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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

EM PAUTA | O VALOR DA VIDA

 

Os dias têm uma diferença que ainda busca palavra Uma experiência de cesura

 

The days have a difference that still seek words. An experience of caesura

 

 

Marina F. R. Ribeiro

Psicanalista, Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP); coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos da Inter subjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic) -IPUSP-PUCSP. Coautora dos livros Por que Klein? (2018) e Bion em nove lições (2011). Autora do livro De mãe em filha. A transmissão da feminilidade (2011), entre outros livros e artigos. E-mail: marinaribeiro@usp.br

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto é o que poderíamos denominar uma crônica psicanalítica que relata uma experiência emocional de cesura durante a pandemia. Cesura na qual ainda não é possível dimensionar as rupturas e continuidades, o antes e o depois, ac (antes do coronavírus) e dc (depois do coronavírus). É relatada a experiência da irreversibilidade do tempo, de que o passado sofre de intensa nostalgia e o futuro é esmagadoramente incerto na pandemia. É abordado a necessidade da salvaguarda dos vínculos e da sustentação do campo analítico online, com suas possibilidades e limites, lugar do exercício da função psicanalí-tica da personalidade: a capacidade de construir imagens e narrativas diante da desumanidade dos fatos.

Palavras-chave: Pandemia. Cesura. Vínculos. Bion.


SUMMARY

The text is a psychoanalytic chronicle that reports a caesura experience during the pandemic. That caesura in which it is not yet possible to measure the ruptures and continuities, the before and after, bc (before the coronavirus) and ac (after the coronavirus). The experience of the irreversibility of time is reported, that the past suffers from intense nostalgia and the future is overwhelmingly uncertain during the pandemic. It addresses the need to safeguard the bonds and support the online analytical field, with its possibilities and limits, where the psychoanalytic function of the personality is exercised: the ability to build images and narratives in the face of the inhumanity of the facts.

keywords: Pandemic. Caesura. Bonds. Bion.


 

 

Somos animais extremamente perigosos;
de todos os animais ferozes que habitam esta terra,
o ser humano conseguiu matar todos os
seus rivais - exceto o vírus.
No fim da Primeira Guerra,
a gripe espanhola matou um número maior
de pessoas do que a própria guerra. Mesmo levando
em conta a nossa maravilhosa destrutividade,
não somos tão eficientes quanto o vírus.

(Bion, 1977/2014b, p. 273)

Para início de conversa, existe um espaço e um tempo consideráveis entre a experiência e a nossa capacidade de elaborar e dar sentido ao que foi vivido. Precisamos de tempo para os processos de elaboração, aquilo que é significado e ressignificado constantemente. E, além disso, é importante considerar a necessidade do trabalho de elaboração de muitas pessoas, várias mentes tentando metabolizar a brutalidade dos fatos: a contagem infinita dos nossos mortos, sem história e sem sonho, apenas a impessoalidade dos números e do vírus. A construção de uma narrativa endereçada a um possível leitor no futuro é testemunho e partilha de experiências que buscam sentido e palavra. Escrever é uma das formas de transformar as fantasias aterradoras despertadas pela pandemia em algo passível de alguma metabolização psíquica.

O mito de Édipo, compreendido como um sonho da humanidade (Chuster, 2003), é uma boa metáfora para o que está sendo vivido na pandemia. No início da tragédia, o bebê amaldiçoado é deixado no alto de uma montanha, indefeso, acorrentado, abandonado à própria sorte para morrer em completa solidão e desamparo. A pandemia é a morte acorrentada aos nossos pés, nos melancolizando silenciosamente. Cena edípica que se aproxima de forma impactante com o que está sendo vivido na crise da covid-19: um vírus invisível que pode nos contaminar sem percebermos, condenando-nos a uma morte solitária, por asfixia, no alto da montanha onde falta ar, no mais completo desamparo e abandono.

A cena na qual Édipo é deixado à própria sorte no alto da montanha com os pés amarrados é a primeira cesura (Bion, 1976/2014) na tragédia, uma ruptura com a origem. Será que nos encontramos justamente nesse momento? Um mundo antes do coronavírus (ac) e um depois (dc)? Estamos como Édipo, com os pés amarrados no alto da montanha, entre a morte e um possível resgate pela capacidade de vínculos dos seres humanos, pela nossa aptidão empática e solidária. Precisamos da salvaguarda do que nos caracteriza como humanos: seres que nascem, crescem, pensam e permanecem sempre em uma rede de vínculos.

Quantos anos serão necessários para que a humanidade consiga sonhar esse pesadelo distópico? A distopia se transformou em realidade, não é possível acordar desse pesadelo, ele é um fato indigesto, incontornável, que precisa ser sonhado, imaginado, narrado. Penso que apenas a potencialidade dos vínculos humanos, condutores da função psicanalítica da personalidade, tem como favorecer a metabolização da realidade da pandemia, tanto no vértice narcísico (individual), quanto na sua extremidade social.

Somos seres constituídos por vínculos, mas, no momento, isolados. Temos diante de nós ainda mais esse desafio: o vírus transforma os vínculos promovedores de vida em possíveis transmissores da morte. Uma colega relatou-me o medo e a apreensão de que, ao levar mantimentos para a sua mãe, pode-ria contaminá-la. Coloquei em evidência que ela estava levando alimentos e não a morte, ciente de que esse é o paradoxo que estamos submersos e que favorece um retraimento melancólico dentro da situação de isolamento social.

Um desafio inigualável, estamos no exato momento da cesura; qual será a ruptura? Qual será a continuidade entre essas duas eras? A experiência do tempo foi transformada: fomos lançados e subjugados a um presente angustiante, excessivo, que extravasa nossa capacidade de continência. O futuro está abreviado à semana seguinte, conduzindo escassas esperanças e nos expondo a intensidade do desconhecido.

Para nós, psicanalistas, o desafio é sustentar o campo analítico online, com suas possibilidades e limites, lugar atual do exercício da função psicanalítica da personalidade (Ribeiro, 2019): a capacidade de construir imagens e narrativas diante da desumanidade dos fatos.

O que apresento a seguir é uma construção narrativa de uma experiência pessoal que podemos denominar como uma cesura, ruptura e continuidade (ac e dc). Poderiamos nomear essa narrativa de uma crônica psicanalitica.

De repente a luz apagou e se fez noite em pleno dia.

Pense rápido, pense rápido! O que fazer? Você ficará presa no apartamento! É melhor correr e ir para o interior, ao menos lá tem espaço, tem o verde, a montanha, o lago. Pense em tudo o que você precisa levar, pode ser que você não volte nunca mais; morrer é não voltar mais? E os livros? São tantos e tão importantes, como escolher o que levar?

Em um estado de quase transe e com uma rapidez alucinante, coloco todos à minha volta em função do objetivo de organizarmos tudo e ir para o interior, interior de mim? Levar todos os próximos? Ninguém entendia nada, mas seguiram a minha "alucinação" de que estávamos, e permanecemos, em um tipo de guerra contra um eficiente vírus e sua força: urge to exist (Bion, 1977/2014a).

Avisei aos pacientes que não sabia ao certo como iria me organizar, provavelmente entraria em contato com eles na semana seguinte para uma sessão online, estava saindo de São Paulo, fugindo para um lugar hipoteticamente seguro. A cabeça girava em um turbilhão de pensamentos, a única coisa que eu sabia naquele momento era que precisava tomar decisões rápidas que teriam consequências ainda inimagináveis. Sentia-me como nos filmes de guerra, imersa em cenas nas quais as pessoas separam rapidamente alguns objetos pessoais importantes, colocam em uma pequena mala para não voltar; nunca mais encontrar a si mesmo nos pequenos objetos que nos identificam e que são identificados como nossos pertences, como se, em parte, existissemos nas coisas. Nunca mais encontrar a si mesmo naquele cotidiano que se desmanchava subitamente, nunca mais... é tempo demais.

As mensagens no WhatsApp eram infinitas, desisti de conseguir responder ou ver tudo o que era enviado. Queria saber apenas se as pessoas próximas estavam bem guardadas em casa, se havia conforto na casa psiquica, se continuavam a existir naquele estranho modo de ser. A casa, repouso e refúgio, tornou-se também restrição e perda. É terrivel não poder voltar para casa; é assustador não poder sair. Pensar é estar em movimento.

Uma semana após essa correria desenfreada, percebi que estava o dia inteiro sentada em uma mesma cadeira na qual eu desempenhava as funções de professora, analista, supervisora e paciente. Sentada no mesmo lugar, por muitas horas: estudava, escrevia, olhava para a árvore em frente à janela em súbitos momentos de devaneio, tentando entender um mundo que se apresentava em noticias alarmantes.

Enfim, desempenhava minhas várias atividades em um lugar apenas. A sensação era estranha, mas tinha um aspecto sutilmente agradável, jamais imaginei que diferentes facetas da vida pudessem estar no mesmo espaço físico e, do outro lado da porta, a vida familiar. Aos poucos fui percebendo que conseguia alterar estados mentais diferentes no mesmo espaço físico. O movimento psíquico necessário para situações e funções distintas continuava acontecendo, no entanto sem a presença facilitadora da diversidade de espaços, da locomoção, aquilo era novo. Lembrei-me de que para recordar de um sonho ao acordar pela manhã a imobilidade física é um facilitador, se o movimento ocorre, o sonho se perde como fumaça levada pelo vento da consciência. A imobilidade parecia favorecer o pensamento onírico da noite e da vigília, a mente trabalhava incessantemente tentando dar conta do excesso pandêmico.

O reencontro online com os pacientes aos poucos deu a dimensão de que os espaços analíticos já construídos permaneciam e poderiam continuar de forma remota. Todos estavam muito angustiados, como em uma lente de aumento, tudo se acirrou e se intensificou. O fato de ser inicialmente uma situação provisória ajudou na adaptação a uma vida que não foi imaginada. O provisório alimenta esperanças vãs.

As ruas vazias davam a sensação de que algo grave ocorria, o silêncio não acalmava, pelo contrário, era sinistro. Após quatro meses de pandemia, as ruas cheias também assustam, não há sossego. Qualquer possibilidade de conforto psíquico, de que poderíamos descansar e nos entregar a alguma atividade prazerosa, desapareceu sem aviso prévio. A sensação é de uma espera angustiante, de que não se pode relaxar, a tensão é contínua, o vírus está sempre nos espreitando na sua cega urgência de viver. A ameaça da doença e da morte, a ameaça da falta de recursos financeiros, o caos político, as crises emocionais das pessoas próximas, os idosos da família tentando beijar a tela do celular em uma vã esperança de tocar em alguém melancolizam.

Um estranho e contínuo cansaço se estabeleceu, deve ser o trabalho online, mas não apenas... como metabolizar tantas angústias, tudo em um lugar apenas, tudo em uma só pessoa, em uma pessoa só. A solidão existencial se evidenciou, para aquilo que realmente é importante somos sozinhos.

A noite se fez dia, mas os dias são incomodamente diferentes.

Os dias têm uma diferença que ainda busca palavra. O sol continua nascendo lindamente nas montanhas, mas ilumina uma vida diversa, na qual ainda não temos a dimensão da cesura (Bion, 1976/2014), do antes e do depois, ac (antes do coronavirus) e dc (depois do coronavírus), qual a ruptura, qual a continuidade? O tempo não volta, o passado sofre de intensa nostalgia e o futuro é esmagadoramente incerto.

Novas análises se iniciam online. De repente percebo que nunca encontrei fulano presencialmente, que não tinha imaginado que uma relação analítica poderia começar e fazer história de modo exclusivamente online. Com o passar dos meses, sinto um certo conforto nos atendimentos remotos, mas algo continua a intrigar, algo não se realiza no modo online, ocorrem encontros, as sessões acontecem, mas... algo não ocorre, e isso é difícil de captar e nomear. A expectativa de um encontro no futuro fica sempre presente. Ao assistir a um show musical, tenho o estranho pensamento: como era possível tantas pessoas no mesmo lugar? Será que ainda irei a uma festa? O isolamento tornou-se padrão, mas online somos sem máscaras, é possível rir, ficar à vontade, um paradoxo.

Um mês antes da pandemia, fui a um congresso em Barcelona, intitulado Bion 2020. Um sentimento de gratidão comigo mesma sobressai: ainda bem que fui! Talvez não seja possível mais viajar, talvez fique inviável sanitária e financeiramente. Em Barcelona, comentei com os colegas: ficou tão fácil viajar! E, agora, ficou tão difícil, talvez impossível. Será que tem algum sentido um congresso online? Há a tentativa de sustentar essa ideia, mas... e aquele jantar com os colegas de outros lugares, aquela pessoa que conhecemos no congresso anos atrás e reencontramos a cada novo congresso em um país diferente que também queremos conhecer. Bion e Barcelona combinaram muito bem, como dizem em espanhol nas ruas : " Vale !". Será que o encontro sobre Bion no México 2022 ocorrerá? A vida sempre foi incerta, mas se tornou ainda mais provisória e ameaçada, angústia de aniquilamento, diria a sra. Klein após tantas e dolorosas perdas em sua vida. Penso que o fato de ela escrever com propriedade inigualável sobre os processos de luto é ressonância de uma vida vivida na densidade das emoções, uma metáfora encarnada, como escreveu Júlia Kristeva (2002).

O tempo não para. Começa segunda-feira e já é sexta, como posso me atrasar no congestionamento entre a cozinha e o escritório? No início da pandemia, a sensação era de que eu teria todo o tempo do mundo para escrever, e, agora, a sensação é de que não tenho tempo, a agenda está lotada de compromissos online; estou trabalhando mais do que antes, mesmo sem trânsito ou deslocamentos. O trânsito agora é outro: o trânsito do excesso online; um pouco de defesa maníaca para nos proteger da inevitável areia movediça da melancolia em tempos de pandemia.

O futuro sofreu um achatamento, não é possível sonhar com 2022, tão próximo, tão distante, a interrogação logo se impõe com todo o peso da incerteza, ainda mais difícil de sustentar. A experiência do tempo está alterada, não é possível sonhar com o amanhã, e o hoje é tão extenso. A expectativa e a oposta improbabilidade de encontros presenciais no futuro breve habitam incomodamente um presente estendido.

Aquele cafezinho fácil com um amigo, encontro que alivia as tensões cotidianas, transformou-se em "vamos fazer um Zoom?". Zoom aproxima, mas sempre permeado por uma lente, por uma tela, na qual tentamos arduamente encontrar algo que não temos a sensação que se realiza. Por mais que eu procure, não encontro na tela aquele calor suave da amizade e me rendo ao intocável, com olhos exauridos e secos.

Será possível entrar na virtualidade da água e ter a sensação de que estamos nadando agradavelmente em uma morna tarde de sábado? Preciso sentir a textura envolvente da água, algo semelhante ao encontro humano? Sigamos... tentando encontrar palavra.

 

Referências

Bion, R. W. (2014). Four papers. In The complete works of W. R. Bion. Londres: Karnac Books. (Trabalho original publicado em 1976)        [ Links ]

______. (2014a). Clinical seminars. São Paulo. In The complete works of W. R. Bion (v. 8). Londres: Karnac Books. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

______. (2014b). Bion in New York and São Paulo. In The complete works of W. R. Bion (v. 8). Londres: Karnac Books. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Chuster, A. e cols. (2003). A psicanálise: dos princípios ético-estéticos à clínica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Kristeva, J. (2002). O gênio feminino. A vida, a loucura, as palavras (J. L. de Melo, trad., v. 2). Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Ribeiro, M. F. R. (2019). Alguns apontamentos sobre a função psicanalítica da personalidade. A narrativa do escritor e a do analista. In Diálogos psicanalíticos contemporâneos Bion e Laplanche: do afeto ao pensamento (A. R. Barros, E. R. Barros, E. M. U. Cintra, M. F. R. Ribeiro e T. S. Candi, orgs., v. 1, pp. 255-276). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Correspodência:
MARINA F. R. RIBEIRO
Prof. Mello de Moraes, 1721 bloco f, Cidade Universitária
05508-030 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99851.0331

 

Recebido 29.07.2020
Aceito 14.08.2020

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