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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Jack Kerouac, o desconhecido

 

Jack Kerouac, the unknown

 

 

Claudio Willer

Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e à geração beat. Entre outros, publicou os seguintes livros: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córrego, 2018), A verdadeira história do século 20, poesia (Córrego, 2016, Apenas livros – cadernos surrealistas, 2014), Os rebeldes: geração beat e anarquismo místico, ensaio ( L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010 (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010), Geração beat, ensaio ( L&PM, 2009), Estranhas experiências, poesia (Lamparina, 20004). Traduziu Lautréamont, de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em letras na Universidade de São Paulo (USP), onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Jack Kerouac, o desconhecido Paradoxalmente, a enorme influência e repercussão de On the road, a narrativa de Jack Kerouac que projetou a geração beat, pôs em segundo plano suas qualidades propriamente literárias.

Palavras-chave: Jack Kerouac. Geração beat. Contracultura.


SUMMARY

Paradoxically, the enormous influence and repercussion of On the road, the Jack Kerouac narrative that projected the beat generation, put its properly literary qualities in the background.

Keywords: Jack Kerouac. Beat generation. Counterculture.


 

 

On the road, de Jack Kerouac, talvez seja a narrativa mais influente da segunda metade do século xx. Outros títulos podem ser lembrados. No entanto não ultrapassaram o sistema literário. Criações literárias modificam ou enriquecem a percepção do mundo; contudo um Gabriel García Marques em Cem anos de solidão, por exemplo, inspirou a literatura, mas não o comportamento.

Também integra esse rol de narrativas influentes Catcher in the rye (Apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger (1951), recentemente relançado no Brasil em uma nova tradução. Livro poderosíssimo, sua publicação coincide com o término da primeira versão de On the road, por Kerouac. Igualmente sobre rebelião individual, dá voz ao conflito de um adolescente com a sociedade burguesa. Mas sem a dimensão épica da convocação feita por Kerouac ao anunciar a geração beat - termo criado por ele em 1948 durante uma conversa com outro escritor, John Clellon Holmes, autor de Go, narrativa à clef protagonizada por Kerouac, Allen Ginsberg e Neal Cassady - e ao apresentar-se como seu porta-voz em On the road e algumas obras subsequentes. Conforme registrado em seus diários e observado por estudiosos, Kerouac pretendia até mesmo intitular essa narrativa de beat generation.

Ao ser finalmente publicado, em setembro de 1957 - o manuscrito original havia sido escrito em três semanas, em 1951 -, extrapolou o campo da criação propriamente artística. A crônica das consequências de sua leitura é extensa. Inclui a história do rapaz que, tendo-o lido, saiu de casa com sua guitarra, deixou de se chamar Robert Zimmerman e adotou o nome de Bob Dylan. Algo semelhante ao que ocorreria com outros criadores: o cineasta Francis Ford Coppola, o narrador Ken Kesey1 e o músico Lou Reed, entre tantos que integraram a lista de autores e personalidades influenciados por Kerouac, em particular, e pela beat, como um todo.

Semelhante impacto foi favorecido por aquele, precedente, de Uivo e outros poemas, de Allen Ginsberg. São obras que, além de terem estimulado rupturas, transmitiram um sentido de identidade, de pessoas à margem se sentirem identificadas com algo maior - à beat. Isso é bem registrado nas páginas finais da autobiografia de Diane di Prima, Memórias de uma beatnik (2013), que relata a percepção de que seu modo de vida fazia parte de um movimento geracional.

Promoveram, Kerouac e Ginsberg em primeira instância - sem deixar de reconhecer a contribuição de William Burroughs, mentor intelectual daquele grupo, e de autores como Gregory Corso e, subsequentemente, Michael McClure, Gary Snyder, Lawrence Ferlinghetti e outros -, o aparecimento dos beatniks e hippies. Foram anunciados em outra das narrativas de Kerouac, The Dharma bums (Os vagabundos iluminados), na fala do personagem Japhy Rider, alter ego de Snyder:

Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade para todas as pessoas. (Kerouac, 2007a, p. 209)

No entanto, mais tarde, Kerouac criticaria os hippies e demais manifestantes da década de 1960, enxergando neles a massificação que, individualista radical, tanto execrava; e, reacionário convicto, uma ameaça comunista. Por exemplo, em sua entrevista à Paris Review em 1968, pouco antes de morrer: "Eles vivem com a cabeça cheia de socialismo e querem que todo mundo viva em uma espécie de kibutz frenético, com companheirismo e tudo mais" (apud Willer, 2014, p. 48).

O conservadorismo político de Kerouac, e isso desde sua juventude, pode ser visto como herança familiar: o pai e a mãe, filhos de imigrantes franco-canadenses, eram, inclusive, antissemitas. Contrasta com a influência sobre ele de outro escritor-aventureiro, Jack London, que foi marxista; com sua identificação com índios, negros, marginais em geral, vagabundos errantes (a ponto de replicar seu modo de vida), com declarações categóricas, como esta, em On the road:

Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser um negro [...]. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa, menos aquilo que eu tão aterradoramente era, um "branco desiludido". (Kerouac, 2004, p. 223)

Recebido com uma resenha elogiosa no New York Times por Gilbert Millstein, que impulsionou suas vendas, e, subsequentemente, desencadeou um terremoto comportamental, uma leva de jovens itinerantes, situando-se à margem da ordem estabelecida, isso não impediu que, desde o lançamento, On the road fosse atacado. Entre outros motivos, pelo culto à espontaneidade, desordem formal, apologia da libertinagem uso exagerado de termos e categorias religiosas. Recebeu objeções pautadas pela correção política, apontando hedonismo, sexismo e imediatismo. Kerouac, em especial, e os beats, em geral, chegaram a ser acusados de iletrados, obliterando seu intertexto e as constantes referências a leituras. Na verdade, foram um exemplo de crença extrema na criação literária, atribuindo-lhe valor mágico, como modelo de vida e fonte de acontecimentos, e não só de textos. Projetaram em seu comportamento os autores que liam: ao viajar, podiam ser Rimbaud ou Herman Melville; transitando pelo submundo, realizavam Dostoiévski, Genet ou Hart Crane; fazendo um discurso profético, encarnavam Whitman; ao terem visões, eram Blake, Yeats ou Böhme; sob alucinógenos, reviviam De Quincey, Baudelaire, Michaux; internados, faziam parte, a exemplo de Artaud, da confraria dos escritores loucos; ao relatarem tudo isso, traduziam a seu modo Proust e Thomas Wolfe. Conforme observei em outra ocasião (cf. Willer, 2009, p. 52), onde o escritor realista supõe a distinção entre dois mundos, o da realidade e aquele da literatura que, mimeticamente, a descreveria, e o escritor formalista não vê interesse em examinar relações entre o mundo autônomo dos signos e a vida, o escritor visionário confunde os dois planos. As relações entre literatura e vida são múltiplas e complexas; e os beats enriqueceram seu exame e a discussão.

Cabe, em primeira instância, rever o estereótipo de Kerouac como narrador de viagens ou escritor-viajante. Seu período de produção mais intensa, e também de vida mais frenética e aventuresca, entre o início das viagens relatadas em On the road, em 1947, e seu lançamento, em 1957, resultou, além do híbrido e experimental Visões de Cody, em obras memorialísticas tratando da infância e juventude, Visions of Gerard e Maggie Cassidy; por sua vez, desdobramentos, já adotando sua prosa espontânea, o modo menos discursivo de narrar, e apresentando-se como protagonista através da expressão na primeira pessoa, do livro de estreia, The town and the city (Cidade grande, cidade pequena). Criou outros relatos memorialísticos: Maggie Cassidy, sobre sua adolescência, Visões de Gerard, tratando da infância, e Doctor Sax, que também é alegoria ou narrativa fantástica. Em acréscimo, textos expondo sua poética como Old angel midnight e The essentials of spontaneous prose; a prolífica criação de poemas, da qual resultaram livros como Mexico City blues, com seus 320 "choruses", San Francisco blues e Scattered poems, além do Livro de haicais, organizado posteriormente por Regina Weinreich; três obras sobre budismo, The scripture of the golden eternity, Some of the Dharma e Wake up (Despertar), biografia de Buda; as anotações de sonhos de Book of dreams; e uma narrativa caracteristicamente beat, exibindo plenamente a "prosódia bop", Os subterrâneos (The subterraneans), que não é de viagem, pois sua ação se passa no mesmo lugar (em São Francisco, no livro, em Nova York, na realidade).

Pode-se supor que Kerouac tenha se dedicado preferencialmente ao relato de viagens após a publicação de On the road, com Os vagabundos iluminados, Viajante solitário, Anjos da desolação e o sombrio Big sur, relatando a que ponto o levara seu alcoolismo, além de Satori in Paris; e isso, respondendo a uma demanda de público e editores. Retornaria à memorialística às vésperas da morte, em 1967, em seu canto de cisne, Vanity of Duluoz. Retomando anotações de 1947, completou o ciclo de obras que, somadas, comporiam o que ele intitulou de "Saga de Duluoz", declarando que sua obra consistia em "um vasto livro" e fazendo um paralelo com Proust. Vanity of Duluoz é uma obra comovente, das melhores que escreveu (opinião partilhada pelo biógrafo Gerard Nicosia), mostrando como era capaz, em longos períodos, de harmonizar o coloquial, a fala das ruas e uma prosódia clássica, shakespeariana.

Precedendo sua extensa narrativa de estreia, Cidade grande, cidade pequena, Kerouac já havia preenchido inumeráveis laudas, incluindo The sea is my brother (Omar é meu irmão), escrito enquanto navegava; mais Galloway; uma primeira versão de Vanity of Duluoz, que concluiria em 1967, às vésperas de sua morte; o conjunto de textos intitulado Atop the underwood; e And the hippos were boiled in their tanks (Os hipopótamos foram cozidos em seus tanques), em parceria com Burroughs.

Felizmente, cresce uma bibliografia crítica pertinente, examinando Kerouac e os beats. É representada, entre outros exemplos recentes, pelos ensaios ao alcance do leitor brasileiro que precedem a edição de On the road - o manuscrito original. A propósito, esse rolo de papel com a primeira versão de On the road, preparado por ele para não perder tempo trocando folhas na máquina de escrever, seria arrematado em leilão por 2 milhões e 420 mil dólares, recorde na venda de originais literários. O datiloscrito corre o mundo, exposto em museus.

Precedendo os ensaios, vieram biografias, encabeçadas pela importante contribuição de Ann Charters, sua estudiosa e interlocutora. Personagem de si mesmo, com uma vida intensa que se confundiu com a criação literária, Kerouac foi o biografável por excelência. Descerraram cortinas, ao relatar sua intrincada vida sexual e de seu companheiro de viagem Neal Cassady, o Dean Moriarty de On the road, e Cody Pomeroy, de outras narrativas, com Carolyn Cassady, Luanne Henderson e outros parceiros - Ginsberg inclusive. Dessas biografias, Memory babe, de Nicosia, de 1983, continua a mais completa, como o reconhecem outros estudiosos, a exemplo de Barry Miles em Jack Kerouac - King of the beats, aqui publicado. Também teve edição brasileira O livro de Jack, de Lawrence Lee e Barry Gifford, composto por entrevistas e depoimentos sobre Kerouac, originariamente de 1978. Barry Gifford observa, no prefácio, que ele e Lawrence Lee tinham como intuito que o público desfrutasse da leitura de onze romances de Kerouac, muitos deles ignorados na época. Naquele momento, beat e contracultura pareciam coisas do passado, em recesso.

Estudiosos, especialmente Lee e Gifford, tocam neste tópico de especial interesse: o desconhecimento de Kerouac. A mitologia ou mística beat encobriu qualidades propriamente literárias, discerníveis não apenas em On the road, porém em obras que devem ser consideradas as melhores. Em primeiro lugar - e quanto a isso há consenso - Visões de Cody, complexa obra experimental publicada apenas em 1971. Escrita para homenagear Neal Cassady, explora todas as possibilidades da escrita, desde o registro direto, através da transcrição de gravações, rascunhos e notas de On the road, até passagens de prosa poética e trechos afins à escrita automática ou à expressão do fluxo de consciência. Por exemplo, esse a seguir, no qual combina idiomas, inclusive o dialeto joual dos franco-canadenses, o inglês falado, palavras-baú, onomatopeias e glossolalias. É o suposto diálogo entre um padre (ou Deus?) e um coroinha:

SR. Mono-ló-ó-go-lo [...] - eh, weyondom, il faut saccotez dans um moment comme ça? Arrête... parlez.... tu sais, bien tu sais, mon vieux, a tarra ecri um let si tu larrra lasse faire la pauvedit maudite comme quelle eta belle et tabarnac shi shpa capable faire ça dans l'derrière et fre mon o padre falava sozinho num monotéski entonalizante e entonatitaviano la música la musique la belle mais arrête donc il faut arrêtez um moment? E assim por diante sozinho
COROINHA. Ekara-du-rium?
SR. (estalando uma articulação) Paradorum, etaborum, bumbumdorum, etara, metaradelamarea, c'est impossible de setangler jê veux dire se desetangletai stev barrfora condt nocamnho skehe otrara ela jiprafora, echrie e, Frância pare idl algns e fracasst tna dh illnrrglt, mais emeie o ejeu. (Kerouac, 2009, p. 284)

Oralidade é um tópico fundamental para a melhor compreensão de Kerouac. Filho de franco-canadenses, sua língua natal foi o joual, esse dialeto, ou francês macarrônico: língua de transmissão oral, sem uma tradição escrita. Foi aprender o inglês aos 5 anos, ao ingressar na escola. Provavelmente, isso contribuiu para sua sensibilidade auditiva, ligada, por sua vez, à paixão pelo jazz, lembrando que essa modalidade, especialmente o bop, mimetiza instrumentalmente a fala. Mas, conforme observei em outra ocasião (Willer, 2014), Kerouac foi um musical total, com preferências abrangendo desde repertórios eruditos até os mais popularescos; desde Shostakovich (teria resolvido deixar a Universidade de Columbia ouvindo sua Quinta Sinfonia) e Wagner (uma versão de sua decisão de se lançar à aventura teve como fundo musical a "Música do fogo mágico", de Die Walküre) até Vic Damone (acentuando a satisfação por haver descido da montanha e retornado ao mundo em Anjos da desolação).

Um trecho delirante de Visões de Cody, identificável à escrita automática surrealista, leva sua prosódia bop - a escrita mimetizando a expressão jazzística - a extremos; e também é aquele em que há mais referências a autores de sua predileção - Melville, Whitman, Conrad e Joyce -, com alusão ao monólogo de Molly Bloom do fim do Ulisses:

o Rumor das Águas, a Noite, o Vento á Noite e o Toque dos Lábios pelos Campos à Noite, o Monte Leitoso dos Amantes na Grama, Eu e Ela, Montados Um em Cima do Outro na Grama, Debaixo da Macieira, Debaixo das Nuvens que Encobrem a Lua, no Vasto Mundo, a Estrela Úmida na Buceta Dela, o Universo Derretendo as Laterais do Céu, a Sensação de Calor, a Estrela Úmida entre as Coxas Dela, a Enfiada Quente, o Movimento na Grama, o Rataplã das Pernas, as Roupas Quentes, os Mosquitos Sedentos, as Lágrimas, o Tremor, as Mordidas, as Línguas, os Gestos, os Gemidos, o Movimento, o Embalo, a Batida, Ah, Meu Deus, Meu Deus Está Vindo, Está Vindo e Vem, Duas, Três Vezes. (Kerouac, 2009, p. 366)

Aproximações de Kerouac a Joyce nada têm de gratuito: Ulisses é várias vezes citado nos Diários; e Nicosia (1983), além de enxergar em Visões de Cody um jogo entre Ulisses e Finnegan's wake, relata que Joyce era lido em voz alta por Kerouac e amigos para captar sua prosódia. Biógrafos também relatam que, ainda residindo em sua cidade natal, Lowell, Kerouac e seu amigo Sammy Sampas faziam leituras em voz alta de Shakespeare.

A confusão entre o Kerouac histórico, protagonista das narrativas autobiográficas ou apresentadas como tal, e o escritor foi provocada por ele. Sobrepôs o aventureiro ao autor; e mais, a alguém que, desde a adolescência, havia estabelecido um vínculo com a criação literária. Um dos biógrafos de Kerouac, Yves Buin, reportando-se a 1944: "Kerouac lê de tudo, de Goethe a Lautréamont, passando por Freud e Koestler. Sua leitura assídua e recorrente de Shakespeare ensina-lhe o domínio ao qual aspira" (2007, p. 58). Antes, Shelley e Byron, através de Sammy Sampas, seu amigo e interlocutor na cidade natal, Lowell; Ulisses e Finnegan's wake, de Joyce; os autores-viajantes Jack London e Hermann Melville (cf., entre outros, Nicosia, 1983). Mas as influências mais fortes, como se vê por seus diários, são de Thomas Wolfe2, memorialista e viajante, matriz de seu primeiro livro publicado, Cidade pequena, cidade grande: ouvindo a prosa de Wolfe, reconhece-se Kerouac. E Louis Ferdinand Céline, autor de Viagem ao fundo da noite e Morte a crédito, que provocou um abalo pelo modo como trouxe o francês falado para a literatura.

Mas, em primeira instância, Dostoiévski: Baudelaire rezava para Edgar Poe, conforme seus escritos íntimos; Kerouac, em seus diários, registra que, todo dia, antes de começar a escrever, rezava para o autor de Crime e castigo. A relação entre Memórias do subsolo, de Dostoiévski, e Os subterrâneos, de Kerouac, é ilustrativa. Entre suas obras, é das mais lidas; mas pode ser objeto de restrições: encontrou na protagonista "Mardou Fox"3, não uma companheira, mas um personagem e um pretexto para parafrasear, desler ou glosar o relato de Dostoiévski para reviver e reescrever seus argumentos em favor da solidão. Uma frase-chave, no fim de Memórias do subsolo, resume a ética e a cosmovisão de Dostoiévski: "O que é melhor, uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?" (Dostoiévski, 1864/2007, p. 145).

Em On the road, outra paráfrase, quando é contraposta à "felicidade barata" dos que criticam Neal Cassady/ Dean Moriarty ao "sofrimento elevado", através do qual atinge "a alegria esfarrapada e extasiante de simplesmente ser" (Kerouac, 2004, p. 239).

A santidade atribuída a Cassady oferece um exemplo da santificação do pecado - no caso, fundamentada em Dostoiévski, que lançou todas as dúvidas sobre a fronteira ou os limites entre elevação e abjeção. Trata-se de um tema forte em místicas da transgressão, os antinomismos: "A descida ao abismo, para achar ali a vida, é apenas uma outra forma da antiga doutrina antinomística sobre a 'Santidade dos Pecados'", comentou Gershom Scholem, a propósito do sabataísmo e franquismo, heresias judaicas (1996, p. 179; cf. Willer, 2014, p. 87).

Uma variante do fim de Memórias do subsolo, a pergunta sobre a "felicidade barata" ou o "sofrimento elevado", também termina Anjos da desolação. É quando Kerouac dá por encerrada sua vida beat, de viagens, aventuras e festas, despedindo-se dos companheiros, os "anjos da desolação": "Uma tristeza tranquila em casa é o que eu tenho de melhor para oferecer ao mundo, no fim, e assim eu me despedi dos meus Anjos da Desolação. Uma vida nova para mim" (Kerouac, 2009, p. 359). A "tristeza tranquila" se opõe à "felicidade barata" rejeitada por Dostoiévski.

Tomada como conjunto, a obra de Kerouac é uma sucessão de paradoxos e contradições, se cotejada com seu autor "real", histórico. Um exemplo: a permanência em 1955, durante seis semanas, em uma montanha, o Desolation Peak, em busca de uma ascese búdica e uma remissão de seu alcoolismo. No fim de Vagabundos iluminados, uma experiência de êxtase, celebrada em páginas de prosa poética. No início de Anjos da desolação, narrativa extensa sobre sua despedida da geração beat, é horror, solidão insuportável agravada pela abstinência de bebida alcoólica. Biógrafos evidenciam que a versão da história de vida de Kerouac fiel é a dessa segunda narrativa.

A criação de On the road faz parte dessa mitografia. Conforme a versão corrente, tendo aquele rolo com um texto contínuo sido rejeitado imediatamente pelo editor de Cidade pequena, cidade grande, foram necessários mais seis anos e inúmeras revisões, impostas por editores, para que o livro saísse. O próprio Kerouac propalou essa versão em entrevistas. Cometeu um de seus deslizes éticos ao responsabilizar Malcolm Cowley, um intelectual notável e principal responsável pelo livro ter saído, pelas alterações. A verdade é outra: conforme um excelente artigo de Matt Theado (em Holladay & Holton, 2009), entre outras fontes, reescrever tudo foi decisão do próprio Kerouac. Foi sua iniciativa dividir o livro em partes e introduzir parágrafos naquele texto contínuo, bem como eliminar passagens supérfluas - por exemplo, sua tentativa de reconciliação com a ex-esposa Edie Parker -, além de adicionar algo: as revisões coincidiram com sua imersão no budismo, resultando na boa prosa poética do trecho em que passa fome em São Francisco e tem uma percepção do Universo:

E por um instante alcancei o estágio do êxtase que sempre quis atingir, que é a passagem completa através do tempo cronológico num mergulhar em direção às sombras intemporais, e iluminação na completa desolação do reino mortal e a sensação da morte mordiscando meus calcanhares e me impelindo para frente como um fantasma perseguindo seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em busca de uma tábua de salvação de onde todos os anjos alçaram voo em direção ao vácuo sagrado do vazio primordial, o fulgor potente e inconcebível reluzindo na radiante Essência da Mente, incontáveis terras-lótus desabrochando na mágica tepidez do céu. [...] Percebi ter morrido e renascido incontáveis vezes, mas simplesmente não me lembrava justamente por que as transições da vida para a morte e de volta à vida são tão fantasmagoricamente fáceis, uma ação mágica para o nada, como adormecer e despertar milhões de vezes na profunda ignorância, e em completa naturalidade. Compreendi que somente devido à estabilidade da Mente essencial é que essas ondulações de nascimento e morte aconteciam, como se fosse a ação do vento sobre uma lâmina de água pura e serena como um espelho. [...] Pensei que ia morrer naquele instante. Mas não morri e caminhei uns sete quilômetros, catei dez longas baganas e as levei para o quarto de Marylou no hotel e derramei os restos de tabaco no meu velho cachimbo a o acendi. (Kerouac, 2004, p. 217)

Na primeira versão de On the road, aquela recuperada do manuscrito original (Kerouac, 2008), o mesmo episódio é relatado, até com mais detalhes do relacionamento com Lou Anne; mas sem o ciclo das reencarnações e a "radiante Essência da Mente", com seus ecos de neoplatonismo, pitagorismo e budismo. Além de acréscimos, como esse aqui transcrito, houve cortes, inclusive de cenas de sexo, além da substituição dos personagens reais por pseudônimos. Devem-se à maior aproximação de Kerouac ao budismo no período durante o qual escreveu Some of the Dharma, The scripture of the golden eternity e Despertar, a biografia de Buda, além da quantidade de haicais. E a história da criação de On the road ainda inclui sua preparação: uma quantidade de "prototextos", esboços e rascunhos que seriam incorporados com maiores ou menores alterações ao livro escrito em três semanas de trabalho contínuo e frenético, conforme bem levantado, entre outros, por Howard Cunnell, organizador da edição do manuscrito original (Kerouac, 2008).

Enfim, cada obra de Kerouac admite um enredo paralelo sobre sua criação. Uma das melhores é Doctor Sax, rememoração de infância e reconstituição da enchente do rio Merrimack, em Lowell, que destruiu a gráfica de seu pai, arruinando-o. Em um livro curto, com capítulos breves, utiliza todos os recursos da prosa, desde o modo mais documental, jornalístico, ao apresentar flashes da inundação, ao mais delirante. Cruza esse relato com uma lenda, do confronto de Sax, um mago, com a serpente que vive no interior da Terra e representa o mal. Na abertura, sustenta que o rio Merrimack nasce nos Andes, junto a outros formadores do Amazonas, e segue subterraneamente até o Leste dos Estados Unidos. Doctor Sax teria sido escrito no México, durante uma estadia na casa de William Burroughs em 1952; como o lugar era movimentado, com pessoas chegando constantemente, Kerouac trancou-se no banheiro e sentou-se na privada com a máquina de escrever no colo (cf. Miles, 2014). Mas toda narrativa de Kerouac comporta várias versões sobre sua criação: havia feito anotações para Doctor Sax na década de 1940, concomitantes aos seus diários da época; e, decidido a corrigir a imagem do beat itinerante, substituindo-a pelo memorialista, reescreveu-o em 1958. Lançado, o livro foi massacrado pela crítica.

A súmula de paradoxos e contradições está em Some of the Dharma,4 um calhamaço publicado na íntegra apenas em 1999, com uma diagramação complexa, replicando seu modo de fazer anotações. Escrito para "converter a humanidade ao budismo", reúne o melhor e o pior de Kerouac. Enxundioso, repete e repisa ensinamentos do budismo tradicional, o Terawada - achava o zen intelectualizado demais, embora também houvesse criado uma quantidade de haicais, modalidade diretamente relacionada a essa corrente do budismo adotada no Japão. Insistindo no caráter ilusório do real, expõe sua misoginia, sentindo-se perseguido pela ex-esposa, Joan Hawerthy (com quem tivera uma filha, Jan, a quem se recusara a reconhecer como tal), e apontando mulheres e luxúria como a fonte de todos os males. Isso, além da homofobia, com observações depreciativas sobre Ginsberg, que tanto estimulara sua criação literária, retratado como agente do Mal. Tudo isso, de permeio à bela prosa poética sobre a morte de seu gato, esboços de narrativas sem relação imediata com o budismo, o relato de peripécias durante mais uma viagem ao México, um estudo comparativo mostrando o James Joyce leitor de William Shakespeare, cotejando passagens de Finnegan's wake e Henrique v, além de comentar bastante o discurso da Batalha de Azincourt. E, ainda, os relatos da criação, concomitante, da mais católica entre suas obras, Visões de Gerard, sobre seu irmão mais velho, morto aos 7 anos, discutindo, à luz da teologia, como era possível alguém tão bom ter uma morte prematura e dolorosa (de tuberculose óssea). Sua conclusão é jansenista, ou de um gnosticismo pessimista, quando diz que Deus existe para ser adorado ou cultuado pela humanidade, mas está ausente do mundo; nada devemos esperar Dele (1994b).

Como interpretar tais paradoxos? Já foi dito por vários comentaristas que On the road, em especial, e a obra de Kerouac, como um todo, correspondem a uma "busca religiosa". Cunnell observou: "Sabemos que o romance [On the road] é bem mais uma busca espiritual do que um guia de como se tornar um hips ter" (Kerouac, 2008, p. 12). Nicosia fez comentários análogos referindo-se a On the road, mas que valem para toda a sua obra:

Kerouac nunca nos deixa esquecer que seus personagens estão em uma busca religiosa. Embora utilize a terminologia litúrgica padrão, logo descobrimos que está fazendo saltos associativos em domínios além de qualquer igreja instituída.5 (Nicosia, 1983, p. 347)

Para não deixar dúvidas, na autoapresentação com que abriu Viajante solitário, declarou: "Na verdade, não sou um beat, mas, sim, um estranho e solitário católico, louco e místico" (Kerouac, 2006a, p. 10). Mas essa religiosidade de Kerouac apresenta tamanhas contradições que se acaba por acreditar em uma substituição de credos. No lugar de qualquer uma das religiões que adotou, ou de um misticismo neoplatônico em sua versão mais desenfreada, uma religião da literatura levada a extremos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
CLAUDIO WILLER
Alameda Barão de Limeira, 1348
01202-002 - São Paulo-SP
cjwiller@uol.com.br

Recebido 16.06.2018
Aceito 29.06.2018

 

 

1 O depoimento de Kesey, autor de Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest), está registrado no documentário The magic trip, sobre a alucinada viagem de usuários de lsd atravessando os Estados Unidos em 1965.
2 O autor de romances memorialísticos como Look homeward, Angel, You can't go home again e, disponível em português, O menino perdido (The lost boy), contos - não confundir com Tom Wolfe, o expoente do new journalism.
3 Alene Lee, sabe-se hoje.
4 Está para sair uma edição brasileira pela L&PM, tradução minha.
5 Denominational church, o termo utilizado por Nicosia, que traduzi como "igreja instituída".

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