È uma coisa que atrapalha muito minha concentração, essa minha bestialidade. Eu a tenho desde que era muito pequeno e quero ter um controle melhor sobre isso. Tenho conseguido.

Tenho uma coisa muito irritante, não consigo me sentir à vontade em lugar nenhum. Peço para minha mulher para abrir a geladeira. Isso até foi usado em uma peça, os caras viram isso e puseram em uma cena. Pergunto se posso pegar aquele Danone na geladeira e minha mulher me diz “Cacete, quem comprou essa geladeira? Então porra, precisa pedir?!”. Mas é que minha mãe era uma figura terrível, na casa da minha mãe tudo era impecável. Tinha uma sala que estava sempre impecável esperando uma visita que nunca foi. Era preciso pedir as coisas. Eu era muito rejeitado. Então, por isso, não me sinto à vontade em lugar nenhum. Sou completamente estrangeiro.

Uma história que gosto de contar é a de quando eu era pequeno e minha mãe me dizia para não comer bananas, porque dava pesadelo. Eu dormia na parte de cima de um beliche e, às vezes, dizia que ia tomar água, ia andando até a cozinha, tinha um corredor assim, e comia duas bananas. Era como se estivesse indo para a Lua, adorava ter pesadelos, porque assim eu acordava e a vida era melhor do que o pesadelo. Então, acho importante fazer as pessoas entrarem em um pesadelo, porque quando se sai dele, a pessoa vê que a vida é tão boa...

ide: Você se sente muito incompreendido?

L. Mutarelli: Fui muito incompreendido e sou ainda, mas já fui muito mais. Era uma coisa difícil para mim... Eu sempre fui de observar e fazer perguntas. Para minha mãe, essa era uma coisa muito estranha. Ela sempre dizia “esse menino é retardado”, porque ela não entendia o que eu dizia. Meu pai às vezes conseguia entrar em um dialogo, mas ele estava muito pouco em casa. Eu tinha muita enxaqueca quando era jovem, de perder a visão, aquela dor infernal, uma parafernália. A mãe de um amiguinho meu disse para pedir para minha mãe fazer um eletro. E minha mãe disse que não, porque iriam dizer que eu era louco. Há muitos esquizofrênicos na família dela, então eu entendo. Mas, havia muita incompreensão. E incompreensão até no sentido de... O meu trabalho fala um pouco disso. O natimorto apresenta uma cena de que gosto muito &– não sei se vocês leram o livro, acho que não está no filme &– mas ele dá uma volta porque o que queria era passar aquela noite ali, no quarto com ela, mas sem transar, só queria ficar ali, não queria ir embora... Isso é uma coisa tão simples, dá uma volta, explica que ele é assexuado, e que a mulher não tem orgasmo, e ela entende. Então por que eu não posso dizer uma coisa assim para alguém? Por que não posso tocar em uma pessoa? Se eu for sincero e explicar o que quero... por que não posso?... Por exemplo, outro dia estava no metrô e tinha uma senhora muito bonitinha ao meu lado, uma senhora mesmo. Queria dar um abraço nessa mulher. Parecia ser, não a minha mãe, mas uma mãe clássica. Aí eu pensei “será que se eu oferecer uma grana...”, é bem O cheiro do ralo, porque talvez se der uma grana ela não se ofenda. É só um abraço, não vou sacanear, é uma coisa fraternal. Mas a gente não pode, não pode encostar, não pode falar... e às vezes são coisas tão simples, tão bonitas. Coisas que podem fazer tanto bem para a gente e para o outro. Não estou me referindo só à coisa sexual, estou me referindo às pessoas mesmo. Infelizmente ou felizmente, com as pessoas de quem gosto, próximas, eu falo. Não consigo não falar. Às vezes, ligo de madrugada. Nunca ligo, mas, bêbado, às vezes eu ligo. Tem uma história muito bonita &– acho que até o Marçal uma vez contou isso em uma entrevista. Estava ouvindo uma música, sozinho em casa, e era uma música muito triste, poemas do Leonard Cohen musicados pelo Philippe Glass. Comecei a ficar muito mal e a prestar atenção na letra, que contava uma história muito bonita de um cara que passou a dormir dez horas por dia e, durante a maior parte do tempo que ele passava acordado &– quatro horas do dia &–, ele se dedicava a ficar olhando para as pessoas que via na agenda e ligando para as que amava, para dizer boa noite. Então, comecei a ligar e agora ligo para algumas pessoas para dizer boa noite. Não são tantas, mas eu ligo mesmo bêbado.

ide: Você mencionou que saiu muito cedo para vir para cá e que no caminho foi parando em vários cafezinhos até chegar aqui para nosso encontro...

L. Mutarelli: Queria conversar com vocês, claro! O único problema é que vocês ouvem muito e falam pouco, mas tudo bem. Eu detesto trânsito, não posso ficar ansioso no trânsito, fico muito mal mesmo, então saio muito antes e quando posso pego o metrô, ou táxi. Hoje tinha que vir de carro para vir pensando... Minha religião é a música, então tinha que pensar no que ouviria no caminho para cá. O tipo de música que ouço no carro não é a mesma que ouço em casa para trabalhar. No carro, é uma melodia mais harmônica, mais musical, para distrair... Saio antes, como se fosse um passeio. Então, se acho um café, paro e tomo um café. Deixo o carro em um lugar e vou andar. Aqui na minha bolsa tem livros, lanterna, metro, tem tudo... Hoje retirei o uísque porque ia dirigir, mas geralmente tem também bebida. Parece com aqueles táxis... Tendo Lorax fico seguro em qualquer situação. Preciso ter Lorax, porque sou dependente dele há muitos anos. Às vezes, saio de casa sem nada, mas tenho que ter Lorax. Sou muito sensível, não sobrevivo sem um pouco de anestesia, é insuportável. Fiz uma história de um personagem que não tinha pele, tinha os nervos à flor da pele. É assim comigo... eu preciso. Não agüento mesmo. Quero fazer uma escultura em homenagem ao Lorax. Eu tinha um personagem que chamava Lorax Mutarax. Dediquei meu primeiro livro a ele.

ide: Já teve períodos em que você se sentiu incapaz de criar?

L. Mutarelli: Acho que nunca fiquei sem criar, inclusive na depressão. Na depressão, você cria histórias contra você. Não percebe, mas cria. Eu brincava muito quando era criança, por exemplo, com os bonequinhos de um programa de TV. Acho que são as histórias mais incríveis que construí. Claro que não podem ser transportadas para os dias de hoje, porque os personagens tinham sentido para mim. Acho que só na depressão profunda é que se pára de criar.

Estou trabalhando agora um personagem que decidiu não acordar mais. Ele acordou, mas finge que está dormindo, já faz um ano, porque ele fez uma cagada e não quer enfrentar isso. Às vezes a gente não está deprimido, mas acordar é meio sem sentido. Por eu não sonhar, essa coisa de me desligar e ter que me ligar, e me reinventar todo dia, é cansativa. Às vezes não vejo sentido... Mas também, já superei... Nunca tive nenhuma ambição. Minha grande ambição era ter código de barras em uma revista em quadrinhos. Vi isso uma vez em uma banca que tinha material importado, quando eu era criança. Não sabia o que era aquilo.

ide: A gente fica grato por pessoas que ajudam a gente a deixar tudo em ordem, e às vezes, por pessoas que lembram a gente do cheiro do ralo, que não obrigam a gente a nada... mas, evocam... Quando você contou a história da delegacia, da tortura, tive a impressão de que você contou como uma lembrança um tanto quanto sofrida. No entanto, você fica muito amigo desse pai. E, você toma cuidado &– eu percebo &– de não fazer com seu filho nada parecido, mas faz com o público algo muito parecido. Por outro lado, você fala de sua mãe como uma pessoa terrível.

L. Mutarelli: Não sei se terrível. Uma pessoa fria, pouco passional.

ide: Mas acaba sendo uma figura que te deixa como um estrangeiro para o resto da vida. Então tem algo de terrível nisso. Era sobre isso que eu estava matutando. Você é uma pessoa agradável, tem uma franqueza carinhosa, amiga. Mas às vezes a gente não consegue deixar de ter pesadelos. E você até os prefere, às vezes, à realidade, acho que com alguma sabedoria, porque se não fosse assim, não haveria ficção terrorífica. Bem, a gente não consegue parar de produzir pesadelos. Achei muito bonita a sua descrição da depressão, como a possibilidade de produzirmos pesadelos para nós mesmos, em lugar de ofertá-los para o público, com o que acabamos sendo vítimas da nossa própria violência. E, por outro lado, a gente não consegue também deixar de tentar se livrar disso. A grande maioria da população, todas as vezes que descreve um ser humano do ponto de vista ideal, descreve-o como pessoa bondosa, simpática. Quando a gente pensa nos nossos filhos &– no seu caso, não do seu pai &– queremos que ele tenha uma vida leve, agradável. Estava meditando sobre essas coisas e fiquei aqui em silêncio, mas era meu dever entrevistá-lo, e acabei sendo intimamente entrevistado por você. Então, te coloco essas conjecturas porque gostaria saber se você já refletiu &– certamente sim &– sobre essas questões.

L. Mutarelli: Tenho refletido muito sobre estas questões. Tem uma coisa, a propósito de quem trouxe o cheiro do ralo e de quem trouxe a limpeza: a pessoa que deixava tudo limpo, nunca ia se contaminar. Minha mãe só abraçava a gente no Natal, era beijo, abraço e choro, e até hoje é assim. Eu comecei a agarrá-la depois de fazer terapia muito tempo, mas ela endurece, vira estátua, é o máximo que ela faz. Também acho que no fundo, por mais que meu pai tenha tido um gesto sádico, ou algo assim, acho que a vida é isso, um rito de passagem.

ide: Pensei na história do comerciante que falava para o filho: “pula que o papai segura”, querendo dizer para o filho não confiar em ninguém, nem no pai. É como se dissesse para não ser “tonto-extra”. Ser inocente ou culpado é completamente decidido por quem tem o poder na mão.

L. Mutarelli: Existe sempre um aprendizado. É a forma como eu vou receber algo, como vou lidar e assimilar. Agora, na limpeza, não tem o que aprender. É muito orgânico, anti-natural.

Incontáveis vezes eu entrei com o pé sujo e tentei conversar. Fiz uma história para ela, o que foi curioso, é a única história que ela leu. Repito sempre uma frase “talvez, possa parecer que eu não perceba tua dor, mas a minha natureza é muito semelhante à tua”. Tento não demonstrar o que me atinge, alguma coisa nesse sentido. Eu sei que a vida dela foi terrível, terrível mesmo. Mas a minha vida foi terrível também, e eu não faço ser terrível para quem está perto de mim, eles não precisam pagar por isso. É aquilo o meu trabalho, mas meu trabalho é um livro. De alguma forma é como conseguir transformar... talvez, seja só um truque, uma mentira, chamada de arte, não sei. Mas é diferente. É diferente você levar um soco e assistir a um soco. Acho que é a melhor maneira de você transformar ou tentar lidar com isso. Assim como não queria passar nada disso para o meu filho, mas um dia percebi que ele precisava apanhar, levar uns tapas, em uma idade aí, porque senão ele não ia entender... E levou uns tapas, claro que não vou fazer igual a meu pai fez, mas também não vou ficar no outro extremo de não encostar no filhinho. Se precisar de um tapão ele toma, e assimila, é importante também. Acho perigoso esse outro jeito também. Só a limpeza que... Limpeza é a moça que lava uma vez por semana... Ninguém limpa o lugar em que trabalho. Fico um ano ou dois sem limpar, jogo lixo no chão... e só eu entro lá.

ide: E a máquina de escrever? Você ainda a usa?

L. Mutarelli: Não, algumas teclas estão ruins. Uso computador. Mas gostei de usar a máquina, tem um barulho ótimo. É que não trabalho muito de madrugada. É muito bom, mas é difícil de tabular. Evito trabalhar de madrugada. Acordo sempre de madrugada, mas aí vou jogar paciência no computador ou alguma cosia que não seja trabalho. Prefiro trabalhar de manhã. Meio pela cadência. Preciso ter muito controle sobre mim. Se eu começo a trabalhar de madrugada não vou entrar em uma freqüência legal, muito saudável. Acho que isso é se conhecer. Então, prefiro trabalhar de manhã cedo. Adoro minha companhia. Sou muito legal comigo.

ide: Você falou do seu irmão, do seu pai, da sua mãe... E sua irmã?

L. Mutarelli: Minha irmã é uma pessoa normal. Ela está sempre bem, sempre sorrindo. Ela foi para Disneylandia e voltou assim. Nunca se recuperou. Como digo, minha família sou eu, minha mulher, meus filhos e meus gatos. Os gatos eu estou quase deserdando. A gente tem uma relação quase de zoofilia, de amor profundo, mas eles me irritam muito, às vezes. Eles não respeitam os limites, entram no meu quartinho e fazem a festa. Pus grade para eles não entrarem, mas eles passam. Arrancam as teclas do computador com a unha, mas é normal...

ide: Tem gente que, quando leva um trote, passa para adiante, e outras que tratam bem o calouro do ano seguinte. A impressão que tenho, é que com você aconteceu a segunda modalidade. Também existem dois tipos de depressivo. Aquele a quem falta energia e aquele que fica esgotado com a própria energia. Você é do segundo tipo. Acho que tem muito cansaço que a gente chama de depressão, mas não é. É cansaço de sentir demais. Muitas vezes o cara se suicida, outros se trancam no quarto e ficam chorando... então, parece depressão. Quer dizer, parece e enfim, psiquiatricamente, é definido assim. Mas acho que a gente não devia confundir uma coisa com a outra. Tem depressão que é excesso de vida. Mas o que falei de depressão não era um diagnóstico. Estava falando no montante de dor que você atravessou e atravessa. A dor é uma coisa que reverbera for ever. Estou falando mais na dor porque você tem um irmão que sucumbiu a isso. Você não, e tem a dor até de ter que resistir, não sucumbir. Ninguém fala disso.

L. Mutarelli: É verdade, ninguém fala disso. Tenho sorte, é o que dizem.

ide: Dizem que a sorte procura o bom jogador.

L. Mutarelli: É que a sorte também cansa.

ide: O contato com você é uma coisa que não passa despercebida. Provoca em nós sentimentos de admiração pela sua pessoa, um pouco também pela humanidade. É inacreditável que a gente sobreviva apesar disso.

L. Mutarelli: Acho que essa minha paixão pela vida é o que vejo em algumas pessoas. Apesar desse desprezo, apesar de ver tudo que está errado, você vê pessoas que estão lá, fazendo o melhor que podem, independentemente do cenário. Isso me toca muito, acho muito bonito. Às vezes acho também que as pessoas deixam de ser artistas, de brincar &– porque artistas, todos foram, pelo princípio de que todos desenhavam, todos davam vida a seres inanimados &– mas não é por egoísmo. A pessoa não se dá porque não consegue, porque a ensinaram a não se dar. Ela se dá só num canal. Ela quer, mas não consegue.

ide: Você passou por coisas que, se são invenções ou não, não importa, já que a história se reconta a cada momento. O que importa é que você transforma o indigesto cheiro do ralo em algo palatável. Dá para ficar sentado vendo, mesmo que tenha espinhos na cadeira. Essa vivência, que é uma vivência horrorosa, pode ser suportada. Acho que isso é o que o artista faz: torna algo indigesto mais palatável, porque pode viver aquilo um pouco menos cruamente e transformálo em poesia. É uma vocação. Tem nisso um compromisso com o social. Você viveu uma coisa e a transforma para os outros. Para nós, que só o conhecíamos de longe e que hoje pudemos estar tão perto de você só nos resta agradecer.

L. Mutarelli: Já fui mais longe. Na Flip, o pessoal se leva muito a sério. Os escritores, os autores... acham que precisam ser sérios, falar de nada.

ide: Muito obrigado.

L. Mutarelli: Eu é que agradeço. Vamos fumar, né?

 

 

* Edição: Camila Pedral Sampaio e Jassanan Amoroso Dias Pastore. Entrevista realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com a participação especial de Cláudio Rossi, 20 agosto 2008.