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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2022

 

ARTIGOS

 

O sujeito na ciência, na literatura fantástica e na psicanálise

 

The subject in science, fantastic literature, and psychoanalysis

 

El sujeto en la ciencia, la literatura fantástica y el psicoanálisis

 

 

Fabiano Chagas RabêloI*; Karla Patrícia Holanda MartinsII**; Leonardo José Barreira DanziatoIII***

IUniversidade Federal do Delta do Parnaíba - UFDPar - Brasil
IIUniversidade Federal do Ceará - UFC - Brasil
IIIUniversidade de Fortaleza - UNIFOR - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a relação entre ciência moderna, literatura fantástica e psicanálise, tomando a primeira como pré-condição para a existência das duas últimas. Questionam-se quais elementos históricos e epistêmicos herdados da ciência se fazem presentes tanto na literatura fantástica como na psicanálise para, em seguida, situar a especificidade de cada uma delas. Adotam-se como categorias de análise as concepções lacanianas de sujeito e de discurso, estabelecendo uma conexão entre o procedimento científico e o discurso da histeria. Destacam-se as idiossincrasias da literatura fantástica, que é situada em relação a outros gêneros ou modalidades literárias, conforme a definição de Todorov, a saber: o estranho e o mágico. Para melhor mapear os limites desse território, buscam-se comparar a psicanálise e a literatura fantástica com a religião e a magia. Debate-se daí a tese de Todorov, que vaticina o desaparecimento do fantástico na segunda metade do século XX em decorrência da influência da psicanálise, que o teria tornado supérfluo. Diferentemente desse autor, defende-se que um dos principais obstáculos para o desenvolvimento da literatura fantástica na atualidade não é a concorrência da psicanálise, mas a presença de uma visão de mundo cientificista atrelada ao discurso capitalista. Nesse sentido, propõe-se que tanto a psicanálise como a literatura fantástica constituem formas de propiciar a expressão do sujeito, que se encontra elidida no cientificismo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica, conceitual, de caráter ensaístico, que se fundamenta na contribuição de psicanalistas e críticos literários, além de epistemólogos e historiadores da ciência, cujo intuito é interrogar o lugar, a pertinência e os desafios da psicanálise na atualidade, tomando como foco a sua relação com a ciência e a literatura fantástica.

Palavras-chave: Ciência, psicanálise, literatura fantástica, sujeito, discurso da histeria.


ABSTRACT

This work discusses the relationship between modern science, fantastic literature, and psychoanalysis, taking the former as a precondition for the existence of the latter two. It is questioned which historical and epistemic elements inherited from science are present both in fantastic literature and in psychoanalysis, to then situate the specificity of each of these. The Lacanian conceptions of subject and discourse are adopted as a category of analysis, thus establishing a connection between the scientific procedure and the discourse of hysteria. The idiosyncrasies of fantastic literature, which is situated in relation to other genres or literary modalities, as defined by Todorov, namely, the strange and the magical, are highlighted. One discusses the Todorov's thesis that predicts the disappearance of the fantastic literature in the second half of the 20th century due to the influence of psychoanalysis, which would have made it superfluous. Unlike this author, it is argued that one of the main obstacles to the development of fantastic literature today is not the competition of psychoanalysis, but the influence of a scientificist worldview linked to the capitalist's discourse. In this sense, it is proposed that both psychoanalysis and fantastic literature are ways of providing the expression of the subject, which is elidited in scientificism. It is, therefore, a qualitative, bibliographical, conceptual, essayistic research, which is based on the contribution of psychoanalysts and literary critics, in addition to epistemologists and historians of science in order to question the place, the relevance and the challenges of psychoanalysis today, focusing on its relationship with science and fantastic literature.

Keywords: Science, psychoanalysis, fantastic literature, subject, hysteria discourse.


RESUMEN

Este trabajo discute la relación entre la ciencia moderna, la Literatura Fantástica y el Psicoanálisis, tomando la primera como una condición previa para la existencia de las últimas. Se cuestiona qué elementos históricos y epistémicos heredados de la ciencia están presentes en la Literatura Fantástica y en el psicoanálisis, para luego ubicar la especificidad de cada uno de ellos. Se adoptan las concepciones lacanianas de sujeto y discurso como categorías de análisis, estableciendo una conexión entre el procedimiento científico y el discurso de la histeria. Luego, se destacan las idiosincrasias de la literatura fantástica, colocándola en relación con otros géneros o modalidades literarias, como lo define Todorov, a saber: lo extraño y lo mágico. Para mapear mejor los límites de este territorio, se busca situar el psicoanálisis y la Literatura Fantástica en relación con la religión y la magia. Luego se comenta la tesis de Todorov que predice la desaparición de lo fantástico en la segunda mitad del siglo XX debido a la influencia del psicoanálisis, que lo habría hecho superfluo. A diferencia de este autor, se argumenta que uno de los principales obstáculos para el desarrollo de Literatura Fantástica hoy en día no es la presencia concomitante del psicoanálisis, sino la influencia de una cosmovisión cientificista vinculada al discurso del capitalista. En este sentido, se propone que tanto el psicoanálisis como la literatura fantástica sean formas de proporcionar la expresión del sujeto, que se elude en el cientificismo. Esta es, por lo tanto, una investigación cualitativa, bibliográfica, conceptual, de estilo ensayo, que se basa en la contribución de psicoanalistas y críticos literarios, además de epistemólogos e historiadores de la Ciencia, para cuestionar cuál es el lugar, la relevancia y los desafíos del psicoanálisis em la actualidad, centrándose en su relación con la ciencia y la literatura fantástica.

Palabras clave: Ciencia, psicoanálisis, literatura fantástica, sujeto, discurso de la histeria.


 

 

Introdução

Este trabalho discute a relação entre ciência moderna, literatura fantástica e psicanálise, tomando a primeira como pré-condição para a existência das duas últimas. Questionam-se quais elementos históricos e epistêmicos herdados da ciência se fazem presentes tanto na Literatura Fantástica como na Psicanálise para, em seguida, situar a especificidade de cada uma delas, assim como as suas diferenças.

Adota-se como a principal categoria de análise a concepção lacaniana de sujeito (Lacan, 1964/1998a, 1966/1998b), de onde se retira a premissa de que o sujeito da ciência é o mesmo do inconsciente. Apesar dessa coincidência, salienta-se que o destino dado às manifestações subjetivas em cada caso difere radicalmente. Enquanto a ciência, visando a um ideal de conhecimento objetivo e universal, foraclui o sujeito após instituí-lo; a psicanálise busca acolher o que dele retorna no Real, aceitando a disjunção entre saber e verdade, que é correlata à própria constituição psíquica. Isso quer dizer que a divisão do sujeito é um fato fundamental, tributário de sua relação mais íntima e radical com a alteridade e seus objetos de satisfação.

Aplicando essa tese à literatura fantástica, pode-se dizer que, assim como os psicanalistas, os escritores fantásticos são sensíveis, de um modo bastante particular, às expressões desse sujeito da ciência que, uma vez foracluído, retorna e insiste. Tal fato pode ser percebido pelo interesse, tanto lá como cá, nos fenômenos situados na franja da razão (Mezan, 2014), como a loucura, o sonho, a magia, a sugestão e as superstições. Sublinha-se ainda a ênfase dada na narrativa fantástica às experiências de descontinuidade da consciência, ao fenômeno do duplo (Rank, 1914) e ao sentimento do infamiliar ( Unheimliche ) (Freud, 1919/1997f). Por conseguinte, psicanálise e literatura fantástica podem ser entendidas como modalidades distintas, mas análogas, de tratamento das manifestações do sujeito, que constituem o fundamento, mas também um resto não elaborado do discurso da Ciência (Lacan, 1968-69/1992).

Uma consequência importante dessa afirmação é que, a partir dela, não é possível, a rigor, falar de uma literatura fantástica antes da ruptura instaurada pela ciência moderna. Logo, para ser considerada como tal,em stricto sensu, não basta que uma narrativa surja aos padrões atuais como extremamente fantasiosa e imaginativa (Rodrigues, 1988). Por conseguinte, os textos alicerçados em concepções animistas e religiosas pré-modernas, diferentemente do que é sugerido pelas coletâneas de Borges, Ocampo e Casares (2013) e Costa (2016), não podem ser inclusos no grupo da Literatura Fantástica, haja vista que neles a manifestação do sobrenatural não é percebida como uma exceção: ela possui uma justificação, uma fundamentação discursiva própria e uma presença cotidiana.

Entende-se, portanto, que se faz necessária uma tensão entre realidade, fantasia e representação para que o fantástico possa existir como uma modalidade literária própria. Dito de outro modo, o desenvolvimento de uma literatura propriamente fantástica é impossibilitado pela predominância de uma visão de mundo teológica ou mágica (Bessière, 2001; Ceserani, 1999; Rabêlo, Martins & Danziato, 2019).

Ademais, é importante salientar que a emergência da ciência moderna implica outra forma de tratamento discursivo do real. Enquanto o mundo animista aristotélico pré-científico tratava o real e seus objetos ontologicamente, a ciência moderna opera uma matematização e uma literalização do real, realizando um esvaziamento ontológico e, consequentemente, uma redução do sentido no real (Lacan, 1966/1998c). A partir daí uma intervenção e uma alteração do real passam a ser possíveis, subtraindo sua sacralização.

Considera-se, portanto, que esta redução e as possibilidades de intervenção e alteração do real apresentam-se como condições discursivas comuns à ciência, à psicanálise e à literatura fantástica.

A referência ao legado da tradição iluminista não é apenas importante para se entenderem as condições de possibilidade de existência da literatura fantástica e da psicanálise. A consideração à ciência moderna é pertinente, sobretudo, para situar as especificidades, assim como os desafios da literatura fantástica e da psicanálise na atualidade.

Entende-se que a formalização do procedimento psicanalítico, com Lacan (1966/1998c), permite avaliar com mais precisão a eficácia das práticas científicas, religiosas e mágicas. Elas podem ser tratadas como modalidades de foraclusão, denegação ou velamento da divisão subjetiva e de sua causa, respectivamente. Por isso, no percurso argumentativo a ser trilhado, traz-se à baila essas duas últimas modalidades discursivas para situá-las como um contraponto à Ciência, de forma a evidenciar a ruptura epistêmica e ética instaurada por ela (Koyré, 1982, 2006).

Em um segundo momento, as referências à magia e à religião servem de apoio para que as idiossincrasias da psicanálise e da literatura fantástica sejam nomeadas e problematizadas. Sustenta-se que nenhuma das duas últimas pode ser situada como um movimento em direção a concepções pré-modernas ou obscurantistas. Ao contrário, elas constituem uma subversão do discurso científico e, dessa forma, não podem prescindir deste.

No primeiro tópico, desenvolve-se a tese lacaniana presente no texto A Ciência e a verdade, que interroga as relações entre psicanálise e ciência. Nesse momento, discute-se a posição de Freud acerca da cientificidade da Psicanálise, bem como as objeções de alguns epistemólogos ao reconhecimento de seu caráter científico. A partir da aproximação do procedimento científico com o discurso da histeria, buscam-se identificar os pontos de conexão e disjunção entre ciência e psicanálise. Problematiza-se, então, a relação entre a literatura fantástica e a ciência moderna. Destaca-se a especificidade da literatura fantástica, distinguindo-a em relação a outros gêneros ou modalidades literárias limítrofes, conforme a definição de Todorov (2012). Debate-se, em seguida, a tese de Todorov (2012) que vaticina o desaparecimento do fantástico na segunda metade do século XX em decorrência da influência da psicanálise. No último tópico, desenha-se um quadro comparativo das semelhanças e diferenças que há entre literatura fantástica e psicanálise.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica, conceitual, de caráter ensaístico, que se fundamenta na contribuição de psicanalistas e críticos literários, além de epistemólogos e historiadores da ciência, com o intuito de tratar de uma questão propriamente psicanalítica, mas que eventualmente pode despertar o interesse de estudiosos de outras áreas, qual seja: quais são o lugar, a pertinência e os desafios da Psicanálise na atualidade, tomando como foco a sua relação com a ciência e outros saberes, nomeadamente, a literatura fantástica?

 

Psicanálise e ciência

Freud (1933/1997g) sustenta durante toda a sua obra a inclusão da psicanálise no rol das ciências. Trata-se, segundo ele (Freud, 1915/1997c), de uma ciência em estado nascente, em processo de consolidação metodológica e conceitual. Segundo ele, o desenvolvimento das pesquisas psicanalíticas sanaria algumas lacunas e imperfeições que poderiam afastar a psicanálise das práticas científicas tradicionalmente estabelecidas. Por isso, alguns autores sustentam que há no projeto freudiano um ideal de ciência, cuja realização assintótica é sempre adiada. Desse modo, tal ideal constitui antes um ponto de perspectiva organizador do que propriamente uma meta concreta a ser atingida (Prudente & Ribeiro, 2005).

É importante, no contexto desta discussão, pôr em destaque o entendimento freudiano de que a psicanálise constitui uma ciência da natureza (Mezan, 2014). Hoje, para muitos, tal afirmação pode parecer paradoxal, uma vez que ela traz consigo o desafio de estabelecer conexões entre a física – paradigma da ciência moderna – e a psicanálise. Deve-se reconhecer que tais conexões existem e não devem ser negligenciadas, como, por exemplo, nos eixos que norteiam a metapsicologia freudiana – a tópica, a econômica e a dinâmica –, cuja origem está na física newtoniana. Todavia, é necessário admitir a presença de pontos importantes de distensão entre as duas.

Primeiramente, é importante ter em vista que a concepção de Freud de natureza possui um caráter híbrido: ela é atravessada por uma forte influência romântica (Loureiro, 2002), o que, no entanto, não exclui o legado de sua formação médica e de seu percurso em pesquisas laboratoriais (Gay, 1989). Para entender a especificidade da concepção de ciência que inspirou Freud, deve-se levar em conta que ele ignorava o modelo de seu contemporâneo Dylthley, que adota a distinção entre as ciências naturais –- as ciências duras, experimentais e exatas, da qual a física é o modelo –, e as ciências humanas. Segundo Franco (2012), a principal característica destas é a ênfase na compreensão e interpretação dos fatos, enquanto a busca por relações causais explicativas é preponderante naquelas.

Para respaldar seu raciocínio, Franco (2012) refere-se a Ricouer (1977), que sublinha o estatuto composto e heterogêneo da psicanálise. Segundo o filósofo francês, a psicanálise apoia-se tanto em explicações baseadas em relações causais energéticas como na interpretação de processos psíquicos inconscientes, sem que um procedimento se sobreponha ao outro. Para Ricouer, essa conjuntura não deve ser entendida como uma falha na concepção metodológica da psicanálise, mas como uma especificidade da qual ela não pode abdicar sob o risco de sua radical descaracterização. Daí a dificuldade, a partir dos critérios dylthleyanos, de situar a psicanálise em relação às ciências humanas ou naturais. Para Simanke (2009), a psicanálise representa a proposta de um naturalismo unitário qualificado, que supera a dicotomia entre natureza e cultura, ciências humanas e naturais ou interpretação e explicação.

Em contraponto à defesa de Freud da inclusão da psicanálise no campo das ciências, vários epistemólogos do século XX expuseram contestações ao estatuto de cientificidade da psicanálise. Para Mezan (2014), os principais argumentos contra o reconhecimento da Psicanálise como uma ciência foram enunciados por E. Nagel (1901-1985), K. R. Popper (1902-1994) e A. Grünbaum (1923-2018). Cada um deles enfatizou um aspecto diferente do processo de construção do saber na psicanálise e que a distanciaria da ciência. Suas objeções, a nosso ver, servem de base para a problematização das tensões e pontos de disjunção que há entre a psicanálise e a ciência moderna.

Para o primeiro, a psicanálise carece de conceitos operatórios claros e distintos. Tal fato, de acordo com Nagel, constitui um impedimento para que suas proposições sejam postas à prova experimentalmente. Já Popper defende que os enunciados psicanalíticos não são falseáveis, o que impossibilitaria a formulação de hipóteses contrárias e, consequentemente, a sua comprovação ou refutação. Por fim, Grünbaum denuncia a presença de um componente de sugestão – uma relação de influência – na base de toda pesquisa clínica psicanalítica, o que comprometeria os seus resultados, produzindo enviesamentos e contaminações. Segundo esse ponto de vista, a fragilidade metodológica da psicanálise reside na sua dificuldade em sustentar uma postura de neutralidade (Mezan, 2014).

Entende-se, como será desenvolvido mais adiante, que as críticas acima elencadas podem ser interpretadas à luz da concepção lacaniana de sujeito do inconsciente. Por ora, suspendendo momentaneamente a questão de a psicanálise ser ou não uma ciência, pode-se chegar ao denominador comum de que ela adota a visão de mundo da ciência, dispensando a pretensão de criar outra própria para si, como no caso da religião (Freud, 1933/1997g). A visão de mundo da ciência, segundo Freud, inclui a adoção de uma concepção de conhecimento incompleto. Daí a necessidade constante de reformulação, complementação e retificação do conhecimento pela pesquisa científica.

Como já foi dito, há em Freud um ideal de ciência do qual Lacan abdica (Fink, 1997; Prudente & Ribeiro, 2005; Roudinesco, 1999). Fink (1997) destaca que Lacan inicialmente assume o projeto freudiano de fundamentar o estatuto de cientificidade da Psicanálise. Assim, na década de 1940, criticando aqueles que situavam a psicanálise no rol das ciências humanas, Lacan defende a perspectiva de que ela está estruturada como uma ciência conjectural, a exemplo da teoria dos jogos. A sua preocupação é formalizar e matematizar o procedimento psicanalítico e pôr em evidência o móbil material de sua eficiência. O engajamento nesse projeto o levou a se aproximar do estruturalismo, sobretudo da linguística e da antropologia.

O texto A ciência e a verdade (Lacan, 1966/1998c) representa uma mudança de rumo no seu ensino. Deve-se salientar que, no entanto, tal mudança não acarreta o abandono da intenção de estabelecer uma fundamentação rigorosa, em uma linguagem matematizada, da práxis psicanalítica. Nesse escrito, Lacan (1966/1998c) enuncia a tese de que o surgimento do discurso psicanalítico foi precedido e franqueado pelo advento da ciência moderna. Logo, não existiria a psicanálise sem Descartes e a sua dúvida hiperbólica, que inaugura e fornece as condições de possibilidade para o desenvolvimento da ciência.

Imediatamente após essa afirmação, Lacan (1966/1998c) acrescenta que a psicanálise não se encontra em relação direta de continuidade com o discurso da ciência. Há uma tensão entre a psicanálise e o método cartesiano. O procedimento cartesiano, ao mesmo tempo em que instaura o sujeito, o foraclui, haja vista que nele reside a fonte de todos os obstáculos que comprometem as pretensões científicas de universalidade e neutralidade. A psicanálise, a seu turno, ocupa-se dessas manifestações subjetivas, acolhendo aquilo que é alijado pela ciência moderna em seu nascedouro. Faz-se, portanto, necessária uma apreciação mais detalhada da leitura que Lacan faz de Descartes.

Segundo Baas e Zaloszyc (1996), o projeto filosófico de Descartes é uma resposta às objeções dos céticos à possibilidade de conhecer. Seu método busca estabelecer uma saída para o impasse lógico constituído pelo turbilhão de ideias, conjuntura que os céticos denominaram círculo vicioso do conhecimento, isto é, a presença de várias relações causais simultâneas, concomitantes e indiscerníveis. Em resposta a esse obstáculo, Descartes engaja-se na busca por um ponto de certeza que pudesse servir de fundamento para uma cadeia diacrônica lógica de ideias. Seguindo o procedimento da dúvida hiperbólica, ele acredita ter encontrado esse ponto de esteio no Eu penso, o cogitum. O passo seguinte é a identificação desse ponto a uma essência de si mesmo, o ergo sum. Como seu correlato, ocorre a substancialização do pensamento - res cogitans –, que passa a se contrapor à matéria das coisas do mundo que são objeto do pensar, a res extensa.

Para Baas e Zaloszyc (1996), o método cartesiano traz consigo a necessidade do cogitum ser imediatamente avalizado por uma instância alteritária superior – Deus –, que funciona como uma garantia à hipótese do gênio maligno. O que está em causa aqui é a possibilidade de uma deidade interferir no pensar humano, instaurando um descompasso entre razão e realidade. Ou seja, trata-se de uma confirmação transcendental da possibilidade de acesso da verdade pelo conhecimento, que se segue imediatamente à identificação do pensamento como alicerce da existência e do saber.

Infere-se do exposto que o mencionado ponto de segurança de Descartes – o Eu penso/Eu sou – não é, em si mesmo, tão seguro assim. Daí a conclusão de que as ideias, mesmo aquelas mais fundamentais, não constituem uma garantia absoluta de acesso à verdade (Baas & Zaloszyc, 1996). Pode-se afirmar que o procedimento cartesiano suspende o problema da verdade, deslocando-o para o campo da lógica. Uma vez reiterado o lastro transcendental do cogitum, o método torna-se, a partir de então, uma garantia contra o erro (Baas & Zaloszyc, 1996), que espreita o pensamento a cada passo de seu percurso.

Há duas consequências imediatas desse procedimento que permeiam o desenvolvimento de toda a ciência moderna. A primeira é a exclusão do corpo no pensar (Pollo, 2004). A segunda, a sobreposição do Eu ( ego ) à consciência, na condição de um pensamento contínuo, homogêneo, linear, reflexivo e idêntico a si mesmo, que abrangeria a totalidade do cogitum (Baas & Zaloszyc, 1996).

Como resultado dessas premissas, pode-se sustentar que o nascimento da ciência ocorre sob a sombra de uma ameaça perene de vertigem, que deve ser incessantemente afastada. Tal ameaça é a iminência do retorno daquilo que foi afastado pelo método cartesiano na sua origem para lhe dar consistência: a insistência do sincronismo das cadeias associativas, a hipótese do gênio enganador, a efemeridade da consciência e a interferência do corpo no pensar. Por isso, a fundação da ciência é composta por dois movimentos sucessivos: a instauração do sujeito e a sua imediata destituição (Pacheco, 1996).

A acolhida da expressão dessa contraparte do sujeito foracluída pela ciência é o gérmen da práxis psicanalítica. Para Lacan (1966/1998b), se o método cartesiano é impulsionado pela divisão subjetiva através da dúvida hiperbólica – base do pensamento racional –, tal procedimento também escancara a fenda que habita o âmago do Eu. Decorre daí que, da mesma forma que o saber está, em certa medida, dissociado da verdade, sujeito, Eu e consciência não são categorias harmônicas e superpostas.

Pode-se dizer, então, que, enquanto a ciência busca colmatar a fenda no Real que desponta como obstáculo para se alcançar um conhecimento confiável e seguro, a psicanálise recolhe os seus efeitos, situando o Sujeito nesse lugar que é ao mesmo tempo lógico, mas também ponto limite da própria lógica (Badiou, 1994).

Baas e Zaloszyc (1996) sugerem uma interessante analogia. Segundo os autores, Descartes institui o Eu como instância da consciência e do pensamento racional no mesmo lugar que, até Copérnico, era ocupado pela Terra. Se este faz desmoronar a concepção ptolomaica de universo, substituindo o geocentrismo pelo heliocentrismo, aquele reinsere o cogitum no lugar de centro do universo.

A partir dessa analogia, é possível redimensionar a afirmação freudiana (Freud, 1917/1999) de que a psicanálise é a terceira ferida narcísica da humanidade. Na verdade, talvez seja mais apropriado dizer que se trata de uma mesma e só ferida, que é repetidamente reaberta pelo próprio desenvolvimento do conhecimento científico. Dessa forma, tal ferida está latente no âmago do próprio projeto da modernidade. Trata-se de uma ferida que não existia, pelo menos da mesma forma, até o Renascimento, uma vez que a relação do homem com si mesmo era diferente até então.

Um argumento significativo acerca dessa questão está na tese de Devereux (1976) que, ao analisar os relatos de sonhos nas tragédias de Ésquilo e Eurípedes, destaca a especificidade da relação dos gregos da era clássica com as suas produções oníricas. Se, entre os gregos, os sonhos eram tomados por enigmas, a sua resolução, por sua vez, possuía um sentido oracular. Quando interpretados, os sonhos revelavam os desígnios dos deuses. Logo, eles não remetiam a uma divisão interna ou ao resultado de um conflito entre o pensar e a verdade.

Por conseguinte, não é plausível dizer que o inconsciente sempre existiu, a não ser, retroativamente, a partir da experiência inaugurada por Freud. Feita essa ressalva, alguns eventos históricos e produções culturais de povos antigos, como faz Devereux (1976), podem ser reinterpretados da perspectiva psicanalítica. Por exemplo, é possível identificar como fundamento da proliferação da caça às bruxas na época da inquisição alguns fenômenos psíquicos tais como a etiologia sexual das neuroses e os mecanismos de contaminação por identificação e conversão histérica. No entanto, tal explicação não teria o menor poder de persuasão para alguém que vivesse nesse tempo e realmente acreditasse na efetividade da existência do diabo e de sua influência maléfica.

Do exposto, é possível afirmar que o inconsciente não possui uma essência ou uma materialidade própria independente. Ele é um constructo lógico que busca dar conta dos efeitos da linguagem no corpo. Para que se possa operar com ele, faz-se necessário que haja primeiramente um analista – alguém que tenha se submetido até um bom termo à experiência de análise ­– e uma pessoa que sofra os efeitos da divisão psíquica instaurada pela ciência e que se submeta ao procedimento da associação livre.

Esse é o sentido da afirmação de Lacan (1964/1998a) de que o estatuto do inconsciente não é óntico, mas ético: é necessária uma implicação subjetiva nos efeitos do inconsciente para que a psicanálise possa operar. Talvez essa seja outra forma de enunciar a objeção feita por Grünbaum (Mezan, 2014) à psicanálise, conforme comentado anteriormente. Assim, uma atitude de completa neutralidade não é compatível com o exercício da psicanálise.

Com efeito, se o inconsciente não possui uma essência própria e se o sujeito do inconsciente é, como propõe Lacan, o mesmo da ciência, tem-se então que o próprio sujeito da ciência é desprovido de uma essência permanente, ao contrário do que defende Descartes ao supor uma res cogitans. No dizer de Koyré (1982, 2006), trata-se de um sujeito sem qualidades, cujo funcionamento deve obedecer às mesmas leis dos demais corpos do universo. Isso quer dizer que esse sujeito não é sinônimo de indivíduo ou de uma identidade de si. Ele é uma função, que decorre dos efeitos do significante no corpo, de onde se origina o pensar (Ramos & Alberti, 2013). Daí o seu caráter intermitente, descontínuo e evanescente.

Por conseguinte, se a Ciência está preocupada prioritariamente com a confiabilidade do conhecimento e, para isso, alija de seu campo de problematização o desejo e a subjetividade daqueles que produzem o conhecimento, a psicanálise, a seu turno, põe esses elementos em primeiro plano. Daí que a verdade, nesse campo, refere-se ao desejo na sua relação com um objeto primordial estruturalmente perdido, que constitui a falta como o motor do funcionamento do psiquismo (Lacan, 1968-69/1992). Nesse sentido, a verdade não é uma qualidade do conhecimento, mas um resto do saber e, ao mesmo tempo, a sua causa.

A psicanálise, portanto, não subscreve à pretensão científica de recobrir todo o Real pelo conhecimento. Ela trabalha com a irrupção do Real no sintoma como uma falha no saber (Lacan, 1966/1998b) que, na prática clínica, na materialidade do caso a caso, constitui a modalidade do retorno do sujeito foracluído pela ciência que lhe concerne.

A partir dessas coordenadas, é possível, como propõe Erlich e Alberti (2008), descrever a relação entre psicanálise e ciência como antinômica, mas não contraditória. Se, por um lado, as autoras reforçam a afinidade da psicanálise com o campo científico no que diz respeito à emergência do sujeito que decorre de sua fundação, por outro, a foraclusão do sujeito e a obturação da falta que constituem o segundo momento do procedimento cartesiano demarca uma disjunção. Não se trata, todavia, de uma relação de exclusão radical, mas de um processo que implica tanto continuidade como descontinuidade. Outra forma de enunciar esse problema é descrever a psicanálise como uma contraciência (Foucault, 2000), o que é bastante diferente de dizer que ela seria uma anticiência.

Talvez essa perspectiva ajude a entender melhor a tese lacaniana de que a psicanálise é uma ciência em segunda potência (Lacan, 1966/1998b). Isto é, ela permite que se formule a estrutura mesma do discurso da ciência: as suas condições de possibilidades e os seus limites. Por isso, o interesse de Lacan pelo teorema de K. Gödel (1906-1978), que postula a impossibilidade de uma consistência interna para qualquer proposição lógica enunciada. Para o matemático húngaro, a verdade de uma proposição está sempre situada em uma relação de descontinuidade e exterioridade com os elementos que a constituem. Daí o caráter de furo do Simbólico no Real que caracteriza a estrutura da verdade. A elisão desse furo, que Gödel demostra logicamente, se faz necessária para que a ciência funcione de forma contínua e homogênea, conforme a definição de ciência normal proposta por Kuhn (1996).

 

A ciência e o discurso da histeria

Feitas essas considerações acerca da estrutura da ciência moderna, realiza-se, a partir de agora, uma aproximação entre a ciência e o discurso da histeria, conforme a fórmula apresentada no seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (Lacan, 1968-69/1992). Em seguida, estabelece-se uma comparação entre a estrutura do discurso da ciência com o do analista.

Evitando alongar-se em demasia nessa definição, entende-se por discurso uma modalidade de laço social e tratamento de gozo que estabelece um arranjo entre o sujeito ($), o seu objeto de satisfação (a) e a linguagem (S1 e S2) a partir dos lugares que esses elementos ocupam em relação ao Outro, a verdade e as posição de produção e agente (Lacan, 1968-69/1992).

Para Lacan (1968-69/1992), a ciência opera conforme o discurso da histeria, onde se lê que o sujeito ($) encontra-se no lugar de agente, interrogando os seus próprios significantes mestres (S1) no campo do Outro e produzindo daí um saber (S2). Como resto dessa operação, tem-se o objeto pequeno a – o objeto causa do desejo – debaixo da barra, no lugar da verdade.

Fig. 1 (Lacan, 1968-69/1992, p. 27)

Percebe-se que essa fórmula evidencia o lugar êxtimo – neologismo que Lacan (1968-69/1992) propõe a partir do Unheimliche freudiano (Freud, 1919/1997f) que condessa os adjetivos íntimo e externo – da verdade e do objeto causa do desejo em relação ao funcionamento do discurso da ciência. Deduz-se daí que o Sujeito não possui uma consciência plena de si mesmo: o seu cogitum se desdobra no limite da ignorância do objeto que lhe causa, que se encontra debaixo da barra, recalcado. O sujeito só pode se aproximar desse objeto sob a condição de sua afânise ou desfalecimento (Lacan, 1964/1998a). Logo, ser e pensar estão em disjunção. Não há uma essência do cogitum, da forma como propõe Descartes. Sua existência pode ser aferida, mas não a sua qualidade, continuidade e permanência.

No seminário, livro XX: Mais ainda, Lacan (1972-73/1985) apresenta a sua concepção de linguagem como uma linguisteria, ou seja, uma linguagem que afeta o corpo e o pensamento. Com isso, ele altera a concepção do cogito cartesiano. Pode-se dizer, então, que a grande intrusão da psicanálise na ciência é a introdução da dimensão Real, do gozo e do corpo. Defende-se que os estatutos de sujeito e objeto na psicanálise constituem um limite para a inclusão integral da psicanálise no campo da ciência. Pode-se dizer que esse limite está contido no próprio ato da fundação do método científico. A psicanálise, portanto, retorna a esse momento de fundação para estabelecer um encaminhamento diferente do que Descartes propôs.

Dunker (2008) faz algumas objeções à tese de que o discurso da ciência moderna segue integralmente o modelo de Descartes, mas subscreve a conclusão lacaniana de que o sujeito da Ciência é o mesmo que está na base do método cartesiano. Além disso, ele concorda com a proposição de que a ciência opera conforme o discurso da histeria. Comentando a fórmula desse discurso, Dunker afirma que a condição necessária para a posição de analisante é o ceticismo, tratado como índice do discurso da histeria: "o sujeito dividido como agente do discurso, o questionamento da lei como um sintoma, a produção de um saber que escapa à apropriação por seu próprio enunciador e a formação de um objeto no lugar da verdade." (p. 177).

Isso quer dizer que a posição subjetiva instaurada pela ciência é uma pré-condição necessária, mas não suficiente, para instauração do discurso do analista. O modo de operar deste pode ser expresso pela seguinte fórmula: o objeto causa do desejo no lugar de agente, que se dirige ao Sujeito no lugar do outro, fazendo com que esse produza os seus próprios significantes mestres no lugar do trabalho, de onde resulta um saber como resto, no lugar da verdade.

Fig. 2 (Lacan, 1968-69/1992, p. 27)

Tem-se, então, que, enquanto o analisando opera conforme o discurso da histeria, que é o mesmo da ciência, o analista, seguindo a modalidade discursiva inaugurada por Freud, acolhe a fala que lhe é endereçada do lugar de objeto causa do desejo, favorecendo com isso a produção de efeitos analíticos (Lacan, 1968-69/1992).

Pode-se dizer que o sujeito, enquanto barrado, é o agente no discurso da ciência, ainda que ele seja, logo em seguida, destituído dessa posição. No discurso do analista, o sujeito em questão é o do analisando, que é colocado em causa em função de sua relação com o seu objeto do desejo, que ocupa o lugar de agente e do qual o analista lhe faz semblante.

 

Literatura Fantástica e Ciência

Defende-se que muitas das considerações aqui tecidas sobre a especificidade da psicanálise em relação ao discurso científico se aplica à literatura fantástica. Um argumento que corrobora essa tese é a indicação de Todorov (2012) de que essa teria desaparecido na segunda metade do século XX em razão da influência da psicanálise. Para o autor, a psicanálise opera como um procedimento discursivo análogo à literatura fantástica e, dessa forma, concorrente. Assim, ela teria tornado a literatura fantástica supérflua, uma vez que ambas estão estruturadas como modalidades de ficção afinadas ao discurso científico. No dizer de Todorov, a Psicanálise teria tornado a dúvida – a oscilação entre o racional e o sobrenatural que constitui a base do efeito estético no qual se apoia a literatura fantástica – um elemento correlato à divisão psíquica, passando a explicá-la racionalmente a partir da referência ao inconsciente.

Ora, essa afirmação traz em seu bojo alguns pressupostos que precisam ser deslindados. De antemão, é necessário esclarecer que ratificamos alguns dos argumentos todorovianos, mas não a sua conclusão. Diferentemente de Kon (2006), que explica o declínio da literatura fantástica em função da emergência de uma nova concepção de homem, o Homo Psicanaliticus, defende-se que é possível atacar a questão levantada por Todorov por outro ângulo, qual seja: a consideração de que o mesmo sujeito da ciência está em causa tanto no fantástico como na psicanálise. Contudo, as formas de tratamento às suas manifestações diferem em cada caso, ainda que se possam apontar vários pontos de convergência. A indicação dessas especificidades se faz necessária para se sustentarem a pertinência e a sobrevida da literatura fantástica na atualidade. Espera-se, com isso, esclarecer alguns pontos de ressonâncias que há entre ela e a psicanálise, sem esquecer a especificidade de cada uma.

Defende-se que a meta principal da literatura fantástica é produzir a surpresa e o espanto por meio da ficção. Logo, ela visa promover as irrupções do Real evocando um gozo estético. Pode-se dizer ainda que ela se esmera em dar vazão às manifestações do sujeito, que se encontra em suspensão – en souffrance – (Lacan, 1966/1998c) no discurso da ciência. Pode-se dizer que, nessas três descrições, o que está em jogo é uma conjuração da sensação de vertigem, uma convocação de uma dimensão sincrônica do pensar: o turbilhão de ideias apontado pelos céticos, que Descartes buscou afastar com o seu método (Baas & Zalozyc, 1996).

Assim, essa literatura mimetiza o discurso científico para dar voz ao Sujeito, que é o seu fundamento. Por isso, os textos fantásticos estão organizados de forma racional, estabelecendo relações causais lógicas para, a partir daí, fazer desabrochar a ruptura, a perplexidade e o espanto. Neles, a ênfase não está na continuidade, na demonstração do conhecimento e de seus passos lógicos, mas nos hiatos, interrupções e aporias aos quais o leitor é levado a se confrontar. Trata-se, portanto, de efeitos de tiquê, de um encontro faltoso com o Real (Lacan, 1964/1998a). 

García (2009) faz uma interessante observação a respeito do escritor Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924), que é bastante elucidativa acerca da relação da literatura fantástica com a ciência. Para Garcia, no caso do referido escritor português, a escrita do fantástico constitui uma espécie de duplo do projeto do cientista positivista. Segundo o autor, não se trata de posições excludentes opostas. Na verdade, a redação dessa literatura é exigida e reforçada pelo procedimento científico, de onde se conclui a existência de uma dinâmica psíquica de regulação: enquanto a ciência foraclui o sujeito para alcançar um suposto conhecimento homogêneo e garantido, a literatura fantástica explora as manifestações subjetivas que eclodem no limite da racionalidade científica, no seu ponto ignorado de origem e sustentação.

Para além de uma abordagem dinâmica, por meio da qual se percebe que um elemento excluído é conservado, retornando transformado em outro lugar (Freud, 1915/1997d), pode-se abordar o problema da definição da literatura fantástica por meio de uma topologia. A esse respeito, novamente a referência a Todorov (2012) mostra-se profícua. Ao indicar a realização do efeito estético que caracteriza a Literatura Fantástica no limite entre o maravilhoso e o estranho (infamiliar/ Unheimliche ), entre uma explicação fantasiosa e outra racional e mimética, Todorov descreve uma conjuntura topológica de leitura como precondição para a consecução da literatura fantástica. Qual seja: no limite do ponto de junção entre a fantasia e a realidade. Isto é: entre a realidade psíquica e o mundo exterior, nas falhas de recobrimento do processo primário pelo secundário e nos pontos de colapso da prova de realidade.

Essa conjuntura da qual Todorov busca dar conta pode ser tratada como uma realização anamórfica (Lacan, 1964/1998a, Recalcati, 2005), quando há a presentificação súbita do objeto e tem-se, como seu correlato, a afânise do sujeito. Logo, é pelo seu desaparecimento que a estrutura do sujeito – como evanescente, furo no real e efeito do significante – manifesta-se como um fato estético.

Por isso, a importância da interação do leitor com o texto para que se produza esse efeito estético que a literatura fantástica está comprometida em promover (Manna, 2014a). Faz-se necessária uma leitura performativa que estabeleça um nexo entre a realidade psíquica de quem lê e a estrutura ficcional do texto. O leitor sabe que está lendo um texto de ficção, mas guarda a expectativa de que seu enredo preserve a verossimilhança e a razoabilidade, mesmo estando advertido de antemão que são justamente esses fundamentos que serão subvertidos no decorrer da história.

Assim, a literatura fantástica está constantemente evocando os sentimentos de desrealização e dessubjetivação. Trata-se – é importante que se diga – de experiências subjetivas distintas, mas correlacionadas. O primeiro sentimento refere-se à percepção de desvanecimento de si; já o segundo diz respeito à sensação de perda da consistência do mundo. Não raro, nos textos fantásticos, esses dois sentimentos são explicitamente e minuciosamente descritos por um personagem/narrador, que exerce em muitos casos a função de mediação entre a história e o leitor, constituindo uma espécie de duplo, simultaneamente do leitor e do escritor.

Para ilustrar essa questão, são reproduzidos, a seguir, alguns trechos de contos fantásticos, cujos personagens assumem a incumbência de narrar suas desventuras. Em "A morte apaixonada", de Gautier (1999), o protagonista, em primeira pessoa, a título de introdução, afirma que os fatos que ele está prestes a narrar: "São acontecimentos tão estranhos que não posso acreditar que me tenham acontecido. Fui durante mais de três anos o joguete de uma ilusão singular e diabólica" (p. 59).

Já na primeira versão do conto "O Horla", de Maupassant (2015a), tem-se uma dupla mediação. Trata-se de uma apresentação clínica, na qual o protagonista relata para uma plateia de médicos alienistas os estranhos acontecimentos que lhe atormentam. O personagem principal é introduzido por seu médico com as seguintes palavras: "Vou apresentar-lhes o caso mais bizarro e inquietante que encontrei. Aliás, não tenho nada a dizer-lhes sobre o meu cliente. Ele próprio falará" (p. 72). O paciente complementa a posição do médico, a quem se dirige como um amigo que "Durante muito tempo, julgou-me louco. Hoje duvida. Dentro de algum tempo, todos saberão que tenho um espírito tão são, lúcido e perspicaz quanto os dos senhores, infelizmente para mim, para os senhores e para toda a humanidade" (pp. 72-73).

O leitor, portanto, é endereçado como alguém que ocupa a audiência junto aos médicos. Uma pessoa condescendente, mas que não está disposta a abdicar de seus critérios de racionalidade e julgamento.

Há nessa citação o mesmo espírito e ironia dos textos de Machado de Assis (1839-1908), nos quais a loucura ganha voz, sendo ela tratada não como a ausência de razão, mas como portadora de uma racionalidade própria. O louco é tratado na sua representação literária como alguém capaz de questionar a própria razão e denunciar a partir daí uma loucura da razão, que nada mais é do que a pretensão de realização de uma racionalidade totalizante, que não reconhece limites, como no caso da novela O alienista (Assis, 1882/1998).

Retomando a tese de Todorov (2012), vale a pena salientar que ele contrapõe e compara a estrutura narrativa do fantástico à organização do estranho elucidado e da literatura mágica ou maravilhosa. Nesta, as coordenadas de leitura não estão orientadas pela exigência de verossimilhança e plausibilidade. O foco está na fantasia, que se desenvolve com o mínimo de consideração possível à prova de realidade. Já no estranho elucidado, a ênfase recai nas explicações racionais e materiais, que se impõem em relação à fantasia. A sua intenção é dirimir ao máximo a dúvida acerca do caráter sobrenatural do fenômeno abordado, ainda que de início o valorize, ressaltando o seu caráter anormal. No primeiro caso, há uma expressão dos conteúdos psíquicos que é mais próxima ao devaneio, como nos contos de fadas (Freud, 1908/1997b). Já no segundo, sustenta-se o projeto de denunciar e retificar os desdobramentos da fantasia, que persiste como risco de uma distorção involuntária a todo pensamento racional.

Na fronteira com o estranho/infamiliar, encontram-se algumas modalidades literárias que surgiram como transformações do fantástico, a saber: a ficção científica e o conto policial (Roas, 2014; Todorov, 2012). Não é à toa, portanto, que alguns escritores de textos fantásticos como E. A. Poe (1809-1849) e H. G. Wells (1866-1846) tenham se aventurado por esses territórios.

Nesse ponto, faz-se necessária uma digressão a respeito da ficção científica. Ela, em alguns casos, parece nutrir um ideal de ciência que está ausente na literatura fantástica, haja vista que essa geralmente assume um tom obscuro, cético e crítico. No caso da ficção científica, por sua vez, em algumas situações, como em determinados livros de Julio Verne (1828-1905) e I. Assimov (1920-1992), esse ideal parece se solidificar, tornando-se uma ciência ideal, o que Roudinesco (1999) descreve como um cientificismo ou ideologia da ciência. Trata-se aqui de uma concepção de conhecimento que leva ao paroxismo a sutura do Real e a foraclusão do sujeito, tornando-se ela própria um equivalente da religião. Nas palavras de Badiou (1994), o cientificismo se caracteriza pelo "desejo de uma onipotência do verdadeiro" e pela "vontade de nomear a qualquer preço" (p. 50). Ou seja, de codificar e explicar o Real na sua totalidade, excluindo qualquer possibilidade de indeterminação ou surpresa.

Deve-se, porém, fazer a ressalva de que muitas histórias de ficção científica estão comprometidas em construir um quadro mais distópico do que utópico, como nos já citados I. Assimov e H. G. Wells.

Além dos gêneros citados, a literatura de terror também pode ser considerada um desdobramento do fantástico. Ela pode acontecer tanto na fronteira com a literatura mágica, a exemplo das histórias de monstros, lobisomens e vampiros, como no limite com o estranho elucidado, do qual os textos sobre serial killers são um bom exemplo (Roas, 2014). Nos dois casos, ainda que por caminhos diferentes, a meta principal é produzir uma forma intensificada de angústia.

Considerando-se esse afeto como um índice do sujeito, ele deve, portanto, estar presente na literatura fantástica, mas a sua intensidade, nesse caso, deve ser atenuada e modulada, uma vez que se faz necessário preservar o tanto quanto possível a capacidade crítica e a possibilidade de dúvida do leitor.

Já o romance policial, no limite com o estranho elucidado (Todorov, 2012), pode assumir uma dupla função. Tanto ele pode servir ao enaltecimento das façanhas da razão, a exemplo dos romances de Connan Doyle (1859-1930), como ele pode se esmerar em apontar os limites e paradoxos do pensar e da percepção. Nesse último caso, o nexo entre a literatura policial e fantástica se mostra mais evidente, como no conto de E. A. Poe (2006), "A carta roubada".

Seguindo a linha de raciocínio todoroviana, Roas (2014) defende que o fantástico pode ser definido como a irrupção do sobrenatural no cotidiano em um mundo ordenado pela ciência. Roas, todavia, não endossa a tese de Todorov, que prevê o desaparecimento da literatura fantástica na última metade do século XX. Seu argumento é que ela se transformou, assumindo novas características, o que dificultou o seu reconhecimento a partir das fórmulas já tradicionalmente estabelecidas.

A partir de uma crítica à tese proposta por Alazraki (2001), que sugere o surgimento de uma nova modalidade do fantástico no final do século XX, caracterizada por uma atitude de desassombro e ausência de angústia que pauta a relação do leitor com o texto, Roas (2014) busca discutir mais minuciosamente as transformações que aconteceram nas últimas décadas no âmbito da cultura que refletiram na literatura fantástica. Concordando com Alazraki, o autor reconhece que, a partir da década de 1970, a literatura fantástica sofre modificações significativas. No entanto, Roas debita a causa dessas transformações a outros motivos. Para ele, a diferença entre a Literatura Fantástica atual e a do século XIX está no fato do que o conflito explorado na experiência de leitura não é mais vivido como uma tensão entre o mundo natural e o sobrenatural, mas como uma ruptura no interior da própria realidade, que se tornou frágil, incerta e complexa. O autor atribui a razão dessa mudança à difusão na cultura e no senso comum da influência da física quântica e da teoria da relatividade. Segundo ele, tais áreas da ciência passaram a exercer a função de novos paradigmas do conhecimento. Com isso, a forma de se conceber no cotidiano as relações de tempo, causalidade e espaço foram substancialmente modificadas.

A esse respeito, acredita-se que é possível, partindo da referência ao sujeito da ciência conforme problematizado por Lacan (1966/1998b, 1966/1998c), atacar o problema por outro ângulo. Analisando pela perspectiva do método de Descartes, tem-se que essas duas vertentes do fantástico e da ciência apontadas por Roas se mostram na sua base uma só. Entende-se que uma ruptura entre o mundo natural e o sobrenatural só é possível quando assegurada a consistência do cogitum e a sua continuidade como substância e essência. Dito de outro modo, a convicção na consistência da realidade é correlata à convicção na consistência do sujeito. Se o elemento da dúvida é inserido nessa equação, como fazem os teoremas de Gödel, tanto a realidade como a própria razão passam a abrigar em seu bojo uma quota inarredável de indeterminação.

Talvez esse seja o ponto nevrálgico do argumento de Todorov (2012), ao indicar que a psicanálise e a literatura fantástica são produções culturais análogas e concorrentes. Interpretamos essa assertiva da seguinte maneira: ambas encontram sua razão de ser nas manifestações do sujeito foracluído pela ciência, nas descontinuidades e inconsistências do cogitum e na produção de condições discursivas de encontro com o Real.

Talvez essa questão seja mais nitidamente perceptível por meio do trecho de outro conto de Maupassant (2015b), "Carta de um louco":

Com efeito – nosso órgão são os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós. Quer dizer que o ser interior, que constitui o eu, encontra-se em contato, por meio de alguns filetes nervosos, com o ser exterior que constitui o mundo.
Ora, não só o este ser exterior nos escapa por suas proporções, sua duração, suas propriedades infinitas e impenetráveis, suas origens, seu porvir ou seus fins, suas formas mais longínquas e suas manifestações infinitas, como nossos órgãos só nos fornecem informações incertas e pouco numerosas sobre a parte dele que nos é acessível (p. 55).

Mais adiante, no mesmo texto, pode-se ler: "Enganamo-nos, pois, julgando o Conhecido, e estamos cercados pelo Desconhecido inexplorado. Logo, tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes. Tudo é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso" (pp. 57-58).

Apesar da fina percepção de Todorov acerca do liame que há entre psicanálise, literatura fantástica e o discurso científico, ele parece não se ater suficientemente à discussão acerca dos pontos de disjunção entre a Psicanálise e a Ciência moderna. Acredita-se que a referência a esses elementos de tensão são fundamentais para situar as especificidades da psicanálise e da literatura fantástica, assim como os desafios que se colocam para elas na atualidade.

Roas (2014), diferentemente de Todorov, desloca o centro da discussão acerca da transformação da literatura fantástica na segunda metade do século XX da influência da psicanálise para os impactos da ciência na cultura. A respeito da tese desse autor, é possível contra-argumentar: o que a lógica e a física contemporâneas fazem é, a partir do próprio procedimento científico, questionar os limites e o ponto de partida do método cartesiano. Talvez essa seja a principal diferença entre as ciências dos séculos XIX e XX-XXI. Cabe, então, indagar se essa transformação é suficiente para se postular a emergência de uma nova inflexão da literatura fantástica.

Cotejando os argumentos dos dois autores, talvez seja lícito considerar que a ameaça à existência da literatura fantástica, pelo menos na sua forma mais tradicionalmente reconhecida, não se deva tanto à psicanálise, como supõe Todorov, nem a uma mudança de paradigma científico, tal como defende Roas. É provável que o cientificismo, na condição de uma convicção no determinismo de uma ciência total, esteja na causa das transformações da literatura fantástica em curso nas últimas décadas.

Sustenta-se que, para além de uma simples ideologia, o cientificismo respalda-se em um aparato tecnológico e em uma cultura de consumo, que promovem uma significativa redução das possibilidades de manifestação do sujeito e do estabelecimento de laços sociais, condições essas necessárias para a existência da psicanálise e da literatura fantástica. Esse mesmo argumento, por sua vez, quando invertido, torna possível conceber a aposta na literatura fantástica e na psicanálise como práticas de resistência ao cientificismo.

Tomando esse último como uma modalidade de laço social análogo à religião (Roudinesco, 2000), pode-se argumentar que ele pressupõe um destino dado às manifestações do sujeito diferente da ciência. Nessa, o sujeito é foracluído para retornar no Real, na condição de falha no saber e obstáculo à verdade. Tal retorno, por sua vez, possibilita a elaboração dessas manifestações subjetivas a partir de outras formas de laço social (Lacan, 1966/1998b, 1966/1998c).

Já o cientificismo, na condição de uma modalidade discursiva mais próxima à religião, incide sobre o sujeito foracluído, denegando o seu retorno no Real. Tal estratégia restringe drasticamente a margem de tratamento de suas manifestações. Conclui-se, portanto, que, ao cultivar um ideal de conhecimento sem falhas, totalizante, o cientificismo não corrobora a visão de mundo da ciência.

É importante ponderar acerca do cientificismo – de que o seu surgimento não é necessariamente atrelado ao capitalismo. Vale lembrar que sua causa está na concomitância entre um ideal totalizante de saber e o discurso da ciência, que é inevitavelmente parcial e incompleto. Partindo dessa definição, é possível, ademais, aferir a existência de um espírito cientificista que permeou a implementação do comunismo pelo estado na extinta União Soviética, no século passado. Ainda que escape ao recorte deste artigo, é lícito interrogar os diferentes matizes que o cientificismo assume nos dois casos. Essa questão pode ser objeto de trabalhos futuros.

Tomando a questão do destino dado ao sujeito em cada caso, pode-se afirmar que a relação da literatura fantástica e da psicanálise com a Ciência é antinômica, mas produtiva. Já com a religião e o cientificismo, percebe-se que vigora uma oposição, não havendo outra possibilidade de agenciamento senão o confronto e a resistência. Cabe então analisar como se coloca a relação da psicanálise e da literatura fantástica com a magia.

Se a ciência foraclui ( Verwerfen ) o Sujeito e a religião o denega ( Verleugnen ), a magia opera um velamento do sujeito (Lacan, 1966/1998b). Isto é, ela recobre o fato de que o sujeito é efeito do significante na sua relação com o Outro, criando a ilusão de uma essência transcendental que é conjurada por meio de rituais e feitiços. No entanto, Lacan (1966/1998b, 1966/1998c) defende que a magia constitui uma via de demonstração da eficácia significante.

Assim, ao se referir à magia, a literatura fantástica e a psicanálise, em sua pré-história, o fazem pela via do discurso da histeria – que é o discurso da ciência –, interrogando a eficácia simbólica do discurso do mestre, no qual a magia se apoia para produzir seus efeitos subjetivos (Lacan, 1968-69/1992).

Fig. 3 (Lacan, 1968-69/1992, p. 27)

Conforme pode-se verificar na fórmula supracitada, o discurso do mestre engendra uma transformação subjetiva a partir dos efeitos do significante. Tem-se, então, que alguém, no lugar de agente, dirige-se ao outro no lugar de saber (S2), valendo-se para tanto de seus próprios significantes mestres (S1). O que resulta daí é a geração de uma quota de gozo – o objeto a no lugar da produção – e a instituição do sujeito dividido no lugar da verdade.

Acerca do lugar do sujeito e da verdade, Quinet (2009) escreve: "(...) a barra da primeira fração é aquilo que indica o representante e o representado em cada laço social. O representado, escamoteado pela barra, é o que sustenta a verdade de cada discurso" (p. 33). O autor ainda esclarece como os elementos da primeira fração da barra estão arranjados no discurso do mestre: nele, "(S1/$), o governo parece se instaurar a partir de leis, projetos de sociedades, programas etc. representados no matema (sua fórmula) pelo S1. Mas, na verdade, o que é escamoteado é que há sempre sujeitos ($) sustentando esse governar (…)". (p. 33).

Deve-se considerar, no entanto, que o efeito de sujeito que esse discurso produz só é evidenciado a partir da subversão que o discurso do analista introduz a partir da ruptura instaurada pela ciência. Tal subversão permite identificar a fórmula da fantasia – que isola o sujeito e o objeto e todas as possíveis formas de relação entre os dois ($<>a) – na parte inferior da barra do discurso do mestre. Daí ser lícito afirmar que a referida eficácia simbólica na qual o discurso do mestre se apoia depende de sua capacidade de mobilizar a fantasia na condição de realidade psíquica.

Sobre esses efeitos de sujeito mobilizados pelo significante, vale a pena trazer à baila a tese freudiana de que o tratamento pela fala constitui uma modalidade de magia esmaecida (Freud, 1890/1997). A proposta de Freud, nesse momento de sua obra, é constituir uma nova modalidade de terapêutica baseado na fala e na relação médico-paciente que fosse cientificamente orientada. Daí o seu interesse pela hipnose e a sugestão em uma clínica da histeria (Gay, 1989): ambas constituem uma ponte entre uma técnica terapêutica cientificamente orientada e a eficácia simbólica da magia.

Nesse sentido, é importante destacar a problematização dos fenômenos da sugestão, do mesmerismo, do magnetismo e da hipnose como uma temática relevante para a literatura fantástica, o que constitui, a nosso ver, um importante precedente para a Psicanálise. Tais fenômenos representam um território fronteiriço entre a magia e a ciência, a partir do qual algumas manifestações paradoxais do sujeito podem ser abordadas de uma perspectiva lógica, sem, contudo, culminar na sua foraclusão. Sabe-se que esse é o desafio que se impõe no manejo da transferência na psicanálise: modular os efeitos da sugestão, a fim de que as manifestações do sujeito se tornem explícitas e possam ser perlaboradas na fala na relação com o analista (Freud, 1915/1997e).

É possível apontar na literatura fantástica alguns contos que representam exemplos paradigmáticos dessa subversão da magia temperada pela ciência. São eles: "Magnetismo" (Maupassant, 2015c), "Der Magnetiseur" (Hoffmann, 1817/2016), "Mesmeric Revelation" (Poe, 2006) e "The facts in the case of M. Valdemar" (Poe, 2006)1.

 

Considerações finais

O argumento central desenvolvido neste artigo é de que Psicanálise e literatura fantástica podem ser caracterizadas como modalidades distintas de tratamento à questão do sujeito instaurada pela ciência. Desse modo, a emergência da ciência moderna é uma pré-condição para a existência da literatura fantástica e da psicanálise, por conta de outra concepção e tratamento do real que ela funda. A partir dessa tese, indicaram-se algumas analogias e discrepâncias entre uma e outra.

Primeiramente, os pontos de convergência: Tanto no fantástico como na psicanálise é possível encontrar elementos que apontam para uma concepção de psiquismo descentrado em relação ao Eu e à consciência. Dessa forma, exploram-se os efeitos da divisão psíquica como uma marca do sujeito inaugurado por Descartes.

A diferença está no fato de a literatura fantástica estar comprometida prioritariamente com o agenciamento de um efeito estético por meio da produção da vertigem, da perplexidade e do desvanecimento do leitor.

A psicanálise, por sua vez, caracteriza-se como um tratamento pela fala que busca uma mudança na economia psíquica do analisando suficientemente duradoura, que repercuta nos seus laços amorosos, sociais e de trabalho. Aqui, a produção de efeitos estéticos não está ausente, uma vez que a estética é descrita por Freud (1919/1997) como a investigação dos diferentes modos de sentir. Assim, os afetos – a angústia, sobretudo – devem ser tomados como índices da manifestação do sujeito, que remetem a uma dimensão estética da clínica.

No entanto, deve-se ressaltar que há processos de modulação dos afetos e dos sentimentos bastante diferentes na clínica psicanalítica e na Literatura Fantástica. Enquanto nesta há um direcionamento intencional dos afetos, naquela a irrupção desses ocorre em função da transferência.

Considerou-se que há uma relação complexa, mas produtiva, entre a psicanálise e a literatura fantástica, de um lado, com a Ciência moderna, de outro. Tal relação implica movimentos de continuidade, mas também de ruptura. Identificou-se que, a partir dessa relação com a ciência, psicanálise e literatura fantástica promoveram uma subversão da magia, colocando em primeiro plano a eficácia do significante como uma via de mobilização da fantasia. Assim, constata-se nos dois casos o interesse por temas como o mesmerismo, o magnetismo, a hipnose e a sugestão.

Sublinhou-se que a relação da literatura fantástica e da psicanálise com a religião se mostra menos favorável, uma vez que nela a margem para a manifestação do sujeito como uma falha no saber e da verdade se mostra mais estreita. Apontou-se o cientificismo como uma distorção do discurso da ciência, que a coloca no lugar da religião, instituindo daí um ideal mortífero, cujos efeitos são a segregação, a massificação e instrumentalização dos laços sociais. Acredita-se que tanto a psicanálise quanto a literatura fantástica constituem modalidades de resistência ao cientificismo e ao discurso capitalista.

 

 

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Artigo recebido em: 27/03/2020
Aprovado para publicação em: 11/06/2021

Endereço para correspondência
Fabiano Chagas Rabêlo
E-mail: fabrabelo@gmail.com
Karla Patrícia Holanda Martins
E-mail: kphm@uol.com.br
Leonardo José Barreira Danziato
E-mail: leonardodanziato@unifor.br

 

 

*Psicanalista, Doutor em psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor do curso de psicologia na Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), ORCID:  https://orcid.org/0000-0001-5026-8396
**Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pós-Doutora pela Universidade de Paris 7 e pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Professora nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3242-6287
***Psicanalista, Doutor pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-8870-9123
1Respectivamente: "O magnetizador", "Revelação pelo mesmerismo" e "Os fatos acerca do caso de M. Valdemar"

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