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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTALIBERDADE, DESTINO

 

"Escravos cardíacos das estrelas": liberdade e destino como verdade e ficção em Fernando Pessoa1

 

"Cardiac slaves of the stars": freedom and fate as truth and fiction in Fernando Pessoa

 

 

Mario Helio Gomes de Lima

Jornalista, escritor, historiador e antropólogo. Doutor em antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha) e professor-visitante nessa mesma instituição. Autor de Brasil profundo – Espanha negra; O Brasil de Gilberto Freyre; Cícero Dias – uma vida pela pintura; entre outros livros

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pequeno ensaio sobre o tema do destino e da liberdade na vida e na obra do poeta português Fernando Pessoa. Aspectos biográficos, como as escusas para o fim de um namoro e a construção da ideia de fado e de livre-arbítrio na vida do autor e na criação dos seus personagens literários, chamados de heterônimos, sua dedicação à astrologia e a função da fabulação no autor, que encontrava no cigarro e no fingimento a "libertação de todos os pensamentos".

Palavras-chave: Liberdade. Destino. Verdade. Ficção. Poesia.


SUMMARY

A short essay on the theme of destiny and freedom in the life and work of the poet Fernando Pessoa. Biographical aspects, such as the excuses for ending a relationship and the construction of the idea of fado and free will in the life of the author and the creation of his literary characters called heteronyms, his dedication to astrology and the function of fable in the author who I would find in the cigarette and in the pretense the "liberation of all thoughts".

Keywords: Destiny. Truth. Fiction. Poetry.


 

 

No dia 29 de novembro de 1920, um jovem português de 32 anos escreveu no começo da sua carta de rompimento de um namoro:

Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem. (Pessoa, 1978, p. 36)

E no fim da mensagem:

Que isto de "outras afeições" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam. Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha. (ibidem, p. 36)

Quem escreveu essa carta citada foi o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) à única namorada que teve: Ophelia Queiroz. A correspondência entre eles foi publicada mais de uma vez.

Chama a atenção o uso da palavra destino, no início e no fecho da carta de Fernando Pessoa a Ophelia Queiroz. Com d maiúsculo, nas primeiras menções, e com um d minúsculo na referência final. Em ambos os casos, porém, está evidente o peso das emoções reprimidas pela razão, daí a forma alegórica, indireta que assume a redação da carta.

Há também nas duas passagens citadas uma curiosa operação de simetria elaborada pelo poeta. No início, o Destino (confundido deliberadamente com uma Pessoa) recebe a culpa e se torna o responsável por ambos - Pessoa e Ophelia - seguirem outros caminhos, isto é, cada um ao seu destino. No fim, o destino está associado a uma Lei implacável, porque em si mesmo o Destino é a Lei, sem tribunal. Neste não há réus, nem advogados, nem juiz, porque o veredicto está dado previamente.

Quem se ocupar de ler as cartas que o poeta enviou à namorada notará que o Destino não é invocado apenas nesse documento citado. Um artifício usado por ele na perturbação do namoro é atribuir o fracasso à intervenção de uma terceira Pessoa. Ora esse Outro se chama Álvaro de Campo, ora, reiteradamente, Destino. O Destino é a alegoria mais poderosa para esse recurso de não assumir a responsabilidade completa pela relação.

Não deixa de ser algo sintomático que o eleito para participar do jogo amoroso de Pessoa e Ophelia seja aquela personagem que o seu autor definiu como o homossexual entre os heterônimos. É também ele o mais impulsivo, deprimido, histérico e "irresponsável" entre os que compõem o grupo de dramatis personae que Pessoa denominava Drama em Gente. Álvaro de Campos, engenheiro, se dizia técnico, mas, avisava, tendo a técnica só dentro da técnica; fora disso, era "doido, e com todo o direito a sê-lo".

Na carta imediatamente anterior à do rompimento do namoro, escrita poucas semanas antes do fim daquela única relação amorosa conhecida e bem documentada, Pessoa atribui não a si, mas ao Destino, a culpa de não tratar bem o seu "bebezinho".

As alcunhas infantis que usa para se dirigir à namorada têm um significado que ultrapassa a puerilidade. A infância foi, para Pessoa, um grande refúgio, talvez o símbolo de um Paraíso que perdeu sem ter sequer vivido nele. Num poema em que compara o amor a um prato típico da gastronomia do Porto, ele chegou a afirmar que na infância de todas as pessoas há um Jardim, onde basta brincar para ser dono dele.

O Jardim é um símbolo do Paraíso. Especialmente aquele Éden em que Adão e Eva, tendo vivido em liberdade plena, exerceram o livre-arbítrio. Como consequência direta dessa escolha, o primeiro casal bíblico trocou o Destino idílico pela Liberdade.

Em uma carta que Fernando Pessoa envia a Ophelia, seis meses antes do fim do namoro, ele se reporta duplamente ao Destino. Em ambos os casos, como um elemento perturbador. Especialmente na última citação, mais rica de significados, inclusive porque remete de modo direto à personificação do destino como "Gente", que é mencionada na carta de rompimento. Não existe dessa vez nenhum "se" a objetar sobre o aspecto corporificado do Destino, porque Ele está de todo antropomorfizado:

O Destino é uma espécie de pessoa, e deixa de nos ralar se mostrarmos que nos não importamos com o que ele nos faz. Por isso tu deves ter a força de vontade de só pensar isto: gosto do Fernando, não há mais nada. (1978, p. 21)

É notável o contraste bem-humorado dessa personificação com a outra, do posterior Destino impiedoso. A ideia do Destino como uma pessoa (ou "gente") segue, no método, a disposição pagã dos antigos, pela qual os deuses não são desprovidos de paixão. Muitas vezes eles agem como os seres humanos, mas não toleram o contrário: todas as vezes que os humanos tentam agir como se fossem deuses são punidos, porque incorrem na hybris.

Há, no entanto, um aspecto mais sutil nessa personificação do "Destino como uma espécie de pessoa": acrescenta-se o véu, o encobrimento, o disfarce, mas também a responsabilidade calcada numa relação de causa e efeito a cada uma das decisões humanas. Ao assumir-se como Destino, alguém aceita duplamente o seu destino: de obedecer às leis que desconhece - no todo ou em parte - e de criar as suas próprias leis, consciente de que o livre-arbítrio nunca é absoluto. Ao afirmar que o Destino deixa de incomodar quando as pessoas não se importam com Ele, Fernando Pessoa finge ser dotado daquela imperturbabilidade tão característica dos filósofos estoicos que exerceram poderosa influência na sua cosmovisão.

Não deixemos escapar essa outra alegoria posta na carta de ruptura: "O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas" (Pessoa, 1978, p. 36)

A consciência do trabalho destruidor do Tempo (alegorizado como entidade pelo emprego da maiúscula) espelha o modo como o poeta se refere à morte. Um exemplo paradigmático é o poema "Tabacaria". O verso imediatamente anterior àquele em que o Destino aparece como a alegoria de um condutor de carroça é este: "Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens" (Pessoa, 1965, p. 362).

Todos os heterônimos de Fernando Pessoa se ocupam do Destino. Ainda que não existam diferenças muito pronunciadas na forma de cada um abordar o tema, vale a pena observar as gradações e determinados pormenores que escapam a quem faça uma leitura não especializada.

Um leitor apressado ou superficial da obra de Fernando Pessoa poderia dizer que a ideia do Destino não se aplica a Bernardo Soares e menos ainda a Alberto Caeiro. E em seu conhecimento ligeiro acrescentar que a noção de destino apresentada para Fernando Pessoa ortônimo não caberia para os heterônimos e, em especial, ao Guardador de Rebanhos dos seus próprios pensamentos.

O precário leitor pode até ir mais além: ousar ser taxativo e afirmar que não se encontra nem mesmo a palavra destino nos poemas de Caeiro. Basta ler sua obra inteira, e não apenas de citações indiretas ou apenas trechos específicos, para ver o Destino manifesto em Caeiro, opressivo ou libertador por submeter-se às "leis" implacáveis da Natureza, como nos demais. Provas desta afirmação? Seus próprios versos. Eis aqui alguns deles, e de modo notável a presença viva do Destino e da sua aceitação até como redundante Fatalidade, no poema xlviii, de O guardador de rebanhos (os grifos são do autor deste artigo):

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Arvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.

E mais:

Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!

Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água
é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
(1965, p. 227)

De modo ainda mais explícito e contundente o peso esmagador do Destino, que Caeiro aceita e se submete a Ele. O Destino é, nas suas palavras, "o natural inevitável", que chega a qualificar de "facto sublimemente científico", e também se refere a "leis" (lembra-se o leitor da carta de Pessoa a Ophelia e a referência a Lei e Leis?) e a uma "fatalidade sublime" (nas citações a seguir, novamente, os grifos são do autor do artigo):

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse [agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das coisas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno -
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar -
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.
Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime.
(Pessoa, 1965, p. 240)

O primeiro crítico a tentar perscrutar o Destino de e em Alberto Caeiro foi ninguém menos que outro heterônimo, ou seja, o próprio Fernando Pessoa, sob a máscara de Ricardo Reis, conforme diz no prefácio que rascunhou para suas obras: "Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa de prefaciar estes livros, em fazer um largo estudo, crítico e excursivo, sobre a obra de Caeiro e a sua natureza e destino fatal" (Pessoa, 1996, p. 329).

No caso de Bernardo Soares, quem poderia negar o peso do Destino em sua "vida" e em seus escritos? Apenas quem não o tivesse lido realmente que se contentasse com a empáfia do seu solipsismo ledor. Bastaria um trecho para comprovar a presença do destino como imanência, e não apenas como transcendência nele, mas há outros a mencionar. Comece-se por ler isto (os grifos, como antes, são do autor do artigo):

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. [...]

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.

Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim, passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão estes breves comentários que faço a propósito dela. Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.

Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre. acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.
(Pessoa, 1982, p. 146)

Negar a presença do Destino em Caeiro e Soares é não compreender bem o jogo heteronímico de Pessoa. No que diz respeito à antropomorfização, saber que Caeiro é crítico quanto a isso, a ponto de fazer troça, não representa uma compreensão das suas camadas profundas, inclusive o mecanismo de ironia que perpassa toda a obra pessoana. Implica em conhecer mais de "troça" que de ironia e ironicamente não saber intercambiá-las.

Ricardo Reis, por vezes, mostra-se estoico, por vezes epicurista, quando comenta o Destino e o livre-arbítrio. Sendo médico por profissão, mas poeta imitador dos clássicos gregos e romanos, expressa a consciência da vida e da morte em versos medidos. Sua palavra-chave é "contenção".

Se a localização "geográfica", ainda que inventada, mental, de Reis - poeta da cidade - diz algo sobre si, também dirá dos outros dois heterônimos, que formam uma espécie de Trindade Pagã inventada por Pessoa. Se em Reis a presença de Horácio, Virgílio e outros autores arcaicos é decisiva para a elaboração de um corpus discursivo, em Alberto Caeiro e Álvaro de Campos será o moderno Walt Whitman que cumprirá esse mesmo papel.

Se observarmos com atenção ambos os heterônimos, poderemos afirmar, com alguma ironia, que é como se Pessoa tivesse encontrado um Whitman xifópago e, ao partir os dois, pariu os seus dois heterônimos: o negativo, mas ativo, e de emoção desenfreada, chamou-se Álvaro de Campos. O outro, positivo, passivo, e cuja emoção deriva da curiosa amálgama do sensorial e intelectual, foi batizado como Alberto Caeiro. Campos é um cidadão do mundo, engenheiro, que sabe "inglês, perfeitamente". Caeiro é um camponês de aldeia, de poucas letras.

Ao pensarmos em irmãos xifópagos como uma possível materialização alegórica de algo, podemos nos reportar a Leonardo Da Vinci:

El placer y el dolor se nos presentan como dos hermanos gemelos. Nunca se da el uno sin el otro. Parece como si estuvieran unidos por la espalda, porque son contrarios entre sí. [...] Ambos, placer y dolor, coexisten en un mismo cuerpo, porque tienen el mismo origen: El origen del placer es el trabajo con dolor; los orígenes del dolor son los vanos y caprichosos placeres. (Vinci, 1999, pp. 183-184)

Não seria exagerado ver no Destino e na Liberdade um pouco desses atributos. Cumprem os seres humanos os desígnios dos deuses? São livres para tecer o próprio destino? São os deuses totalmente livres? Os antigos gregos entendiam que os próprios deuses estavam submetidos ao Destino, mas, no mais, era plena sua liberdade. No caso dos seres humanos, os limites seriam muito maiores. Fernando Pessoa, porém, pela voz de Ricardo Reis, propõe que os seres humanos são os imitadores privilegiados dos deuses, dessa forma:

Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
(Pessoa, 1946, p. 40)

Noutro poema, também de Ricardo Reis, há uma elaboração mais larga e rica:

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.

Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
(Pessoa, 1946, p. 68)

Noutros poemas, porém, ele se expressa menos serenamente: confessa a Lídia o medo que tem do Destino e de que um mínimo movimento ponha em perigo sua vida e compara o destino a um fruto, que deperece, e mesmo nunca sendo colhido, cai: "Igual é o fado, quer o procuremos,/ Quer o esperemos. Sorte/ Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa/ Forma alheio e invencível" (Pessoa, 1946, p. 85).

Em outra ode, apenas efetuando uma troca de fruto por flor, retoma sua alegoria vegetal: "Flores que colho, ou deixo,/ Vosso destino é o mesmo" (1946, p. 86). Noutro poema, o fatalismo e a indiferença de Ricardo Reis terminam por dialogar simultaneamente com Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Caeiro, como se sabe, era o crítico do pensamento. Para ele o mergulho na Natureza era libertador. Se há uma pregação nos seus versos é a da inconsciência e da alienação deliberadas, para viver em paz nos campos.

Campos, por outro lado, nada tem a ver com o seu sobrenome. Não é do campo, é das cidades - da cultura, da indústria, dos motores, da energia estridente. Mas herdou do seu "mestre" Caeiro a convicção de que as sensações valem mais. No entanto não deseja vivenciá-las como os filósofos estoicos ou epicuristas e, sim, como um homem moderno. Se nele há muito de Whitman, há também algo de Rimbaud, o do "desregramento de todos os sentidos". Por isso é que reivindica o "sentir tudo de todas as maneiras".

No "drama em gente" que elaborou para os seus heterônimos - todos projeções de si mesmo -, Pessoa levou-os a dialogar consigo e entre si, ora de maneira deliberada, ora de maneira inconsciente, que parece ser o caso dos versos que serão citados a seguir, que são de Reis, mas contêm elementos que podem ser reportados ao corpus ideológico de Caeiro e de Campos:

Melhor destino que o de conhecer-se
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Se não houver em mim poder que vença
As Parcas três e as moles do futuro,
Já me deem os deuses
O poder de sabê-lo;
(Pessoa, 1946, p. 88)

As figuras das Parcas (romanização do grego Moiras) aparecem em diversos outros poemas de Pessoa, especialmente, e por motivos óbvios, em Ricardo Reis. Elas são a representação paradigmática do Destino. Outros nomes para elas são Fatae (daí fado, fatal, fatalidade), Laimas (para os bálticos) e Nornas (para os nórdicos). São personificações complexas, mas podemos nos limitar às suas características mais populares, que são, aliás, as empregadas pelo poeta: são três deusas invencíveis, e cada uma com o seu atributo.

Cloto (para os romanos era Nona), invocada no mês de gestação para garantir a vida do que nascia, pois, entendendo-se a vida como um cordão, era ela quem o fiava. Láquesis (entre os romanos chamava-se Décima) media com sua vara qual tamanho tinha o fio daquela vida. O que dizia respeito ao futuro e aos matrimônios estava bem medido por ela. Por fim, literalmente, Átropos. Se Cloto quer dizer fiandeira e Láquesis a que lança as sortes, Átropos significa inevitável, inexorável ou, mais simplesmente, "que não gira". Era quem cortava o fio da vida, portanto decidia como morria cada pessoa. Era a Parca por excelência, entre os romanos, e tinha um nome um tanto quanto óbvio: Morta.

Há uma excelente explicação apresentada por Freud sobre esses mitos no texto sobre os escrínios, de 1913 (usa-se neste artigo a versão espanhola El motivo de la elección del cofre). Freud informa que as Horas eram, em sua origem, divindades das águas celestiais. Nos países mediterrâneos elas foram transformadas em divindades da vegetação, pois, sem chuva, o solo fica estéril. Não por acaso, passaram a ser associadas às estações, que, conforme o mesmo autor, entre os povos antigos só distinguiam no começo três estações: inverno, primavera e verão. O acréscimo do outono somente aconteceria com a consolidação da cultura greco-romana, e a arte passou a representar quatro horas.

Y conservaron las Horas su referencia al tiempo; más tarde vigilaron las partes del día, corno al comienzo presidieron las del ano; por último, su nombre se redujo a designar las horas. […] Las Horas se convirtieron en las guardianas de la ley natural y del orden sagrado por cuya virtud lo igual se repite en la naturaleza con inmutable secuencia. Esta manera de discernir la naturaleza repercutió sobre la concepción de la vida humana. El mito de la naturaleza se mudó en mito de la humanidad; las diosas de las estaciones devinieron divinidades del destino. Pero este aspecto de las Horas sólo alcanzó expresión en las Moiras, tan inexorables guardianas del orden en la vida humana como lo eran las Horas de la legalidad natural. El rigor inapelable de la ley, la referencia a la muerte y el sepultamiento, tenían que evitarse en las amables figuras de las Horas; en lo sucesivo se imprimieron sobre las Moiras, como si el ser humano sólo sintiera toda la seriedad de la ley natural cuando debe subordinarle su persona propia. (1913/1991, pp. 313-314)

Mais do que somente as Parcas, apresentam-se amiúde na obra de Pessoa o destino como tecido e a vida como fio, enredo e mecanismo. O destino pode aparecer sob a forma de uma aranha que cuida de promover um antipensamento. Não pensar é um dos seus topoi, como a loucura, um dos signos de felicidade, pelo regresso à Natureza, ainda que não represente apenas a Mãe apaziguadora. No Destino é parte, no entanto, da trama do não pensamento, que pode servir de evasão ou contentamento, reiteradamente evocado pelo poeta, sem que jamais encontre a libertação completa. O destino, que é tecido, têxtil, texto, triunfa sobre o livre-arbítrio da recusa. A inconsciência ou não autoconsciência completa da infância serve como escape, mas apenas isto:

A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.
(Pessoa, 1955, p. 82)

Fios, engrenagens, mecanismos, urdiduras de vários tipos são metáforas que Fernando Pessoa emprega, desde o "comboio de corda", que simboliza o coração, aos fios do Eu referidos por Álvaro de Campos: "todos os Eu que estive aqui ou estiveram,/ Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória" (Pessoa, 1944, p. 249).

Campos é aquele heterônimo que não se contenta em ser escravo do Destino, quer também ser cativo da Liberdade. Inclusive porque a Liberdade também implica em destinação. A despeito da angústia, das muitas crises de depressão e desespero que expressa nos seus poemas, sente-se vocacionado para a liberdade. Como lográ-la? Por exacerbação do eu e de sua perda na multidão, pois, no fundo, sabe que o Destino humano, tragicamente, não é a Liberdade, mas, por paradoxal que pareça e seja, a escravidão ao Destino, como na longa meditação-desabafo em homenagem ao seu mestre Caeiro:

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.
(Pessoa, 1944, p. 31)

A verdade é que a libertação à maneira de um Caeiro apolíneo é insuficiente para ele. Aspira a uma transfiguração: Whitman, dionisíaco, e assim o proclama: "Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!/ Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade" (Pessoa, 1965, p. 337).

Em sua "Saudação a Walt Whitman", ele se exalta, é mais do que é, e deseja mais, mais até do que suportaria ser:

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.
Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como
as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo
dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!
(Pessoa, 1965, p. 339)

Se Cesário Verde, o mestre de Caeiro, "vivia preso em liberdade pela cidade", não é o que acontece com Campos. Para ele, a cidade representa uma libertação, como confessa num poema escrito um mês antes da morte de Fernando Pessoa: "Regresso à cidade como à liberdade" (Pessoa, 1965, p. 413).

Num jogo de estereótipos, que não poucas vezes guardam o seu quê de verdade, Portugal é o país da Saudade e da Melancolia, e Fernando Pessoa, seu maior poeta do século XX, explicita bem em sua obra esse caráter sentimental da cultura lusitana. É quase um lugar-comum referir que o fado - o ritmo nacional por excelência de Portugal - é sinônimo da fatalidade, do destino. A música encena sua dramática aceitação.

Mas teria sido Fernando Pessoa realmente um fatalista? Numa primeira abordagem parece que sim. Sua obra está repleta de provas nesse sentido. E numa quantidade escassa aparece a ideia de livre-arbítrio. No entanto ter consciência de ser destinado e aceitar os ditames da Natureza não implica em ser passivo.

O poeta tirou proveito de que houvesse um destino para as máscaras no seu próprio apelido. Pessoa provém de Persona, o que, para alguns, já indicaria, por uma cabala qualquer, a criação de personalidades literárias e os famosos heterônimos. Como se ele quisesse dar sentido substantivo a um gosto bem português para o uso de pseudônimos, resultado da plasticidade e adaptabilidade de uma nação de marinheiros e comerciantes. E também o haver nascido na transição de uma época cultural em que a criação de múltiplas identidades e personalidades significa, contraditoriamente, a fratura e a unidade de tudo o que é moderno.

Não se limita a questão do Destino e da Liberdade em Pessoa a sua reconstrução em múltiplas pessoas e máscaras. O destino é mais do que uma fatalidade de ser, é a possibilidade de entender o seu sentido, sua lógica, sua Missão. Nele, isso é um jogo - e nada mais livre que um jogo -, uma construção mental. Não se contentou, porém, de existir apenas em termos reconhecidamente racionais, interessou-se pelo esoterismo, misticismo, astrologia. Neste último campo chegou a um nível que os especialistas o consideram um profissional.

Não contente com fazer o próprio horóscopo, elaborou os dos seus heterônimos, de outros escritores e até de Portugal. Como se o famoso "conhece-te" oracular não lhe bastasse em termos tangíveis, buscou ser ele também uma fonte oracular. Médium ou intermédio da astrologia. Na busca por entender o seu destino, quis chegar a prever a própria morte. Pode-se mesmo dizer que numa lista de possíveis obsessões de Pessoa, houve duas muito marcantes: a da loucura e a da morte. E este poema é somente um dos muitos exemplos:

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.
(Pessoa, 1965, p. 192)

Nele, o gênio se assume como predestinação. Os antigos usavam a expressão "o poeta não se faz, nasce". Pessoa ia um grau a mais disso: "Há um poeta em mim que Deus me disse...". A consciência quanto à importância e qualidade de sua obra - como fruto do Destino - fez com que buscasse o máximo possível de liberdade para escrevê-la. Não quis obrigações familiares nem trabalho do tipo que lhe roubasse qualquer hora preciosa. Mas tão ambiciosa obra precisava mais do que de talento, gênio e dedicação quase exclusiva. Demandava o máximo de tempo. Por causa disso, obcecado com a preocupação de não poder concluir o seu Trabalho, a sua Missão, o seu Destino, o poeta foi ficando mais nervoso e atento à morte, ano após ano.

Não há nenhuma abordagem que tome como assunto grave o verdadeiro sentido de liberdade e destino sem uma referência direta à morte e às limitações humanas, incluindo o cárcere. Haja o que houver, faça-se o que se faça, seja como for, só há um destino para os que vivem: morrer. Independentemente de significar uma continuação ou um ponto final. Tudo o que acontece entre o nascimento e a morte é resultado de diversas condições e de tal modo complexas que não seria correto chamar de apenas destino.

Como negar que o destino de uma pessoa começa a ser tecido mesmo antes de ela nascer? É resultado de decisões que ela não tomou, começando pela decisão de ser concebida. Não se dará conta logo ao abrir os olhos que várias outras vidas cruzarão o seu caminho, e as influências e decisões de outrem irão interferir nas suas. Várias coisas do que faz ou deixa de fazer pode adiar ou apressar a chegada da Indesejada das Gentes. Tudo é liberdade e tudo é destino, sobrepondo-se. O Destino é mais do que o d do dna e outros códigos, é a condição material do humano. Em vez de ser escrito na parede externa, como na lenda de Baltasar e Daniel, os dias de cada um estão pesados, medidos e inscritos dentro, em cada uma das letras que compõem cada corpo, tenham os nomes de células ou quaisquer outros.

Enquanto não chega o Destino, o único assegurado ao ser humano, que é a morte, existe plena liberdade para quase tudo. Embora ninguém saiba seriamente o que significa sem haver passado por uma prisão, sem haver sido impedido de exercer sua vontade em algum momento. Se para muitos o destino é absoluto e a liberdade, relativa, ambos têm a ver com a decisão sobre a vida e a morte. Por isso o exercício de pensar é um sintoma da liberdade, que não é intrínseca, é uma conquista.

Por essas e outras razões, um filósofo como Montaigne afirmou que filosofar é aprender a morrer. A morte é também a única liberdade plena. Livrar-se do corpo e das penas, do passado, do presente e do futuro. Liberar-se da vida e suas responsabilidades. O único problema filosófico sério é o suicídio, afirmou Camus (1942/1983). Sobre o absurdo por excelência que é o mito de Sísifo. Quem foi Sísifo? Justamente o personagem da mitologia grega em quem a hybris de vencer a morte, ou ao menos tentar enfrentá-la, resultou em castigo terrível, que combina vida eterna com apenas a liberdade de ir-e-vir e vir-e-ir.

É Sísifo livre para deixar de levar a pedra? É preciso imaginar Sísifo feliz, especulou Camus, numa passagem do seu livro O mito de Sísifo. Porque, segundo ele, Sísifo revela uma fidelidade superior que nega aos deuses e levanta as rochas, e cada um dos grãos da montanha forma por si só um mundo, e o esforço para chegar ao cume serve para dar plenitude ao coração. Esse cume para Pessoa é a Natureza, o instinto perdido. Na Natureza ele encontra o destino e a liberdade ao mesmo tempo.

Uma das grandes representações disso está num poema de Alberto Caeiro, aquele que retrata o seu encontro com o menino Jesus. Tem-se aí um duplo exercício de libertação: por intermédio da infância e de uma visão pagã em harmonia com a Natureza. Paradoxalmente, ser livre é, assim, entregar-se ao destino. Esse Jesus pagão passeia de mãos dadas com Alberto Caeiro e com "tudo o que existe".

Sísifo somos todos nós. Ainda que a pedra não seja mais que pedra. Seja como for, quando falamos de destino e de liberdade, é necessário pensar no indivíduo e na espécie, não se trata de uma questão pessoal. E se o destino nunca presenteou os humanos com uma liberdade plena, tudo isso só pode ser mais bem compreendido no contexto de certos limites, que conduzem o homem para a fronteira do humano, seja quando pensa que é deus, seja quando cria máquinas, seja quando cuida de rebaixar a liberdade do outro. Uma passagem emblemática a esse respeito está na obra Vida e destino, de Vassili Grossman: "As pessoas não se entendiam naquela Babel, mas estavam ligadas pelo mesmo destino. Peritos em física molecular ou em manuscritos antigos deitavam-se ao lado de camponeses italianos e pastores croatas que não sabiam assinar o próprio nome" (2007, p. 23).

No poema mais famoso de Fernando Pessoa, "Tabacaria", o Destino é uma alegoria da morte tão nítida que parece ter algo da substância de uma pintura de Bosch ou de certas gravuras das danças macabras de antigamente: "Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada" (1965, p. 362).

Há duas menções diretas ao destino nesse poema, mas ninguém se engane com a econômica explicitação do Fado, pois o poema é sobre o destino não só nessas menções, mas no seu todo. A segunda citação é ainda mais interessante do que a primeira:

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos
os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência
de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder,
continuarei fumando.
(Pessoa, 1965, p. 366)

O símbolo da fumaça do cigarro encontra-se com o do nevoeiro que aponta para o Encoberto, D. Sebastião, e tudo o que diz respeito a um certo Portugal que tem um Destino, uma Missão, como o próprio poeta, e isso ele expressa em diversos textos em prosa e verso - especialmente em Mensagem. Seria interessante explicar a correlação lógica entre as palavras Mensagem e Missão, ambas de fundo religioso, mas isso escapa aos objetivos deste artigo. Basta dizer que o poeta quis com esse livro expor, principalmente no louvor dos heróis portugueses, o seu nacionalismo de tipo místico. Também escapa ao propósito desta breve incursão sobre o tema do Destino e da Liberdade comparar a ideologia estadunidense Doutrina do Destino Manifesto e a de Pessoa. Por enquanto, basta dizer que a civilização portuguesa com a qual sonhou - a do Quinto Império - é uma abstração. Como a fraternidade de Eros e Psiquê:

Mas cada um cumpre o Destino –
ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.
(Pessoa, 1965, p. 295)

Se os amantes imaginários cumpriram o seu Destino, não aconteceu o mesmo com Portugal, e quem o diz é o poeta, em Mensagem, numa Prece: "Senhor, falta cumprir-se Portugal" (Pessoa, 1965, p. 78).

Por mais que tenha explicitamente dado mais peso ao Destino e a todas as coisas graves, trágicas e sérias a isso ligadas, não se pode ignorar o que há de libertário e até de libertino na obra de Fernando Pessoa. O seu tanto de amor e de humor. Um desses poemas merece destaque, intitulado "Liberdade", foi publicado postumamente. Chama a atenção uma epígrafe ausente e presente ao mesmo tempo: "falta uma citação de Sêneca". A frase é menos misteriosa do que parece. Não parece lógico que a "falta" indique uma citação específica que o poeta já tivesse escolhido, mas a uma nota mnemônica para buscar uma frase do filósofo espanhol em cuja obra é tão presente o tema da Liberdade e do Destino.

A ideia do Destino em Fernando Pessoa se expressa em variadas ocasiões antecedida por um verbo: cumprir. Os dois primeiros versos de "Liberdade" são: "ai que prazer/ não cumprir um dever". Num dos seus poemas mais antigos, escrito aos 12 anos de idade, quando morava na África do Sul, ele se refere à liberdade num verso: "Soft seems the climes of boyhood sweet". Em 1917, quando já havia amadurecido toda a sua concepção estética, o tema do destino se enriquece sobremaneira:

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?
(Pessoa, 1965, p. 754)

No jogo dos heterônimos, há um ponto em comum: todos são fatalistas, todos são perplexos na busca do sentido da vida e de entender-se, embora Álvaro de Campos seja a representação mais clara de uma tentativa de rebeldia quanto ao Destino. Dos três famosos personagens inventados por Fernando Pessoa, não há dúvida de que Alberto Caeiro é o mais naturalmente entregue ao Destino, mas, não paradoxalmente, o mais livre. Toda sua obra celebra uma absoluta entrega à Natureza e finge levar isso à prática sem pensamento, sem questionamento. Trata-se, porém, de uma representação. O jogo heteronímico é Mise en abyme. A propósito disto, quem tiver olhos para ver que veja o poema "Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável...", e ali encontrará um fatalismo esclarecido: Caeiro nesse texto "meramente aceita" e encontra nisso uma alegria; ele se submete à "inevitável exterioridade".

Caeiro não se revolta (ao contrário de Campos), e é ainda mais passivo do que Reis em sua aceitação das coisas como são, isto, por definição da Natureza, do Destino, e a tal ponto que sublinha: "Aceito por personalidade". Se o leitor se ocupar de ler esse poema inteiro vai deparar-se com o verso em que, embora reconheça ter nascido "sujeito" como os demais, ele é diferente dos humanos pela capacidade de não querer compreender demais. Disto para enxergar no heterônimo uma ausência de perplexidade e de busca do "conhecer-se a si" e de entender, é ler com miopia. O que são os rebanhos do Mestre Caeiro? Seus pensamentos. Por mais que pareça o contrário, é, entre os heterônimos, o mais entregue ao Destino.

Àquela tão sua "aprendizagem de desaprender" ele associa a "sequestração na liberdade". As flores são as flores e as estrelas são as estrelas, sem metáforas, porque cumprem o seu destino. Ele quer ser um encontro antes da busca, mas não está infenso ao amor ou à doença, e sabe que, como os demais, também tem a "alma vestida".

Em tudo isso há algo do preceito socrático: conhecer-se a si mesmo. Ou mais do que socrático, nietzschiano: "Ecce homo. Como se chega ser o que se é". Ou como afirmou o próprio Pessoa num texto: "Sou-me".

Fernando Pessoa, na sua poética do fingimento, que tornou possível a criação dos heterônimos, fez a própria vida e da obra um jogo de espelhamentos: verdade refletindo ficção e vice-versa. Como no paradoxo de Epimênides: fala a verdade e mente ao mesmo tempo. Na Bíblia cristã afirma-se que o conhecimento da verdade liberta. E de fato assim o é, e também para Pessoa, que foi, como o definiu um dos seus intérpretes, um "insincero verídico". Mas, numa visão pagã, a mentira também liberta, ou mais do que a mentira, a ficção, a construção, o tecer algo vivo. Foi assim que Sísifo livrou-se, ainda que temporariamente, da morte: enganando-a, acorrentando-a com mentiras. Não faz outra coisa qualquer grande poeta, e ao admitir explicitamente isso, Fernando Pessoa foi o mais livre dos autores portugueses no seu tempo. A mentira é quase sempre uma forma de adiamento (o adiamento que é tema de elogio em Álvaro de Campos), de evasão, de livrar-se da responsabilidade ou de exaltar-se. Como nesta bela e trágica passagem do livro Vida e destino, de Vassili Grossman:

Quanto mais dura a vida de um homem antes do campo, maior era o fervor com que ele mentia. Essas mentiras não serviram a nenhum propósito prático; em vez disso, representavam um hino à liberdade: um homem fora do campo não poderia ser infeliz... (2014, pp. 23-24)

Não foi outra a verdade fictícia ou a ficção verdadeira de Fernando Pessoa, deliberadamente preso ao destino de construir uma forma de liberdade que só a poesia pode conceder.

 

REFERÊNCIAS

Camus, A. (1983). El mito de Sísifo. Madri: Losada; Alianza. (Trabalho original publicado em 1942).         [ Links ]

Freud, S. (2004). Psicoanálisis aplicado y técnica psicoanalítica. Madri: Alianza.         [ Links ]

______. (1991). El motivo de la elección del cofre. In S. Freud. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Grossman, V. (2014). Vida e destino. Rio de Janeiro: Alfaguara.         [ Links ]

Pessoa, F. (1944). Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática.         [ Links ]

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______. (1955). Poesias inéditas. (1939-1935). Lisboa: Ática.         [ Links ]

______. (1965). Obra poética. (M. A. D. Galhoz, org.). Rio de Janeiro: Aguilar.         [ Links ]

______. (1978). Cartas de amor. (D. M. Ferreira, org.). Lisboa: Ática.         [ Links ]

______. (1982). Livro do desassossego (Vol. 1). Por Bernardo Soares. Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática.         [ Links ]

______. (1996). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Editora Ática.         [ Links ]

Vinci, L. da. (1999). Cuaderno de notas. Madri: Edimat.         [ Links ]

 

 

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MARIO HELIO GOMES DE LIMA
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Recebido 29.04.2019
Aceito 08.06.2019

 

 

1 Artigo escrito especial e exclusivamente para esta revista.

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