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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.48 São Paulo jun. 2009

 

EM PAUTA - O CORPO DA PALAVRA

 

A tipografia e a fenda

 

Typography and the crack

 

 

Gonzalo Aguilar*

Universidade de Buenos Aires

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a tipografia é pensada como um modo de questionar a separação entre a racionalidade e a loucura, segundo a proposta de Michel Foucault em sua História da loucura na época clássica. A partir de uma série de exemplos e contraexemplos (cubismo, Bauhaus, Anunciações renascentistas), trata-se de mostrar como a tipografia implica o pensamento de uma materialidade que não se deixa reduzir a nenhum idealismo.

Palavras-chave: Imagem visual, Poema visual, Racionalidade, Sinal.


ABSTRACT

In this paper printing type is considered as a way of questioning the separation between rationality and madness, according to Michel Foucault’s proposal in his History of madness in classical times. Starting from a series of examples and counter-examples (cubism, Bauhaus, Renaissance Annunciations), the purpose is to show how typography implies the thought of materiality which does not allow itself to be reduced to any kind of idealism.

Keywords: Visual image, Visual poem, Rationality, Sign.


 

 

Em sua obra História da loucura na idade clássica, Michel Foucault diz que “a palavra e a imagem ilustram ainda a mesma fábula da loucura no mesmo mundo moral; mas seguem já duas direções diferentes, que indicam, em uma fenda pouco perceptível, o que se converterá na grande linha de separação dentro da experiência ocidental da loucura”1. Se esta frase for lida a partir de uma história da tipografia em poesia, chega-se à conclusão de que o uso da tipografia em poesia, com sua insistência na visualidade e na materialidade da letra, questiona, quando não suprime, a fenda entre palavra e imagem de que falava Foucault. O surgimento de Un coup de dés de Stéphane Mallarmé, em 1897, é um marco nessa história, já que, ao disseminar sinais no espaço branco da página, revela a materialidade do pensamento poético (na verdade, de todo o pensamento) e a disposição na página, uma espécie de mimese com os movimentos das ideias e das expressões. Se vinculamos a observação de Foucault ao poema mallarmeano, não é por acaso que Paul Valéry, quando o viu pela primeira vez, observou que o poeta acreditara ter chegado às portas da loucura. Quando Mallarmé o convidou a ir à sua casa, para lhe mostrar o poema, a reação de Valéry oscilou entre o medo e a admiração. “Pareceu-me ver – conta o poeta – a figura de um pensamento, colocada, pela primeira vez, em nosso espaço ... Ali, realmente, a extensão falava, sonhava, engendrava formas temporais”2. O “espetáculo ideográfico” de Un coup de dés quebrava, como sugere Valéry, a excisão entre res cogitans e res extensa, questionando outra fenda que, como a de imagem e palavra, funda a racionalidade ocidental. O que o poema de Mallarmé revela é que, para o homem tipográfico, o pensamento deriva da escrita (e não o contrário, como se pensa em geral). Edgar Allan Poe, que exerceu uma estranha influência sobre Mallarmé, escreveu que “nenhum pensamento, digno desse nome, está fora do alcance da linguagem” (“Marginalia”), e destacou a importância do tipógrafo – na realidade do escritor como tipógrafo – no uso de sinais convencionais como o travessão (“–”), o qual funciona, conforme anota em seu “Marginalia”, como “um segundo pensamento – uma retífica”3. A escrita se transforma, mediante os sinais tipográficos, em coisa, excesso de materialidade que se recusa à consideração idealista e metafísica, como percebeu muito bem Jacques Derrida, autor que, não por acaso, invoca Mallarmé como uma de suas fontes de inspiração (ver, por exemplo, o extenso trabalho que lhe dedicou em A disseminação).

Ora, por que motivo essa crítica da racionalidade encontra na tipografia, como aconteceu principalmente com as vanguardas artísticas, um de seus âmbitos de expressão? Em outro trabalho4, assinalei que a tipografia articula-se em quatro princípios que permitem colocar em relevo certos problemas em um momento em que se passava de uma arte de representação a uma arte de produção. Esses princípios são: reprodutividade, contemporaneidade, clarificação e materialidade. Isso significa que a tipografia remete ao mundo da reprodução mecânica, evidencia os vínculos com o tempo histórico, muitas vezes com um sentido político (basta confrontar, por exemplo, as tipografias da Bauhaus com o uso do gótico, por parte dos nazistas), exibe procedimentos gerais de determinada invenção artística (o uso da Futura bold no concretismo, como manifestação dos princípios programáticos do grupo), e ao converter a letra em imagem revela um excesso que é significativo em si mesmo (não se pode privar um poema da forma tipográfica usada deliberadamente sem afetar seu sentido). Como não é minha intenção repetir o que já disse em outra parte, interessa-me analisar aqui de que modo a ativação desses princípios, mediante o uso da tipografia ou da escrita visualizada, questionam esta fenda a ponto de nos levar até a própria extremidade da racionalidade ocidental, tal como se formou desde o início da modernidade.

A fenda assinalada por Foucault teve um caráter normativo tão poderoso na modernidade ocidental que, já a partir do século XV, eram poucas as obras visuais que incluíam letras ou escrita em suas imagens. Salvo quando é motivada pela cena da própria representação (em um livro, cartaz, em um papel), a escrita é excluída do terreno das artes plásticas com tal força que essa interdição virtual durará quase quatro séculos, ou seja, até o aparecimento das vanguardas, e mais especificamente do cubismo.

A inclusão de letras nos quadros cubistas é tanto um encerramento da representação, com uma reincorporação – agora crítica – do que esta representação havia excluído, como uma reabertura a novas dimensões do trabalho artístico. Não se podia pintar a linguagem porque suas dimensões são diferentes do espaço da perspectiva que a pintura ocidental moderna havia se proposto fixar em suas telas. Apenas a assinatura ficava ali como um resto dessa dimensão e como um sistema de nomeação no representado e – de qualquer modo – marginalizado em um lugar não dramático, não espacial. Em 1862, Manet pintava sua assinatura em Música nas Tulherias fazendo um jogo espacial com o aro que uma criança havia deixado apoiado em uma cadeira. Escrita e representação pictórica enfrentam-se, a menos que a primeira apareça motivada na cena, inscrita em uma coluna, em um arco ou em outro objeto (ou seja, não como objeto opaco e sim como parte do objeto representado). Para os fins de representação que o Renascimento colocou para si, a escrita na pintura não podia ser menos que um obstáculo. Na tridimensionalidade que se tentava projetar na superfície, a escrita teria sido uma interferência, um ruído, um desvio. Para observar o progressivo desaparecimento do linguístico no quadro, vamos nos deter nas Anunciações, que, como se sabe, foram pintadas por quase todos os artistas da Renascença.

Em primeiro lugar, a direção em que o anjo da Anunciação se apresenta é sempre da esquerda para a direita, o que corresponde ao movimento que o olho efetua na leitura. Esse fato é reforçado pela presença – em muitos dos exemplos de nosso corpus – de um livro aberto, no qual a Virgem Maria apoia a mão5. Essa direcionalidade, que pesa sobre toda a arte ocidental, pode ser percebida materialmente nos quadros – anteriores ao desenvolvimento da perspectiva artificial ou matemática – nos quais está pintada a mensagem do anjo (“Tua gratia plena dominus tecum” diz Simone Martini, 1333). O movimento da escrita está, aqui, dramatizado na mensagem (na atitude da fala e da escuta), dramatização que persiste, embora a escrita – por seu caráter espacialmente incongruente – já não esteja materializada (fica como resto naturalizado no livro aberto da Virgem Maria). A direção é uma permanência – um resto – da escrita no ato de olhar. Um caso curioso, entre os que consultei, é o da Anunciação de Fra Angelico, de 1432, aproximadamente. Nessa pintura, as linhas da mensagem pintada são três e possuem duas características peculiares: as palavras aparecem parcialmente ocultas pelas colunas e uma das mensagens – a do meio – está de cabeça para baixo ou invertida. Desse modo, Fra Angelico imaginou a fala da Virgem Maria, que é da direita para a esquerda, invertida e ininteligível para o espectador. A escrita assume toda a sua opacidade problemática nesse quadro: enquanto espacial, é incongruente com a existência da perspectiva (as colunas estão em primeiro plano); como materialidade, obriga o pintor a violar a direcionalidade “natural” da escrita. O que a Virgem Maria está lendo antes do anjo da Anunciação aparecer? Boa parte do corpus precede a invenção da imprensa e talvez se possa relacionar a leitura da Virgem à implementação da perspectiva pictórica que supõe – como a leitura – um ponto de vista determinado e fixo6. Do modo que está colocado, o livro leva as linhas de escrita até o fundo ou, em alguns casos, da direita para a esquerda – na direção do anjo. Não sei com certeza qual fonte autoriza a inclusão do livro na cena, já que – obviamente – este não aparece na cena bíblica. A série de quadros permite detectar esse processo pelo qual a escrita é excluída da representação pictórica e permite avaliar também, como contrapartida, o aparecimento violento da escrita nos quadros das vanguardas do início do século. A letra retorna nos quadros das vanguardas, mas com um sentido bem diferente. Já não é incongruente porque, justamente, o que se ataca é o princípio de congruência da representação pictórica. Essa irrupção tem caráter tanto escrito quanto tipográfico. A inclusão de letras está relacionada à técnica de colagem, ou seja, à interferência de mundos alheios na pintura propriamente dita. Como assinala John Golding, “Bracque introduziu substâncias estranhas em suas pinturas em razão de sua ‘materialidade’, e com isso não só se referia a suas propriedades físicas e táteis, mas também ao sentido de certeza material que evocavam”7. Sem dúvida, o princípio de materialidade era o mais importante para os cubistas, embora os outros três princípios estivessem – de um modo ou outro – presentes: o de contemporaneidade, na escolha de tipos modernos geralmente extraídos dos cartazes ou jornais (síntese do contemporâneo), e o de reprodução, com os mesmos jornais, que mais de uma vez entravam na colagem como fragmento da percepção (não por acaso a palavra que mais se repete em seus quadros é “journal”). Além disso, o cubismo trabalhou com letras em estêncil, marcando seu caráter reprodutivo e não artesanal. Mas o princípio de clarificação será, sem dúvida, o mais produtivo na experiência cubista e nas que continuarão. Além do valor decorativo, associativo e perceptivo do tipograma, a letra “insistia no caráter bidimensional” da pintura8. Se a diversidade de pontos de vista questionava a perspectiva, a presença da letra exibia outros postulados do cubismo: o apoio como superfície e objeto, a opacidade dos objetos representados e do ato de pintar, a pintura como fato construtivo e não mais representativo. Mediante essa superposição, a pintura tenta configurar um espaço e um tempo liberados da sucessividade e do instante. A conquista da simultaneidade parece ser fundamental nessas explorações. De todo modo, a simultaneidade não funciona simplesmente como um motivo estético que questiona a tradição ocidental9, mas sim como uma reflexão sobre o estatuto do sujeito, sobre as novas relações sociais, sobre os novos modos de percepção, sobre as relações entre pensamento e criação.

Assim, a fenda que assinalava Foucault como “a grande linha de separação na experiência ocidental da loucura” começa a ser desativada, suturada, ao mesmo tempo em que deslocada para o lado. Segundo o raciocínio de Foucault, trata-se de uma tentativa de unir ironia (distância racional) e tragédia (empatia radical). Mas ainda que seja possível aplicar isso a outros âmbitos, não é o que acontece no uso que a arte faz da tipografia. A estratégia aqui é outra: ressaltar a materialidade da linguagem, exibir a planaridade da imagem e, principalmente, instaurar uma zona experimental que já não é palavra nem imagem e sim a dos sinais, porque ninguém que observe atentamente um quadro cubista é capaz de dizer se se trata de palavras ditas ou de imagens representadas10. Trata-se de diagramas, como bem observou John Berger, ou, nas palavras de Rosalind Krauss, de “uma contribuição extraordinária, já que o cubismo é o primeiro exemplo de que dispomos nas artes plásticas de algo parecido com uma exploração sistemática das condições de representabilidade que acarreta o sinal”. A afirmação sobre o cubismo podese estender ao construtivismo russo, à poesia concreta brasileira ou às partituras de John Cage. Ao estabelecer, então, o uso da tipografia como zona experimental (e vale a pena lembrar que quase todas as escolas de vanguarda tinham “Tipografia” como uma das matérias), a atividade artística abre-se para as possibilidades de avançar para além da racionalidade tal como foi instituída na modernidade.

 

Referências

Golding, J. (1933). Una historia y un análisis 1907-1914. Madrid: Alianza.        [ Links ]

Stangos, N. (Org.) (1991). Conceptos de arte moderno. Madrid: Alianza.        [ Links ]

Berger, J. (1990). El sentido de la vista. Madrid: Alianza.        [ Links ]

Panofsky, E. (1991). La perspectiva como forma simbólica. Barcelona: Tusquets.        [ Links ]

White, J. (1994). Nacimiento y renacimiento del espacio pictórico. Madrid: Alianza.        [ Links ]

Gombrich, E. (1987). La imagen y el ojo. Madrid: Alianza.        [ Links ]

Aguilar, G. A poesia concreta: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005.        [ Links ]

Pignatari, D. (1979). Semiótica & Literatura. São Paulo: Cortez & Moraes.        [ Links ]

Valéry, P. (1956). Le coup de dés. Variedad I, 144. Buenos Aires: Losada.        [ Links ]

Foucault, M. (1967). Historia de la locura en la época clásica. México: Fondo de Cultura Económica.        [ Links ]

Krauss, R. (1996). La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madrid: Alianza.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gonzalo Aguilar
Plaza 3270
Ciudad de Buenos Aires
C1430 Argentina
E-mail: gonzalus2001@yahoo.com

Recebido: 10/04/2009
Aceito: 20/04/2009

 

 

[Tradução: Sonia Padalino]
* Professor de literatura brasileira na Universidade de Buenos Aires e autor de A poesia concreta: as vanguardas na encruzilhada modernista (São Paulo: Edusp, 2005) e Outros mundos, um ensaio sobre o novo cinema argentino (Santiago: Arcos, 2007).
1 Cf. Michel Foucault, Historia de la locura en la época clásica (1967, p. 34).
2 Cf. Paul Valéry, Le coup de dés (1956, p. 144).
3 Um excelente ensaio de Décio Pignatari (1979) desenvolve a ideia de que os princípios da poética de Poe relacionamse a novos modos de notação tipográfica, como os dos jornais e os das mensagens telegráficas. Por outro lado, não se pode esquecer que Mallarmé se inspirou na montagem, na espacialização e na organização dos jornais da época que associava ao “prelúdio de uma era, de uma competência para a fundação do moderno poema popular”.
4 Cf. Gonzalo Aguilar, A poesia concreta: as vanguardas na encruzilhada modernista (2005).
5 Nos exemplos da Anunciação escolhidos ao acaso, o livro aparece aberto e a escrita legível nos seguintes: na Anunciação de Fra Angelico de 1423 (Museu Diocesano, Cortona), na de Filippo Lippi no Palazzo Barberini (1450) e na Anunciação de Leonardo da Vinci (c. 1472). Com o livro fechado ou semiaberto: na Anunciação de Simone Martini (1333, Galeria Uffizi), na Anunciação de Arezzo de Piero della Francesca e na de Perugia (Políptico de Santo Antonio). Na Anunciação de Fra Angelico do Museu San Marco em Florença – piso superior, cela 3 – o livro está aberto, mas não se leem os caracteres (embora haja várias versões de Fra Angelico em San Marco, algumas sem livro). A miniatura de Fra Angelico do missal feito para Fiesole (c. 1430) e a Anunciação de Lippi da Galeria Doria Pamphili são as únicas em que o anjo está da direita para a esquerda. A de Martini e a de Fra Angelico (Cortona) possuem uma escrita que representa a mensagem do anjo (em ambas veem-se os caracteres do livro).
6 Simplificamos aqui, por razões de espaço, um problema muito mais complexo. Consultar Erwin Panofsky (1991) e John White (1994). Ernst Gombrich afirma que a perspectiva “nasceu como resposta às exigências da arte narrativa” (1987, p. 179).
7 Cf. El cubismo em John Golding, Una historia y un análisis 1907-1914 (1993, p. 96).
8 Cf. Cubismo em Nikos Stangos (Org.), Conceptos de arte moderno (1991).
9 Assinalo, embora não aborde no presente trabalho, a importância da incorporação do ideograma da tradição oriental em certos artistas de vanguarda vinculados a essas pesquisas tipográficas: a edição de Fenollosa de Ezra Pound, a relação entre o cinema e o ideograma em Eisenstein, a presença do zen em John Cage. Este último realizou experiências que relacionam tipografia e música.
10 Ver Rosalind Krauss, La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos, pp. 49-51. Para o conceito de“diagramatização”, ver John Berger e sua leitura do cubismo em El momento del cubismo, principalmente as páginas 162-168.