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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

ODE AO DIVINO EM TI: A TRAVESSIA DO HERÓI ENTRE CRENÇA E FÉ

 

 

Escutar odisseias

 

Listen to odysseys

 

 

Luis Pereira Justo

Psiquiatra, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com especialização em psiquiatria de adultos. Formado em Psicoterapia Analítica de Grupo pela Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo do Rio de Janeiro e Terapia de Família pelo Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (USP). São Paulo / lpjusto@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto pretende fomentar a reflexão sobre a premência da criação de discursos e significados sobre a vida presente, passada e futura que permeia o viver dos seres humanos. Há marcos nesta produção que são associados metaforicamente a passagens da Odisseia. As metáforas são também veículos para pensar criticamente sobre o poder da significação na escuta de um interlocutor requisitado para isso, que pode ser um psicanalista. Escutar quase sempre implica interpretar. Há sempre armadilhas nesse incessante processo. A balização promovida pela emergência da Verdade, enquanto o limite do saber é posto acima do que pode ser verdadeiro, propicia a produção de novas, e potencialmente mais ricas, narrativas do sujeito sobre si mesmo e sobre o outro, o que pode ser um ato de libertação.

Palavras-chave: escuta, discurso, interpretação, significação


ABSTRACT

This text intends to encourage reflection on the urgency of creating discourses and meanings about the present, past and future life that permeates the life of human beings. There are milestones in this production that are here metaphorically associated with passages from the Odyssey. Metaphors are also vehicles for thinking critically about the power of meaning in listening to an interlocutor requested for this, who may be a psychoanalyst. Listening almost always implies interpreting. There are always pitfalls in this ceaseless process. The demarcation promoted by the emergence of Truth, while the limit of knowledge is placed above what can be true, provides the production of new and potentially richer narratives of the subject about himself and about the other, which can be an act of liberation.

Keywords: listening, discourse, interpretation, making sense


 

 

I. Para chegar

Nós, de algum modo e em algum momento ou circunstância, somos movidos pela vontade de retornar. Todos. Uns afirmam querer isso, outros não. A maioria vê Ítaca no final da rota, no entanto, há um além para onde inevitavelmente se vai, o Hades. Este é comumente inóspito para idealizarmos os bons destinos, por mais que se possa preencher as fantasias sobre ele com histórias para encantar e mitigar angústias e dores. Ambos podem ser tomados como a morada que se alcançará, mas quase ninguém fica imperturbável ao pensar no segundo e derradeiro ponto de chegada. Mesmo que ele equivalha à plenitude, esta, que a ninguém é dado viver, também equivale à extinção. Resta substituir tal noção, que é a do fim definitivo, pelo mito de um outro tipo de existência.

Até a chegada serão muitas jornadas a percorrer. Voltar para casa pode representar a esperança de deixar para trás as guerras e os males, o sofrimento. Abandonar as variadas formas de inquietação que obrigaram a singrar as águas turbulentas de Poseidon. Para muitos parece importante compreender das andanças o porquê. Formular questões e obter respostas. Afirmar. Cobrir de significados as travessias e acreditar em finalidades e razões sólidas. Empresa que se revela árdua, cujos produtos são frequentemente respostas a questões não formuladas ou ao surgimento de novas indagações e aprofundamento de dúvidas. Nossos saberes são construídos no transitar por essas águas, aliás, não só o conhecimento do exterior do mundo, mas do próprio mundo que existe dentro de nós. Nesse trânsito é que nos constituímos, ganhamos uma estrutura, tecemos uma história. O que veio antes e o que virá depois não é visível para os mortais, somente quem habita o alto do Olimpo pode ver.

Odisseu lembra-se de Troia, objeto de tanta luta e causa do exílio tão prolongado. Para todos há algum lugar como Troia, possivelmente vários. São difíceis de precisar, exigem explorações arqueológicas. Desses lugares restam imagens pouco precisas, cambiantes. A eles associamos padecimentos e glórias e necessitamos contá-los. No entanto, quando relatamos o que neles experimentamos, muito daquilo que acreditamos ter existido tresanda ou transforma-se. A consistência do lembrado é frágil, insuficiente, instável. O esforço por organizar memórias resulta em relutâncias e leva-nos a pisar solos que não vemos. É exaustivo tentar contar os caminhos trilhados. Às vezes, se faz preciso adiar a diligência ao passado e voltar nossos olhos para o porvir. Mas o futuro está atrelado ao que já se deu e o presente é fundamentalmente rememoração, criação de sentidos, estabelecimento de propósitos, desfraldar de velas. No presente agimos para cruzar névoas. Tentamos guiar-nos por estrelas que não enxergamos com clareza.

No barco cada marinheiro quer ter seu posto, ter singularidade e importância. O anonimato quase nunca é bem-vindo, a despeito da complexidade das engrenagens ou de coletivizações nas tarefas. O reconhecimento por parte do outro, dos múltiplos do outro, pares e não pares, é imprescindível para a existência de cada um de nós. Não se quer a dissolução nas águas por onde segue a nau. Isso seria sucumbir no afogamento, que aterroriza, assim como muitas outras formas de apagamento. A maioria agarra-se à embarcação e tenta apropriar-se da arte de bem usar os remos. Nadar pode ser preciso, mas isso deve ser para situações emergenciais e provisórias. Nosso corpo tem suas limitações e necessitamos permanecer embarcados. Persistir remando é afirmar a vida. Navegar, chegar e partir são a sinonímia do viver.

Sob certos ângulos, insistir em viver pode assemelhar-se a uma forma de automatismo, mas perscrutando bem é possível identificar os engenhos do desejo. Força pulsional bem traçada e encarnada. Modos de investimento que podem afetar tão vigorosamente o percurso quanto a idílios sobre portos em que se atraca. Navegar ou aportar são suportes para a energia humana. O sonho mais acalentador seria alcançar uma Ítaca e lá permanecer, eternamente, ter, enfim, tudo o que se quer, tudo o que importa. Um lugar que seja para sempre e que funcione em conformidade com os mecanismos das boas aspirações. É onde supõe-se já ter estado num passado remoto do qual os registros perderam a concretude para dar lugar aos espectros.

Lançamos mão de recursos para persistir e eludimos as reflexões mais agudas sobre o regresso. Contornamos as demasiadas intromissões da Verdade. Deusa demoníaca, sem face. Sem Olimpo. Sempre subversiva e desfazedora. Aliada de Plutão. Priorizamos apenas as escalas que pontuam a sobrevivência. Salvaguardamos Ítaca, mantendo-a no horizonte e reforçar sua função de tornar mais tênues as alusões ao derradeiro mundo de Plutão, ao Hades. Falamos de Ítaca e dos esforços para alcançá-la, das aventuras que gostaríamos de transformar em ventura. Falamos.

Discursos sempre implicam perigos. Dizemos sempre mais e menos do que pretendemos. No entanto, calar é pior. Talvez nem seja uma possibilidade real. Discursando fendemos oceanos, promissores e também ameaçadores. Nisso reside a esperança de significação e justificativa, embora encontre-se, não raro, o que não se buscava. Com certo risco podemos cogitar uma Ítaca sem Penélope e os pretendentes a sua mão de viúva presuntiva, sem Telêmaco, sem alguém identificável de antemão. Para tanto é necessário que sejamos um pouco mais temerários do que Odisseu, permitindo-nos procurar uma ilha da qual nada sabemos. Sobre a qual não há nenhuma evidência de que encontraremos Penélope ou Telêmaco. Nem ninguém mais. Nem nada.

Há os que desesperam na sofreguidão da crença em alguma solidez para o ponto em que cessa o navegar, mesmo que contraditória em sua natureza. Por isso há que se resguardar os mitos. Deles extraímos segurança. Neles tentamos dissolver o sofrimento. Com eles criamos narrativas orientadoras, estruturantes. Legitimamos, mesmo que artificialmente, o que a nós move. Os que não querem encerrar a perambulação e ir diretamente para o reino do Hades têm que salvar e alimentar o sonho de Ítaca. A ilha de infindáveis geografias.

Sacamos em Odisseu, vivente de nosso âmago, a inspiração para ardis que permitam-nos viajar e penetrar territórios que julgamos proibidos. Construímos nossas versões de cavalos de madeira cujas barrigas sirvam de abrigos e também para a realização de intentos ousados. Acalentamos ideias de conquista, de triunfo. Regozijamo-nos em posses. De lugares e não lugares. Ter algo, ser alguém. Espaços em que pressupomos alguma consistência para existir. Cremos. Afirmamos o que somos, mesmo quando não o pretendemos. Com brandura ou violência. Tornamo-nos guerreiros. Inadvertidos. Imprecisos. Diversos. Contraditórios. Oscilando entre a inquietação e a placidez. Errando por rumos incongruentes em relação a antecipações e expectativas. E tudo isso será bem dito ou mal dito, depois de ser bendito e maldito. Apreendemos um pouco. Nossos pouco sondáveis destinos são verdadeiramente grandes empreitadas. Não devem ser menosprezados nunca. São o que podemos ser e ter.

 

II. Caminhos

Guerras

Muito guerreamos. As modalidades de guerra são tão plurais que, às vezes, é difícil atribuir essa denominação às batalhas em que nos engajamos, fora e dentro nós. Se de todo não o fazemos, perecemos em vida, o que geralmente é raro, talvez mesmo impossível, pois lutar por ou contra algo são tarefas obrigatórias para os viventes em muitas ocasiões. E nem sempre elas associam-se a deliberações. Também podem não significar escolhas incondicionais. Guerreamos em nome do ódio, do direito e do amor. Outras bandeiras bélicas também são possíveis. Contudo, as certezas que erigimos para justificar as lutas travadas caducam com facilidade e nunca estamos seguros de sua justeza, em Troias ou Ismaros.

Em princípio, cremos estar reclamando o que nos é devido. Sofremos pelo que nos falta, o que supomos não nos ter sido devidamente ofertado ou que nos foi tirado. A falta é uma manifestação da verdade. Sua natureza não é clara. As tentativas de defini-la almejando contornos precisos e estáveis são artifícios destinados ao fracasso. Ilusões. Mas pressentimos que é ela que tanto priva-nos dos sossegos que supomos bons. Acreditamos ter direito natural à plenitude e ser quase um castigo imerecido a ausência do que não nos é dado ver, sentir, palpar, agarrar, que desafortunadamente não alcançamos ou perdemos. Dói a predadora ação do vazio.

Tentamos novas conquistas. Do que nunca teve dono e também daquilo que alguém se apropriou ou com que foi agraciado. Eventualmente pelejamos para arrancar de outros o que nos parece precioso. Aflige-nos que alguém possua o que não temos. Invejamos. Navegamos em nossas mágoas e ressentimentos. Temos ganas de destruição. De vingança. Quase sempre transitamos em nevoeiros. Cegos para muito do que nos cerca. Se formos muito bem-sucedidos na empresa de significar nossos atos e do que se dá em nossas vidas, em algum ponto teremos a noção de que nossos motivos e justificativas derivam de formas não universais de compreensão. São tributários de interpretações. Cambiáveis. Cambiantes. Nossos. E interpretar indícios é o que nos cabe, o que nos resta. É algo grande, onde cabem vidas inteiras. São as narrativas singulares em que estão inscritos percepções, intuições, saberes e certezas. Vale também levar em conta que os discursos sobre o guerrear, sobre os inimigos, sobre as razões, são caminhos. Sobre a paz a alcançar também. Esperamos que nos ouçam. Precisamos. Podemos temer pelo que ouvimos do que dizemos e pelo que outros ouvem de nós, mas vamos adiante. Revolvemos o que nos dizem do que dissemos. Ensurdecemos e voltamos a ouvir. Reinterpretamos. Interpretam-nos. Reinterpretam-nos. Construímos percursos que importam muito. Implicam, por si, vitórias. Mesmo que pressintamos estar sempre estranhamente distantes dos nossos ditos e interpretados, assim como da recepção do que vem de fora. A cada inflexão das contendas, somos tomados pela premência de singrar novamente os oceanos que nos povoam e que povoamos. Queremos chegar ao nosso lugar.

Lotófagos

Os Lotófagos eram os amáveis seres que se alimentavam dos frutos de lótus. Muito doces. Talvez em consonância com essa característica, causavam esquecimento para todos que os provassem. Tal efeito perduraria durante o tempo em que fossem ingeridos. Seu dulçor inebriava. Metamorfosearam-se no trânsito entre diferentes universos, mas nunca foram extintos. Talvez tenham se tornado menos visíveis. É preciso munir o olhar com certas ferramentas para poder enxergar as belas plantas que ainda vicejam e perceber a presença de seus frutos que atravessam os caminhos de todos, com perfume sedutor. Difícil não os levar à boca e fruí-los, o que também é rapidamente deslembrado. Quando os comemos deixamos de saber quem somos e de onde viemos. Cessa a vontade de regressar, pois não nos ocorre que possamos ser oriundos de outro lugar que não aquele onde estamos. Nossa história submerge. Submergimos com ela. Mas assim como Odisseu, há os que em algum momento interditam seu consumo. Salvaguardam a memória por não ignorarem seu valor. Por mais duros que sejam os fatos e sentimentos que nos constituíram, precisamos lembrar. Abdicar dos doces frutos que embriagam com a promessa de um viver etéreo, sem dor. É preciso que sejamos resgatados e resgatemos o que submergiu.

Os ciclopes

Os ciclopes eram gigantes com um único olho no meio da testa. Isso impressionava antes de qualquer outra característica que tivessem. Todavia, importava muito o fato de os ciclopes não terem leis nem respeitarem os deuses. Viviam isolados uns dos outros, pois não valorizavam inter-relações. Evitavam-nas. Eram monstros. Como alguns que habitam os recônditos de todos nós. Temidos, odiados, amados. Talvez necessários. Muitos de nós fantasiam que se pudessem viver como eles seriam felizes. Sem depender de outros. Poderiam dizer o que são sem serem contestados e dar sentidos irrefutáveis ao que fazem. Sem medos e sem a experiência de punições. Talvez mais poderosos que qualquer deus. Como Polifemo alegava ser. Mas, a força cria-se nos vínculos com os outros. Os sós ficam mais vulneráveis do que são capazes de suportar. Definham. Perdem as sombras e imagens do que já não viam bem. Polifemo foi cegado por Odisseu. Com nossos olhos que nunca se fundem para formar um único, nossa altura nunca é tanta e com o muito que tememos somos intimados a seguir enfrentando perigos e ser bravos. Odisseu submetia-se à lei, respeitava os deuses e amava seus companheiros. Sofreram, ele e os seus, a angústia por saberem que o ciclope os devoraria. O medo devorava-os antes do ogro, pois não podiam negar sua suscetibilidade ao mal. Alguns foram mesmo engolidos pelo gigante bestial, mesmo não arriscando comportamentos temerários, tentando ser previdentes. Não houve escapatória para todos. Todavia, os que souberam e, especialmente, que puderam usar recursos cabíveis para manejar a situação difícil em que estavam sobreviveram e prosseguiram, mantendo os outros vivos na memória. E, a lembrança da fragilidade da vida.

Éolo, deus dos ventos

Odisseu aportou em terras de Éolo, que comandava os ventos. Esse deus compadeceu-se ao ouvir o que lhe disse o herói sobre sua ânsia de retornar a seu lar, aos seus. Aprisionou todos os ventos, exceto Zéfiro para que os navegantes controlassem sua rota e chegassem aonde pretendiam. Adormecido, Odisseu não pode ver que seus companheiros, num ataque de ganância abriram o nó do invólucro que continha os ventos que gerariam tormentas, por suporem que encontrariam ouro. Já avistavam Ítaca quando foram arremessados à deriva, soprados violentamente. Foram, como todos os mortais, impelidos por forças que não podiam controlar. Para manter a placidez do navegar há que se estar atento, alerta e ter um certo tipo de humildade e de reconhecimento pelo que está dado e usufruir o que se pode ter. A avidez desmedida liga-nos, os homens, a todos os odres cujo conteúdo desconhecemos. Passamos a conjecturar sobre o que há dentro dessas embalagens de conteúdos desconhecidos, o que só existe em nossos sonhos. Sem poder fazer a distinção entre as naturezas tão díspares de ambos nos desorientamos e vagamos por mundos e mais mundos. Resta a esperança de que possamos aprender algo com nossos erros, mesmo que nunca o suficiente.

Outros gigantes: os lestrigões

Humanos aterrorizam-se diante da ideia de serem sorvidos e perderem-se em outros. Encontrar aqueles que possam implicar essa tragédia faz parte das fantasias dos indivíduos. Assim como os ciclopes, há nas odisseias outros gigantes famintos por nós humanos. A expedição de Odisseu aportou no país dos Lestrigões, que, subsequentemente, acabaram por devorar muitos de seus companheiros de jornada, destruir navios e fizeram perecer no mar os que tentavam escapar. Apenas a embarcação principal salvou-se, permitindo a fuga do herói maior. Os homens raramente fazem previsões acertadas quanto àqueles que poderiam consumi-los e anular suas identidades. Veem isso somente depois de já estarem próximos de seus possíveis algozes e mais vulneráveis às ações dos cruéis glutões. De modo contrário, alguns gigantes são tomados de antemão como aqueles que poderão prover e proteger. Podem despertar paixões e intenso desejo. Mas, em sua enormidade e dureza de sentimentos estarão sempre prestes à monstruosidade. Mesmo que não engulam verdadeiramente ninguém e que sigam vivendo somente com a própria carne, sem fusões nutridoras, o temor a eles pode causar inquietações consideráveis. Os mortais tomam por certo que com eles não se deve lutar. Deles será preciso fugir, em busca de outras possibilidades de vinculação. A essência que confere aos Lestrigões o seu caráter, fazendo-os perigosos, ou pelo menos assustadores, subsiste na fantasia humana que eventualmente é traduzida em condutas que permeiam as relações interpessoais. Assim, o mítico inscreve-se na realidade, mesclando-se com cenários e jogos praticados nas interações entre os indivíduos, moldando os relacionamentos.

Circe

Alguns de nós sentem uma atração irresistível por feiticeiros. Como aconteceu com alguns homens de Odisseu quando encontraram a filha de Hélios, Circe. Era extremamente atraente, ofertava iguarias irrecusáveis e, assim, transformava homens em porcos. Criava rebanhos deles. Quase nunca desejamos verdadeiramente ser cabeças de gado, mesmo sabendo o quanto é difícil escapar desse destino quando nossa rota vai ao encontro de Circe. A autonomia é uma ideia de que a maioria de nós não desiste com facilidade. Não gostamos de ser tratados como constituintes anônimos de um coletivo. Resistimos. A singularidade é nosso modo de constatar e delinear a vida. E não toleramos a ideia do amalgamento numa massa. Não queremos que ouçam o que falamos como se fosse um tipo de ruído, de som pré-formal. Não somos dados a onomatopeias. Pretendemos comunicações mais sofisticadas. Cheias de significados. E, de preferência, que sejam tomadas como exclusivas. Discursamos do fundo do que somos e mesmo não estando certos de nossa consistência queremos alcançar uma identidade e afirmá-la no que dizemos. Entre os tentadores petiscos que os feiticeiros oferecem está a compreensão sobre quem somos, a alusão a saberem o que não sabemos sobre nós mesmos, a revelação de sentidos para nós misteriosos. Quase todos ficamos muito seduzidos por isso. E, durante algum tempo, ouvimos embevecidos o que dizem sermos nós e ser o mundo. Acreditamos estar prestes a alcançar um plano privilegiado do conhecimento. Todavia, há um ponto de inflexão nesse processo em que se efetua uma quebra irreparável na confiança, na magia dos feiticeiros: a constatação de que transformaram-nos em rebanhos, em coletivos, em anônimos. Não grunhimos e nem emitimos nenhum som desse tipo a não ser por brincadeira ou por pusilanimidade, escondendo-nos de algo ou alguém. Desse modo, passamos a evitar encontros com aqueles que acenam com confeitos mágicos. Por um tempo há temor de ficarmos presos em suas redes e somente, depois, descrença em seus poderes, que com isso dissolvem-se e desaparecem. Há os que insistem em permanecer junto de Circe. Ou buscar novas Circes em diversos espaços. Não a veem por lentes em que ela pareça maléfica. Atribuem-lhe um certo papel salvador. Mas, por esse prisma, ela precisaria ser conquistada, sensibilizada para a dor que sentem os que foram diminuídos, ignorados, humilhados. É preciso mostrar-lhe um valor oculto num primeiro momento. Um valor grande. Enorme. Que ilustre a força para além da fragilidade, pois, Circe somente ama e respeita os que se demonstram ser fortes. Mesmo que transmitam, de algum modo, a impressão de fraqueza. E, sob o feitiço, sem saber se a força vem da feiticeira ou dos enfeitiçados, alguns fazem grandes conquistas e avanços nas trajetórias a que não se podem furtar. Há que se passar por lugares atemorizantes antes de se alcançar os bons destinos.

O Hades

Hades pode ser o nome de um lugar e também do deus que o governa que, alternativamente, é denominado Plutão. O lugar é invisível para os vivos e estes devem evitar nomeá-lo ou invocar o deus. Mas não se pode esquecê-lo. Os mortais acreditam ser melhor permanecer nos domínios de Zeus ou de Poseidon o máximo de tempo que possam, mas sabem que no final irão para o reino de Hades e terão Perséfone como sua rainha. Odisseu também sabia que, para além da desejada Ítaca, estava o destino final e não queria entregar-se a Plutão antes de voltar a estar com os seus. Temia seguir a determinação de Circe de que fosse ao reino dos mortos para consultar Tirésias, o único capaz de indicar-lhe o modo de chegar a sua ilha. Do contrário, Poseidon destruiria o herói da guerra de Troia, pois perdurava sua fúria por Odisseu ter cegado Polifemo. A Tirésias, por Hera também cegado, foi conferido o dom de prever e profetizar. Ele, que muito viveu, parte do tempo como mulher, manteve seus poderes de ver adiante mesmo já como uma alma de cego quando já habitava os territórios dos mortos. Antecipar as consequências de nossos atos pode ser algo precioso para não vagarmos perdidos na ingenuidade. Para não nos afogarmos ou sermos comidos por monstros marinhos e atingirmos o Hades antes de Ítaca. Então, é preciso ouvir Tirésias e retornar ao reino dos vivos. Viver nele. Por um tempo.

Sereias

Há diferentes riscos de perdição nos caminhos dos que prosseguem. As sereias podem não corresponder à imagem de que temos delas. Podem não ser a mescla de mulheres e peixes, mas seres alados cujo canto impede que se prossiga para onde se pretende ou é preciso ir. Assim eram as que surgiram para seduzir o herói da Guerra de Troia que tentava tenazmente voltar para seu lar, para os seus. De algum modo ele tinha conhecimento do risco de ser mesmerizado por muitas formas de encantamento e perder-se, deixar de alcançar o sonho que era a razão de sua vida: pertencer novamente a Ítaca, ficar junto da amada Penélope e de seu filho, poder exercer com eles sua capacidade de amar. Odisseu venceu a tentação de ir ao encontro das sereias na ilha de onde emitiam seus sons enfeitiçadores. Pediu que o amarrassem ao mastro de sua embarcação. Era o modo de não ceder ao que era mortalmente sedutor. Talvez tenha sido salvo por sua humildade diante da possibilidade de falhar em seu maior intuito. Sua bravura consistiu nisso: temer o que devia ser temido e precaver-se. Pode parecer um atentado à liberdade, mas muitas vezes as aparências enganam. A liberdade pode depender da prudência. O forte é aquele que sabe reconhecer suas fragilidades. Respeita-se, sabendo-as inevitáveis, tomando-as como apanágio do viver. O forte enxerga o que está além da demonstração da força. Busca compreender razões e finalidades. Persiste na busca do que mais importa. Dignifica o que pode ser no mundo a que pertence.

Deixando Calipso

As intempéries deixam cicatrizes na alma. Geram medos e desejo de abrigo. Para alguns surge uma sede avassaladora de compreender motivos do inesperado, dos naufrágios. Outros importam-se somente em garantir bonanças. A ideia de acaso e a inferência de determinantes exteriores, maiores do que os poderes do indivíduo, assustam. Quanto aos abrigos, nunca são incondicionais. Há custos que podem ser pouco evidentes, dificilmente passíveis de serem sopesados de início. Geralmente resguardos são instáveis e provisórios.

A ideia de ligar-se a um outro que possa justificar e prover de sentidos a existência é acalentada por quase todos nós. É uma vontade pregnante. Frequentemente leva ao amor sexual (em sentido estrito) e outros amores, assim como ao casamento e à construção da família. Quase sempre há grandes expectativas e até parece haver esperança para todas elas. Serão tessituras destinadas ao desgaste, ao esgarçamento, deixando-nos com as mãos cheias de linhas soltas e aguardando novos esforços de novos entrelaçamentos. Guardamos um travo do momento em que as julgamos perenes e reconstituímos essa possibilidade nunca antes experimentada. Partimos para o futuro. Todavia, precisamos de novos sentidos, de histórias. Bússolas de orientação e suportes que permitam-nos fabular alguma materialidade para o mundo que está dentro e fora de nós. Um átimo de certeza, desfeita logo depois.

A transposição de projetos e fantasias para vivências muda tudo, mais rapidamente do que conseguimos acompanhar. Põe o chão trêmulo e as águas revoltas. Queremos escapar disso, carecemos de abrigo, de segurança. Mantemos a crença na existência de um lugar seguro, de alguém a quem alcancemos e que se torne bem visível a nossos olhos. Queremos estar satisfeitos, plenos, sem bichos carpinteiros a esculpir incessantemente nossa matéria, nosso ser e abrindo novos buracos onde desejávamos preenchimentos e aplainamentos. Mas, isso parece estar sempre adiante do que podemos conseguir. Resta-nos curvar e prosseguir. Aceitar o não tudo, o quase nada. Engolir nossos medos.

Às vezes, assalta-nos a impressão de que estamos aprisionados nos quereres de outros, ou mais complicado, no querer de um outro, com face identificada. Nessa versão, para termos abrigo somos obrigados ao que não reconhecemos como nosso querer. Privamo-nos de liberdade e de identidade.

Calipso era uma ninfa que, sofrendo por estar tão só, salvou Odisseu da fúria de Poseidon para que ele se tornasse seu companheiro, seu amor. Ele desejava voltar para Penélope, mas ficou na ilha de Calipso. Derramava no mar as lágrimas de frustração. Desejava um amor e só podia ter outro. Mas estava salvo de algo e tinha algo. A ninfa confortava-se com o homem cativo, mas não cativado. E temia o olhar que ele arremessava para tão longe. Zeus ordenou o fim do cativeiro. Criaram-se sentidos para tudo: avidez, coerção, aprisionamento, ardis, impossibilidades e esperanças. Tudo foi justificado e perdoado. Odisseu construiu uma jangada e lançou-se ao mar. Voltaria para casa.

Regressar e encontrar a verdadeira amada, o filho, o pai, os que são amados com solidez. Sem cárcere. Sem submissão. Onde Odisseu novamente viverá como um soberano. Calipso esperará por outro náufrago. Esses foram os desígnios de Zeus. Para quem os soube interpretar. E bons votos sejam proferidos. Que todos os Odisseus, de qualquer gênero, melhor dizendo de quaisquer gêneros possam prosseguir, voltando. Que todas as Calipsos, de todos os gêneros, encontrem um amor. E que ambos, mais adiante, no tempo devido, possam fundir-se na verdade.

Odisseu entre os feácios

Humanos precisam de acolhimento e escuta. Desde sempre. Odisseu, abrigado como náufrago na terra dos Feácios, foi alimentado, desejado como o belo e bravo homem que era. Foi reconhecido por seus feitos. Ainda assim, ele tinha uma vontade que resistia intacta durante todos os anos em que vagou por mares e terras estrangeiras: queria estar em Ítaca. Conseguiu imprescindível auxílio para continuar a viagem para casa. Para que isso se desse, foi ouvido. Com delicadeza e também bravura, pois para que se ouça verdadeiramente também é preciso coragem. Desde sua chegada, quando a princesa Nausícaa o encontrou próximo a um rio, nu e cansado, ele passou a fortalecer-se com a escuta daqueles para quem ele era e sempre seria um estranho, mesmo com a reputação de herói. A filha do rei levou-o até seu pai, que o escutou. Escutando-o qualificou o discurso do nobre homem, do que era-lhe importante. Acatou o que dizia sentir o forasteiro e ajudou-o a partir, mesmo querendo-o para genro. Respeitou-o.

 

III. Todos somos Aedos

Cantar o vivido, o sentido e pensado é uma necessidade. Ajuda a fazer de nós o que somos. Custamos muito a deixar de buscar o "dito irrefutável". Como é difícil! Teimamos em acreditar que a Verdade seja um saber do qual poderemos nos apropriar e não o contrário disso, ou seja, um esgotamento de saberes que exigem a constituição de outros. Lutamos por isso. A maioria de nós segue assim até o fim. Cega. Não como Tirésias, mas como Homero. Interpretamos e tornamos mito nossas interpretações. Às vezes, também as de outros. Insistimos em conservar mágoas e revoltas das desilusões. Se preciso, e quase sempre o é, fingimos, omitimos, mentimos. Tentamos sair da posição de Homero e anunciamos que somos Tirésias. Gritamos que sabemos o que há para saber. Que podemos ver o que o outro não pode. Cristalizamos nossas interpretações. Anunciamos ser grandiosos por meio delas. Há aqueles que se dispõem a acreditar nessas falas, mas acabam por esvaírem-se como se nunca tivessem existido. Certo é que uma das propriedades da vida é produzir movimentos que fazem ruir tudo isso. Somos forçados a refazer nossas compreensões, frágeis. Isso faz parte da Lei. Passado, presente e futuro estarão a ela sujeitados. Todos os nossos discursos serão menos e mais do que pretendemos e prevemos. Todos os nossos saberes em algum momento se deteriorarão. O tempo que passa através de transformações que não apreendemos reduz nossos saberes. Sábios serão os que reconhecem a preciosidade da humildade ao interpretar o mundo. Humildes os que reconhecem a falta de verdade em certas forças que motivam a construção de saberes e, especialmente em sua instrumentalização como propiciadores do poder sobre o outro, do gozo que bordeja a perversão. Mas, há outros caminhos. Muitas são as possibilidades para os Odisseus (com maiúscula para todos que o somos) infinitamente multiplicados. No suor do remar podemos ir mais longe. Podemos aprender algo. Devemos estar sempre aprendendo, mesmo que todo o aprendido esteja sob suspeição constante e que, em algum ponto, de quase nada sirva e torne-se elemento fossilizado. Teremos que compreender o que descartaremos. Devemos também saber desaprender. Façamos votos de que possamos identificar o devido momento para cada coisa. E que nossas interpretações não confrontem a Lei, a vida. Que pereçam. Que aprendamos isso e sigamos consonantes com o que determinam os deuses nas infinitas odisseias. Que possamos bem dizê-las e bendizê-las. E que sejam benditas as chegadas.

 

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