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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009

 

RESENHAS

 

A cultura para psicanálise

 

Culture for psychoanalysis

 

 

José Antonio Sanches de Castro*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Gay, Peter. Modernismo: O fascínio da heresia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 578 p.

 

Esse livro é o encontro de um historiador com a arte. Desse tipo de encontro por vezes pode resultar algo de interesse à medida que tece algum “Fio de Ariadne” que nos ajuda a percorrer os labirintos em que nos envolvemos e a sairmos deles providos de alguma intuição para nosso trabalho em psicanálise.

A arte com a qual Peter Gay se encontra é a que se desenrola a partir dos anos finais do século XIX e se manifesta durante todo o século XX. Aquela a que nos acostumamos a chamar de Modernismo. Ele compõe sua historização através de figuras excepcionais que vão na contramão do instituído. No lugar de considerar aqueles que construíram a modernidade triunfando na política ou nos negócios, nos oferece uma radiografia social por meio daqueles que buscaram a si mesmos pelos caminhos secundários, sombreados ou mesmo diretamente proibidos. Por meio de artistas que usaram seus conhecimentos técnicos e inventividade para, entre muitas coisas, chamar a atenção, mudar consciências ou mesmo escandalizar. Muitos que em suas posturas diante da vida não se pautavam pelo comedimento ou moderação e pretendiam construir a si mesmos afastando-se da imagem do comum burguês ou mesmo atormentá-lo. Por essa razão, uma das epígrafes desse livro é uma citação de Baudelaire: “O homem de letras é inimigo do mundo”, e também por isso a obra conta com o subtítulo “O fascínio da heresia”.

O resultado é interessante não só para compreendermos o que foi o Modernismo, para termos notícias de alguns de seus protagonistas e dos excessos que cometiam, mas principalmente para conhecermos todo um período social por meio de sua contestação: a moral vitoriana que se consolidava como os valores da burguesia, o materialismo positivista, empírico e utilitarista que acentuava o desencantamento do mundo e do todo instituído que servia como polo de identidade e defesa dos interesses dessa classe que já ouvira a frase de Marx que abre o Manifesto Comunista: “Um espectro atemoriza a Europa; o espectro do comunismo”, e tinha, à sua volta, a efervescência do novo saltando de todas as direções: das ciências, da própria arte etc., sacudindo o establishment. Nessa luta por algum centro de permanência, o burguês era identificado pelos modernistas como um ganancioso, um filisteu incapaz de alguma sensibilidade profunda. Opinião que se manteve ao longo do século XX. Já em 1960, o escultor Claes Oldenburg, citado por Peter Gay, declarava: “Os burgueses se divertem, e apenas se divertem, com as inovações criativas. O esquema burguês é que eles querem se sentir incomodados de vez em quando, eles gostam disso, mas então absorvem você, e aquele pouquinho acabou, e estão prontos para a próxima”.

O Modernismo, com sua valorização do eu e seu desdém às grandes questões políticas, representou uma resposta estética ao sistema, com toda a recusa ao modo de ser burguês, aos fundamentos morais que o sustentavam e aos projetos de vida que desenhava. Verticalmente, o movimento seguia o projeto que remonta, simplesmente, a toda a tradição filosófica na sua busca de compreensão da natureza humana. Nesse sentido, o Iluminismo, por meio de pensadores como Kant, Diderot, com a contundente defesa da autonomia do homem, e Rousseau, com seu proclamado ideal de autenticidade, pode ser considerado parte das raízes mais profundas desse movimento. Por isso o Modernismo foi extremamente diversificado: cada artista tinha sua própria direção existencial, sua própria visão de mundo e sua própria leitura do que o Modernismo significava. Peter Gay propõe contar a história de toda essa diversidade privilegiando duas grandes tendências: a busca pelo novo e o reinado da exploração do eu. Essas duas tendências nos são apresentadas por meio de um bom número de criadores, desde o escritor Oscar Wilde, com suas paixões proibidas, até o arquiteto desconstrutivista do Museu Guggenheim de Bilbao, Frank Gehry. Este, para Peter Gay, um exemplo de lealdade para com outra essência do Modernismo: tomar a tradição, reinventá-la e convertê-la em expressão de si. Assim segue por meio de escritores como Virginia Woolf ou James Joyce, músicos como Stravinsky ou Schoenberg, cineastas como Chaplin ou Orson Welles, pintores como Kandinsky ou Picasso. Através deles percorre o final do século XIX e todo o século XX, apresentando as condições sociais que imperavam, as tendências que se impunham e desapareciam, construindo um retrato panorâmico desse movimento e de como ele marcou a sociedade que contestava. Ao final, Peter Gay pondera sobre o fim do Modernismo quando, durante a pop art, na década de 1960, a produção comercial da cultura domina o mundo das artes; ainda que afirme perceber sinais de expressão do espírito modernista, por exemplo, na literatura de Gabriel García Márquez.

De outro modo, podemos pensar que o movimento repete uma antiga e contínua tensão do jogo instituinte-instituído, tensão da qual temos notícia em um dos seus mais antigos registros, as tragédias gregas. Dentre elas a nossa inseparável companhia: Édipo Rei, de Sófocles. É nas tragédias que se esboça, em tensão, uma das noções mais caras à nossa concepção de indivíduo, a saber, a noção de vontade.

Consideramos, reiteradamente, as relações da psicanálise com as artes desde sua concepção e durante todo o seu desenvolvimento. Freud mesmo dizia que muitas das descobertas da ciência psicanalítica já haviam sido enunciadas pelos poetas. Penso ser essa a perspectiva mais interessante da relação da psicanálise com as artes: menos aquilo que a psicanálise tem a dizer sobre elas e muito mais o que as artes dizem e a inspiram em sua tarefa de pensar o humano. Suponho valioso um ponto de vista que pode pensar, por exemplo, a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, como expressão de um momento instituinte na Grécia antiga, onde se criava a figura do direito ao discutir a diferença entre o crime voluntário e o crime escusável, desembocando em uma revolução no modo de relação entre os homens e de suas representações entre si. As tragédias e as reflexões filosóficas que se seguiram sobre a política atravessam os séculos, e Freud “capturou” essa peça para expressar, ele, tudo aquilo que descobria em si mesmo na autoanálise e em seus pacientes no momento em que faz sua revisão da teoria da sedução. A analogia entre a criação, na Grécia antiga, de um homem que passa a ser representado como alguém que tem vontades (Vernant, 1999) e a concepção de Freud (1950/1974) da ideia de fantasias inconscientes e desejos soerguidos pela peça de Sófocles, penso, ilustra o diálogo com as artes como inspirador da psicanálise na tarefa de compreender o humano e, em nosso cotidiano ofício, de ajudá-lo a compreender-se.

Recentemente, durante a sessão com um analisando, o livro de Peter Gay visitou minhas associações enquanto ele repetia um tema antigo: sua preocupação com o futuro do filho no mundo competitivo em que vivemos. Nesse dia, enquanto o escutava, por um momento a fantasia individual se sobrepôs ao drama sociológico, pois me lembrei do capítulo “Autoabsorção: a introspecção expressiva”. Nele, o autor fala sobre a insistência de alguns pintores, para expor “o recôndito do seu ser”, em produzir autorretratos: Cézanne, Gauguin, Van Gogh, este pintara cerca de quarenta! Junto a essa lembrança, voltou-me a interpretação que eu mesmo fizera, durante a leitura, sobre a necessidade dessa prodigiosa produção: aqueles que rejeitavam tão amiúde as representações de si oferecidas pela dominante cultura burguesa, deveriam mesmo necessitar encontrar freneticamente outras representações de sua própria imagem. Tudo isso me fez voltar ao paciente, mais precisamente, à sua problemática autoimagem: lembrei-me de que ele nascera e se criara na zona rural; recémchegado à cidade, ficava atento para não ser alvo de chacotas dos colegas em função de seus comportamentos, modos de falar etc. Lembrei-o disso tudo e sugeri que via seu filho tendo de lidar com algo dessa natureza, desconsiderando que ele era “um peixe que já nascera nessas águas”. Ele responde: ... sabe... estou pensando se não é por isso que, mesmo depois de conseguir toda essa realização em minha profissão, até hoje tenho um certo sentimento de inferioridade em relação aos meus colegas de profissão... Certamente tudo isso possui uma pré-história, mas ali estava o drama sociológico-cultural internalizado. Tornado pessoa.

Aquém da sensação de caminhos sempre inesperados que nos marca o exercício da associação livre, isso não é de causar espanto, já que a cultura compõe os fios das redes de sentido para representar o humano, com suas luzes e sombras, e o continente (último?) que oferece os modelos e a matéria para a criação de nossas representações e de sua compreensão. Nesse sentido, o livro de Peter Gay nos abre páginas de histórias e reflexões extremamente generosas para com o trabalho do analista. Elas expressam os últimos capítulos de um tempo que ainda ecoa e constrói o nosso.

 

Referências

Vernant, Jean-Pierre (1999). Esboços da vontade na tragédia grega. In J.-P. Vernant & P. Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia antiga (pp. 35-62). São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Freud, S. (1974). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 3, pp. 251-385). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1950).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
José Antonio Sanches de Castro
Av. Otto Ribeiro, 816
19800-300 &– Assis &– SP
Tel.: 18 3322-3634
E-mail: j.sanches1@terra.com.br

Recebido: 24/08/2009
Aceito: 21/09/2009

 

 

* Psicanalista, membro filiado ao Instituto da SBPSP.