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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

EM PAUTA - O SONHO E A PELE

 

O corpo do sonho

 

The body of the dream

 

 

Eunice Nishikawa*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora, estimulada pelo convite da revista ide, utiliza-se do balé Petrouchka, de Igor Stravinsky, do sonho de uma analisanda e do filme A partida para tecer considerações sobre o tema da cesura (de vida e de morte) do vértice psicanalítico, entendendo a cesura como sinapse, vínculo, geradora de formas relacionais.

Palavras-chave: Sonho, Cesura, Pictograma originário, Forma-Pensamento.


ABSTRACT

The author stimulated by the invitation from IDE magazine, makes use of the Petrouchka ballet with music of Igor Stravinsky, an analysand dream and the movie Departures to weave considerations about the subject of cesura (of life and death) from the psychoanalytic vertex, understanding the cesura as synapse, bond, generating relational forms.

Keywords: Dream, Cesura, Pictogram originary, Form Thinking.


 

 

Introdução

O convite da revista IDE chegou em um momento de intensa reflexão sobre um material clínico e me pareceu uma oportunidade de compartilhar com os colegas uma forma particular de pensar na psicanálise: como se registrasse um sonho, ou como se fora um flagrante apreendido pelo fotógrafo, na captura de um instante.

Eu recebera de um amigo1 um DVD no qual ele compilara, através de fotos, áudio e filmes, as várias referências do campo das artes usadas por Bion na construção do seu arcabouço teórico e apresentadas por ele no Primeiro Seminário Italiano (1977)2. Nesse DVD, atenho-me em particular a fragmentos dos momentos principais do balé Petrouchka, com música de Igor Stravinsky, que foi apresentado pela primeira vez em Paris, em 1911, e sobre o qual Bion tece o seguinte comentário, que serviu de estímulo para este trabalho:

Depois da última prova de Petrouchka, o regente disse: “Não, não está boa”. Tanto Fokine quanto Stravinsky empalideceram diante da ideia de que não estava boa &– terminava, se vocês se lembram, com a morte de Petrouchka. Quando Fokine e Stravinsky atacaram o regente, dizendo: “Certo, e como deveria terminar?”, ele respondeu: “Deve aparecer o fantasma de Petrouchka”. Assim, mesmo tendo acreditado que aquela fosse a prova definitiva, repuseram-se ao trabalho e modificaram o final, de modo que o fantasma de Petrouchka aparecia sobre um muro gesticulando fantasticamente com os braços.

O que é aquele objeto que nos dá a entender ser o fantasma de um boneco inanimado e que pensaríamos que tivesse estado sempre morto, tendo simplesmente feito gestos como se fosse animado, movido pelos fios de um titereiro? Para dizer de outra maneira: quando amanhã você vir o seu paciente, poderá individualizar, no material que é colocado à sua disposição, alguns sinais que indiquem a existência do fantasma de um boneco? Se você conseguir, pode ser que você esteja em condições de insuflar um pouco de vida naquela pequena sobrevivência. (Bion, 1977b, p. 5)

Vendo então o filme do balé de Stravinsky e a cena final em que aparece o fantasma de Petrouchka, pude realizar com mais elementos sobre o que (a coisa em si) falava Bion. A música, o cenário, a coreografia foram uma experiência viva de um momento de criação que se repete através de cada encenação e pode ser reproduzido pelo filme. Foi como um sopro de vida em um texto com citações e referências que não conhecia, especialmente as cenas do balé.

Acredito que, influenciada por esses fotogramas emocionais, recebi uma paciente que, apesar de estar em análise há alguns anos, traz pela primeira vez um sonho que ela diz ser um sonho completo. Na sessão anterior, ela dissera saber ter sonhado, mas não o poderia contar: “Eu esqueci, eram apenas fragmentos, mas acho que tem a ver com parto”. Ela já vinha se interessando pelos sonhos, uma atividade mental que por uma série de questões tinha sido evitada: penso em uma possibilidade como a que Bion (1992/2000, p. 105) assinala, que o sonho pode surgir de modo incipiente, quando o paciente se permite sonhar na “presença do analista, por temer o conteúdo manifesto do sonho, especialmente os objetos destruídos”. Creio que foi importante a sessão em que aparecem os fragmentos para então permitir o surgimento do sonho “completo”.

 

O sonho completo

O cenário é a sala do parto, uma mulher que a paciente conhece está em trabalho de parto. Ao lado dela estão outros parentes que assistem (como espectadores) ao parto. A mulher dá à luz um bebê que, no sonho, se trata do filho da analisanda. Em seguida ela conta outro sonho que tivera pela manhã: “Sonhei que estava atrasada”. Acordou angustiada, mas ao olhar aflita para o relógio notou que na verdade estava na hora.

Tenho a impressão de que, apesar de o sonho poder despertála para suas próprias questões e do inconsciente algo que possa colaborar com ela, o fato de o sonho falar outra linguagem que não a do consciente deixava-a desconfortável. É como se dissesse: “Os sonhos só nos enganam, não quero saber deles”.

Conforme fomos conversando sobre os sonhos, para minha surpresa ela fala de uma associação com uma sensação física: “Sabe, eu acordei, mas acho que eu tive um mal-estar por conta de um trombo hemorroidário que parecia me comprimir a vagina, o que dava a sensação de estar de fato parindo”.

A associação seguinte então se refere ao medo do hospital à noite: os quartos estão todos fechados, os corredores, vazios. Creio que aparece aqui o temor aos objetos destruídos. Conversamos então do sonho que podemos considerar como o produto de um parto, um produto da mente, mas onde está o bebê? Se o bebê/sonho não aparece, é porque morreu? O que surgirá vindo de dentro das portas fechadas?

Lembrei-me então do fantasma de Petrouchka. O boneco ganhou vida, teve um sopro de vida. No sonho, pelo menos devemos encontrar o fantasma. Onde está o fantasma/corpo do sonho?

Ao mesmo tempo, noto a sua satisfação por sustentar em sua mente o corpo virtual do sonho, poder contar o sonho, pensar e lidar com todas as contradições que o sonhar e a pele-palavra dos sonhos conduz. Pois o que falamos sobre sonhos nunca são de fato os sonhos, mas se não falamos/sustentamos nossos sonhos, podemos nos sentir títeres sem alma, conduzidos pelos sonhos/manipulação de outros, ou por nossos não sonhos.

Após essa sessão, que despertou em mim o tema do fantasma da marionete-sonho, voltei a ler o texto do Primeiro Seminário Italiano e assisti à versão completa do balé Petrouchka para situar a cena final em todo o enredo. Sem ainda ter em mente um trabalho por escrever, fui assistir ao filme A partida. Vi nele algo que associei com o tema deste trabalho: o corpo do sonho, o fantasma de um boneco, enfim completou-se uma “inspiração” (Stravinsky, 1939/1996).

O filme trata da história de um violoncelista que, diante da dissolução da orquestra em que tocava em Tóquio, parte para uma nova/antiga vida, em sua cidade de origem, onde encontra um trabalho como agente funerário (nokanshi). Sua função era, diante dos familiares, em cerimônia ritual, acondicionar o corpo da pessoa morta. É nesse acondicionamento, tratado no filme de maneira tão delicada, que é possível ao personagem principal recuperar, em uma espécie de insight, o sentido de sua vida.

O trabalho de acondicionamento dos que partiram nesse ritual permite que uma forma seja captada pelos que ficaram dando também novo sentido à vida destes. Pensei então no tema da cesura: a cesura do nascimento e a cesura da morte, tema esse que pretendo abordar a partir dos estímulos visuais, incluindo aqui o sonho sonhado por mim na sessão.

Para tanto, terei de contar a vocês as histórias desses filmes para que possam me acompanhar. Começarei pelo balé.

Petrouchka
Petrouchka foi apresentado pela primeira vez no Théâtre du Châtelet de Paris, no dia 13 de junho de 1911. Stravinsky originalmente havia pensado em uma pequena peça para piano e orquestra. É citado por vários autores3 o seguinte trecho da sua biografia:

Ao compor a música, tinha na imaginação a figura característica de um boneco, repentinamente dotado de vida, que viesse a irritar a orquestra com suas diabólicas cascatas de arpegios ao piano. Por sua vez, a orquestra responderia com ameaçadores acordes de trompete. O resultado é então um barulho terrível que chega ao clímax e termina com o triste e lamentável fim do pobre boneco.

“E é interessante perceber o detalhe: Petrouchka nasceu de uma motivação visual, bem verdade de uma imagem interior, como não existindo fronteiras entre as diversas linguagens quando são forma-pensamento” (Peter O’Sagae). Creio que o crítico se refere à linguagem sonora em conjunção com a visual, que se somarão à cinestésica, na dança dos bailarinos, sem seguir a linearidade do pensamento verbalizado.

No programa da Orquestra Sinfônica de Boston (bso) escrito por Ledbetter, sobre Petrouchka há a menção de que Stravinsky tinha inicialmente a imagem de um romântico poeta rolando dois objetos sobre as teclas brancas e pretas do piano, e provavelmente essa imagem tenha dado origem ao complexo bitonal do acorde conhecido como acorde de Petrouchka, Dó maior (teclas brancas) e Fá # Maior (teclas pretas), tocados simultaneamente, arpejados no piano.

Petrouchka é um balé escrito em quatro atos, sendo que o cenário do primeiro e do último ato é uma praça ao ar livre em São Petersburgo, em uma terça-feira de Carnaval, no ano de 1830. Os eventos nessa praça ocorrem no primeiro ato durante o dia, e no último, à noite, com mudança da iluminação, mostrando o que seria o fim do Carnaval e o início da Quaresma. Esse cenário do mundo exterior é contrastado com duas outras cenas que ocorrem em espaços interiores, focalizando o drama das marionetes: Petrouchka está apaixonado pela Bailarina, que por sua vez está encantada pelo Mouro. É apenas no final do espetáculo que os mundos “público” e “privado”, “da realidade” e “da fantasia” se entrelaçam um no outro, quando o privado invade o público e as marionetes retornam no meio da multidão.

No primeiro ato temos então uma praça durante o dia, no qual vários personagens dividem a cena: crianças, foliões, dançarinas, figuras circenses, cada um tentando roubar a cena do outro, procurando chamar a atenção do público, como é de fato uma grande feira. É nesse clima festivo que aparece o personagem do titereiro, uma figura sinistra que abre caminho no meio da multidão e, com sua flauta, parece encantar todos, trazendo para a feira um clima de enlevo e sonho. As cortinas se abrem e o titereiro apresenta as suas três marionetes: o Mouro, preto e forte, a Bailarina, delicada e bela, e Petrouchka, um palhaço branco e desajeitado.

As marionetes dançam inicialmente presas pelo gancho em suas cabines e depois, para surpresa de todos, soltam-se dos ganchos e dançam no meio da multidão. Nessa cena, a Bailarina começa uma dança com o Mouro e o titereiro passa um bastão para Petrouchka, que, com gestos desajeitados, mas enciumado, o utiliza para separar o casal.

O segundo ato ocorre no interior do quarto pequeno e miserável de Petrouchka. Ao som dos acordes de piano, ele sofre por estar apaixonado pela Bailarina, depara-se na parede com um retrato do mestre das marionetes que lhe responde, com o som dos metais (trompete, trompa, trombone), levando a uma resposta ainda mais irritada do pobre “palhaço”. É expresso então musicalmente o conflito de Petrouchka, capaz de sofrer na sua “natureza dual como ser humano e boneco”, o seu drama de consciência, maldizendo quem tenha lhe insuflado vida, assim como é expresso o conflito dessa dualidade internamente através do arpejo bitonal do seu tema (Dó maior e Fá # maior). A Bailarina é introduzida no seu quarto pelo titereiro, mas foge diante da aparência e dos gestos desajeitados do palhaço.

O terceiro ato dá-se no quarto de Mouro, ricamente ornamentado. Ele está deitado no divã e brinca com um coco. Ele está interessado em abrir o coco, examinar o que há dentro, mais para satisfazer à gula que à curiosidade. A Bailarina é introduzida em seu quarto, e ele esconde rapidamente o coco; mas, diante da graça da marionete, ele parece se encantar, e troca o seu coco por ela. Como escreve o crítico Kraemer, essas duas marionetes sempre permanecerão em um estado de autômatos, dois bonecos com reações mecânicas. Começam então a dançar uma valsa, quando o quarto é invadido por Petrouchka, que tenta atrapalhar o namoro dos dois, até que é expulso por Mouro, mais forte e violento.

De volta à praça, as festividades continuam, sendo agora noite. Aparece então o urso que assusta todos, até eles perceberem que o urso é amestrado, o som é sombrio, e, como é noite, aparecem os sons mais violentos e tenebrosos dos animais selvagens (aspectos selvagens da mente). Em meio a isso, soa o acorde de Petrouchka. O palhaço irrompe em cena, perseguido pelo Mouro e tendo ainda a Bailarina atrás, aflita, correndo como uma marionete em cima de sua sapatilha de ponta. O Mouro, com sua espada, fere mortalmente Petrouchka, que cai agonizante no meio da praça.

O titereiro é chamado para prestar contas daquela morte, ao que “responde” mostrando tratar-se de um simples boneco. A multidão se dispersa, com o titereiro carregando o corpo de Petrouchka-boneco. Sob os acordes finais, o fantasma de Petrouchka então aparece sobre o telhado, emitindo seus últimos estertores e caindo enfim sem vida.

 

Cesura do nascimento
Cesura da morte

O termo cesura vem do latim caesura, que, segundo Houaiss, tem um sentido de corte, incisão, fenda, muito usado no campo médico, como também no campo literário, no qual tem o sentido de pausa ou corte no interior do verso, identificando as suas divisões rítmicas.

Na psicanálise, o termo cesura ficou muito conhecido pela frase usada por Freud, no seu artigo “Inibições, sintomas e ansiedade”: “Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar” (1926/1976, p. 162).

Toda vez que me lembro desta frase, eu a associo com a de Shakespeare em Hamlet, após o encontro deste com o espectro do seu pai: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. Sendo Freud um leitor de Shakespeare, eu não me admiraria de haver uma similaridade na construção da sua frase.

Esta mesma frase será tema de reflexão por parte de Bion em diversos artigos, inclusive no citado Seminário Italiano, de 1977. Em 1975 Bion dá o título “Cesura” à conferência que proferiu na Sociedade Psicanalítica de Los Angeles.

Como assinala Mello Franco (Franco Filho, 1999/2001), a metáfora do nascimento present e nesses textos é tão forte que, quando pensamos em cesura, a associamos com nascimento. Formula então de forma sintética a sua compreensão sobre esse conceito, que me parece interessante citar:

Em primeiro lugar, tal como entendo, Bion apresenta a questão da cesura não como acontecimento dentro da vida, e sim como uma postura mental dentro de uma investigação. Constitui a passagem, dentro de uma investigação, de um estado mental para outro. ... Já que se trata de passar de um estado mental para outro, representa a possibilidade de lidar com paradoxos: consciente/inconsciente, vida/ morte, continuidade/cesura, posição esquizoparanoide/ depressiva e assim por diante. (p. 49)

Junqueira (1999/2001, p. 146), ao analisar o mesmo conceito em Bion, fala da recomendação desse autor de

não nos preocuparmos com os estados polares, com o analista ou com o analisando, com o inconsciente ou o consciente, com a sanidade ou com a insanidade, mas, sim, de investigarmos “a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contratrans) &– ferência, o humor transitivo-intransitivo”. Chamo a atenção, nessa passagem, para o fato de que a ideia de cesura é reminiscente do conceito freudiano de barreira de contato, ou seja, de uma estrutura funcional que primeiro define a separação de dois objetos para, em seguida, cuidar da sua correlação.

Nesse mesmo texto, Junqueira tece a consideração de que tanto no conceito de cesura como no de transformação “a dimensão espacial ocupa uma posição central emoldurada pela dimensão temporal”.

Junto com o próprio termo cesura, em vários momentos Bion fala em atravessar a cesura, ou não atravessar &– não penetrar a cesura, sugerindo algo que pode ser tanto transitivo como intransitivo, o que supõe a barreira que separa dois compartimentos, ou dois estados (sólido e gasoso, por exemplo), em um evento que ocorre dentro de uma dimensão temporal, quando acontece, ou pode se tornar atemporal ou infinito quando não há vínculo, sinapse, e quando não há o acontecimento.

Pensando no balé Petrouchka, há o impressionante aparecimento do fantasma da marionete, que surge acima do telhado e nos surpreende &– acho que o balé não seria o mesmo sem essa encenação. Assim como o impressionante fantasma/ espectro do rei da Dinamarca assassinado aparece no telhado do palácio em Hamlet, e que segundo Lacan nos remete para outra cena (Lacan, 1958/1986). Creio que estamos no campo típico da psicanálise, pensando em processo primário e secundário, inconsciente e consciente, princípio do prazer e princípio da realidade: os dois princípios do funcionamento mental, trabalhado como paradoxos. Parafraseando Bion, às vezes o personagem Petrouchka, uma marionete, tem mais “realidade” do que pessoas que existiram de fato (Bion, 1965/1984, p. 125). Mas como se daria a passagem de boneco/ser humano para boneco/ ser humano/fantasma?

 

Boneco / Ser humano
Boneco / Ser humano / Fantasma

Algumas dessas questões que expus até aqui estavam presentes em minha mente quando fui assistir ao filme A partida4. Foi ele que me permitiu pensar em escrever este trabalho, pois incluía um elemento novo ao que já havia sido publicado em termos de apreensão psicanalítica, mas também haveria um registro de um instante único &– o ano de 2009 &–, em como um filme feito por um japonês alcança e permite a captação por uma mente de origem oriental, do outro lado mundo, criando a possibilidade dessa escrita, dentro de um vértice da psicanálise, em São Paulo.

A beleza do filme, além do aspecto estético, também tem a ver com o aspecto universal do tema que ele nos apresenta. Eu até diria que, do mesmo modo que há uma associação do psicanalista com o parteiro, como aquele que ajuda o indivíduo a nascer, todo analista poderia ser um nokanshi &– uma espécie de coveiro especial, mestre em lavar e vestir cadáveres e que ajuda a partir, ou corrigindo, ajuda os que partiram, ou seja, trabalhamos no que seria a cesura do nascimento e da morte, criando um campo de investigação e trânsitos cuja finalidade é a busca do sentido.

Pretendo fazer um recorte sobre o filme, para expor algumas ideias que me ocorreram quanto ao tema deste artigo. Para tanto, será necessária uma espécie de transgressão, uma invasão em terreno sagrado; no entanto, não vejo alternativa &– talvez seja essa a tarefa que nos propomos como analistas. Ajudar a atravessar a cesura implica também quebrar os ovos para fazer uma omelete. Mas, em se tratando de omelete, já estamos em pleno tema do filme.

Somos introduzidos no filme, em um dia de inverno, e atravessando a neblina vemos surgir um carro com os faróis acesos. O personagem que dirige o carro está pensativo: “O inverno não era tão frio quando eu era criança”. Ao seu lado, um homem que aparenta ser mais velho, permanece em silêncio. Chegam a uma casa, onde eram esperados, em uma sala tipicamente japonesa, e nós, espectadores, somos introduzidos à cerimônia de um ritual budista. No fundo, o corpo coberto. Ao descobrir o rosto do corpo sem vida, nos defrontamos com um belo rosto de mulher ainda jovem. O homem mais velho responde ao comentário feito pelo mais jovem quanto ao corpo parecer estar intato, e convida o jovem a conduzir a cerimônia.

O jovem dá início à preparação para a partida daquela que falecera. Inicia com cuidado a retirada do manto branco que cobre o corpo. Seus gestos são firmes, precisos, realizados com profundo respeito. O jovem manuseia as mãos do cadáver com habilidade, evidenciando com esse movimento a rigidez cadavérica, que parece ceder diante dos seus movimentos precisos. Com uma compressa, inicia a limpeza do corpo. Depara-se então com algo que o surpreende ao limpar o baixo-ventre. Vira-se para o mais velho e diz: “Ela tem uma coisa”. Diante da expressão de indagação do mais velho, ele diz “Aquela coisa”. Passa então a compressa para o mais velho, que se certifica daquela coisa. Respeitosamente se aproxima de um parente, perguntando se eles gostariam de maquiagem para homem ou mulher. Assistimos então, em uma cena humorada, ao drama de toda uma vida: a mãe daquele que se travestiu (ou foi travestido) culpando o pai pelo esperma dele, que gerou um menino e não uma menina como ela queria. É escolhida a maquiagem &– para mulher.

Corte de cena e estamos agora em uma sala de concertos, onde está sendo executada a Nona Sinfonia de Beethoven, com pompa e vigor. O jovem da cena inicial toca violoncelo nessa orquestra. Ao fundo, vislumbra-se o teatro meio vazio, talvez uma analogia com o corpo morto da cena anterior. Sabe-se que a orquestra está dissolvida. Assistimos então, dentro da fração de segundos, ao nosso personagem principal &– Daigo Kobayashi &– passando de violoncelista de uma grande orquestra em Tóquio para a condição de desempregado.

Parece ser essa a oportunidade para Daigo iniciar a reflexão sobre a sua vida. Há a cena do polvo que a mulher ganhara da vizinha, para fazerem um belo jantar, mas percebem que ele está vivo. Eles tentam devolver o polvo ao mar, mas, ao ser atirado, boia morto sobre a água: a boa intenção do casal não surtira efeito. Daigo então informa à mulher a sua decisão de voltar para o interior, para sua cidade e casa de origem. A presença viva de Mika (sua mulher) serve de contraponto para o tema da morte, da dissolução, do desemprego que paira sobre Daigo. A volta para o interior pode ser entendida como uma volta para dentro de si, e com isso uma busca do sentido da vida.

Já na cidade natal, Daigo responde a um anúncio de jornal que oferece emprego: a função seria “Ajudar na partida”. Para a atividade proposta, o conhecimento formal pouco ajuda. Temos aqui a escolha do discípulo pelo mestre dentro da doutrina budista, onde o que importa é o processo de desenvolvimento espiritual, a dotação para esse desenvolvimento. Parece que o chefe avaliou bem o seu candidato, considerando-o adequado para a função. É um método que causa estranheza no nosso personagem principal. Eu logo pensei na seleção5 para candidato à formação como psicanalista &– é necessário um indivíduo bem formado, mas no quê? Parece que a sensibilidade, o respeito, a disciplina e a consideração pela dor do outro podem ser elementos fundamentais. Eu acrescentaria aqui certa ingenuidade &– no sentido de disponibilidade para o novo e capacidade de se surpreender.

O primeiro trabalho de Daigo é como ator, para a gravação de um DVD de divulgação do método de acondicionamento dos que partiram &– ele aparece vestido com um fraldão, ficando no lugar do morto. Ao seu lado, o chefe vai demonstrando e falando a finalidade daqueles procedimentos: “A limpeza tira a fadiga, a dor e os desejos deste mundo e representa o primeiro banho de um novo nascimento”; “No ritual de vestir, para preservar a dignidade do falecido, fazemos com que os familiares não vejam a pele do defunto e o vestimos com o máximo cuidado”; “A pele do morto é muito frágil e temos de barbeá-lo com todo o cuidado”. Só que Daigo, vivo, se mexe e é cortado; sangrando, demonstra toda a sua aflição naquela condição de vivo/morto em que ele foi colocado. É hilariante, pois nos vemos também vivendo e compartilhando com ele o desconforto, mas é um bom início, pois podemos recordar quando nós analistas, também deitados, iniciamos a nossa análise, em geral na condição de vivo/morto.

O segundo trabalho de Daigo &– parece até os doze trabalhos de Hércules &– é acondicionar o corpo em decomposição de uma senhora que falecera há duas semanas. Ao entrar no quarto, acompanhado pelo chefe/mestre, é inundado pelo cheiro nauseabundo do compartimento. Vermes andam pelo chão e se alimentam dos restos de comida em putrefação. Mesmo com a luva, o corpo escorregadio aumenta a sua repugnância. O dinheiro que recebe pelo trabalho não o alivia do desconforto vivido: o seu corpo está impregnado pelo cheiro da morte, a ponto de outras pessoas à sua volta sentirem o seu cheiro.

Antes de voltar para casa, Daigo procura a casa de banhos &– um lugar tradicional na cidade; ao se lavar, vai se depurando da fadiga, da dor e dos desejos deste mundo, e, como ocorre na lavagem do cadáver, parece que o nosso herói toma o seu primeiro banho para um novo nascimento. Há continuidade na cesura da morte/nascimento e Daigo entra em contato com a sua história.

Em casa, a mesa é posta para o jantar, sempre bem cuidado por Mika, que ganha da vizinha um frango já esquartejado, depenado, pronto para ser cozido. A visão desse corpo morto remete Daigo à outra cena vivida durante o dia &– ainda um fato indigesto. A presença viva de Mika parece reanimá-lo, e ele procura avidamente o contato com aquele corpo vivo.

Lembrei-me do livro Thalassa de Ferenczi, no qual ele escreve sobre a “regressão talássica”, uma hipótese de que todo indivíduo busca através do coito a descarga da tensão, o retorno ao corpo materno &– esse representando o oceano abandonado dos tempos primitivos e a possibilidade de fecundação. Essa última (fecundação) é lembrada como um processo mais arcaico que a união temporária do macho e da fêmea no ato sexual. É interessante o modo de o autor pensar o processo biológico do acasalamento como uma fusão entre as pulsões de vida e de morte: “uma formação de compromisso entre a coerção traumática e a tendência erótica”. Ou seja, entre a compulsão à repetição, a descarga ligada ao Princípio do Prazer/Desprazer e a busca de ligação de Eros que busca compensar os traumas através dos motivos hedonistas, “celebrando também a feliz libertação do grande perigo” (Ferenczi, 1928/1990, p. 85), sendo esse grande perigo o trauma do nascimento e o registro em nível inconsciente das catástrofes vividas pela humanidade.

Nesse movimento regressivo, nosso personagem se indaga: “Por que a vida está me pondo à prova?”. É uma pergunta que não encontra resposta imediata. Na cena seguinte, há o resgate do violoncelo de criança, que se encontra abandonado, com as cordas soltas, desgrenhadas, e junto, ao fim do braço do violoncelo, na voluta, encontra-se um embrulho. Daigo, ao abrir o papel do embrulho (uma folha de partitura de música), encontra uma pedra que surge como um objeto estranho. Em seguida, afinando as cordas reparadas do antigo cello, apoia o espigão, a haste de apoio do instrumento em uma marca (traço mnêmico) feita no chão de madeira, que lhe cabe perfeitamente e, tomando o arco do violoncelo, toca a música tema: uma melodia nostálgica e singela que se espalha por toda a casa. A música nos leva para uma cena da infância, na qual Daigo, naquela mesma sala, toca para os pais, deixando sua marca no chão. Nesse flashback o vemos na borda de um lago, ou rio, onde procura algo no terreno pedregoso: a pedra que se encontrava embrulhada e uma pedra branca menor são passadas de uma mão de criança para uma de adulto, mas sem que possamos alcançar o significado desse ato.

Os cisnes em trânsito fazem uma ponte entre um dia e outro. Daigo encontra-se parado sobre uma ponte belíssima. Serão muitas tomadas de pontes, como se fossem passagens, algo transitivo de um estado mental para outro, em um processo até o momento tenebroso, mas a beleza da paisagem, da arquitetura japonesa, sustentando o desconhecido, o estranho, nos faz rir e pensar.

No terceiro trabalho, Daigo pode acompanhar pela primeira vez a cerimônia do acondicionamento do corpo em sua completude: há a contraposição entre a foto da mulher que morreu em vida e o seu corpo sem vida; entre o rosto sereno e tranquilo do chefe, que conduz tudo com extrema humildade, e, do outro lado, a expressão de dor e sofrimento dos parentes. Por fim, a reflexão do discípulo Daigo: “Fazer reviver um corpo frio e dar a ele beleza eterna. Isso tudo feito com tranquilidade, precisão e, sobretudo, com infinito afeto. Participar do último adeus e acompanhar o morto em sua viagem. Nisso eu percebia uma sensação de paz e extraordinária beleza”.

Parece haver um início de compreensão do seu trabalho. Ao mesmo tempo, algo extraordinário: aquele corpo nunca esteve tão bonito e, paradoxalmente, tão vivo. Não se trata apenas de animismo, de ver vida no corpo morto, mas do trânsito, do atravessar a cesura. O mestre, como o analista, tem aqui um papel fundamental de manter a disciplina do método, para que os presentes possam assistir à passagem, e essa experiência será única para cada um dos participantes, assim como para cada situação. Acredito que como para o analista, nunca haverá uma passagem igual à outra. Cada caso é um caso, cada momento é único.

Daigo entra em contato com o seu novo trabalho. Mantém sua indagação: “Por que a vida me põe à prova?”. Começam as rejeições: primeiro, o amigo de infância que não o cumprimenta, por ele realizar um trabalho indigno; em casa, a mulher lhe pede para procurar um trabalho normal. Assistimos ao diálogo: “Você não se envergonha? Procure um trabalho normal”. “O que é normal? Todo mundo morre. Eu vou morrer e você também. A morte é normal.” “Não me venha com filosofia... Não me toque. Você me dá nojo.” E Mika decide voltar para a casa dos pais. Tocar o morto o torna impuro, repugnante.

No quarto trabalho, ele é alvo da culpa projetada: a moça que ele acondiciona morreu em um acidente de moto, conduzida pelo namorado que assiste à cerimônia, ferido. Os pais da moça o culpam pela morte da filha, assim como ele culpa os pais pela vida da namorada. O trabalho de Daigo é visto como uma forma de expiação da culpa, uma espécie de condenação para toda a vida.

Essa maneira de olhar tem um corresponde interno no sentido de ele se sentir culpado pela ausência junto à mãe por ocasião da sua morte, mas não é só isso. Confuso quanto à sua compreensão incipiente, resolve pedir demissão do emprego. O encontro com o chefe se dá na casa deste, no andar superior do escritório onde funciona a empresa funerária. Ao invés de caixões e flores, um ambiente muito bem cuidado e cheio de vida. O chefe está sentado à mesa, onde prepara uma bela refeição: adornando a mesa, as cerâmicas orientais, a chapa no centro da mesa, onde assa uma iguaria que oferece a Daigo: esperma de baiacu com sal. Enquanto eles saboreiam a iguaria, há a consideração de que “os seres vivos comem outros seres para viver. Exceto essas plantas. Se você não quer morrer, tem de comer”.

Temos então a metáfora da comida, que permeia todo o filme. A comida traduz o paradoxo que nos defrontamos com a nossa condição humana: precisamos matar para sobreviver, precisamos saber enterrar os nossos mortos, aceitar a morte. O comer se contrapõe à morte? Não estão aí os conceitos de incorporação, introjeção, identificação?

A partir desse momento surge uma mudança na atitude de Daigo. O seu quinto trabalho é aquele que introduz o filme. Daigo dentro do carro reflete: “Percebo como minha vida foi inexpressiva até agora. Posso fazer desse o trabalho da minha vida?”. Essa volta para o interior, o encontro com o paradoxo vida/morte, ganha contornos, forma, vai se configurando um sentido.

Na cena que se repete da cerimônia de lavar e vestir o travesti, é na recuperação do traço, na maquiagem, que aquele ser volta a ser reconhecido pelo pai: “Mesmo se vestindo de mulher, é o meu filho!”. Mas podemos considerar que é também através do gesto que ocorre o atravessar a cesura: na delicadeza de movimento com que o traço é realizado.

Assistimos então às várias cerimônias realizadas por Daigo e o seu gradual processo de encontro consigo mesmo, ao assistir as manifestações de emoção nas cerimônias que realiza e nas cenas em que toca violoncelo ao ar livre, à margem da estrada, ao lado dos cisnes. Nessas cenas ao ar livre e em casa, ao preparar a sua comida, ele está só. Mas vemos um Daigo cada vez mais vitalizado.

Mika volta para casa, está grávida. Pede para o marido deixar o trabalho. Como se fosse o destino, o telefone toca e Daigo é chamado para um trabalho; só que dessa vez quem morreu foi a dona da casa de banhos, conhecida do casal. Mika tem a chance de presenciar uma cerimônia de acondicionamento para cremação seguindo o preceito budista pela primeira vez. O mesmo ocorre com o antigo colega, que o rejeitara na rua. É na experiência da dor que eles vão compreender o trabalho de Daigo, mas também na beleza, e eu diria na experiência estética, na qual o sentido é alcançado. Não basta a dor, é necessária a beleza de uma verdade.

Na cena após esse evento, encontramos Mika e Daigo à beira do rio, no mesmo local da lembrança de infância de Daigo. Ele procura algo no chão. Encontra o que chama de pedra-carta e a entrega a Mika: é uma pedra escolhida especialmente para ela. Explica o que é a pedra-carta: “Os antigos, antes da invenção da escrita, procuravam uma pedra que expressasse seus sentimentos e davam aos seus entes queridos. Quem recebia a pedra podia ler os sentimentos do outro pelo peso e textura. Por exemplo, uma pedra lisa era sinal de um coração sereno. Uma pedra áspera, de que a pessoa esteve em dificuldades”. Ao dar a pedra a Mika, Daigo pergunta ansioso: “O que captou?”. Tranquila, ela guarda a pedra na mão com carinho e diz sorrindo: “É segredo”. Ele se acalma, respeitando a intimidade dela, seu segredo, silêncio, mas sobretudo a impossibilidade de expressar todo o sentimento contido naquela forma &– pedra-carta, que surgiu de uma relação6, de um vínculo.

Também considero importante a existência agora de duas pessoas separadas, constituídas através da cesura: a pedra serve de veículo de comunicação e não comunicação &– haverá sempre o incomunicável em uma relação. O importante é que se criou um entre os dois: um espaço virtual, uma sinapse.

Mika pergunta quem contara essa história da pedra-carta e Daigo diz que fora seu pai. É então tomado de raiva pela ausência do pai. Pega uma pedra e a atira para longe: a pedra agora serve para ser jogada, deixou de ter sua função de carta, para ser projetada, o mecanismo projetivo da psicanálise (Freud, Klein), ou a transformação projetiva (Bion) &– outra expressão de emoção, quando se rompe o vínculo e o espaço entre, agora, se torna infinito.

Uma carta chega à casa onde moram nossos protagonistas. É endereçada à mãe de Daigo. Mika abre a carta, que contém a informação de que o pai de Daigo falecera. Essa será uma decisão difícil: ir ou não ao encontro do pai. Ir ao encontro parece incorrer no risco de perdoar. Há a interferência da secretária do seu local de trabalho, que diz ter abandonado o filho por uma paixão na juventude &– nunca mais vira o filho. Há a possibilidade de compreender as paixões? Há a presença de Mika, que está ao seu lado, assim como o bebê que ela traz consigo. Daigo já tocara a música de ninar com seu violoncelo &– o perdão estava em andamento. Resolve então se dirigir ao local onde estava o corpo do pai.

O encontro com esse corpo será o encontro com um estranho. Ele não o reconhece &– não é seu pai. Chegam os agentes funerários, que mecanicamente querem colocar o corpo no caixão. Daigo, para surpresa de todos, inclusive dele, os impede. Mika intervém dizendo que seu marido é nokanshi (diz isso com orgulho). Daigo inicia o ritual de acondicionamento.

Começa pelas mãos. Vai desfazendo a rigidez cadavérica, com dificuldade abre a mão do seu pai. Nesse momento, uma pedrinha rola pelo corpo morto, aquela que tinha sido trocada com Daigo na infância. É uma cena emocionante &– há a evidência da ligação, a pedra readquire o seu valor de carta. O symbolo se faz.

Daigo olha para o rosto do pai &– um rosto barbudo, rude. Com carinho começa a barbeá-lo. O fundo musical, a música tema, faz vibrar as cordas do violoncelo, representando o vínculo recuperado. É uma cena de uma sensibilidade extrema: Daigo, compenetrado no ritual de barbear, e mesmo sem ter uma audiência, esconde com a mão o rosto do pai ao introduzir o tampão nas narinas, em um gesto que revela a disciplina no método e o profundo respeito pelo falecido. Há uma compreensão da passagem-trânsito: morte-vida. Aparece o rosto emocionado de Mika, que segura a pedra-carta pequena da criança. O rosto do pai morto sendo recuperado pelo trabalho de Daigo &– surge a cena do lago, Daigo criança na busca da pedra-carta, e o rosto do pai, esfumaçado, vai ganhando nitidez. É o rosto do pai vivo. Ao mesmo tempo, o rosto do pai morto se recupera, adquirindo vida. Torna-se o rosto do pai. É o pai Daigo que se volta para sua mulher grávida, que por sua vez lhe mostra a pedra-carta, que será endereçada ao bebê pelo casal. Completa-se o ciclo: vida-morte-vida.

 

Pedra-carta
Sonho
Forma-pensamento

O que esses três elementos têm em comum? Penso que extraí, do contexto em que estavam inseridos, a matéria bruta. Que material mais bruto do que a pedra? No entanto, como essa matéria fria e inerte ganha vida? Como um cadáver, um corpo morto adquire sentido? Ou, como insuflar vida em uma marionete? Caminhando em outra direção, podemos também nos indagar: quando algo que tinha vida, significado, morre? Quando um arcabouço teórico torna-se tão rígido que impede uma expansão?

Lendo um pequeno livro sobre o zen-budismo (Varenne, 1984), motivada pelo filme A partida, chamou-me a atenção o comentário sobre como uma doutrina tão instigante como o zen foi perdendo sua criatividade. O zen se baseia na escola do Tch’an, que significa meditação, mas o pensamento racional e a sistematização analítica acabaram por se sobrepor à verdade original. Nas palavras de um dos seus mestres Chao-Chou:

Há 90 anos, vi mais de oitenta mestres iluminados na linhagem de Matsu, todos dotados de espírito criador. Nos últimos tempos, a busca do Tch’an foi aos poucos se banalizando e se ramificando. ... Cada vez mais distanciado do espírito original que animava homens de suprema sabedoria, o processo de degenerescência prosseguirá de geração a geração. (Varenne, 1984, p. 108)

Trouxe esta citação para lembrar como, na transmissão e no decorrer da história, corremos o risco de perder o significado original. Penso nisso me lembrando da pedra-carta, um resgate de algo muito singelo para a nossa civilização atual, mas que no contexto do filme faz-nos lembrar do símbolo, no seu aspecto não verbal, como pedra-carta. No livro Mitologia grega, Junito Brandão nos diz que o inconsciente nos mitos, não podendo se manifestar de forma conceitual, verbal, o faz por símbolos.

Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego symbolon, do verbo symbállein, “lançar com”, arremessar ao mesmo tempo, “com-jogar”. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. (Brandão, 2007, p. 38)

Aqui não me refiro ao processo de simbolização, mas ao da forma originária, daquilo que Freud, através do Presidente Schreber, diz que os indivíduos dispõem além das diversidades de culturas e das linguagens, de uma “língua fundamental” (Laplanche & Pontalis, 1967/1979). Essa língua não é necessariamente verbal, mas é algo fundamental que ocorre na relação entre seres humanos. Creio que estamos falando da cesura, da sinapse, do vínculo.

Como lembra Bion no Primeiro Seminário Italiano que serviu de pré-texto para este trabalho:

Mesmo a comunicação verbal foi feita incidindo letras na pedra. Existem outros que incidem e esculpem figuras que também são métodos de comunicação. Recentemente pessoas como Henry Moore e Bárbara Hepworth incidiram figuras que incluíam buracos. Isso é recorrer a um método de comunicação no qual é preciso que haja também um receptor; presume-se que alguém olhe para as esculturas. (Bion, 1977b, p. 3)

Dizendo de outro modo, a forma originária, como a pedracarta, surge dentro de uma relação, ela tem endereço e destinatário &– espera-se que alguém a leia.

São muitas as pedras-cartas que nos são endereçadas, mas podemos recebê-las ou não. Certamente para cada situação poderá haver uma nova resposta. No filme A partida uma pedra é atirada ao longe por Daigo, quando se lembra do pai ausente; mas esse pai foi quem lhe falara sobre a pedra-carta, tendo-se feito presente através dessa representação, embora nesse outro contexto sua ausência tenha sido vivida com sofrimento, como dia-bolo (em oposição a sim-bolo).

O sonho é outra pedra-carta, pois ele em si é um material bruto. Há todo o trabalho de vestir e desvestir o sonho, como é feito na cerimônia de acondicionamento, com respeito e delicadeza &– é o que podemos considerar como a pele do sonho.

Como no ritual de acondicionamento, é importante lembrar que “o sonho ocupa um papel conspícuo no tratamento; contém dolorosas tensões, sendo, ele mesmo, uma manifestação delas” (Bion, 1992/2000, p. 107).

Assim como Petrouchka, podemos pensar o sonho como a marionete que, apesar de manobrada pelo sonhador, ganha vida própria, mas é em si uma experiência emocional que fracassa (Bion, 1992/2000), por ser uma tentativa de suprir funções incompatíveis: de um lado situa-se no domínio do princípio da realidade e, no outro, do princípio do prazer, representando uma tentativa de satisfazer a ambos. É realização de desejo e a evidência de que esse não foi realizado. É uma experiência intensa que desaparece assim que o sonhador acorda, e não é imediatamente apreensível, necessitando todo um trabalho da “interpretação do sonho” (Freud, 1900/1972) para decifrar o trabalho próprio do sonho. O método criado por Freud é a possibilidade de encontrar a essência, a vida do sonho, mesmo que no final cheguemos ao “umbigo do sonho” quando ele resvala para o desconhecido.

Em relação à forma-pensamento, retomo aqui Stravinsky, mas tomando como referência as conferências por ele proferidas em 1939-1940 na Universidade de Harvard, particularmente as suas ponderações sobre o processo criativo:

O estudo do processo criativo é algo extremamente delicado. Na verdade, é impossível observar de fora os movimentos internos desse processo. É uma tentativa vã, assim como seguir suas sucessivas fases na obra de outra pessoa. É igualmente difícil observar o que você mesmo faz. E, no entanto, só pedindo a ajuda da introspecção é que tenho alguma chance de guiá-los nessa matéria essencialmente flutuante. ... Toda criação pressupõe, em sua origem, uma espécie de apetite provocado pela antevisão da descoberta. Esse gosto antecipado do ato criativo acompanha a captação intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída mas ainda não inteligível, uma entidade que só tomará forma definitiva pela ação de uma técnica constantemente vigilante. ... O próprio ato de colocar a minha obra no papel, ou, como dizemos, de trabalhar a massa, é para mim inseparável do prazer da criação. No que me diz respeito, não consigo separar o esforço espiritual do esforço físico e fisiológico; eles me aparecem no mesmo nível, e não se apresentam numa hierarquia. ... A palavra artista que, bastante incompreendida hoje, confere ao que a carrega o imenso prestígio intelectual, o privilégio de ser aceito como puro espírito &– esse termo pretensioso é, a meu ver, inteiramente incompatível com a função do homo faber.(Stravinsky, 1942, p. 53)

Podemos considerar o sonho como o processo criativo individual. Considero importante três aspectos que vou destacar, sem contar com a introspecção, para mim um elemento essencial: o primeiro aspecto é o “ato criativo como captação intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída, mas ainda não inteligível que tomará forma ... através de uma técnica constantemente vigilante”. Penso aqui na questão do método e da técnica. A cada sessão o analista antevê uma descoberta, que tomará forma pela ação de uma técnica, uma disciplina, um método. No filme a questão da disciplina &– baseado nos princípios budistas, o desenvolvimento de uma técnica &– é fundamental para encontrar a forma adequada para aquela “entidade” ainda desconhecida, mas ainda não inteligível, que está presa no corpo e precisa encontrar a sua forma &– uma apreensão estética. Uma forma que comunique não apenas a beleza, mas a beleza de uma verdade.

Um segundo aspecto diz respeito à palavra artista, que carrega prestígio intelectual mas é incompatível com a função do homo faber, como o próprio compositor se vê, “confeccionando uma obra musical” (eu criei a expressão) e lembra que os músicos, poetas, pintores e escultores eram considerados artesãos. “O nome de artista era atribuído apenas aos Mestres das Artes: filósofos, alquimistas, mágicos” (Stravinsky, 1939, p. 55). Como no filme, Daigo tem prestígio como músico, artista &– ele tem importância, mas é desprezado em uma atividade em que “põe a mão na massa”. Mas é “pondo a mão na massa”, em contato com o corpo, que sua vida ganha expressão. Creio que estamos revendo os aspectos sensoriais como importantes em uma sessão de análise &– o contato com o corpo &– como o corpo do sonho da sessão que o trouxe, assim como o contato da paciente com o próprio corpo (sensação física do parto) na associação que surgiu em relação ao sonho. É quando o corpo busca uma representação.

Considero agora o terceiro aspecto em relação à conferência de Stravinsky. Ele não separa o esforço espiritual do esforço físico e fisiológico, no ato criativo, colocando-os no mesmo nível; entendo essa colocação como uma visão integrada corpomente, que permite a emergência daquilo que seria a formapensamento. Creio que é nessa disponibilidade interna que o processo criativo pode realmente fluir e permitir a entrada em cena daquilo que será uma entidade desconhecida, já possuída mas ainda não inteligível, como foi a emergência do fantasma no final do balé Petrouchka. É como se pudéssemos dizer que o fantasma de Petrouchka sempre tivesse estado lá, esperando para ser encontrado, e o próprio trabalho de criação pôde darlhe forma. Em contexto diferente, os fantasmas dos mortos no filme japonês fazem a sua aparição através do processo estético de acondicionamento, e a vida liberta-se do corpo.

Da mesma maneira, na sessão que gerou o trabalho temos o aparecimento do fantasma que tanto temor provoca(va) &– afinal não é tarefa para qualquer um enfrentar a impressionante cesura do nascimento &– como corolário e parece que simultaneamente enfrentamos a impressionante cesura da morte. Não seria mais fácil continuarmos como marionetes? Mas alguns ousam.

A grande estrada não tem portas,
mas... que passagens complicadas!
Franqueado esse acesso,
Percorre-se o universo em solidão real.

“Passagem sem porta”, Hueu-Kai (1183-1260), compilado por Varenne, 1986

 

Referências

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Endereço para correspondência
Eunice Nishikawa
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 247/14
04544-000 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3846-6926
E-mail: eu.nishi@uol.com.br

Recebido: 10/10/2009
Aceito: 24/10/2009

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Dr. Salvador Mario Bianco, psiquiatra, psicanalista, professor da Faculdade de Medicina da Unifesp.
2 Há uma tradução não publicada dos Seminários Italianos, feita com muito cuidado por um colega da nossa Sociedade, Renzo Birolini.
3 Peter O’Sagae no endereço eletrônico http://caracol.imaginario.com/letrasonora/indexmenu.html; Grandes compositores: Stravinsky, Time Life Abril Coleções Ltda., 1990; Steven Ledbetter no endereço eletrônico www.bso.org/images/program_notes/stravinsky_petrushka.pdf.
4 Título original: Okuribito. Japão, 2008. Direção de Yujiro Takita, roteiro de Kundo Koyama, e trilha sonora de Joe Hisaishi.
5 No momento participo da comissão de seleção, da SBPSP, coordenado por Raquel Pires, e tendo como colegas Leda Beolchi Spessoto, Jamil Signorini e Suzana Grünspun.
6 O tema da forma como surgindo de uma relação tem sido motivo de indagação e estudo por nossa comissão de estudos sobre clínica e cultura. Coordenação de João Augusto Frayze-Pereira. Participantes: Daniel Delouya, Dora Tognolli, Elizabeth Anotnelli, Eunice Nishikawa, Liana Pinto Chaves, Luiz Meyer e Milton Della Nina.