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Ide

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Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo Jan./June 2020

 

RESENHAS

 

Corra, a vida te chama: memórias

 

 

Ana Cristina M. E. Banzato

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas), membro efetivo, analista didata e diretora científica da Asociación Regiomontana de Psicoanálisis A. C. (ARPAC), Monterrey, México. E-mail: anacristinabanzato@gmail.com

Correspondência

 

 

Boris Cyrulnik1 Corra, a vida te chama - Memórias. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, 238 páginas.

O ser humano é surpreendente para o bem e para o mal - este é o relato íntimo da infância do autor durante a Segunda Guerra Mundial. Boris Cyrulnik consegue transmitir a violência cruel da perseguição e do assassinato dos judeus, contando a história por ele vivida, e suas experiências traumáticas nos oferece uma compreensão dos sofrimentos e as consequências destes no psiquismo e na vida. Este livro traz a luta incessante de uma criança, um adolescente e um adulto para escapar da morte, física e psíquica.

Boris considera que nasceu duas vezes, um nascimento no dia em que veio ao mundo e outro na noite em que foi preso aos 6 anos de idade. Recorda que um dos soldados dizia: "É preciso fazer com que essas crianças desapareçam, senão elas vão se tornar inimigas de Hitler" (p. 10). Ele estava condenado à morte por um crime que supostamente iria cometer, isso criara em seu interior um sentimento de futuro criminoso.

Viveu muitos anos assombrado com traços de memórias do passado traumático, sentindo sempre que atravessou a morte, e ela tornou-se experiência em sua vida. Percebia a morte inscrita em sua memória e esta se tornava um organizador de seu desenvolvimento. Escreve: "não se sofre no deserto, morre-se, simplesmente" (p. 12).

Acreditou que seus pais tinham morrido por sua causa, carregou culpas e não conseguia armazenar lembranças - sua memória parecia ter se extinguido com o desaparecimento de sua mãe. Ignorava as datas e viveu anos em um caos da representação do tempo.

Soube depois de adulto que sua mãe o colocou na Assistência Publica na véspera de sua prisão, ela tentou protegê-lo da ignorância e da maldade humana, foi uma tentativa de salvar sua vida.

A memória de Boris só voltou no dia em que Margot, a professora da escola, foi buscá-lo na Assistência. Convivendo com ela e sua família, sua memória voltou a viver.

Não conseguia compreender por que foi preciso mudar seu nome, mas recordava que ouvia: "Se você disser seu nome, vai morrer" (p. 17).

Aprendeu também que falar era perigoso pois corria-se o risco de morte, e calar-se era angustiante, então não sabia como se proteger.

Era um menino, só tinha 6 anos, não sabia ler nem escrever, sem rádio, sem música sem amigos, sem palavras. Andava em volta da mesa de uma sala, onde ficava trancado, escondido - o atordoamento fazia-o sentir-se vivo, existindo...

Quando foi preso pelos soldados alemães, teve a sensação de um retorno à vida, e não se assustou, embora houvesse um exército todo para prender um menino de 6 anos, o que depois considerou um verdadeiro absurdo.

Para escapar do exército nazista, escalou a parede e escondeu-se no teto do banheiro da sinagoga onde estava preso com outros judeus, depois teve que mergulhar embaixo do colchão de uma moribunda e precisou também enfrentar o desprezo e a agressão de alguns, ao som de: "Não, não, nem pensar, esta criança é perigosa" (p. 24), e assim continuava se sentindo um monstro, mas monstros mesmo eram eles, os que mataram seus pais e milhares de pessoas, os que queriam matar as crianças e as pessoas inocentes...

As imagens traumáticas em seu interior, imagens da prisão, do confinamento na sinagoga, muitas vezes invadiam sua mente sem deixar espaço. Um dia escuta a mãe de Margot dizer: "Mas você não entende que os pais dele não voltarão nunca mais, nunca mais!" (p. 31). Foi nesse dia que soube que seus pais tinham morrido e que iria precisar aprender a viver sem eles, embora já o soubesse sem mesmo saber...

Quarenta anos de silêncio, Boris contava a sua história somente a si mesmo, não falava a ninguém, tinha medo, sentia que não acreditariam nele.

Em suas conferências, depois de ter sucesso como médico psiquiatra, era sempre surpreendido com alguém que o protegeu no passado arriscando a própria vida, ao mesmo tempo que não sabia o que dizer a essas pessoas que conheciam sua infância escondida - às vezes sentia que falavam de uma criança que ele próprio não conhecia.

Boris adaptou suas lembranças para dar coerência à sua representação do passado e para poder suportar o sofrimento que elas causavam. Assim não ficava prisioneiro da infância e escapava do trauma, pois a memória traumática não constrói uma representação que tranquiliza, porque, quando a evocamos, trazemos à consciência a imagem do choque.

Quando somos aniquilados por uma catástrofe que dilacera, permanecemos desnorteados na agonia física. A memória traumática é intrusiva, nos faz prisioneiros do passado, e essas imagens povoam nossos pesadelos. A neve para o autor faz lembrar os cadáveres gelados em Auschwitz. Fascinado pelo horror, o ferido se afasta do mundo que o cerca. Isolado entre os outros, sente-se só, expulso da condição humana.

Boris falava demais, mas ninguém poderia pensar que falava para se calar. As palavras que soltava eram para esconder a história que não podia contar. Sua vida mental era contar a si próprio a história que continha os horrores da guerra e de alguns seres humanos. O trabalho da narração íntima adaptava sua memória para embelezar o insuportável e assim tolerar os horrores...

Todo trauma modifica o funcionamento cerebral, não há como não ter consequências, mas quando se consegue modificar as relações, construir vínculos afetivos, as vulnerabilidades neurológicas adquiridas podem desaparecer.

A criança que tem marcado um vínculo seguro durante seus primeiros meses de vida é mais difícil de ferir-se, pois o sentimento de segurança não permite que a memória visual se aposse do mundo interno e lhe imponha imagens de horror. Os traumatizados costumam ter uma boa e clara memória de imagens e uma memória ruim e empobrecida das palavras. Na memória sadia as lembranças se adaptam.

Compreende hoje que sua mãe deixou-lhe a marca do afeto e alimentou com um vínculo seguro que salvou sua vida, embora algumas palavras impregnassem sua alma, pois ainda hoje escuta a fala da mãe de Margot, anunciando que seus pais nunca mais voltariam - esta frase ficou como um ritual de luto.

Boris por muito tempo não soube o que era ser judeu, mas mesmo em tempos de paz descobriu que bastava dizer essa palavra para ser excluído.

Algumas vezes ele se sentia sozinho e infeliz, era como uma não vida antes da morte, mas o simples fato de não morrer para ele era sempre uma vitória. Nessa época sonhava todas as noites que estava fechado dentro de um aquário, via o mundo exterior, mas não podia mexer-se. Às vezes o aquário se enchia de bolhas que cresciam e vinham em sua direção para esmagá-lo...

Evitar a representação do passado permitia que não tivesse angústias, depressões, mas quando uma palavra ou acontecimento evocava a ruína da sua infância, ele se calava, e os pesadelos expressavam a ameaça de morte.

Indignado, pensava: como compreender o horror expressando-se na banalidade?

Suas péssimas notas na escola confirmavam a ele sua inferioridade, como tinham afirmado os alemães. Sentia que, se tivesse falado durante a guerra, o teriam matado, mas, quando falava em tempos de paz, ninguém acreditava em suas histórias.

Apesar da desgraça da guerra, conhecera momentos felizes. Ele guardava na memória imagens ternas e alegres com sua mãe e o orgulho que sentia do pai por ter se engajado na Legião Estrangeira.

Descobriu também a beleza fantástica do sol nascendo e a extraordinária satisfação de trepar em tudo que pudesse ser escalado. Sentia que, enquanto pudesse escalar, era possível libertar-se. O significado que atribuímos ao presente enraíza-se em acontecimentos passados: escalar significava que existe sempre uma liberdade possível.

"A 'cripta' individual que se incrusta na alma do ferido lá se instala por causa da reação discordante de seus próximos e de sua cultura" (p. 83).

A guerra o despersonalizou, tirou-lhe os pais, colocou-o numa prisão, condenou-o à morte. Boris se escondeu para proteger-se, ficou em salas escuras, em caldeirões, em casa de gente que não conhecia. Desafiando a morte, criava uma identidade.

A cultura nos anos do pós-guerra não conseguia entender que a negação protetora instalava na alma uma bomba de efeito retardado - o autor levou mais de 50 anos para conseguir voltar à sinagoga onde ficou confinado.

As lembranças dispõem pedaços de verdades e com eles fazem uma representação no nosso teatro íntimo. O filme que projetamos no mundo psíquico é resultado de nossa história e de nossas relações.

Na memória de si, a verdade das coisas é parcial. Boris mudava o modo como o passado agia sobre ele. Construía um novo passado remanejando sua história, o que permitia escapar da memória traumática - o passado dentro dele tornava-se coerente devido aos esquecimentos e remanejamentos afetivos. Dentro dessa zona de reconstrução é que a criatividade nos dá o instrumental da resiliência. Com 11 anos, escreveu que queria ser psiquiatra para compreender a alma dos humanos.

Estava morando com Dora, sua tia, e Émile, seu companheiro, quando se tornou um excelente aluno. Estavam procurando uma moradia maior, seu mundo interno se iluminou, incorporava a segurança afetiva oferecida por Dora e Émile.

Parece às vezes que não sofreu durante a guerra porque sua alma estava gelada, estava em agonia psíquica, não conseguia sentir nada. A pessoa traumatizada não escolhe o silêncio, mas é a cultura que o faz calar-se. "Nenhuma história é inocente. Contar é pôr-se em perigo. Calar-se é isolar-se" (p. 128).

Mesmo com o fim da guerra a paz não surgiu, calava-se o horror para encenar a coragem, mas calar criava angústias e falar transmitia o horror inimaginável - a vida de um sobrevivente é sofrida e difícil.

Boris sente que sua vida mental apagou-se quando sua mãe desapareceu, por isso não sofreu tanto, pois não sofremos quando estamos em coma, sofremos quando estamos vivos, e desesperava-se ao sentir que não era um verdadeiro humano.

Refugiava-se em sua cripta luminosa em seu sepulcro subterrâneo nos momentos de dificuldades. Privado de sua família, de suas origens, o trauma tornava-se sua identidade secreta. Calava-se porque ninguém podia ouvir o que tinha para dizer. Sentia que precisava se calar para parecer normal, mas calando-se não se sentia normal. Prometeu a si mesmo que um dia contaria sua história, mas teria que antes ser capaz de falar e tornar os outros capazes de ouvir. Ele viu o rosto da morte, um dia quis contar como é. Não queria calar-se e tornar-se cúmplice dos assassinos, mas falar era desnudar-se, tornar pública sua intimidade. "Dizer é ser excluído. Calar-se é aceitar a amputação de uma parte da própria alma" (p. 152).

Com 10 anos, descobriu que pertencia ao povo que matara Cristo, e não compreendia direito, mas sabia que havia um enigma trágico e apaixonante.

No seu contexto do pós-guerra, na cultura que o cercava, só se escutavam relatos de resistência, de coragem, mas nenhuma queixa - falar do que acontecera teria ajudado Boris a tornar coerente aquele real louco e a não sentir-se um monstro expulso da condição humana. Calar-se era ver-se sozinho. A história vai se esclarecendo à luz do presente, a estrutura do presente é nossa relação.

Quando Dora passou dos 90 anos é que contaram um ao outro suas infâncias. Falou para ela da importância de Émile em sua infância, sua identificação com ele, percebeu que se tornou médico porque Dora relatou que era o desejo de sua mãe, e foi o seu de agradá-la.

Em um mundo sem o outro como o dos perversos, a culpa não existe, foi em nome da humanidade que se cometeram todos os crimes contra a humanidade. Durante a guerra, Boris teve que esconder um fantasma em sua alma, tinha que calar sua identidade judia desconhecida, pois a sociedade estava cindida entre salvadores e assassinos.

Tinha com Dora um curioso modo de comunicação, afetuoso e ao mesmo tempo perturbado pelos fantasmas de cada um, pelos silêncios e segredos.

Os adultos se enganam quando acreditam que a criança amadurece precocemente - não é maturidade, é perda de vitalidade. Sob o golpe do trauma, as crianças se apagam, refugiam-se naquilo que ainda tem vida, a intelectualidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, as crianças que não foram protegidas desempenharam essa maturidade mórbida.

Émile reforçava Boris com seu amor pela ciência, Dora, com seu afeto, o amigo Jacquot, com seu comunismo generoso, e o ginásio de pobres, com seu bairro surpreendentemente culto e os estimados professores que marcaram seu destino.

No fim da guerra, uma criança a cada três desaparecera, os judeus foram deportados ou fuzilados, muitos cristãos pagaram com a vida nos campos de concentração e sob as balas dos pelotões de execução.

Boris e todas as crianças que sobreviveram à guerra viveram uma cascata de traumas de agressões físicas e psíquicas - ele viu a morte e retornou à vida.

Os que foram muito feridos permaneceram prisioneiros da guerra do passado, sofrendo no presente um passado sempre presente. Para estes as feridas ainda sangram.

Quando somos feridos na infância, torna-se difícil abrir a cripta instalada em nossa alma, e a memória traumática durante a noite volta em forma de pesadelos, reforçando as cenas de horror.

Quando já estava mais em paz, pôde ouvir o seu passado e compartilhá-lo, o ambiente estava mais suave e as palavras foram degelando-se. Espantava-se com a submissão de certos homens, capazes de matar simplesmente para obedecer.

"A desgraça da guerra ensinou-me a arte do silêncio. Só depois que minha cultura me devolveu a palavra, pude entender o caminho percorrido" (p. 238).

Ao término de seu livro, Boris escreve: "Odiar é permanecer prisioneiro do passado. Para livrar-se, é melhor compreender do que perdoar" (p. 237).

Na minha leitura, esse é um livro para se viver...

 

 

Correspondência:
ANA CRISTINA M. E. BANZATO
Rua das Abélias, 1479
13097-173 - Campinas/SP
Tel.: +52 81 2466.1675 / +55 19 99765.9066

Recebido 04.06.2020
Aceito 15.06.2020

 

 

1 Psiquiatra, psicanalista, é também responsável por um grupo de pesquisa em etologia clínica no hospital de Toulon, França, matéria que ele ensina. Contribui largamente para fazer/(re)conhecer essa disciplina. Deve-se a ele, igualmente, o conceito de resiliência.

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