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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

A vida1

 

I Life

 

 

Hamlet Fernando Paoletti

Jornalista brasileiro, trabalhou muitos anos na Smithsonian Institution em Washington, D.C., EUA. Atualmente reside em Austin, Texas, EUA

Correspondência

 

 


RESUMO

Le message, história em quadrinhos escrita por Jean-Michel Folon, reflete a condição humana, seu desejo de comunicação e os esforços feitos para que isso seja alcançado. Publicado na França nos anos 1960, continua a servir como um retrato poético da busca por conexão, fator tão fundamental na saúde física e mental do ser humano.

Palavras-chave: Jean-Michel Folon. Quadrinhos. Vida. Máquina de escrever. Comunicação. Mensagem. Busca de contato.


SUMMARY

Le message, a comic book written by Jean-Michel Folon, mirrors the human condition, its desire for communication, and the efforts done so this can be achieved. Published in France, in the 60s, it continues to be a poetic portrait of this search for connection, such a fundamental factor in the physical and mental health of human beings.

keywords: Jean-Michel Folon. Comic book. Life. Typewriter. Communication. Message. Search for contact.


 

 

Para C. T., de quem sequestrei Le message, e para N.B., que também amava livros e que deveria estar nestas páginas

A vida é simples.

A prova tem 33 desenhos e nenhuma palavra. Foi publicada em Paris, em 1967, numa coedição Olivetti Milan/Hermann, éditeurs des sciences et des arts, tem como título Le message e explica tudo: quem somos, o que queremos, o que fazemos e por que fazemos.

Jean-Michel Folon, o autor, foi um dos maiores artistas gráficos da época e se inspirou para esse livro (se é que se pode chamar assim uma publicação de 14 cm por 11 cm, com apenas 38 páginas) numa ideia de seu amigo, Giorgio Soavi, escritor italiano que dirigia o Departamento de Comunicações Corporativas da Olivetti. Soavi queria vender máquinas de escrever, mas o poeta nele iludiu o publicitário e acabou criando uma metáfora simples e universal para a condição humana.

Aqui talvez eu deva abrir um parêntesis para explicar às novas gerações o que é uma máquina de escrever. Era um aparato mecânico sofisticadíssimo no qual uma folha de papel em branco era colocada num rolo emborrachado e, utilizando-se um teclado, imprimia-se na folha em branco letras, números e outros caracteres à vontade do datilógrafo. Sim, assim se chamava quem escrevia à máquina ou, como se dizia popularmente, batia à máquina. A única herança tecnológica deixada pela máquina de escrever foi o teclado, no qual agora, num computador Apple, estou datilografando estas linhas. Fim do parêntesis.

Em 1969, dois anos depois de publicado, Le message virou desenho animado e, claro, está no YouTube. É só procurar por "Folon Le Message". Gosto mais do livro, que também, é claro, está à venda no eBay.

Para esse livro, que na verdade é uma história em quadrinhos encadernada, os desenhos de Folon são minimalistas, com poucas linhas e uma só cor - azul - nas paredes externas dos prédios e na roupa do homem.

O homem, vestindo um sobretudo e um chapéu, vem andando por uma rua. Calçadas estreitas, paredes de edifícios altíssimas, quarteirões e quarteirões sem uma porta ou uma janela. O homem caminha, como alguém procurando alguma coisa. De repente, uma porta. O homem passa por ela e depois, surpreso, para, olha pra trás, volta e experimenta a maçaneta. A porta abre. Ele entra.

Dentro, num grande salão, está um enorme aparato mecânico, uma coisa que ele nunca tinha visto. Uma carapaça metálica, com uma bobina redonda no alto, onde está enrolada uma folha de papel em branco, envolve um mar de teclas, cada uma com o símbolo de uma letra, todas organizadas em fileiras horizontais. Uma gigantesca máquina de escrever.

Ele ainda não sabe, mas é exatamente isso que ele estava buscando. Um meio de comunicação.

O homem, diminuto, se aproxima lentamente. Do chão ele não consegue alcançar nem as letras da fileira mais baixa do teclado. Com esforço, montado na parte de baixo da máquina de escrever, ele estende o braço direito até alcançar uma tecla, o t. Com cuidado, talvez apreensão, talvez até medo, ele aperta a tecla, e um t é imediatamente impresso na folha de papel, enrolada na bobina no alto do teclado.

Ele encontrou o que precisava.

Equilibrando-se com cuidado, ele vai saltando de letra em letra, compondo sua mensagem. Como o espaço entre as letras é muito grande, ele aperta uma tecla com um braço estendido e logo depois uma outra com o pé. Aos poucos aquela imensa página em branco vai se enchendo de caracteres. O homem continua pulando de letra em letra, às vezes escorregando, quase caindo, tropeçando num c e ficando pendurado num A.

No fim, satisfeito, ele escala aquela geringonça mecânica até o alto para remover a página de papel, agora toda cheia de letras, números e símbolos. Com esforço ele consegue retirar a página da bobina e, como se estivesse carregando um enorme tapete acima de sua cabeça, cuidadosamente desce pelo teclado, até conseguir chegar ao chão.

Aí, como fazem milhares de crianças todos os dias mundo afora, ele dobra e redobra a folha metodicamente, construindo um eficientíssimo aviãozão de papel. Com cuidado e muito esforço, ele arrasta o avião de papel até a rua e, correndo para pegar impulso, o lança ao ar.

A folha de papel dobrado, levando sua mensagem, vai subindo, subindo, se desviando dos prédios e alcançando o céu azul. O homem fica na rua, de pescoço esticado, olhando para o alto, até o aviãozinho de papel desaparecer. Aí ele vai embora. Antes de virar a esquina, mais uma olhada de esguelha, mas o portador da mensagem já tinha desaparecido atrás dos arranha-céus. Missão cumprida, o homem sobe na calçada estreita e caminha para longe.

A mensagem? Depende. Pode ser o rascunho de um documento importante como a carta-suicídio de Getúlio Vargas ou um bilhete de amor para Elizete que trabalha na farmácia da rua de cima; pode ser uma série de conselhos para o seu sobrinho favorito sobre como viver a vida, como fez o intelectual negro norte-americano James Baldwin no The fire next time, ou uma nota para o bicheiro para jogar tudo no camelo; pode ser um artigo de jornal esculhambando o presidente ou um lembrete para seu melhor amigo sobre o epitáfio que escolheu para seu próprio túmulo.

Cada um é cada um. Cada um tem, e é, sua mensagem. A vida é pra isso. A gente chega, a gente tenta o melhor possível dar o nosso recado e a gente se vai. Todos e cada um. Como talvez tenha dito Adorno (ou será que foi JAY-Z?):2 C'est la vie!

 

Referências

Baldwin, J. (1963). The fire next time (1ª ed.). eua: Dial Press.         [ Links ]

Folon, J.-M. (1967). Le message [Filme]. Paris: Olivetti Milan/ Hermann.

 

 

Correspondência:
HAMLET FERNANDO PAOLETTI
6263 McNeil Drive, ap. 1137
Austin, Texas 78729-7586 U.S.A
hamlet17@mac.com

Recebido 18.07.2020
Aceito 03.08.2020

 

 

1 Texto inédito, escrito especialmente para a revista Ide.
2 Shawn Corey Carter, 50 anos, nome artístico JAY-Z, é um dos mais famosos artistas de hip-hop. Rapper, compositor, produtor e empresário norte-americano, tem mais de 50 milhões de discos vendidos, recebeu 22 Grammy Awards e tornou-se, segundo a revista Forbes, o primeiro artista de hip-hop a ficar bilionário. Em 2008, casou-se com a cantora Beyoncé.

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