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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

LANÇAMENTO

 

O retorno de Ulisses1

 

 

Olgária Féres Matos

Professora titular do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP e professora titular do Departamento de Filosofia da Unifesp. É autora dos livros Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução; Benjaminianas: reflexões sobre o fetichismo contemporâneo; Palíndromos filosóficos: entre mito e história; entre outros - São Paulo / olgariam@gmail.com

 

 

Primeiro de tudo queria agradecer o convite, que muito me honra, e todo esse carinho que vocês têm por mim, e falar desse afeto que há tanto tempo nos faz estar juntos hoje. É mesmo uma celebração, marcar um tempo de alegria e realização, um alento de inteligência em um momento tão desolador. Judiciosamente este número da Ide tem por tema a viagem de Ulisses, a viagem e a memória do percurso e do ponto de partida, seu alcance filosófico, antropológico, psicanalítico, em meio a nossa cultura, a da desmemória, do recalque e da pressa, que determinam o fim da transmissão de experiências, na qual se alojava a aura do tempo. Nesse sentido, o Canto XVII da Odisseia (vs. 290-327) é revelador, com o episódio que narra o retorno de Ulisses depois de 20 anos de ausência. Sob o disfarce de mendigo, esconde sua identidade de todos, não sendo reconhecido nem mesmo por sua esposa Penélope. O único a reconhecê-lo é seu cão Argos, que guardara a memória sensitiva do Mestre. Na emoção do reencontro, na tristeza dos anos de ausência, permanecera em estado de abandono:

o dono ausente, o cão jazia deslembrado sobre o estrume de boi e mulo amontoado na frente de uma porta, até que os serviçais cuidassem de levar o adubo à leiva imensa. Argos, o cão, jazia em cima, carrapatos laceram sua pele. Quando vê o herói, agita a cauda, dobra as duas orelhas, não consegue avizinhar-se do senhor, que faz a vista longe a fim de que o porqueiro não notasse a lágrima caída... "Foi o cachorro de um herói que nos confins morreu ...; admirarias sua robustez e flama ... Agora o cão chafurda na miséria...". Logo Argos sucumbe à moira negra morticida, ao ver, passados vinte anos, Odisseu. (pp. 522-523)

Argos só tem o tempo de aguçar os ouvidos e abanar a cauda, morrendo em seguida. Tendo guardado a memória de quem o formara e a quem acompanhara por todas as partes, Argos expira. Pela memória, Argos reconheceu, por detrás da silhueta desmanchada de seus olhos envelhecidos, o corpo que ele tinha amado.

Ulisses não é somente a memória e o desejo do retorno a Ítaca, pois sua ausência acarreta a desordem política, atinge Ítaca com a paralisia, é um desaparecimento que deixa um vazio de poder, a suspensão da Lei, pois o tempo, com sua partida, imobilizou-se; em sua ausência instalou-se a anomia, o palácio sendo ocupado pelos pretendentes à rainha e ao trono, concorrentes e rivais que vivem em uma festa contínua, dissipando todos os bens do palácio e da cidade. Por isso, também seu filho Telêmaco espera por ele:

Sua casa fora invadida por jovens príncipes que saqueiam a despensa, violentam as escravas, constrangendo Laerte, o pai de Ulisses, a fugir para o campo, comportando-se como senhores arrogantes em casa alheia, cuja maior ambição é casarem-se com Penélope ... A espera de Telêmaco não é a espera por uma lei anônima. Ele espera o retorno de um pai ... Esperar o pai é esperar a Lei ... como o que poderá reinstalar ordem na casa usurpada, ofendida, devastada.

Quando Telêmaco procura reuni-los em assembleia, todos vêm armados. Assim, diante das intenções belicosas deles, e não de diálogo, Telêmaco decide partir em viagem e procurar o pai, porque, olhando para o mar como quem espera em vigília, nenhuma estrela assegura o retorno de quem ele está esperando:

uma dupla infelicidade pesa sobre minha família. Mais que tudo, perdi o autor benevolente de meus dias, Ulisses, que outrora reinava como o mais terno pai. Um outro desastre, não menos terrível, logo destruirá todos os meus domínios e consumirá todas as minhas riquezas. Os pretendentes ... passam todos os seus dias em nosso palácio, imolam nossos rebanhos, nossos carneiros e nossas mais belas cabras, entregam-se à euforia dos festins, bebem impunemente o vinho rútilo. Carente de autoridade de um homem da estatura de meu pai, que a maldição afaste ... minha casa definha desonrada.

Na desordem cósmica da festa que, ininterrupta, confunde o dia e a noite, anulam-se as diferenças geracionais, na afronta da lei suprema da hospitalidade.

A modernidade encontra na noite dos pretendentes sua metáfora, na qual a fruição divorciou-se da Lei, nela não mais se reconhecendo limite e mesmo transgressão e, por isso, dominada por um princípio de morte, em crise de filiação:

A questão hoje não é o caráter repressivo da justiça e da lei, mas a ausência de justiça e de lei ... Telêmaco esperava e pedia justiça e lei, Telêmaco não experimenta o conflito com o pai, não vive o pai como lei tirânica e repressiva dos impulsos, mas anseia pelo pai e o espera para que possa pôr ordem na casa devastada pelos pretendentes.

A busca de Telêmaco, carente de estar inscrito na história do Outro, de ser desejado: que alguém responda a seu apelo, à necessidade de conhecer sua proveniência, as raízes de inscrição em uma memória. Por isso, a falta da figura paterna afeta a identidade do filho, pois nem sua semelhança com Ulisses, tampouco as garantias de sua mãe bastam para assegurar sua filiação: "Minha mãe afirma que sou seu filho, mas eu, eu não sei, não: a criança sozinha não reconhece o pai". Telêmaco não conheceu o pai, que cedo partiu, sua espera é que alguém responda na escuridão da Noite, que volte do mar; e, mesmo na incerteza, ele prescruta o horizonte para reconquistar, a um só tempo, futuro e herança: "não há desejo maior do que ver seu vulto, que abraçar meu pai". O retorno do que foi uma primeira vez marca o tempo com historicidade que não é apenas a possibilidade de sua transmissão, mas também de seu nascimento. Pois, se o sentido é radicalmente temporal, se necessita do tempo para se tornar de todos os tempos, para se converter em tradição, repetição e retorno o seriam do que uma vez foi a primeira vez (Erstmaligkeit) e do que jamais voltará como tal. Assim, também Ulisses perdeu para sempre os anos de infância de seu filho, o que jamais poderia lhe ser restituído.

Porque todos os pais já foram filhos é que podem responder à nostalgia dos filhos, de reencontrar em si essa figura do herdeiro e da transmissão.

Muito obrigada!

 

 

1 Palestra proferida no lançamento da revista Ide, 43(71).

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