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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010

 

EM PAUTA - CARTAS

 

“Ninfa, que todos meus pecados possam ser lembrados em tuas orações”

 

“Nymph, in thy orisons be all my sins remembered”

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inspirando-se em uma passagem dolorosa da autobiografia de Bion, sua insensibilidade diante da angústia de sua filha que acabara de perder a mãe, o autor selecionou e traduziu duas cartas dirigidas a seus filhos ao redor de 1964. Nestes textos, profundos e simples, Bion os exorta ao conhecimento adquirido através da experiência pessoal, sugerindo como modelo a busca de Milton no Paraíso perdido por sua luz interior. Uma advertênciaé feita no sentido de encararem a depressão e o insucesso como experiências inevitáveis da vida, que, se bem elaboradas, podem ser fundamentais para julgar e decidir.

Palavras-chave: Aprendizado pela experiência, Crescimento, Luz interior, Depressão e insucesso.


ABSTRACT

Inspiring himself in a painful passage of Bion’s autobiography, his insensitiveness towards his daughter whose mother just died, the author selected and translated two letters written to his sons about 1964. In this simple and profound texts, Bion stimulates them to search a kind of knowledge through personal experience, suggesting as a model the quest for interior light shown by Milton in Lost paradise. He offers also an advice in order that they could face depression and failure as life unavoidable experiences, but, if well handled, apt to be fundamental tools to judgment and decision.

Keywords: Learning from experience, Growth, Interior light, Depression and failure.


 

 

Bion encerra a segunda parte de sua autobiografia com um relato pungente a respeito de sua insensibilidade em relação à filha Parthenope, que perdera a mãe no parto. Ela engatinhava no gramado em direção ao pai, clamando para que ele fosse pegá-la. Ele então nos conta:

Eu continuava sentado. Ela continuava a engatinhar, mas, agora, seus apelos cortavam o coração. ... Eu permanecia sentado, mas tomado por amargura, raiva e ressentimento ... Eu me sentia como se um torno estivesse me imobilizando ... Finalmente, a babá, encarando-me com surpresa, levantou-se ignorando minha proibição, foi pegá-la. O encantamento se quebrou e eu me libertei. O bebê parou de chorar e agora era consolado por braços maternais. Mas eu, eu tinha perdido minha filha ... Fora um choque, um choque que me deixara empedernido, perceber em mim um tal grau de crueldade. A partir de então sempre me acorriam as palavras de Shakespeare: “Ninfa, que todos meus pecados possam ser lembrados em tuas orações”. (Bion, 1985, p. 70)

Não por acaso, este relato, que nos deixa compungidos, serve como uma espécie de preâmbulo à publicação de algumas “cartas familiares” de Bion, segundo a denominação de sua segunda esposa, Francesca, que editou as autobiografias após sua morte. Nessa parte do livro, encontramos cartas escritas a partir de 1951 (lembremos que Bion nascera em 1897) dirigidas a Francesca, e depois para seus filhos, Julian e Nicola, nascidos de seu casamento com ela, e também para Parthenope, a personagem do relato acima, filha de seu primeiro casamento com a atriz Betty Jardine.

Para os propósitos deste pequeno artigo, apresentarei a carta, traduzida por mim, que Bion enviou a seus filhos em 1964, que me impressionou por sua simplicidade profunda, mais do que por sua profunda simplicidade. Não é possível discriminar para qual dos filhos ela foi escrita, não sendo impossível que fosse uma espécie de “bilhete testamento” que ele distribuíra para todos. Vejamos então o texto em questão:

 

Cartas aos filhos (Bion, 1964/1985, pp. 179-180)

A única coisa que deveria nos interessar, e que sempre me interessou, é que possamos ter um conhecimento de nós mesmos e dos outros, que nos torne capazes de tirar o máximo proveito daquilo que a vida nos reserva. Eu sempre me dei conta de que para conseguir isto é preciso experimentar e aprender por si mesmo. Sei que a vida pode ser muito dura e sufocar o crescimento; tudo o que desejo é que isto não ocorra de modo desnecessário. Muito da felicidade presente é fruto de uma labuta passada, do mesmo modo que a felicidade futura pode estar na dependência da labuta do presente. Não há virtude na labuta, mas se vocês a encararem com equanimidade, caso seja necessário, ela passa a ser um esteio incalculável, que nenhum montante de habilidade ou sorte pode substituir.

A imaginação é de grande valia, sem ela você não pode vislumbrar seu caminho, mas ela não deve se transformar em um substituto para a vida real. Podemos ficar tão estropiados com a mera rotina de cavar o pão de cada dia, e com a dor da competição pelas necessidades singelas da vida, que pode se tornar impossível ao eu encontrar o próprio talento. É igualmente verdadeiro que podemos ser sufocados por excesso de facilidades. Eu não vejo como poderia me contrariar por qualquer escolha que vocês façam, a não ser em um caso: se for uma escolha que os leve a se retraírem em imaginar uma vida boa em lugar de encontrar seu próprio caminho até ela. Milton, ao referir-se à sua jornada, disse que foi “Ensinado pela musa celestial tanto a aventurar-se no descenso sombrio, quanto a elevar-se de novo, mesmo sendo algo duro e raro”: e isto, que já é uma tarefa árdua para qualquer consciência, o era ainda mais em função de seu reconhecimento da própria grandeza e da carga que representava para ele. Mas isto se aplica igualmente às coisas comuns, se é que se pode chamar um conhecimento tão extraordinário, quanto o conhecimento do comum para cada indivíduo, de algo “ordinário”. O indivíduo sempre ansiará por um sol, chuva, nuvens, ar, comida e felicidade que sejam “ordinários”. Se a imaginação o ajudar a encontrá-los, muito que bem. Mas é uma maldição se uma crença em alguma vida “extra-ordinária” colocar uma barreira entre aquilo e vocês. Vocês podem acreditar, eu odiaria mais do que me fosse possível expressar, se sentisse que algo dito ou feito por mim os induzisse a um “bom resultado” que se interpusesse entre vocês e estas simples grandes coisas. Lendo cuidadosamente a abertura do Livro III do Paraíso perdido, vocês perceberão que Milton não estava falando somente sobre sua cegueira, se bem que a maioria das pessoas (mesmo aquelas supostamente mais esclarecidas) pense assim, mas acerca da luz interior; este é o seu jeito de formulá-la. Ele se vale das crenças e da linguagem de seu tempo para se expressar, mas aquilo que expressa é conhecimento que só é possuído por um grande homem e que transcende os acidentes e circunstância de seu tempo. Com o passar do tempo suas experiências lhes ensinarão mais e mais a respeito da grande profundidade da compreensão por ele conseguida. Só quem sabe poderia dizer o que ele diz a respeito do amor no Livro IV: “O amor emprega aqui seus áureos feixes luminosos”. Eu não desejo nada para vocês, além de que vocês encontrem a si mesmos e a suas próprias vidas.

***

Depressão e insucesso são uma parte de toda vida, mesmo da mais feliz e bem-sucedida. Eu diria, até, especialmente da mais feliz e bem-sucedida: é o preço que se paga pela alegria e pelo sucesso, se eles cruzarem os seus caminhos. Mas o preço que se paga ao tentar evitar insucesso e depressão é dez vezes pior. Para início de conversa, felicidade e sucesso são coisas muito boas por si mesmas. O assunto é bem diferente se vocês se sentem obrigados a ser “felizes” e “bem-sucedidos”, por temerem o insucesso e a depressão. Isto compromete o sucesso, pois aí sentimos que ele está acobertando alguma coisa, e o insucesso e a depressão tornam-se artifícios que já não podem ser encarados como alguma coisa que as pessoas comuns contornam com facilidade todos os dias. Eu gostaria que vocês elaborassem seus próprios julgamentos e tomassem suas próprias decisões. Mas pretendo que vocês o façam por razões verdadeiras. É fácil para mim escrever tudo isto, mas para ninguém é fácil praticá-lo.

Nestas cartas, acompanhamos um Eu vivido e sofrido (Bion contava então com 67 anos) compartilhando com outros eus, uma sabedoria que ele adquirira por si mesmo: de que “podemos ter um conhecimento de nós mesmos e dos outros, que nos torne capazes de tirar o máximo proveito daquilo que a vida nos reserva”, e que, para conseguir isso, “é preciso experimentar e aprender por si mesmo”.

Este aprendizado deverá ser buscado na vida real, mas, para tanto, não podemos capitular diante de suas agruras nem nos iludirmos com as “facilidades” de nossa imaginação. É preciso compreender que depressão e insucesso são parte de toda vida, “mesmo da mais feliz e bem-sucedida”. Esta advertência assinala a necessidade de encararmos a dor psíquica como ingrediente intrínseco ao crescimento mental; algo que devemos acolher com naturalidade em vez de a evitarmos.

Malgrado sua autocrítica final de que para ninguém é fácil praticar estes ensinamentos, ele oferece uma ótima dica para sua consecução, lembrando-nos (já que nós, leitores, nos tornamos também seus filhos) que os poetas funcionam como “seios pensantes” a nos auxiliar em nossa jornada solitária. Invocando a peregrinação pessoal de Milton implícita no Paraíso perdido, Bion nos lembra que podemos encontrar nossa luz interior mesmo sem sermos vítimas de uma cegueira física.

Talvez, assim, possamos reformular as palavras de Shakespeare: “Ninfa, que meu Eu possa ser iluminado pelas dores do meu crescimento”.

 

Referências

Bion, W. R. (1985). All my sins remembered: Another part of a life and The other side of genius: Family letters (F. Bion, ed.). London: Karnac Books.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170/123
05452-050 – São Paulo – SP
tel.: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

Recebido: 16/03/2010
Aceito: 30/03/2010

 

 

* Membro efetivo da SBPSP.

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