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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo Jan./June 2020

 

CONTRAPONTO | TRANSMISSÃO PSÍQUICA

 

Transmissão da vida psíquica: criar espaço psíquico e sentir gratidão

 

Creating psychic space and feeling grateful: psychic life and its transmission

 

 

Elisa Maria de Ulhôa Cintra

Psicanalista, professora da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Autora de Melanie Klein: estilo e pensamento, em coautoria com Luís Cláudio Figueiredo, e Por que Klein?, em coautoria com Marina Ribeiro. E-mail: elcintra01@gmail.com

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata dos processos de constituição e transmissão da vida psíquica para que predomine a dinâmica de Eros e seja possível a elaboração de lutos, a instalação de trabalhos psíquicos e a constituição da gratidão. Luto e melancolia de Freud é usado para diferenciar os processos de formação e os mecanismos de defesa da melancolia, comparados aos processos de luto. As ideias de Freud, articuladas ao texto Inveja e gratidão de Kleinsão usadas para pensar o que torna possível entrar no dinamismo da gratidão e o que leva o trabalho de Eros a se desorganizar, conduzindo ao predomínio da inveja e impedindo que tenha efeito o poder coesivo e terapêutico da narrativa, da empatia e da escuta analítica.

Palavras-chave: Inveja. Gratidão. Luto. Melancolia. Empatia. Poder terapêutico da narrativa.


SUMMARY

This article is about psychic life constitution and its transmission so that mourning processes and gratitude predominate over melancholy and envy. The dynamic processes of melancholy and the "working through" processes of mourning (in Freud's Mourning and melancholy) are related to Klein's ideas presented in her text Envy and gratitude. How can the environment facilitate a psychic organization that will result in gratefulness and creativity, as compared to a psychic organization where hate and envy are predominant. The cohesive effect of playing and narrative associated to a loving and empathic listening are considered as repairing strategies to deal with environmental impingement and trauma.

keywords: Envy. Gratitude. Mourning. Melancholy. Empathy. Therapeutic effect of narrative.


 

 

A linguagem realiza, quebrando o silêncio,
o que o silêncio queria e não conseguia.
(Merleau-Ponty)1

A capacidade de ser grato é muito decisiva na constituição e na manutenção da vida psíquica e será cada vez mais importante nestes tempos sombrios de pandemia, dada a necessidade de nos sentirmos mais próximos uns dos outros, apesar de todos os obstáculos. Antes mesmo do perigo da gripe espanhola e muito tempo antes do covid-19, Freud considerava que somos semelhantes a porcos-espinhos que aspiram muito a celebrar um abraço, até o momento em que nos aproximamos e... fazemos a dolorosa descoberta dos espinhos! Nessa hora, o longo processo de construção da empatia e da gratidão é decisivo; é a melhor vacina psíquica contra a intolerância aos outros, um verdadeiro pharmakon para dissolver a intolerância às diferenças e os veredictos severos que exigem "purificar" e "destruir".

Neste texto, a questão que me conduz é a seguinte: o que favorece o aparecimento da gratidão, quais são os mecanismos de defesa e os afetos que precisam ser dissolvidos através de inumeráveis trabalhos de luto e como ter acesso às narrativas capazes de curar? Para onde podem nos conduzir os trabalhos psíquicos derivados do luto e da capacidade de sentir empatia?2

O texto "Esperança não é esperar, é caminhar" (Rocha, 2010) permaneceu no horizonte desta reflexão como uma inspiração. Zeferino Rocha coloca Freud entre Apolo e Dionísio e faz a psicanálise trabalhar no contato com recortes filosóficos que nos ensinam que sentir gratidão não é algo assim tão espontâneo, mas exige um trabalho de working through, um caminhar com persistência em sua direção.

A psicanálise tem enfatizado bastante a questão da transmissão da vida pulsional e cultural e até mesmo da transmissão in-tergeracional tanto dos recursos psíquicos quanto dos traumas, daquilo que foi silenciado e passa aos descendentes na forma de criptas e fueros congelados no tecido psíquico.

Gostaria aqui de enfatizar a capacidade de receber a vida psíquica e os recursos simbólicos da cultura. Sem desenvolver uma verdadeira capacidade de receber, toda a transmissão fica invalidada. E nesse sentido o luto e a gratidão são decisivos. Jean-Bertrand Pontalis nos recorda que a vida não é algo fixo e cristalizado; ela é processo e fluxo; está aqui e ali, e por isso exige sempre ser transmitida e recebida.

Ser alguém vivo: tarefa já efetuada para o homem; tarefa contraditória, se pensarmos bem, mas que garante para o indivíduo humano sua tensão e sua mobilidade, que lhe dá a capacidade de ser, não normal, mas normativo e que faz do encontro renovado com o outro, o acontecimento necessário. Pois o que define a vida, tanto biológica quanto psicologicamente é o fato de ela ser transmitida. (Pontalis, 1977/2005, p. 197)

No âmbito das teorias kleinianas, falar em gratidão é evocar a obra ïnveja e gratidão (1957), escrito poucos anos antes da morte de Klein, em 1960, tido como o testamento de uma longa vida de elaborações teóricas e clínicas e que surpreendeu a comunidade analítica com mais um momento altamente criativo de seu pensamento. Escrevi um texto sobre a inveja, para o número 65 da revista Ide, que iniciava de forma parecida a esta, falando da inveja do seio nutridor, pois o pensamento kleiniano vincula, de forma íntima e originária, a inveja e a questão da criatividade corporal e psíquica. Podemos dizer que a inveja participa da estrutura do desejo humano, assinalando o seu aspecto insaciável.

Meu trabalho ensinou-me que o primeiro objeto a ser invejado é o seio nutridor, pois o bebê sente que o seio possui tudo o que ele deseja e que tem um fluxo ilimitado de leite e amor que guarda para sua própria gratificação. (Klein, 1957/1991, p. 214).

Klein esclarece que, para além do fluxo ilimitado de leite e amor, há um anseio universal por um estado de plenitude originária que pode ser associada às primeiras mamadas e à existência pré-natal. Esse anseio se expressa por um desejo insaciável de usufruir de um seio inexaurível (uma transformação do seio bom em seio ideal) e envolve todas as experiências estéticas da vivência materna primária: a descoberta da beleza do mundo e as características maternas que produzem a ilusão de que exista uma fonte inexaurível de generosidade, paciência, confiabilidade. A ilusão de uma fonte inesgotável, de um estado de plena satisfação reflete a natureza eternamente insaciável do desejo, que aspira a ter em si mesmo a fonte do belo e do bom. No artigo "Arco-íris tatuados nas mãos: a geografia do corpo materno" (Cintra, 2018), trabalhei mais a íntima relação entre desejo, inveja e criatividade.

O objeto por excelência da inveja é sempre a criatividade do outro, aquela maravilhosa capacidade de criar que o sujeito sente que ainda não tem, ou nunca terá, que a vida, injustamente, não lhe deu ou ficou lhe devendo, ao passo que a distribuiu com grande generosidade, por exemplo, a alguém que se encontra por perto. A criatividade pode ser pensada no âmbito material, emocional ou relativa à capacidade de criar uma obra de arte sublime, como é o caso de Mozart. A lenda conta que Salieri, diante do talento de Mozart, se dirigia, com amargura, a Deus como a um pai sádico para dizer o quanto era insuportável e cruel ter nascido com um dom musical suficientemente sofisticado para usufruir plenamente do talento de Mozart e ao mesmo tempo lidar com a falta do mesmo dom criativo.

Nesse simples exemplo estão presentes os elementos mais fundamentais da trágica condição humana: a dialética do dom e da recusa, da (in)capacidade de usufruir e agradecer, a necessidade de renunciar, a comparação e a rivalidade inevitável entre os pares, a admiração, a inveja, a revolta diante da desigual distribuição dos bens e da diferença de dons e talentos. Enfim, trata-se dos inumeráveis e muitas vezes incuráveis ferimentos narcísicos que associamos ao complexo de castração na teoria freudiana.

Desde os primeiros anos de vida será preciso abrir mão de muitas aspirações: do desejo de possuir todo o amor e de ter todas as capacidades, talentos e poderes. Renunciar a formar uma parceria exclusiva com a mãe, o pai, o irmão ou com os parceiros que surgem ao longo da vida. Será preciso lidar com a diferença entre os sexos, aceitar adoecimentos, brigas, mudanças de casa e de cidade, perdas por morte e separações, e assim entrar na dolorosa consciência da transitoriedade de tudo e na angústia da própria mortalidade.

Compreende-se que o homem seja necessariamente trágico. Tendo saboreado no início da vida o inefável gozo da posse de todo o amor e de todo o poder, nada poderá ser acrescentado. Só lhe restará chorar perdas por toda a existência. (Di Loreto, 2007, p. 69)

Chorar perdas, abdicar da ânsia do amor pleno, da plenitude do vigor e do poder nos remetem à questão do luto e da elaboração das muitas passagens pela posição depressiva, que serão exigências de trabalho psíquico para o resto da vida. A reflexão sobre a origem da capacidade de ser grato conduziu-me ao tema do luto e me inspirou a criar um elo entre dois textos seminais da psicanálise, que foram publicados com exatos quarenta anos de diferença: Luto e melancolia, de Freud, em 1917, no momento de transição entre a primeira e a segunda tópica, e Inveja e gratidão, de Klein, em 1957, dezoito anos depois da morte de Freud. Na década de 1950, temos já meio século de práticas e teorias psicanalíticas e uma comunidade crescente de pensadores.

Para esses psicanalistas, e nesta minha reflexão, as seguintes questões continuam a pulsar como se exigissem sempre novas respostas: o que torna possível entrar em um trabalho de luto e o que nos leva ao luto impossível da melancolia? O que leva o trabalho de Eros a se desorganizar, deixando predominar a dinâmica desobjetalizante de Thanatos? E, por outro lado, surgem as mesmas interrogações dirigidas à problemática da inveja e da gratidão. O que torna possível entrar no dinamismo da gratidão? O que leva o trabalho de Eros a se desorganizar de maneira a que predomine a violência da inveja e seus ataques ao objeto bom, destruindo a possibilidade de usufruir de tudo que for trazido pelos doadores de vida?

 

Luto e melancolia

Façamos uma breve referência a realidades já muito conhecidas de todos, mas que precisam sempre ser relembradas. O luto é um trabalho psíquico tão importante quanto o trabalho do sonho, algo que temos que realizar cotidianamente, senão adoecemos de melancolia, entramos em agitação maníaca, viramos paranoicos, não conseguimos parar de nos agitar e de correr atrás de ideais de perfeição máxima, do poder que gostaríamos de exercer, do saber que queremos acumular. Precisamos fazer o luto do corpo infantil e adolescente, dos primeiros amores, das casas e cidades onde vivemos, nos despedir de tudo que foi um dia muito significativo; deixar para trás pessoas que amamos. O luto é necessário para deixar passar o passado e sonhar novos futuros. Só abrindo esses espaços potenciais conseguimos sorver o presente e ser gratos.

O luto é o processo que nos faz entrar no tempo histórico, que permite lidar com a separação e com a finitude; está entre as bases de nossa saúde psíquica. Precisamos regular a nossa insaciável sede de consumir e acumular e a nossa impulsividade a reagir furiosamente contra as crenças alheias e as outras diferenças entre nós e os outros.3

Em seu texto de 1917, Freud nos dá uma precisa descrição do luto e depois o diferencia da melancolia, que é considerada um luto que não se cumpriu, não chegou a termo, que se extraviou no caminho.

Eis a descrição do luto: a pessoa entra em um desânimo profundo, suspende o interesse pelo mundo externo, perde a capacidade de amar, inibe toda atividade. No luto há uma perda do amor ao mundo, às pessoas, aos projetos. Podemos afirmar que o aparelho psíquico existe, antes de qualquer coisa, para elaborar as perdas, as faltas e as diferenças.

Até aí, luto e melancolia são idênticos. No caso do luto esse estado dura um tempo e vai passando. Se for possível suportar o contato com a dor e a falta, aos poucos se recupera a capacidade de amar, de se interessar pelo mundo e de investir em novas pessoas e projetos; volta um sentimento de gratidão por estar vivo e um desejo de recomeçar. Sempre tive a impressão de que atravessar um luto promove uma expansão psíquica; a vida psíquica se alarga e se enriquece, amplia-se o senso de humor e a capacidade de rir e chorar. E aumenta a tolerância e a empatia pelo outro, diferente de mim.

No caso dos estados depressivos e da melancolia, a recuperação é muito difícil; a pessoa perde o ritmo; patina em uma inércia longa, interminável. Acontece tudo o que foi descrito para o luto, mas é muito mais difícil fazer a travessia. A maior diferença em relação ao luto é a presença de um persistente auto-ódio, que se soma ao desinvestimento do mundo. Na melancolia há uma perda significativa do amor a si mesmo; é quando entram em cena muitas recriminações, autocríticas, autodepreciações. O prefixo auto denota a direção narcísica, que acompanha a reversão do ódio contra si: o amor se converte em ódio e inveja, sem descanso, sem trégua. É difícil, sem perdão e autocrítica, transformar o ódio em arte; até a sublimação exige que o ódio se envolva com alguma forma de amor.

Dá para ver então que a questão crucial para entender a melancolia é essa persistente transformação do amor em ódio do outro e de si mesmo e esse direcionamento dos afetos ao eu, sem piedade, sem sossego. É isto que torna mais definitiva a perda da capacidade de investir no mundo e de sentir amor. Vamos usar esses conhecimentos para pensar o que torna possível entrar no dinamismo da gratidão e o que leva o trabalho de Eros a se desorganizar, conduzindo ao predomínio da inveja.

 

Inveja e gratidão

Um dia perguntaram a Freud: o que é o amor? Ele respondeu que o amor é a gratidão que sentimos em relação às fontes de nutrição. A gratidão atesta que algo vital foi recebido, que acolheram nosso desamparo e cuidaram de nós, que nos deram de comer e beber, que nos disseram palavras justas, tirando-nos da falta e da carência. Desde o início da vida, mas também durante a vida toda, à medida que somos alimentados no corpo e na alma, o amor vai sendo depositado, vai sendo despertado em nós e surge de maneira sutil, desde os primeiros tempos. De início apenas como uma reação difusa de conforto por termos sido cuidados, embalados, tocados. Os doadores de vida nos mostram o mundo e sentimos imensa atração pela melodia da voz, pelo brilho da luz e por toda a natureza que vai se tornando visível e sensível, que invade os cinco sentidos com as primeiras experiências estéticas, com a experiência da beleza e do prazer.

Tal plenitude do existir foi expressa por Rilke ao dizer. "Vivo. De quê? Infância ou futuro não decrescem... Uma caudalosa existência transborda em meu coração" (Elegías de Duina). O sentimento oceânico, que nasce da experiência estética, é o precursor da gratidão: provém dessa caudalosa infância que transborda no coração do poeta. A gratidão intensifica a experiência da infância que, de certa forma, está perdida na vida adulta, mas que não cessa de voltar, pedindo expressão. É o que diz Merleau-Ponty: "A linguagem realiza, quebrando o silêncio, o que o silêncio queria e não conseguia". Uma caudalosa existência se origina de memórias sensoriais que não cessam de sondar o futuro, em busca de se dizer, de alguma palavra poética que lhes dê abrigo e significação. O cerne da gratidão é essa sensação de respirar mais fundo, de criar espaço psíquico, de se sentir maior. Tem-se o sentimento de ter recebido e o desejo de responder. Mas a expansão psíquica, usufruir desse poder de irradiação da gratidão só acontece se a pessoa puder receber, e receber exige uma capacidade negativa: ficar pequenininho diante daquilo que vem de fora e nos ultrapassa.

Depois de uma perda, quanto mais bem desperto e implantado tenha sido o amor, mais fácil será um dia recuperar o desejo de viver e investir no mundo quando o sofrimento quiser nos abater. Quando os momentos de júbilo, prazer e gratidão do passado tiverem sido mais raros, será mais fácil perder o contato com a gratidão por estar vivo, com desejo de viver e de investir no mundo. Melanie Klein chamava essas marcas de amor ao objeto de "bom objeto interno". O bom objeto interno é mais que um objeto ou a representação de um objeto. É um memorial de todas as experiências de ter sido cuidado, olhado, reconhecido. É, portanto, o lugar de irradiação da pulsão de vida, lugar de onde poderá nascer o desejo de viver e a capacidade de investir no mundo, isto é amar. Ela afirma que essa marca tem que ser muito bem implantada para poder se disseminar.

Como ultrapassar a inveja e sair em direção à gratidão? Trata-se de um trabalho interminável, como a duração da própria análise. Vou pensar em dois aspectos: as condições de possibilidade para que surja a gratidão e uma dimensão que vou chamar de "capacidade para receber e pedir", embora esteja completamente associada à questão da transmissão da vida. Os dois aspectos estão presentes em um trecho do texto de Klein de 1957:

Ao longo de todo o meu trabalho, tenho atribuído importância fundamental à primeira relação de objeto do bebê - a relação com o seio materno e com a mãe - e cheguei à conclusão de que se esse objeto originário, que é introjetado, fica enraizado no ego em relativa segurança, está assentada a base para um desenvolvimento satisfatório. Sob o predomínio dos impulsos orais, o seio é instintivamente sentido como a fonte de nutrição, e, portanto, num sentido mais profundo da própria vida. Essa proximidade física e mental com o seio gratificador em certa medida restaura, se tudo corre bem, a perdida unidade pré-natal com a mãe e o sentimento de segurança que a acompanha. Isto depende em grande parte da capacidade do bebê de investir suficientemente o seio [...] dessa maneira a mãe é transformada em um objeto amado. Pode bem ser que o ter sido parte da mãe no estado pré-natal contribua para o sentimento inato do bebê de que existe fora dele algo que lhe dará tudo que necessita e deseja. O seio bom é tomado para dentro e torna-se parte do ego, e o bebê, que antes estava dentro da mãe, tem agora a mãe dentro de si. (Klein, 1957/1991, pp. 209-210)

Os desencontros entre o recém-nascido e seus cuidadores acontecem quando o ambiente falha e quando a intensidade da demanda ultrapassa muito a oferta que se pode conceder. Nessas circunstâncias, o trabalho de Eros se desorganiza e impede a assimilação do bom objeto e o processo de seu enraizamento. Será preciso analisar isso na situação analítica e desconstruir a aspiração do sujeito de ser, ele próprio, e o tempo todo, a fonte de sua nutrição. Isso implica em aceitar depender, pedir e receber. E exige tolerar a condição de desamparo. Quando o desencontro persiste, a dinâmica de Thanatos se expressa pela inveja. A falta de gratidão retira o valor de todas as coisas, de si e dos outros: tudo fica destituído de importância e de valor, como na melancolia; nada vale a pena. O vazio do mundo e o isolamento a que ele conduz aumentam o sentimento de desamparo e de solidão. E então, ao invés de se sentir grande, a impressão é de ter encolhido, ter ficado menos generoso e mais mesquinho.

No campo da análise é comum que o sujeito melancólico traga ao analista um sentimento de insuficiência e de impotência, desvitalizando-o. A inveja retira o valor da escuta e das interpretações do analista, o que já constitui uma perda, mas, além disso, são as defesas contra a inveja, como a indiferença e a desvalorização de tudo que conduz a formas cada vez mais desvitalizadas da existência. Nelas estão ausentes o amor, o desejo, o entusiasmo e a paixão. Abafar os sentimentos de amor e gratidão, aliás, é uma forma de diminuir o valor de tudo e, com isto, livrar-se da inveja.

A condição para que a gratidão venha a se desenvolver é ter um dia usufruído do sentimento indiviso de pertencer e existir para alguém. Além disso, apesar dos inevitáveis desencontros entre a demanda de reconhecimento e o que o mundo ofereceu, é preciso que tenha havido suficientes chances de compensação e reparação. É bom quando os cuidadores admitem que falharam e podem corrigir suas falhas o mais rápido possível.

Podemos pensar, por exemplo, nos acontecimentos traumáticos da infância que deixaram marcas de turbulência afetiva: foram momentos de abandono afetivo, responsáveis por um estado de confusão mental e um sentimento de isolamento e solidão. Podemos levantar a hipótese de que em algum momento posterior da vida pode ter existido um amigo a quem foi possível contar o acontecido, e alguma reparação pôde ser feita, em virtude do poder terapêutico de uma narração. A lembrança de ter sido escutado cria um registro afetivo contrário ao trauma, algo que Christopher Bollas (1992/1998) chamou de genera -um tipo particular de organização psíquica que permite entrar em outra perspectiva em relação ao evento traumático. Núcleos de genera - aspectos inconscientes que guardam a memória de provisões ambientais - podem se formar através de amigos, de pequenos gestos de atenção, de escuta, uma história contada, a música ou uma psicanálise propriamente dita. O que é objeto de gratidão é ter a memória de ter se voltado para alguém em busca de ajuda e ter encontrado resposta.

Ter sido curado de um acontecimento traumático pela palavra e pelo poder coesivo da narração é algo aparentemente corriqueiro, mas cria uma disposição a pedir e a receber, associadas a uma confiança no ambiente e à esperança de receber ajuda. Isto é a condição de possibilidade da gratidão: creio que ter sido verdadeiramente escutado em algum momento da vida é o fundamento da capacidade de apreciar e saborear a transformação que o ambiente pode oferecer. Disto nasce a capacidade de fruir e usufruir a escuta e o reconhecimento, que, em um dinamismo crescente, geram mais gratidão e maior expansão psíquica.

Portanto uma resposta à questão: de onde surge a gratidão? De ter sido escutado, de ter ouvido palavras justas, que deram sentido a algo brutal que tenha sido vivido. Uma das situações de maior gratidão é ter encontrado um lugar de escuta verdadeira onde foi possível rir e chorar na companhia de alguém. Ter tido tempo suficiente junto de alguém, o tempo estendido que o luto exige para completar uma travessia que é considerada inviável para a temporalidade maníaca das exigências do mundo e das tarefas a cumprir.

Se fizesse uma busca exaustiva em minhas memórias, para encontrar aquilo que suscitou minha maior gratidão, diria que foi o nascimento de minha filha, e ao lado disso foram todas as escutas verdadeiras das quais pude usufruir dentro ou fora de uma análise. O que inclui a alegria de ter ouvido e contado histórias e as longas horas de brincar durante a infância; sozinha, com amigos, com minha prima Isabel. E também ter entrado na escola; a memória de ter sido introduzida no grande mundo da cultura, a experiência de aprender a ler e poder usufruir das inumeráveis narrativas, poemas e outras obras de arte. Cada obra de arte oferece um tipo de hospitalidade e de escuta diferente. São diversas arquiteturas psíquicas. Ali encontrei abrigo ao desamparo e ao excesso de solidão e pude me alojar em busca de novas transformações.

E, para concluir, vou dar a palavra a Terry Eagleton, um professor de teoria literária, cujo livro chamado Teoria da literatura: uma introdução fala de abordagens tão diversas quanto de fenomenologia, semiótica, estruturalismo e psicanálise. Eagleton fez uma observação extremamente apurada sobre o jogo do carretel do neto de Freud e trouxe uma compreensão luminosa acerca das origens da capacidade de narrar, antes do acesso à palavra. Ele ousou afirmar que todas as narrativas humanas - todas as narrativas humanas da história da literatura inteira! - são formas maiores do jogo do carretel, pois constituem, de alguma forma, relatos de uma perda e da esperança de recuperar o perdido.

Certo dia, vendo seu neto brincar no cercado, Freud observou que ele atirava um brinquedo e exclamava: fort! [foi embora], para depois, puxando-o de volta com um barbante, exclamar: da! [aqui]. Isto, o famoso jogo fort-da, Freud interpretou em Além do princípio do prazer (1920) como o domínio simbólico, pela criança, da ausência materna; mas este jogo pode ser interpretado como as primeiras percepções da narrativa. O fort-da talvez seja a menor história que possamos imaginar: um objeto se perde e em seguida é recuperado. Contudo até mesmo as mais complexas narrativas podem ser interpretadas como variantes desse modelo: o padrão da narrativa clássica é o de que uma estrutura original é desorganizada e acaba sendo restaurada. Desse ponto de vista, a narrativa é uma fonte de consolo: os objetos perdidos são causa de ansiedade para nós, simbolizando certas perdas inconscientes mais profundas (o nascimento, as fezes, a mãe), e é sempre um prazer vê-los de volta, seguros. Na teoria lacaniana, é um objeto original perdido - o corpo da mãe - que impulsiona a narrativa de nossas vidas, impelindo-nos à busca de substitutos para esse paraíso perdido no interminável movimento metonímico do desejo. Para Freud, é o desejo de volta a um lugar onde não podemos ser atingidos, a existência inorgânica que antecedeu a toda vida consciente, que nos leva a lutar por avançar: nossos inquietos apegos (Eros) são servos do impulso da morte ( Thanatos). (Eagleton, 1983/1997, pp. 255-258)

Eagleton considera que em todas as narrativas alguma coisa precisa ter sido perdida, ou estar ausente, para que possa então ser descoberta. Por mais difícil que seja, a perda gera muita excitação, pois o desejo é estimulado por aquilo que não se possui plenamente. No entanto, diz ele, tem que haver a possibilidade imaginária de um dia possuir o objeto do desejo: senão a excitação mobilizada pela história pode se transformar em uma angústia muito forte. É possível tolerar o desaparecimento da pessoa amada desde que se tenha a esperança de que poderá reaparecer. A sílaba equivalente ao fort! - "fora daqui" - pronunciada pelo menino só tem sentido se articulada ao da! - "volta aqui". Mas o inverso também acontece. Quando a pessoa amada retorna, para além do júbilo e do alívio, o acontecimento anterior da perda se aloja agora, no coração da presença.

E uma última coisa que me lembrei ao enumerar aquilo que faz surgir a gratidão. Para receber, é preciso abrir um grande vazio em si mesmo; tornar-se capaz de uma atenção desinteressada pelo outro e voltar seu olhar ao mundo e a seus incessantes acontecimentos.

E ter para onde voltar, depois de uma longa viagem.

 

Referências

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Correspondência:
ELISA MARIA DE ULHÔA CINTRA
Rua Alcides Pertiga, 65
05431-000 - São Paulo/SP
Tel.: 11 3086.4016 / 11 97152.1119

Recebido 11.08.2020
Aceito 29.08.2020

 

 

1 Le visible et l'invisible, p. 230.
2 Consultar Ferenczi, 1928; Bolognini, 2008; Figueiredo, 2003, 2009; Cintra, 2017; e para, o concern, Winnicott, 1963.
3 O texto A transitoriedade (1916), de Freud, fala de forma poética da capacidade de viver a nostalgia e o júbilo da passagem do tempo. Outra referência que permite um mergulho no desejo de plenitude e ao mesmo tempo o senso de humor necessário para falar da passagem do tempo está em um filme, A juventude, de Paolo Sorrentino, 2016.

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