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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo Jan./Dec. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Raduan Nassar: voz e silêncio, liberdade e clausura1

 

Raduan Nassar: voice and silence, freedom and closure

 

 

Renato Tardivo

Psicanalista e escritor. Mestre e doutor em psicologia social (IP-USP), com pós-doutorado em psicologia da saúde (UMESP/CAPES). Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado em psicologia clínica (IP-USP). Autor, entre outros, do ensaio Cenas em jogo – literatura, cinema, psicanálise (2018 – Ateliê; Fapesp) e da coletânea de contos Silente (2012 – 7 Letras)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende levantar questões que atravessam a obra do escritor Raduan Nassar, buscando constituir sua poética característica. Partimos da leitura do romance Lavoura arcaica, discutimos aspectos da novela Um copo de cólera e, por fim, abordamos os outros textos de Raduan Nassar. Assim, emergiram os seguintes temas: reunião e exclusão, ordem e desordem, contestação e conservação, conflito e reconciliação – questões que o escritor trabalha por meio de metáforas sensíveis, em uma linguagem alusiva.

Palavras-chave: Literatura. Raduan Nassar. Lavoura arcaica. Um copo de cólera.


SUMMARY

This article intends to raise questions that cross the narratives of the writer Raduan Nassar, in order to constitute its characteristic poetic. We begin with the reading of the novel Ancient Tillage, then we discuss aspects of the short novel A cup of rage and, finally, we approach the other texts of Raduan Nassar. The following themes emerged: meeting and exclusion, order and disorder, contestation and conservation, conflict and reconciliation. These issues are worked by the writer through sensitive metaphors in a allusive language.

Keywords: Literature. Raduan Nassar. Ancient Tillage. A cup of rage.


 

 

Apresentação

Filho de imigrantes libaneses, Raduan Nassar nasceu em 1935 na cidade de Pindorama, em São Paulo. Na adolescência, mudou-se com a família para a capital em busca de melhores oportunidades de estudo. Anos depois, ingressou na Faculdade de Direito, no Largo São Francisco, e no curso de letras clássicas, ambos na Universidade de São Paulo. Abandonou a Faculdade de Letras e começou a cursar filosofia - única faculdade que, entre idas e vindas, viria a concluir, anos mais tarde. Nos anos 1960, decidido a se dedicar à literatura, Raduan se dividiu entre a produção rural e as atividades no Jornal do Bairro, semanário fundado pelos irmãos Nassar, do qual foi redator-chefe. Em 1974, deixou o jornal e concluiu o projeto literário cujas primeiras anotações já datavam de alguns anos; em 1975, lançou o romance Lavoura arcaica. A primeira versão de seu segundo livro, Um copo de cólera, novela publicada em 1978, fora escrita no início da década de 1970, e os contos do livro Menina a caminho e outros textos, publicado em 1997, foram produzidos nos anos 1960 - exceto o conto "Mãozinhas de seda" (escrito na década de 1990). E foi só. Cerca de nove anos após ter estreado na literatura, mais precisamente em 1984, Raduan anuncia seu abandono para se dedicar exclusivamente à produção rural.

Em 2016, é lançada sua Obra completa, com os textos mencionados acima, além de dois contos e um ensaio, inéditos em livro até então. Também em 2016, o autor recebeu o Prêmio Camões, além de ter sido indicado ao Man Booker Internacional Prize. Sua obra, que já havia sido traduzida em diversos países, tem recebido um alcance ainda maior. Paralelamente a isso, diante do cenário político do Brasil dos últimos anos, Raduan Nassar manifestou-se publicamente mais de uma vez, em discursos, entrevistas e artigos para jornal, rompendo o silêncio de mais de três décadas.

Com efeito, apesar de pouco extensa, sua obra é pródiga. Poucas vezes na literatura brasileira das últimas décadas o rigor formal e o engajamento político encontraram a simplicidade aliada a um universo repleto de metáforas sensíveis. Assim, neste artigo, partiremos da leitura do romance Lavoura arcaica, discutiremos aspectos da novela Um copo de cólera e, por fim, levando em conta os outros textos de Raduan Nassar, pretendemos levantar questões que atravessam a sua obra, constituindo sua poética característica.

Lavoura arcaica

Lavoura arcaica divide-se em duas partes. A primeira, mais longa, intitula-se "A partida"; a segunda, mais curta, "O retorno". Acompanhemos as primeiras linhas do romance:

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta. (Nassar, 2016, pp. 11-12)2

O primeiro evento de Lavoura arcaica se passa no quarto da pensão interiorana em que o narrador-protagonista, André, se instala ao deixar a casa da família. Pedro, o irmão mais velho, chega com a missão de levá-lo de volta. Os signos exalam a atmosfera densa que envolve o quarto. A masturbação é uma prece. André está deitado no assoalho do "quarto catedral". Um mundo inviolável. A "rosa branca do desespero", que irrompe "de um áspero caule" e se colhe "na palma da mão", é vida. História. Inicialmente, podemos apontar dois desdobramentos. O primeiro é que há, no excerto, um destaque para o corpo que se volta a si mesmo, um corpo reflexivo, portanto. O segundo é que o irmão mais velho, como veremos adiante, fala em nome de um "nós" - o discurso hegemônico da família -, o que se contrapõe, ao menos inicialmente, ao discurso de André.

A primeira parte do livro irá alternar capítulos ambientados no quarto da pensão, referindo-se ao encontro dos irmãos, e memórias de André no âmbito da família. Nesse sentido, podemos notar a presença de dois tempos na narrativa: o da ação (encontro dos irmãos no quarto da pensão) e o da rememoração (lembranças de André no âmbito da família). Essas transições espaçotemporais parecem dizer de um lugar híbrido habitado por André, cujo corpo, ao mesmo tempo que se confunde com a natureza e não se diferencia do modelo da família, estabelece certo distanciamento e alheamento em relação ao mundo e à cultura.

Esse espaço dissonante habitado por André se constitui entre o afeto da mãe e a lei do pai. Pensemos cada um desses polos. O patriarca, Iohána, funciona como uma espécie de transmissor da sabedoria, procurando se valer do exercício da razão. Os sermões do pai na hora das refeições, como na passagem a seguir, apregoam a união da família, a partir da interdição das paixões e do desejo:

os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela [...] que o amor na família é a suprema forma de paciência [...] a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete. (pp. 63-64)

E, no outro polo, há o afeto da mãe, "onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás" (p. 19). Sua voz, que parte das calcificações do útero, desabrocha em um "recanto mais fechado" (p. 35). É assim que, ao longo do romance, embora a voz seja dada à mãe em poucos momentos, ela se faz presente com contundência.

Em suma, é entre o excesso de luz - que cega - das leis do pai e a luz porosa - que embriaga e sufoca - dos afetos da mãe que André se constitui. E se ao reino da necessidade, com seus olhos noturnos, ele procura contrapor o reino do desejo (Jozef, 1992) - o que, no plano da linguagem, se manifesta pelo discurso verborrágico e obscuro -, veremos que a postura do narrador-protagonista oscila entre se voltar contra as forças em meio as quais ele se constitui e submeter-se a elas.

Mas, quando Pedro, no quarto da pensão, menciona a falta sentida por Ana, a irmã, André explode. Por meio do verbo sanguíneo, ele passa a argumentar, diante do irmão mais velho, o quanto eram inconsistentes os sermões do pai, o quanto se podia fazer um uso inesperado - e ainda assim fiel - de suas palavras, e que na verdade era ele (André) o maior conhecedor da família, pois na calada das noites afundava as mãos no cesto de roupa suja, onde dormiam os impulsos reprimidos da família, e trazia com cuidado cada peça ali jogada: "ninguém ouviu melhor cada um em casa" (p. 47). Pedro fica perplexo ao ver André contestar a palavra do pai e dar nomes ao desconserto em que vive.

Com efeito, o lugar híbrido de onde parte o olhar de André, dirigido a si mesmo e à família, vai adquirindo contornos. Seu projeto parece encontrar morada no avesso da palavra do pai, nos corredores confusos da casa. E justamente porque conhece a família por dentro, André sabe quanta decepção o esperava fora dos limites da casa. Não foi em busca de aventuras que ele partiu, portanto. André leva a família consigo. Emblematicamente, nesse sentido, fora de casa não há história: não sabemos quanto tempo ele fica no exílio nem o que ele faz nesse período. O que pouco a pouco vai saindo da sombra, no encontro dos irmãos no quarto da pensão, é o vínculo que existe entre André e Ana.

Como vimos, atado, de um lado, pelo controle extremo das paixões e, do outro, pelo excesso de afeto, André vai reclamar os direitos do seu corpo no incesto concretizado com a irmã (Perrone-Moisés, 1996). Da perspectiva de André, essa paixão é um desdobramento da própria escritura da família, uma "paixão pressentida" que encontra a si mesma em um retorno radical à estrutura familiar. Estão em jogo aqui o campo das emoções e dos afetos, das necessidades mais arcaicas. Mas, sufocado pelas forças que o oprimem, André reivindica seus direitos, paradoxalmente, em um mergulho na própria tessitura da família. A união com Ana, nessa direção, é emblemática de um retorno à unidade familiar perdida: é a família investida em si mesma que o incesto simboliza.

A propósito, o discurso do pai não se abre para a experiência da alteridade; ele é sufocante e endogâmico. Diz ele em um de seus sermões: "nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir, onde estiver um há de estar o irmão também" (p. 150). Ora, ao incitar - valendo-se de uma racionalidade limite - a união irrestrita da família, o patriarca acaba podando as possibilidades para que haja desejo pelo outro, pelo diferente, por aquilo que ele chama de "mundo menor". A mãe, por sua vez, é cúmplice do marido nessa deserotização, ou melhor, no exercício imaturo da sexualidade. Em alguns momentos, ela lembra a figura de uma santa, o que complementa o papel de entidade superior assumido pelo pai. A erotização mal direcionada da mãe escapa no excesso de carícias dirigido ao corpo do filho, enquanto a do pai se faz presente em seus eloquentes sermões. A libido, represada, permanece investida na própria família.

Ocorre que, após a consumação do incesto, Ana põe fim ao pacto amoroso com o irmão e interdita as possibilidades de André levar adiante seu projeto no âmbito da família. Então ele diz: "estou morrendo, Ana" (p. 144) e, no capítulo em que narra a sua fuga, escreve: "pela primeira vez eu me senti sozinho neste mundo" (p. 145). Diante da negativa da irmã, André parece viver uma amputação. Por isso sua permanência na casa da família não se sustenta, e ele parte para o exílio. A primeira parte do romance, "A partida", chega ao fim. Com efeito, tão logo Pedro chega para levar o irmão de volta, os elementos imanentes à partida do filho pródigo são reconstruídos. O clímax é o relato da consumação do incesto, ao que se seguem respectivamente o rompimento por parte de Ana e a fuga de André. Ora, se o retorno radical à família, simbolizado pelo incesto, antecede o momento da partida, ele antecede também, no plano da narrativa, a sua volta - temática de que tratará a segunda parte: "O retorno". Ao deixar a casa, André aproxima-se dela.

A segunda parte do romance, mais curta, é composta apenas pelo tempo da ação. Assim que os irmãos retornam para casa, Pedro trata de preparar o pai a respeito do estado de André. Sentado à mesa, Iohána espera o filho para uma conversa.

A conversa é introduzida por reticências, o que lhe confere historicidade. Questões arcaicas são postas à mesa. Diferentemente da primeira parte, os diálogos agora são introduzidos por travessões, e não mais entre aspas e no corpo do texto. Em uma primeira acepção, podemos sugerir que essa alteração, como em Rodrigues (2006), é emblema de que o texto toma a direção da tradição. Mas também podemos pensar as mudanças - os períodos mais curtos, os diálogos introduzidos por travessões, a narrativa linear - enquanto uma possibilidade, vivida pelo narrador após o exílio, para que houvesse enfim separação no âmbito da família e, por conseguinte, experiência de alteridade.

Na primeira parte do diálogo, André confronta o pai. Reafirmando o ponto de vista que explicitou a Pedro no quarto da pensão, o filho é contundente e provocativo. Mas, ainda assim, André parece demonstrar algum movimento no sentido de se abrir à versão do pai. Este, por sua vez, vale-se da retórica já conhecida e se mostra completamente fechado à perspectiva do filho. Em resposta, André diz: "Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo" (p. 162). Um pouco depois, Iohána responde: "Você está enfermo, meu filho" (p. 163). Mas André conhece bem a lavoura do pai. E é justamente na condição de semente dessa lavoura que ele destila o que, nesse momento, é sua resposta definitiva: "Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra" (p. 164). E realmente não existe a mínima possibilidade para entendimento. O diálogo, então, toma a forma de dois monólogos. Diante desse impasse irremediável, a mãe, que os escuta à distância, intervém. Ela diz (entre aspas, sem travessão): "Chega, Iohána! Poupe nosso filho!" (p. 172). Mas, atado ainda entre a lei do pai e o afeto da mãe, é André quem recua: "Estou cansado, pai, me perdoe" (p. 172). O pai, com lágrima nos olhos, enfim celebra a volta do filho, e os preparativos para a festa pelo seu retorno podem prosseguir.

Mas será que o recuo empreendido por André o devolve à casa em uma espécie de circularidade plena, isto é, no mesmo ponto em que estava antes da partida? Ou ele irá revelar, como escreve Octavio Ianni (1991, p. 89), que "a fuga de André mudara tudo, na aparência de nada mudar"? Vejamos.

No dia seguinte, a casa recebe parentes e amigos para a festa. É o que é narrado no penúltimo capítulo do livro. Nesse momento da narrativa, existe uma sequência de orações que praticamente repete palavra por palavra um trecho do início do livro - em que também é narrada uma festa. Há, no entanto, diferenças determinantes entre os dois momentos. Na festa do fim os verbos das orações estão conjugados no pretérito perfeito, ou seja, indicam a ação acabada - antes, vinham no imperfeito, que sugere continuidade. Além disso, Ana, que estava recolhida desde a chegada de André, finalmente aparece. Endiabrada, ela surge vestida com as "quinquilharias mundanas" acumuladas pelo irmão em encontros com prostitutas e já não dança com a candura do início. Sua postura, entre a vulgaridade e o acinte, causa espanto e repulsa. André assiste a tudo à distância, como na primeira festa. Ocorre que dessa vez seu olhar confuso encontra o irmão mais velho. Pedro, mais do que todos, está taciturno, sinistro. O gesto da irmã, então, precipita a delação, e ele só faz cumprir, uma vez mais, a sua missão: vocifera ao pai a "sombria revelação". Ato contínuo, "para cumprir-se a trama do seu concerto, o tempo, jogando com requinte, travou os ponteiros" (p. 194). O pai, defensor contumaz do exercício da razão, é traído pelo mundo das paixões e, em um gesto impulsivo ao extremo, golpeia fatalmente a filha. A família se estilhaça.

Mas o que pretendia Ana com esse gesto? Ora, é ela quem barra, antes da partida do irmão, a continuidade de seus projetos. Aqui, mais ainda, ela é a única a realmente enfrentar o discurso sufocante da família. Ao vestir o corpo com roupas de outras mulheres, mais do que propriamente escancarar o incesto, Ana abre uma fenda no círculo familiar, contaminando-o com os trapos de fora, do mundo. E, por conseguinte, ao romper com aquela estrutura, ela funda o passado da ação acabada. O tempo torna-se irrecuperável e segue impiedoso o seu curso.

Ocorre que, consumada a tragédia, André segue sem conseguir se desvencilhar daquela estrutura. Assim, ao tempo da rememoração e ao da ação, de que já falamos, acresce-se outro: o tempo da narração. Na condição de narrador-personagem, André vai se debruçar sobre os estilhaços dolorosos, para, entre o lírico e o trágico, recompor e, de algum modo, reviver a história da família. A estrutura de que André não consegue se desvencilhar é a mesma contra a qual ele se insurge. Eis o paradoxo que o narrador-personagem vive ao limite: ele é o filho que parte, mas volta; desafia o pai, mas cede; escancara o discurso endogâmico da família, mas reclama os seus direitos no incesto concretizado com a irmã. E, finalmente, sofre a dor de um tempo impiedoso, mas se reencontra com tudo aquilo ao costurar os estilhaços do que restou em um testemunho.

Se concordamos com Paul Ricoeur (2007, p. 173) que "é diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter assistido", cabe-nos indagar: a quem André dirige o seu testemunho?

André sempre retorna à família, no invisível: a casa velha, os corredores confusos da casa, a copa das árvores... E, no invisível, no avesso das coisas, não há contato de fato, porque tampouco houve diferenciação: André confunde-se - de modo desviante, mas confunde-se - com aquela estrutura arcaica. Dessa forma, manter-se atrelado a ela significa empreender o diálogo - ou prosseguir tentando fazê-lo - que, quando ainda era tempo, não teve lugar. Não por acaso a voz é dada a Iohána em tantas passagens do romance. Uma delas é justamente o último capítulo, incluído após a narração do desfecho trágico, que se introduz com a oração: "(Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras [...])" (p. 197), e segue-se o excerto de um de seus sermões. O primeiro movimento de André, depois de viver/narrar a dissolução da família, é o retorno ao pai, ou seja, a tentativa inicial para reunir os cacos do que restou da família volta pelo discurso do patriarca.

André parece buscar continuamente a referência paterna de que não pôde se valer. Agora, na condição de narrador-personagem, ele enfim se singulariza e se constitui enquanto sujeito. Por meio de uma escrita rigorosamente organizada, ele logra ressignificar o trauma e conviver com a lei. Ao reunir as memórias em temporalidade après-coup e olhar para a história que ele irá reconstruir, André se volta à origem, ao arcaico. Mas o retorno não se dá no mesmo ponto: a temporalidade da narrativa é espiralada. Assim, terminar o texto "em memória" do pai é começar tudo de novo a partir dessa "tábua solene" (já incendiada). É para Iohána que André escreve o seu testemunho.

Um copo de cólera

Em Um copo de cólera, novela publicada em 1978, há o embate entre "ele" e "ela". Um acontecimento corriqueiro dispara a discussão acalorada, repleta de ironia e sarcasmo, do casal - um chacareiro e uma jornalista cultural. Ele é apegado à natureza e, com certa descrença, apregoa o individualismo; ela, urbana, fala a partir de um discurso que defende reformas, acredita na revolução e apregoa o feminismo.

Além do casal de protagonistas, também são personagens o casal de caseiros - dona Mariana e seu Antônio - e o cachorro Bingo. Separada em capítulos, sendo "O esporro" o mais longo, a novela é narrada quase até o fim por "ele", mas é a personagem "ela" quem, no último capítulo, assume a narrativa e encaminha o desfecho.

O acontecimento que precipita a discussão entre "ele" e "ela" é o rombo feito por uma comunidade de saúvas na "cerca viva", feita de plantas, da chácara:

eis o que vejo: um rombo na minha cerca viva, ai de mim, amasso e queimo o dedo no cinzeiro, ela não entendendo me perguntou "o que foi?", mas eu sem responder me joguei aos tropeções escada abaixo (o Bingo, já no pátio, me aguardava eletrizado), e ela atrás de mim quase gritando "mas o que foi?", e a dona Mariana corrida da cozinha pelo estardalhaço, esbugalhando as lentes grossas, embatucando no alto da escada, pano e panela nas mãos, meu eu nem via nada, deixei as duas pra trás e desabalei feito louco, e assim que cheguei perto não aguentei "malditas saúvas filhas da puta", e pondo mais força tornei a gritar "filhas da puta, filhas da puta". (pp. 226-227)

As formigas, "tão ordeiras", violam a ordem da propriedade. É o suficiente para "o esporro" da personagem "ele". Parafraseando Freud, para quem o homem não é o senhor da própria casa, o chacareiro não é o senhor da própria chácara. É a partir dessa constatação que a narrativa desconstrói tanto a perspectiva autoritária do chacareiro quanto a intelectualizada da jornalista. Mesmo a relação sexual, que quase os reconcilia, não perdura - é fruto da tensão, que inevitavelmente retorna. Não há escapatória.

O descontentamento que gera a cólera vem da decepção de uma demanda considerada justa. A cólera é a paixão dos impacientes, curioso paradoxo se nos lembrarmos que a palavra "paixão" e a palavra "paciência" têm a mesma etimologia: passio, isto é, sofrimento. A diferença está em suportar ou não esse sofrimento. No caso da cólera, a impaciência é tanto maior quanto mais alta era a expectativa contrariada. (Perrone-Moisés, 1996, p. 61)

O discurso colérico vai revelando aspectos das personagens e, ao mesmo tempo, reduzindo-as, sobretudo ao posicionamento ideológico encampado por cada uma. Por meio do registro oral, moderno e, por vezes, chulo, temas como poder, política e sexualidade associam-se aos mistérios da sexualidade feminina, o que, ao tirar a personagem "ele" da zona de conforto, confere poder a "ela". A troca de ofensas entre o casal resulta em violência física: "e eu me queimando disse 'puta' que foi uma explosão na cara dela, e não era a bofetada generosa parte de um ritual, eu agora combinava intencionalmente a palma co'as armas repressivas do seu arsenal" (p. 265). É curioso pensar que é a invasão das saúvas que dispara a atmosfera de mal-estar. O trabalho operário das formigas talvez seja, para "ele", análogo à ordem social encampada por "ela": "vá pôr a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto" (p. 244).

Mas o tempo da narrativa é curto, decisivo. No fim do capítulo "O esporro", o penúltimo da novela, "ela" deixa a chácara dirigindo seu carro e "ele" termina caído, entregue aos cuidados dos caseiros. A linguagem colérica e teatralizada engolfa as personagens e chega a, em uma espécie de nascimento às avessas, abrir-se "inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto" (p. 280). Os extremos inconciliáveis atraem-se ao limite, fundindo-se, como no começo de tudo.

No capítulo final, no entanto, quem assume a narrativa é "ela". A um só tempo colérica e idílica, a busca do chacareiro se consuma em um retorno-limite ao ventre da mulher - retorno, aliás, análogo ao do conto "Um ventre seco", incluído no livro Menina a caminho e outros textos, no qual o narrador dispara um discurso virulento à ex-mulher. Não é aleatório, nesse sentido, que as buscas nas narrativas de Raduan estejam sempre associadas aos retornos. Interessante apontar, também, que os homens, tanto em Lavoura arcaica como em Um copo de cólera, vivem/narram os impasses, confundem-se com eles, enredam-se, mas as mulheres participam mais ativamente dos desfechos.

Se, no romance, o narrador-protagonista afirma que "toda ordem traz uma semente de desordem" (p. 162), podemos dizer que em Um copo de cólera ocorre algo semelhante na invasão das saúvas, considerando a desordem que elas disparam na dinâmica do casal. Como no romance, portanto, a tensão implicada pelo par ordem e desordem também é tematizada. Com efeito, sabemos desde Freud que a existência de grupos ou, de modo amplo, de cultura implica que os indivíduos cedam a algum grau de satisfação pulsional (Freud, 1930/2007). A propósito, Raduan Nassar afirmou em uma entrevista: "nenhum grupo, familiar ou social, se organiza sem valores; como de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste, o capeta deita e rola" (1996, p. 29).

Portanto as relações das personagens com os continentes (lavoura, copo) e com os conteúdos que os habitam são trabalhadas com destaque na obra de Raduan. Tome-se o narrador-personagem de Lavoura arcaica. Ao voltar o olhar para a história que assolou sua família e organizar os estilhaços de memória em um texto, ele transita entre a busca por satisfação e os seus interditos. Já em Um copo de cólera, é emblemática a busca (colérica) por acolhimento, proteção, pertencimento, ou, ainda, como as saúvas, que expandem os limites do formigueiro - e causam tanto mal-estar ao chacareiro -, reinauguram as temáticas da ordem e desordem, da liberdade e clausura, em que continente e conteúdo estabelecem entre si uma relação dialética. Não há cerca que não gere excluídos.

Há, nas duas narrativas, o plano do conflito. André, como vimos, contesta os valores da família, mas vai reivindicar sua libertação justamente em um retorno à família (incesto). Já em Um copo de cólera, a contestação do narrador-personagem desemboca no retorno ao ventre da mulher. À contestação acresce-se a conservação. Em Lavoura arcaica, por outro lado, o retorno de André não se dá no mesmo ponto: a temporalidade da narrativa é espiralada, e é justamente no gesto de narrar que ele vive a experiência de alteridade, convivendo com - e ressignificando - a lei. Já em Um copo de cólera, o retorno radical ao ventre da mulher se consuma e, assim, a experiência de alteridade não tem lugar: os pontos de vista radicalmente opostos, no limite, não se diferenciam, e a temporalidade é circular - não por acaso, o primeiro e o último capítulos têm o mesmo título: "A chegada".

 

Safrinha

As possibilidades e os entraves implicados nos processos de subjetivação aparecem com destaque na obra de Raduan Nassar. Em "Menina a caminho", narrativa entre o conto e a novela, uma menina sai de casa com uma missão atribuída pela mãe. Ao perambular por uma pequena cidade interiorana, ela depara com uma série de personagens e vivências que marcam a perda da sua inocência. Questões vinculadas à sexualidade e à agressividade já estavam presentes, portanto, desde os primeiros textos escritos por Raduan (lembremos que, embora publicado posteriormente, "Menina a caminho" foi escrito antes de Lavoura arcaica e Um copo de cólera).

Os demais contos que compõem o livro Menina a caminho e outros textos são narrativas breves e apresentam uma linguagem mais próxima daquela que surgiria em Um copo de cólera e Lavoura arcaica. Dois contos aproximam-se do romance, pela atmosfera lírica que não amortece os conflitos - um homem que se liberta do ambiente de trabalho e perambula pelado na casa, em "Aí pelas três da tarde", e um homem que, enclausurado em seu escritório, se vê sem afeto para dar à mulher. Além destes, o já mencionado "O ventre seco", pela linguagem colérica que o narrador dirige à ex-mulher e pelo retorno à mãe, no fim, dialoga mais diretamente com a atmosfera da novela. "Mãozinhas de seda", escrito nos anos 1990, faz uma crítica à intelectualidade, em contraponto à sabedoria ancestral, e é ambientado sugestivamente em Pindorama, cidade natal do autor.

Na Obra completa, foram incluídos, ainda, três textos inéditos em livro: os contos "O velho" e "Monsenhores" e o ensaio "A corrente do esforço humano" - na seção chamada de "Safrinha". Os contos, produzidos no fim da década de 1950, avizinham-se da linguagem e ambiência de "Menina a caminho", embora lidem com tensões diferentes. O ensaio, escrito no início da década de 1980 e publicado na Alemanha alguns anos depois, é o único texto de não ficção incluído no conjunto. Acompanhemos um excerto:

Supondo-se que todo homem seja portador de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre outros. [...] Só que não seria fácil resistir à crença, como não se resiste a uma paixão, de que, em certo sentido, o homem é uma obra acabada, marcado não só pela sua experiência passada, mas marcado sobretudo - e definitivamente - pela sua dependência absoluta de valores, coluna vertebral de toda "ordem", e encarnação por excelência das relações de poder. Incapaz de dispensá-los ao tentar organizar-se, é este o seu estigma; sempre às voltas com valores, vive aí sua grande aventura, mas também sua prisão. (p. 417)

A questão abordada nessa passagem dialoga com a sua - breve, porém potente - obra de ficção. Uma discussão mais detida sobre o denso ensaio de Raduan Nassar fica para outra oportunidade, mas vale mencionar que, por meio de sua visão de mundo a um só tempo corrosiva e sensível, valendo-se inclusive de memórias de Pindorama, o autor discute a condição supostamente inferior do Brasil, colonizado pela - também supostamente - superior Europa. Assim, o ensaio aborda temas caros ao autor: reunião e exclusão, ordem e desordem, contestação e conservação, conflito e reconciliação, liberdade e clausura. As mesmas questões que, vertidas de metáforas sensíveis, em uma linguagem arduamente trabalhada, compõem a sua obra de ficção.

Ora mais coléricas, ora mais líricas, as narrativas de Raduan Nassar abordam eminentemente os contrastes, empreendem retornos, questionam as possibilidades e impossibilidades para que ocorram mudanças. Sua obra parece indagar em que medida os sujeitos podem se libertar das forças que os oprimem. A linguagem dá muitos frutos, e a questão da ressignificação daquilo que se vive - daquilo que se é - está sempre presente. Se, como propôs o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1960/2004), a linguagem é indireta, alusiva, em suma, é silêncio, a obra de Raduan Nassar, ao reinventar a palavra em sua máxima potência, está aí para confirmá-lo. Portanto chega a ser coerente o fato de o autor ter deixado de escrever. Aliás, seu primeiro livro publicado (Lavoura arcaica) foi o último a ser escrito. Ao estrear, ele já havia concluído praticamente a obra completa. Avesso ao barulho mundano, aos conchavos, aos modismos, o escritor não optou pelo silêncio apenas ao deixar a literatura. Raduan Nassar escreveu o silêncio.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
RENATO TARDIVO
Rua André Ampére, 153/63
04562-080 - São Paulo-SP
tel.: 11 99687.5222
rctardivo@uol.com.br

Recebido: 26.06.2019
Aceito: 29.06.2019

 

 

1 Parte da leitura de Lavoura arcaica, apresentada neste artigo, foi extraída de Porvir que vem antes de tudo - literatura e cinema em Lavoura arcaica (2012), livro oriundo de minha dissertação de mestrado em psicologia social, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).
2 Para não sobrecarregar o corpo do texto, de agora em diante, sempre que houver citação da obra de Raduan Nassar, serão explicitadas apenas as páginas correspondentes à Obra completa do autor (2016).

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