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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

RESSONÂNCIAS DA ENTREVISTA

 

Centelhas de areia na ampulheta do tempo

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas). E-mail: vlamannoadamo@gmail.com

Correspondência

 

 

Sem saber exatamente por onde, dia destes, fui arremessada a um momento da minha análise que ocorreu muito, muito tempo atrás. Minha analista dizendo: "Você já leu A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Vera? Hans Castorp, lá pelas tantas, diz que a vida é febre da matéria".

Tanto tempo depois e essa frase ressoando de novo. E sempre vem acompanhada da lembrança do semblante dela, do seu jeito de abrir a porta e me cumprimentar, da sua silhueta atrás de mim, do tom de sua voz, do seu jeito de se despedir, do cheiro do divã que acomodava tantas inquietações, temores, horrores, alegrias, tristezas, esperanças, delírios.

Fiquei impactada quando ouvi: "A vida é febre da matéria". E até hoje. Às vezes me lembro melhor desse momento, outras, fica evidenciada minha capacidade de esquecer.

Não consigo saber com certeza qual mundo eu habitava quando ela me contou sobre Hans Castorp, mas é possível que estivesse mergulhada num profundo sentimento oceânico repleta de sensação de eternidade.

Foi assim?

Eu passeando calmamente em meu delírio de imortalidade e ela com voz mansa e firme me lançando aos horrores da vida gélida esticada entre calores e febres?

Confesso que na época comprei A Montanha Mágica e, apesar do esforço, não consegui ir além das primeiras cem páginas. Fiquei entediada com a longa descrição da subida de Hans Castorp à montanha.

Foi assim?

O meu medo desmesurado da vida e da morte, medo de tempos imemoriais, quase impalpáveis sendo embatidos pelo pequeno e imenso contraponto dela?

Então foi isso?

Eu imersa no meu devaneio de repouso eterno e ela evocando em mim uma realidade imprevista e intrometida que até hoje desejo parar de lembrar e que graças a Deus não paro?

Tempos depois, num tempo que já passou há muito tempo e que mal acabou de começar, retornei à Montanha Mágica.

Então encontrei: "Que era vida então? A vida é calor, é febre da matéria. Um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo. Voluptuosidade da carne cheirosa do mundo que se compõe e se decompõe".

A cada intercâmbio entre furor e reconciliação penosa com a vida e com a morte, uma escrita a mais: o que é vida, o que é morte, o que é simulacro de vida, o que é simulação de morte. Cada vez faltando um pedaço e mais outro e outro mais.

 

 

Correspodência:
VERA L. C. LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-141 - Campinas/SP
Tel.: (19) 3254.0824

Recebido 01.07.2020
Aceito 10.07.2020

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