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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Easy rider,1 o filme2

 

Easy rider, the movie

 

 

Camila Salles Gonçalves

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora de filosofia e doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenadora do conselho editorial de Resenhas de Percurso – Revista de Psicanálise e de recentes cursos de expansão no Instituto Sede Sapientiae, "A filosofia na escrita da psicanálise contemporânea", e autora de publicações sobre psicanálise e filosofia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo comenta o filme Easy rider (Sem destino), enquanto road movie, mostrando a influência da Guerra do Vietnã, da contracultura, do movimento hippie e da arte psicodélica na concepção do roteiro. Comenta também procedimentos da linguagem cinematográfica e a utilização de paródia na construção de personagens.

Palavras-chave: Contracultura. Movimento hippie. Arte psicodélica. Paródia. Linguagem cinematográfica.


SUMMARY

This article comments the film Easy rider as a road movie, pointing out to the influence from the Vietnam War, the underground culture, the hippie movement and the psychodelic art on the conception of the plot. It also comments proceedings of the cinematographic language and the use of parody in the construction of characters.

Keywords: Underground. Hippie movement. Psychodelic art. Parody. Cinematographic language.


 

 

A lei do cinema se fundamenta não na valorização,
mas na imolação da imagem. Se uma imagem não morre
na outra, o cinema não existe. Poderá, quando muito,
existir a fotografia. Não é esta a lei geral da arte?
(Almeida Salles, 1988)

 

Sobre o filme e a época

O sucesso estrondoso do filme provocou todo tipo de interpretação e de avaliação. Henri Fonda teria se mostrado perplexo com a fortuna obtida por seu filho Peter, ao dividir a produção e atuar em um único filme, em comparação com seus ganhos monetários menores em grandes sucessos do cinema, alguns considerados clássicos. Esse é apenas um dos comentários curiosos da época, entre inúmeros. Na estreia, em Nova York, o teatro teria sido invadido por hordas de hippies entusiasmados, comportando-se com seus modos anticonvencionais. Esses relatos não foram sempre vistos com bons olhos e, muito menos, aqueles a respeito do que teria acontecido durante a filmagem: atores drogados, brigas, despreocupação em seguir um roteiro articulado etc. Por outro lado, se o filme foi rodado desse modo, nele permanecem intuições artísticas dignas de notas e uma montagem, a meu ver, genial. Obteve vários prêmios, e parte da crítica elogiou os desempenhos de papel, a direção, o roteiro e a trilha sonora. Em 1998, o filme foi incluído no Registro de Filmes da Biblioteca do Congresso Nacional.

Easy rider, que no Brasil se chamou Sem destino, é considerado um marco e a expressão da contracultura e representante dos road movies. Quanto a essa designação, se é usada para incluir o filme em um gênero, a rigor ela veio a posteriori, pois o nome surgiu em 1974, a partir do filme de Joseph Strick Road movie. Tem sido empregada também em relação aos filmes de Walter Salles Diários da motocicleta, de 2004, sobre o jovem Che Guevara e Na estrada, (On the road), baseado no romance de Jack Kerouac.

Definir contracultura, ou cultura underground, é tarefa para especialistas. No entanto não é possível ignorar que se trata de um movimento cuja expansão é indissociável da Guerra do Vietnã, da qual os Estados Unidos só começaram a retirar suas tropas em 1970, sob forte pressão interna e protestos, sobretudo contra o sacrifício da população jovem. Esta, em grande parte, buscou uma transvaloração de todos os valores. A expressão nietzschiana parece-me apropriada para evocar a imensa reação contra valores vigentes no sistema, que invadia e aniquilava populações de outro país, pregando o patriotismo e o anticomunismo. Jovens buscaram novos valores e uma nova cultura (também no sentido de civilização), renegando a dominante.

Reagia-se à sucessão de horrores da guerra, que conhecemos também por meio da arte cinematográfica. Basta lembrar os filmes premiados Apocalypse now (1970), de Francis Ford Coppola, Platoon (1986) e Nascido em 4 de julho (1989), ambos de Oliver Stone.

A contracultura teve repercussão no movimento hippie, mas não me parece correto identificar um movimento com o outro. Os poetas underground, como Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti, - este também editor -, que, em dado momento, se uniram a Jack Kerouac, autor de On the road, e a outros intelectuais de alto nível de formação literária, iniciaram a divulgação de suas obras em São Francisco. Cito linhas da excelente introdução, de Claudio Willer, à sua tradução de Uivo e de outros poemas de Allen Ginsberg:

Toda a rebelião contracultural dos anos [19]60, toda uma série de mudanças no plano da criação artística, do comportamento individual e da atuação política, descende linha direta da leitura na Galeria Six, organizada como uma recepção a Kerouac em São Francisco por Ginsberg. (Willer, 1984, p. 18)

O Uivo foi lançado em 1956, apreendido pela polícia, e, depois de ser rotulado como produto dos agrupamentos beat, tornou-se alvo da crítica reacionária:

O discurso da crítica na verdade dizia o seguinte: os beats eram boêmios, sexualmente liberados e promíscuos, tomavam drogas, não tinham atividades profissionais respeitáveis e, portanto, não poderiam produzir literatura de boa qualidade. (Willer,1984, p. 20)

Ainda, segundo Willer: "Ginsberg, Kerouac, Burroughs etc. eram excelentes leitores e pesquisadores; só que suas leituras - Whitman, Rimbaud, Apollinaire, Crane, Céline etc. - não eram aceitas na comunidade acadêmica; portanto não existiam" (1984, p. 21).

Os hippies, assim como outros jovens que se opunham ao alistamento compulsório para a guerra, só refletiram vagamente a contracultura. Inquestionáveis, no entanto, foram os efeitos da ação política de Ginsberg e outros escritores e a adoção do lema implícito no termo Flower Power, criado pelo poeta em 1965:

A primeira passeata de maiores proporções contra a intervenção americana no Vietnã teve lugar em Berkeley em 1965, com Ginsberg à sua frente. Já naquela ocasião, somava-se um protesto específico (contra a Guerra do Vietnã) e a defesa de uma ideologia pacifista, por uma sociedade não competitiva e não militarizada, o "Flower Power". (Willer, 1984, p. 26)

Embora o filme Easy rider seja apresentado em inúmeros artigos e sinopses como a aventura de dois hippies, parece-me difícil aceitar tanto essa qualificação das personagens quanto incluí-las no movimento de grande criatividade poética denominado contracultura, anterior, que teve, em comum com o fenômeno hippie, talvez apenas a oposição ao status quo, a proposta de novos ou renovados sentidos para a palavra liberdade, experiências psicodélicas e a valorização de culturas orientais.

As personagens Billy e Wyatt não são cultas e não são hippies. Opõem-se aos valores tradicionais estabelecidos, mas não demonstram ter cultura intelectual crítica e em nada indicam interesse por viver em comunidades alternativas. Aliás, basta assistir ao filme para ver o que eles têm em comum com os vários tipos de hippies que aparecem e em que aspectos deles se diferenciam. São antibeligerantes, são de paz e amor e são rebeldes da motocicleta.

Sobre rebeldia e motocicleta, lembremos The wild one (O selvagem), de 1953, com Marlon Brando, suas famosas moto e jaqueta, filme dirigido por László Benedek, confundido, às vezes, com Ramble fishes (1983), batizado no Brasil de O selvagem da motocicleta, dirigido por Francis Ford Coppola (com participação de Dennis Hopper no elenco). Isto só para iniciar a diferenciação da dupla e sugerir outras fontes que inspiraram sua criação.

Billy e Wyatt são, já por seus nomes, paródias dos heróis norte-americanos do faroeste sustentados por mitos ideológicos patrióticos, capitalistas, militaristas, racistas e colonialistas. Detenhamo-nos um pouco no campo da paródia. Em seu livro Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento, Raul Fiker esclarece: "O texto do mito ideológico é o texto institucionalizado, 'sagrado', texto que, de alguma forma, se encontra no poder" (2000, p. 124).

A origem do termo paródia, segundo o mesmo autor, "é grega e significa 'canto paralelo', referente ao comentário da ação na tragédia clássica pelo coro" (Fiker, 2000, p. 96). Como, na Grécia antiga, teria havido a prática de apresentação de um drama satírico após a encenação de cada trilogia clássica, a palavra teria passado a designar formas de caricaturização.

Os dois protagonistas podem ser vistos como personagens de paródia de mitos ideológicos. Transpondo as figuras dos Comics e do cinema, mitos que representavam a supremacia branca, como Capitão América e Buffalo Bill ou Wild Bill (estes dois últimos são indivíduos diferentes), temos elementos que as próprias personagens parodiam. Ou seja, é evidente que Billy e Wyatt adotam aparências e adereços de heróis conhecidos, mas, por assim dizer, virando de cabeça para baixo o universo em que foram concebidos. Wyatt é nome próprio da personagem apelidada de Capitão América e lembra outro famoso cidadão armado, Wyatt Earp, xerife, que ocupou vários postos policiais e participou de um dos mais famosos tiroteios do Velho Oeste. Todos esses três mencionados indivíduos do século xix foram transformados, ao longo dos anos, em personagens de mitos ideológicos e de filmes.

Depois de evocar os dois Bill, acima, li que Dennis Hopper, em entrevista, disse ter se inspirado em Billy The Kid, famoso fora da lei do Velho Oeste. Mas este tinha carinha de criança, e não um famigerado bigode, como Wild Bill... Já o Capitão América, como sabemos, foi concebido como super-herói patriótico, durante a Segunda Guerra Mundial, para levantar o moral nacional, como se diz.

Seja como for, é evidente haver no roteiro intenções na escolha dos nomes dos protagonistas, que nos remetem a figuras que se tornaram lendárias. Temos o que se chamou também de modalidade satírica da paródia. Isto enquanto "elemento de subversão da tradição e corrosão dos discursos dominantes, de desmistificação da fantasmagoria no nível ideológico em seu sentido mais amplo - de auto - consciência de uma sociedade" (Fiker, 2000, p. 101).

Não obstante, a meu ver, o próprio roteiro e a montagem não propõem uma paródia. O drama complexo que realizaram inclui, com engenhosidade, ao modo do mecanismo de condensação, identificado por Freud no trabalho do sonho, a paródia de mitos do faroeste. Utiliza nomes e imagens de versões míticas de diferentes heróis, de diversos momentos históricos, construídas sobre indivíduos brancos, que existiram e foram violentos assassinos de pontaria certeira.

Sobre sequências do filme que se passam no Mardi Gras e no cemitério antigo de New Orleans (ponto turístico na época e ainda hoje), em que as personagens ingerem lsd, penso também que há que se considerar o que se relaciona com a arte psicodélica. As imagens, às vezes surrealistas, às vezes com formas e traços lisérgicos, parecem se inspirar na arte que teve seu auge na época de Easy rider. Houve, em São Francisco, em 1967, um Instituto de Pesquisas Psicodélicas, que teve que fechar as portas quando a Food and Drug Administration retirou a licença para a instituição utilizar mescalina e lsd. Para os pesquisadores, em um artigo publicado no livro L'art psychédélique, a arte psicodélica se refere a "um movimento artístico, que extrai sua coesão fundamental de uma experiência que é às vezes qualificada como evasão, dirige-se ao mundo com uma exuberância que em nada evoca a fuga" (Masters & Houston, 1968, p. 81).

Posso apenas dar exemplos das ideias e pesquisas divulgadas. A arte psicodélica foi comparada ao surrealismo pela crítica que a tomou como objeto de estudo. Segundo um comentador: "Em certa medida mais naíf 3 que o surrealismo, a arte psicodélica ainda tem que superar seu deslumbramento infantil diante das realidades que se revelam para a consciência ampliada" (Masters & Houston, 1968, p. 97).

Para nós, psicanalistas, é difícil deixar de notar, nesse âmbito, os muitos equívocos em relação à psicanálise. Às vezes há argumentos que a rejeitam por considerá-la um método insuficiente, em comparação à experiência psicodélica: "A consciência, então, aceita sem angústia, que aflore aquilo que, frequentemente, é o conteúdo do inconsciente" (Masters & Houston, 1968, p. 96).

Há, ao mesmo tempo, tentativas ingênuas e superficiais de utilização do pensamento freudiano. Mas o resultado artístico vai ou não nos implicar.

Encerrando esses breves comentários, que visam, sobretudo, situar o filme na época em que foi realizado, insisto na relevância da trilha sonora, na montagem na maneira pela qual o som e as letras das canções estão entrançados com a morte e a vida nas malhas da criação cinematográfica.

Devo várias informações, que estimularam a descoberta de perspectivas para a escrita destas notas, as conversas com meu amigo e colega da filosofia Valter José Maria Filho, professor, doutor pela usp, diretor de filme pornô e de um vídeo em que dá aula sobre Kant em um boteco e autor do livro A leveza dos dias e outros contos.

 

Assistindo ao filme

Não pretendo comentar todo o roteiro, apenas destacar cenas em que as personagens percorrem paisagens, algumas em tomadas magníficas, e interagem com diferentes grupos humanos. Apenas sugiro o modo pelo qual esses rebeldes da motocicleta, criados pela linguagem cinematográfica, podem nos implicar com a expressão de conflitos, contradições e a busca de transvaloração dos valores no fim dos anos 1960.

Desde a abertura, sob o forte ruído de motores, somos postos diante de uma situação de passagem. Vemos os dois protagonistas chegando de motocicleta a um lugarejo da fronteira mexicana, mistura de bar - há a tabuleta La Contenta Bar - com desmanche. Os atores extras improvisados, habitantes locais de fato, exibem sorrisos de ingenuidade obtusa, capturados pela câmara, em seus rostos marcados pela miséria. Nas expressões faciais dos dois yankees que vêm comprar cocaína, notamos certa apreensão disfarçada, contrabalanceada pelo bom humor ostensivo do sorridente chefe traficante. A droga é experimentada. Quando Wyatt (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hopper) a provam e aprovam, o vendedor se alegra e diz, enfático: "Pura vida, hermano!". Wyatt repete, sorrindo: "Si, pura vida".

Fechado o negócio, Wyatt olha um avião que aterrissa. Essa cena é ligada a outra, em outro lugar, por outro pouso de avião. Os dois aparecem em Los Angeles, numa caminhonete, para revender a droga.

Testemunhamos os expedientes que possibilitarão a aventura on the road, cruzando os Estados Unidos. Tudo se passa, nessa parte introdutória do filme, como se os easy riders fizessem jus ao título, no sentido de serem trambiqueiros, indivíduos que vivem de expedientes, de um lugar para outro.

Sob um ruído intenso de aviões, eles chegam ao ponto de encontro, perto de um aeroporto, para vender a cocaína a um ricaço, personagem caricatural, que chega de rolls-royce. O papel do comprador sem nome é desempenhado por Phil Spector, editor de discos, inclusive dos Beatles, muito bem-sucedido na época.

O comprador é assistido por seu motorista/ mordomo/ guarda-costas bizarro, que recebe a mercadoria dos rapazes e a entrega para o patrão provar no veículo dos jovens. Este está prestes a experimentar o pó, usando uma colherinha adrede preparada, quando tem um sobressalto, assim como Billy, que observa. A reação se confunde com o efeito de mais um voo rasante de avião no local, cujo entorno parece esquecido por operações de segurança. Há closes divertidos dos envolvidos na transação. No ato de aspirar o pó, o usuário faz o gesto de oferecer uma pitada a Wyatt, que declina. Na finalização, Wyatt conta o dinheiro dentro do rolls-royce. Negócio feito, cada um volta para seu carro e entra a música "The pusher", de Steppenwolf, que acompanha o deslocamento da caminhonete pela paisagem árida. A letra dos versos iniciais é:

You know I've smoked a lot of grass/
(você sabe que eu fumei muita grama)
Oh Lord! I've popped a lot o f pills
(Oh, Senhor! Tomei um monte de comprimidos).

O som continua em outra cena, cujas imagens vão se tornando identificáveis aos poucos: temos vários closes do compartimento de gasolina da moto decorada pela bandeira norte-americana. Nele, foi introduzida uma mangueira dentro da qual vão sendo introduzidas notas bem enroladas. Aí vemos que é Wyatt quem deposita todo o dinheiro obtido com o contrabando da droga. Temos um dos exemplos de como as próprias motocicletas também são protagonistas (hoje há uma réplica em museu, da original, que foi destruída). Em seguida, vemos Wyatt se preparando e colocando um capacete que tem a mesma decoração da moto.

A música é substituída pelos roncos dos motores. Os dois dirigem suas novas máquinas, paramentados com roupas novas. Fazem uma breve parada, em um cenário fantástico. Só mais tarde ficamos sabendo que, depois de passarem por Santa Mônica, tomarão a direção leste, percorrendo parte da Rota 66, atravessando a Califórnia, Arizona, Novo México e Texas, rumo a Louisiana.

Parada rápida perto de ruínas de uma aldeia, de formas impressionantes que recortam o horizonte de montanhas. Wyatt joga fora seu relógio. Os companheiros ganham a estrada e entram os créditos do filme, sob o som de "Born to be wild".

Difícil não nos emocionarmos com o ritmo da canção, das motos do vento nos cabelos, quando atravessam a ponte sobre o rio Colorado. Entra a música "Looking for adventure".

A exibição dos créditos do filme termina na parada seguinte, diante da porta do motel, cujo anúncio diz que há vagas, mas a dupla não é recebida. Eles passam a noite acampados perto das ruínas de um casebre. Cena diante de fogueira: fumam maconha e Billy revela suas fantasias a respeito de fazer uma refeição com uma comida especial em New Orleans e farrear no Mardi Gras, encontrar mulheres, estando cheio de dinheiro. Também brinca, imaginado-se entre cowboys e índios. Wyatt é lacônico e diz que está cansado, depois fala que está pondo ideias em ordem.

Desde o início do filme, há muito poucos diálogos. Mas o cinema nos fala por meio de imagens simbólicas e sequências de contrastes. À luz do dia, Wyatt observa as ruínas que circundam o local onde passaram a noite. Quando ele olha para cima, sob o belo efeito de tomadas que chegam a ser esteticistas, contemplamos formas de restos de telhados, de vegetação, efeitos de luz e sombra. E é evidente que estão numa região que foi sendo abandonada.

Olhando para baixo, Wyatt encontra uma caixa ou gaveta jogada sobre o solo arenoso que contém uma caixa, que acomoda uma bússola e, por perto, um caderno. Ele o recolhe e folheia. Não sabemos o que lê. Se era um diário, se dizia algo, não importa; da mesma forma que a bússola que serviu para dar direção, ele é descartado, jogado por aí de novo. Pode nos fazer pensar na inutilidade da existência que procurou orientação e registro. Voltamos a viver on the road.

Em uma fazenda eles conseguem ajuda para consertar um pneu. Dialogam com vaqueiros. Um deles repõe a ferradura no cavalo, no mesmo galpão em que eles cuidam da moto. Difícil não sorrirmos diante da imagem que nos fazem comparar os dois meios de locomoção ou dois entes: o cavalo e a motocicleta. Almoçam com o norte-americano casado com uma mexicana católica e seus muitos filhos. Parece que despertam curiosidade, mas não animosidade. Wyatt elogia o lugar e diz ao anfitrião que nunca foi à Califórnia, que ele pode ficar orgulhoso por viver da própria terra. Não é cortesia, é uma fala convicta. Entra a música "I wasn't born to follow" e voltamos à estrada.

Dão carona a um hippie hitch-hiker4 (pegador de carona), Jesus. Concordam em levá-lo ao seu destino, uma comunidade hippie. Passam por um trecho onde avistamos a Sacred Mountain e atravessam outra ponte. A visão das montanhas condiz com a letra da música, que associa a liberdade ao usufruir as benesses da natureza.

No acampamento, garotas que Jesus conhece recebem a dupla e comentam que mais pessoas têm vindo. Constatamos que todos são aceitos, ainda que um pouco a contragosto. Conhecemos sobreviventes de uma tribo de hippies, muito jovens, garotos da cidade, que teriam chegado a procurar cavalos mortos para comer. Alguns teriam morrido de fome. São atores e agricultores sem a menor noção, que semeiam no solo árido. Presenciamos suas esperanças, suas ilusões, sua miséria. Apesar de uma leve inquietação sobre a quantidade dos que ali aportam, comunicada por uma das moradoras, e da escassez de alimentos, compartilhados sem vacilo, os que moram na comunidade dão guarida a todos sem fazer perguntas, sem discutir nem criticar. Recebem e aceitam, em uma paz ontológica e antológica.

O que pensam e sentem todos esses jovens que sonham em estabelecer uma civilização alternativa? Há poucas frases. Com isto o cinéfilo pode se entusiasmar: se há questões, elas são apresentadas e respondidas por imagens que se sucedem, sem tese definida. Há um momento em que a câmera percorre os vários rostos, a multiplicidade de pensamentos, a que não temos acesso, e modos de olhar, enquanto todos contemplam outra cena, a de uma espécie de reza. É o pedido para algum poder suprassensível recompensar o esforço de plantar sementes com comida simples, para seu gosto simples e um agradecimento por aquela que recebem de mãos de outros e uma declaração de que serão mais generosos quando o alimento for deles. Ninguém faz discursos sobre a vida que buscaram fora da cultura imposta. A escolha é visível pelas atitudes. O discurso que temos é o do cinema, da câmera, que passa por diferentes comportamentos, gestos e expressões faciais.

A comunidade constitui uma partícula talvez invisível, um infini de petitesse nos imensos e portentosos cenários da natureza da América do Norte. Duas jovens pedem aos nossos heróis que as levem a um lugar do outro lado do canyon, que se mostra deslumbrante e idílico. O rio é rodeado por ruínas que incluem uma espécie de piscina natural. Com a música, "I wasn't born to follow", momento de alegria sensual infantil, paz e amor.

Na despedida do acampamento, Jesus, que fica, presenteia Wyatt com comprimidos de lsd, recomendando que os compartilhe com as pessoas certas.

A dupla sem destino prossegue rumo ao destino que inventou: New Orleans e o Mardi Gras. Seu percurso atravessa amostras dos mal-estares da civilização.

Não vai faltar a operação policial. Logo vão parar in jail. O pretexto para a prisão é ridículo, como não poderia deixar de ser. A sequência se inicia com o close de um trombone. Ao chegar a uma cidade no Novo México, os dois a encontram em festa, percorrida por uma parada, e seguem o desfile em suas motos, talvez como se já se sentissem no Carnaval de New Orleans.

Na cadeia, cujas paredes com escritos e desenhos a câmera percorre, eles se deparam com a personagem interpretada por Jack Nicholson, George Hanson. Ele é o riquinho bêbado da cidade, advogado, paparicado com tolerância pelos policiais. George providencia sua soltura. É a personagem que solta frases marcantes. Quando Billy, meio brincando, pergunta se há a possibilidade de voltar a ajudá-los se forem presos de novo: "Contanto que não matem alguém branco...".

Inicia-se uma etapa do filme em que há mais linguagem falada. Escutamos diálogos com sense of humour, problemas existenciais, inquietação ou angústia tratada com ironia. A adesão do terceiro anti-herói à aventura é, para este, a oportunidade de escolher um destino, a alternativa de uma nova conduta de oposição que não a repetitiva, de beber, ser preso e ser libertado da ressaca. Torna-se livre para pegar a estrada.

Billy e George brincam, fazem movimentos arriscados em cima das máquinas em movimento, abrem os braços, imitam a liberdade do voo dos pássaros.

Quando acampam à noite, acendem um baseado. George reluta um pouco em aceitar, usa o argumento clássico, que continua vigente hoje, de que a marijuana pode levar a drogas mais pesadas. Billy viaja. Quando julga ter visto um satélite, diz que a luz clicou três vezes sobre ele etc. George fala de suas teorias sobre extraterrestres nas quais acredita. As fantasias, um tanto paranoides, contêm uma parábola: os venusianos teriam atingido um nível superior de desenvolvimento, em que não necessitariam de líderes e em que cada um seria senhor do seu destino.

Quanto mais se aproximam de New Orleans, mais temos a impressão de que, ainda no fim dos anos 1970, a Guerra de Secessão parece ter mudado muito pouca coisa. Passam ao lado de mansões e, depois de uma zona comercial, de outras de residência: casas de madeira muito pobres, e só vemos norte-americanos afrodescendentes.

Em uma cidadezinha de passagem, encontram a adversidade. Na lanchonete em que entram, são tão forasteiros quanto aqueles clássicos dos filmes de cowboy, mas o modo pelo qual são mal-vistos pela mentalidade retrógrada e preconceituosa nos Estados Unidos da época é bem específico. Ninguém vem atendê-los. Um grupo de garotas adolescentes fica muito animado com a presença dos nossos heróis. Ao mesmo tempo, olhares e falas injuriosas do grupo do qual o xerife faz parte vão aprofundando o nível das baixarias, com piadas racistas, xingamentos e classificações homofóbicas projetadas. Os cabelos compridos servem de pauta inicial. O trio se retira em paz, sem sequer cair nas provocações das meninas, que querem dar uma voltinha de moto, enquanto eles são observados da janela pelos que comentaram que talvez os yankees queer não passem das linhas da cidade.

Na sequência, assistimos à cena, fora da cidade, em volta da fogueira, paródia sinistra de faroeste, nas antípodas do oeste. Talvez nós, espectadores envolvidos, nos preocupemos com os inimigos gratuitos, que ficaram um pouco para trás e com o dinheiro escondido na moto do Capitão América. Destaco algo da conversa, não numa tradução exata: George comenta que este já foi um bom país e diz que não compreende o que aconteceu de errado com ele. Billy diz que eles têm medo. George fala que o medo é daquilo que ele representa. Numa compreensão imediata, diz que só representa alguém que não corta o cabelo. A frase de George é: "Vocês representam a liberdade". Billy pergunta o que pode haver de errado com a liberdade. George responde: "A questão é essa. Falar sobre a liberdade é uma coisa, vivê-la é outra". A conversa continua e termina com piada, bom humor. Wyatt só escuta e sorri antes de adormecer.

Cena escura, fogueira apagada, ruído de grilos. Enquanto estão dormindo, são atacados de modo selvagem e covarde a pauladas. Billy já está machucado, mas reage, grita e mostra uma faca. Os agressores fogem. Wyatt se levanta ferido, mas George está morto. Cuidam de enterrá-lo e prometem enviar seus pertences à família.

Corte para um restaurante em New Orleans. Mais uma cena que se inicia com o close de um objeto, uma brilhante panela de cobre. Contrasta com o jeito melancólico da dupla. A música "Kyrie eleison" fala primeiro. Finalmente, a grana lhes dá acesso à comida e ao vinho chiques que nos são mostrados, há a ausência do companheiro. Eles tinham guardado o cartão do bordel famoso que George havia exibido antes de se decidir por acompanhá-los, dizendo que o recebera do prefeito quando pensou em ir até aquela cidade, numa das várias vezes em que estava apenas pensado...

A música acompanha a dupla e outra cena se abre, para as mulheres enfeitadas e os interiores fantásticos do bordel, uma barafunda barroca, de quadros com santos, retratos antigos, colunas, aspectos de resto de igreja... A câmera passeia. Depois do encontro meio nouvelle vague com duas garotas, Wyatt sugere irem para a rua e consegue que elas os acompanhem.

Vemos os quatro em tomadas improvisadas (talvez câmera na mão), os rostos tresnoitados de Billy e Wyatt, imagens ora surrealistas, ora banais do Mardi Gras, sob o som local de "When the saint go marching in".

O grupo vai parar no cemitério cheio de vielas, vãos, túmulos rebuscados, estátuas.

Wyatt insiste e todos acabam ingerindo aquele lsd que Jesus lhe dera. É aí que entram figuras vagamente surrealistas e imagens que lembram a arte psicodélica. As falas das personagens mostram que atingiram estados de consciência inusitados. Há cenas de sexo associadas a delírios agônicos, ritmo alternante entre expressões de desejo e de desespero, alucinações. Uma voz feminina recita o credo católico em meio a ruídos de construção em volta. Aparecem personagens fantasmagóricas. Uma voz recita o padre nosso. Há gritos, falas que indagam, que confessam desejos e ódio. As imagens são captadas de um modo que sugere os efeitos do lsd, a abertura de novas portas de percepção. É aí que acontece a epifania edipiana de Wyatt, agarrado a uma estátua, queixando-se de abandono5.

Corte para a estrada, caminho de volta, em suas motocicletas.

Parada em cena intimista: assistimos ao diálogo entre Billy, todo satisfeito: fizeram o que queriam, estão ricos, vão se aposentar na Flórida, e Wyatt, taciturno: "We blew it". Billy insiste no otimismo e afirma: "We are free!". Mas Wyatt também insiste: "We blew it".

Enigma? Premonição? Diante dessa resposta, ficaram questões para espectadores de todos os tempos. Alguns se perguntam a respeito do que poderiam ter estragado, detonado, outros veem o anúncio de um desfecho trágico, semelhante aos avisos do Coro, na tragédia grega.

Voltamos à estrada, travellings da câmera acompanham a liberdade representada pelo movimento, pela soltura, pela imensidão do destino. A música os acompanha. Uma das frases é "There is no sense in trying" (Não há sentido em tentar).

Na mesma rota, está uma picape, com dois indivíduos primitivos e fanfarrões, babando de ódio contra aquilo que é diferente. Resolvem se divertir. O que está com a arma pronta pergunta para seu companheiro, mirando Billy: "Que tal se eu explodir [blow] seus miolos?".

Billy faz um gesto com o dedo. O cara pergunta, rindo, por que ele não vai cortar o cabelo e atira. Billy cai com a moto. O atirador diz para o que dirige que é melhor irem embora. Wyatt, que estava um pouco à frente, volta e socorre o amigo, cobre-o com sua jaqueta de Capitão América, pula na moto e vai, de frente, na direção dos atacantes, que já estão se retirando. O segundo tiro o atinge em sua moto, que cai e explode. A câmera retrocede em um travelling e se afasta cada vez mais.

Palavras da música: "All we wanted was to be free".

Pelo distanciamento, as chamas vão se tornando um detalhe, que depois desaparece na paisagem imensa. Vemos o rio, que acompanha a estrada, cada vez mais próximo, maior.

Ouvimos: "Go river go...".

 

Considerações finais

Sem dúvida, as imagens finais fazem pensar na impunidade e na gratuidade do ódio, alimentado pelo medo da liberdade do outro. Mas dizem isso melhor ao desaparecer.

As juventudes norte-americana e brasileira de 1969 foram vítimas do mesmo sistema, de modos diferentes. A de lá era mandada para a Guerra do Vietnã, a daqui, mais intensamente com o Ato Institucional nº 5, para a tortura ou era forçada ao silêncio ou exílio pela ditadura, assessorada e apoiada pelos Estados Unidos da América.

Cabem palavras da letra de outra música, de Geraldo Vandré: "A morte e o destino, tudo estava fora de lugar".

 

REFERÊNCIAS

Almeida Salles, F. L. (1988). Cinema e verdade. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Fiker, R. (2000). Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. FCL/ Laboratório Editorial/ Unesp, Araraquara, SP: Cultura Acadêmica.         [ Links ]

Masters, R. E. L., & Houston, J. (1968). L'art psychédélique. Paris, Pont Royal: Del Duca/Laffont.         [ Links ]

Willer, C. (1984). Introdução. In A. Ginsberg. Uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

 

Sites consultados

https://en.m.wikipedia.org/wiki/EasyRider        [ Links ]

https://en.wipidia.org.wiki        [ Links ]

www.adorocinema.com        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
CAMILA SALLES GONÇALVES
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Recebido 27.05.2018
Aceito 08.06.2018

 

 

1 FICHA TÉCNICA
Data de lançamento: 14 de julho de 1969
Elenco principal: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson
Direção: Dennis Hopper
Produção: Peter Fonda
Escrito por: Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern
Montagem: Donn Cambern
Trilha sonora composta por: Steppenwolf, The Byrds, The Band, Roger McGuinn, The Jimmi Hendrix Experience, Pequena Eva, The Electric Flag, The Holy Modal Round Smith
Sinopse: Dois motociclistas, para financiar sua aventura na estrada, contrabandeiam uma certa quantidade de cocaína entre a fronteira do México com a Califórnia, em Los Angeles. Depois percorrem parte da Rota 66 e, rumo a leste e sudeste, atravessam os Estados Unidos até Louisiana.
2 Especial para a Revista Ide.
3 Ingênua e/ou primitiva.
4 Figura frequente na época. Chegou a haver leis reativas, proibindo a carona.
5 Há relatos segundo os quais Dennis Hopper convenceu Peter Fonda a usar sentimentos pessoais, ligados à perda de sua mãe, que se suicidou.

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