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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre parcerias amorosas e excessos em algumas mulheres toxicômanas

 

Considerations about loving partnerships and excesses in some drug addicts women

 

Consideraciones sobre enlaces amorosos y excesos en algunas mujeres toxicómanas

 

 

Luma de Oliveira*; João Luiz Leitão ParavidiniI**

IUniversidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pensar no sujeito atravessado pelo fenômeno toxicômano implica em legitimar paradoxais formas de se colocar na vida. Esse sujeito, sendo produto e efeito de políticas econômicas vigentes, incita tentativas sociais de controle que denunciam a falta de saber lidar com a questão. Já sendo difícil pensar nessa condição em geral, a questão torna-se ainda mais problemática quando se consideram subgrupos como o de mulheres. Entre 2000 e 2016, por exemplo, ocorreu um aumento de 656% do encarceramento feminino, com alta representatividade de crimes relacionados às drogas. Atentando-se a esses fenômenos e à transferência com a psicanálise, que mostra o quanto a figura da mulher se faz apreendida desde Freud como um enigma, propõe-se neste artigo compartilhar recortes de reverberações de uma pesquisa resultante da experiência com um grupo de mulheres em um Centro de Atenção Psicossocial - álcool e outras drogas (CAPS AD). Para realização do grupo, foi constituído um espaço em que essas mulheres pudessem falar sobre seus impasses no encontro com o feminino e com o laço social, sendo ambos particularmente atravessados por objetos tóxicos. Essa pesquisa resultou em elaborações sobre curiosas e sintomáticas parcerias que essas mulheres estabeleciam ao longo da vida, levando-nos a refletir sobre o quanto a toxicomania pode aproximar-se de um semblante de existência para algumas delas. Na direção da ética da psicanálise, reforça-se com este trabalho a emergência do singular diante de globalizadas respostas e propõe-se a potencialização da escuta nele realizada para outros espaços de cuidado e acolhimento, principalmente espaços da saúde pública.

Palavras-chave: Toxicomania, feminino, psicanálise.


ABSTRACT

Think about the subject traversed by the drug addiction phenomenon implies in legitimize paradoxical ways of living life. If before some substances existed as a contact means with deities through members authorized by certain groups, in modernity are inaugurated new ways of use that become these substances known as "drugs". The addicted subject, being product and effect of current economic policies, awake social attempts of control that denounce the lack of know how to deal with the issue. Already being difficult to think about this, when considering subgroups such as women, the question becomes even more problematic. Between 2000 and 2016, there was a 656% increase in female incarceration, with a high proportion of drug-related crimes. In view of these phenomena and transference with psychoanalysis, that shows how the women figure is understood since Freud as an enigma, we propose this work by excerpts from a clinical experience and research with a women group in a Psychosocial Care Center - alcohol and other drugs (CAPS AD). To this, it was offered a space in which these women could talk about the impasses of the encounter with the feminine and the social bond, being in particular crossed by toxic objects. This work resulted in elaborations about curious and symptomatic partnerships that these women established throughout their lives, leading us to reflect on how much drug addiction can approach a semblant of existence for some of them. In direction of psychoanalytic ethics, the emergence of singular is reinforced in the face of globalized responses, and it is proposed to potentialize the listening like in this work in other care and embracement places, especially public spaces.

Keywords: Drug addiction, feminine, psychoanalysis.


RESUMEN

Pensar en el sujeto atravesado por el fenómeno de la toxicomanía requiere legitimar formas paradójicas de ponerse en la vida. Este sujeto, siendo producto y efecto de las políticas económicas actuales, incita a intentos de control social que denuncian la falta de saber cómo tratar el problema. Siendo difícil pensar en esta condición en general, al considerar subgrupos como de las mujeres, la cuestión se vuelve aún más problemática. Entre 2000 y 2016, por ejemplo, hubo un aumento de 656% del encarcelamiento femenino, con una alta representatividad de delitos relacionados con las drogas. Teniendo en cuenta estos fenómenos y una transferencia con el psicoanálisis, que muestra lo cuánto se comprende la figura de la mujer como un enigma desde Freud, este artículo se propone con el fin de compartir recortes de reverberaciones de una investigación resultante de la experiencia de los autores con un grupo de mujeres en un Centro de Atención Psicosocial - alcohol y otras drogas (CAPS AD). Para esto, se ofreció un espacio en que estas mujeres podían hablar de los impases del encuentro con lo femenino y con el vínculo social, siendo en particular atravesadas por objetos tóxicos. Este trabajo dio lugar a elaboraciones sobre curiosos y sintomáticos enlaces que estas mujeres establecieron en sus vidas, lo que nos llevó a reflexionar sobre como la adicción a las drogas puede acercarse a un semblante de existencia para algunas de ellas. En la dirección de la ética del psicoanálisis, refuérzanos con este trabajo la emergencia del singular frente a las respuestas globalizadas y proponemos potencializar la escucha realizada a otros espacios de atención y tratamiento, principalmente espacios públicos.

Palabras clave: Toxicomanía, femenino, psicoanálisis.


 

 

Introdução

Veiculam-se notícias sobre "drogas" e seus efeitos como se fossem muito atuais. Hoje em dia, vemos até textos sobre possíveis "transtornos contemporâneos" incluindo a toxicomania nesse amplo quadro. Junto a isso, percebe-se que a perspectiva da "droga" como um problema, principalmente como problema social, em alguns momentos toma a dimensão de pânico, transformando-a em algo a ser combatido. Mas olhar por essa perspectiva parece desconsiderar o fato histórico de que a relação humana com as drogas data de mais de mil anos.

Muitos são os nomes atribuídos à relação problemática com o uso de substâncias, como "adictos", "dependência química", "farmacodependência", "viciados", "drogadição", "toxicomania", entre outros. Toda essa variação denuncia a dificuldade de se nomear algo tão complexo e o quanto o nome pode ir mudando com o tempo e conforme quem o pronuncia. Aqui, por se tratar de um recorte de trabalho, pela frequência com que se encontra em textos psicanalíticos e por certa aproximação dos autores do artigo com a discussão sobre toxicomania trazida por Le Poulichet (1990), escolhe-se trabalhar com o termo "toxicomania".

Há muito tempo, escritores e estudiosos, como Homero e Dioscórides na Grécia Antiga, Plínio Segundo no séc. I d.C. e Freud (1885; 1930) em sua relação com a cocaína e em O Mal-estar na Civilização, tentam apreender o misto de prazer e desprazer que parece acompanhar algumas substâncias.

Freud (1930) fala do quanto a entrada dos sujeitos na cultura é trabalhosa e envolve perda de satisfações. Diante dos custos e desafios de uma árdua vida em grupos, o autor afirma que a intoxicação pode funcionar como um meio para evitar sofrimento.

Pensar no sujeito atravessado pelo fenômeno toxicômano implica em legitimar paradoxais formas de se colocar na vida e nas relações. Esse sujeito, sendo produto e efeito de políticas econômicas de seu tempo, incita tentativas sociais de controle que apontam cada vez mais para uma falta de saber lidar com a questão.

Neste trabalho, acrescentamos a percepção de que, de modo semelhante ao que acontece com sujeitos toxicômanos, não é de hoje que a sociedade parece não conseguir apreender o diferente existente na mulher e sabe menos ainda o que fazer com isso, o que pode ser representado pelas figuras místicas que lhe são atribuídas ao longo do tempo, tais como bruxas, feiticeiras, curandeiras, cartomantes, etc., destinando aquelas que não correspondem às expectativas sociais para lugares controversos (fogueira, convento e prisão, por exemplo).

Quando se pensa na Psicanálise, desde Freud o feminino e a mulher têm sido apresentados como verdadeiros enigmas. Lacan (1972-73), em suas concepções, nesse sentido, conclui que não há um gozo que atenda ao universal "Mulher" ou algo que se afirme como definição para todas. Sobre essa concepção da impossibilidade de apreensão d’A Mulher, é possível acrescentar uma passagem de Grant (1998), ao dizer que:

Neste contexto vale lembrar que usamos o significante Mulher para denominar a especificidade daquilo que está fora do significante... Como falar daquilo que não se pode falar? Esta ausência de um termo para dizer A Mulher deixa indeterminada uma identificação especificamente feminina. Ela escapa às palavras e está sempre em outro lugar que não aquele em que se diz estar. Perde a identidade e o nome, no caminho em direção ao gozo que lhe é próprio (p. 259).

Observa-se, desde o surgimento da psicanálise, um particular investimento sobre o tema, que surge com a parceria entre Freud e Breuer (1895) se debruçando sobre um caso de histeria atendido por Breuer, entre 1880 e 1882, e os efeitos do embaraço com o (não) saber diante desse encontro, que marca a castração do mestre diante de um enigma a ser decifrado por meio da convocação da escuta.

Em uma conferência sobre a feminilidade, Freud (1933) corrobora o exposto quando afirma não conseguir dar uma resposta específica a esse enigma, sugerindo que, se desejassem saber mais, então buscassem outras fontes, como as próprias vivências, os poetas e novos resultados da ciência.

Assim, se é trabalhoso lidar com a evocação social diante da toxicomania e apreender sobre a condição feminina nas mulheres, questionou-se no início da pesquisa que originou este artigo como se daria o processo de constituição feminina de algumas participantes de um Centro de Atenção Psicossocial - álcool e outras drogas (CAPS AD). Vale destacar que, após identificar várias situações de risco e vulnerabilidade que as envolviam, devemos nos atentar ao importante lugar social dessas mulheres, indissociável de políticas públicas, da política de drogas e da política de encarceramentos.

Aceita-se o convite de Rosa (2016) de não perder de vista a dimensão sociopolítica do sofrimento, buscando intervenções "na direção de reposicionar o sujeito em relação ao seu discurso, sua voz, desarticular gozo, recuperar memórias e repensar as bases do pacto social vigente como formas de conceber uma transformação social" (p. 95).

Com isso, trazemos a experiência de acompanhamento de um grupo psicanalítico composto por mulheres em um CAPS AD e os resultados de articulações e supervisões realizadas a seu respeito. O trabalho culminou em importantes reflexões sobre o que é ser mulher, os efeitos de tentativas de estabelecimento de parcerias frente ao desamparo, sobre como isso pode se dar nos encontros com as figuras materna e paterna e como tudo isso desemboca em sintomáticas parcerias amorosas na vida adulta.

Dentre diferentes noções teóricas, ressalta-se a aproximação da nossa escolha de trabalho em grupo com a visão da escola francesa de Psicanálise, principalmente de autores como Kaës e Anzieu. Sobre isso, tem-se que a escola francesa considera a prática de grupo como naturalmente pertencente à psicanálise (Castanho, 2018).

Kaës traz o grupo como intrínseco à constituição humana, apreendendo um "duplo estatuto do sujeito" que se constitui apoiado sobre o corpo e sobre o âmbito intersubjetivo, por meio de vínculos nas relações humanas. Segundo o autor (2007), o sujeito do inconsciente (objeto da psicanálise) é o sujeito do vínculo.

A título de contextualização, os atendimentos em grupo de nosso trabalho ocorreram semanalmente, com duração aproximada de uma hora e meia. Devido à característica da instituição com rotatividade diária de pacientes, os encontros eram abertos, de maneira que podiam comparecer novas e diferentes integrantes. O número de participantes por encontro teve uma média de oito mulheres.

O grupo, como proposto, foi chamado na instituição de "Grupo de Mulheres" e proporcionou experiências de reflexão, identificação, manejo de regras como em um setting individual e pôde ser trabalhado em livre associação. Entende-se que esse processo permitiu uma aproximação com o real do sofrimento de cada mulher ali presente.

Diante dessa forma de trabalho, notou-se que o tema das "parcerias" ganhou particular destaque em referência ao que as participantes traziam sobre suas relações amorosas com alguns companheiros e até mesmo com o objeto droga, expondo a relação do objeto tóxico com complicadas parcerias (ou ausência destas) ao longo da vida e os efeitos na vida adulta.

Segundo Miller (2000), para a psicanálise, o parceiro é uma instância com a qual o sujeito está ligado de forma essencial e paradoxal, causando problemas, estando associada aos nossos sintomas e sendo eventualmente enigmática.

 

Quem são essas mulheres?

Na impossibilidade de se dissociar o consumo e outras relações problemáticas com as substâncias psicoativas do nosso contexto social e de políticas públicas, gostaríamos de acrescentar informações que consideramos relevantes sobre a relação do exacerbado aumento de encarceramento feminino nos últimos anos com o envolvimento das mulheres no uso ou tráfico de drogas. Conforme dados do INFOPEN (2018), entre 2000 e 2016 ocorreu um aumento de 656% do encarceramento de mulheres no Brasil, enquanto o aumento do encarceramento masculino foi de 293%.

Segundo Lima (2015), entre 2003 e 2004, em uma análise da situação do encarceramento feminino na América do Sul, crimes relacionados a drogas representavam 46% dos casos em El Salvador, 86% na Nicarágua, 64% na Costa Rica e mais de 70% na Venezuela. No Brasil, em 2012, as prisões por tráfico e envolvimento com drogas representavam 22,6% dos homens e 64,7% das mulheres, tendo aumentado 5 vezes em São Paulo, conforme análises que ocorreram entre 2006 e 2012.

De acordo com "Um guia para reformas em políticas na América Latina e no Caribe", resultante de um Grupo de Trabalho sobre Mulheres, Políticas de Drogas e Encarceramento, composto por membros da Advocacy for Human Rights in the Americas ( WOLA), do International Drug Policy Consortium (IDPC), do Dejusticia - Derecho, Justicia, Sociedad, da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) (2017), em muitos países as punições para delitos de drogas são mais altas do que penas para atos como estupro ou homicídio.

Esse Guia (WOLA et al., 2017) provoca importantes reflexões sobre os impactos dessas políticas sobre as mulheres, mostrando que a prisão como resposta às drogas tem afetado desproporcionalmente esse grupo. Estudos na América do Sul mostram que a maioria das mulheres privadas de liberdade já vivenciou experiências de violência ou discriminação antes e tanto os delitos para obter drogas para consumo quanto a participação no tráfico estão frequentemente relacionados com exclusão social, pobreza e violência de gênero. A maioria tem pouca instrução educacional e é responsável pelo cuidado de dependentes, como crianças, idosos ou deficientes.

Diante dos impasses que a questão das drogas vem causando à sociedade, tem-se formulado e repensado políticas a respeito, com tênues linhas entre repressão/criminalização, prevenção e tratamento. No Brasil, apesar de ameaças de retrocessos, há algumas mudanças nessas políticas que, em geral, incentivam a enxergar pessoas com problemas com drogas como sujeitos que necessitam de cuidado profissional, bem como seus familiares. Em algumas áreas do saber já se tem até despertado para a importância da discussão sobre descriminalização do uso de drogas e quantias consideradas de baixo risco para consumo pessoal.

Nesse sentido, acrescenta-se a importância dos CAPS ADs, que surgem como dispositivos substitutivos ao modelo manicomial de tratamento em saúde mental e como aposta em uma nova forma de cuidar. Apesar de alguns desafios práticos, a intenção é que nessas instituições os sujeitos possam refletir sobre suas relações com o uso, suas formas de se posicionar em diferentes contextos, conhecer seus direitos, retomar vínculos, entre outras questões, ajudando-os a ressignificar o uso da droga e, por vezes, até interrompê-lo.

Entende-se, no entanto, que nem todos se dispõem a uma mudança na relação com a droga, ou pelo menos não de forma tão imediata, e muitos fatores contribuem para isso. No caso das mulheres, de acordo com o que se percebe na experiência clínica, essa dificuldade pode ocorrer, por exemplo, por influência de parceiros amorosos, por desafios com a maternidade, conflitos com autoimagem e mudanças corporais, por histórico de violência doméstica e pouco suporte para lidar com essas e outras questões, o que as fazem buscar na droga a parceria (mesmo que também faltosa) que não encontram em outros espaços.

De acordo com o relatório do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência - OEDT (2000), a utilização de drogas é vista como incompatível com o papel da mulher e a maternidade é um elemento fundamental para sustentar essa percepção. As mulheres, inclusive, receiam ser consideradas inaptas como mães e temem perder os filhos caso decidam submeter-se a um tratamento. Esses dados significam, de acordo com o OEDT (2000), que as mulheres consumidoras de drogas enfrentam maiores dificuldades do que os homens no acesso a um tratamento adequado.

Autores como P echansky, Diemen, Michele e Amaral (2014) afirmam que a diferença entre uso, abuso e dependência de drogas entre homens e mulheres vem diminuindo e os primeiros sintomas de dependência e busca por tratamento ocorrem mais rapidamente entre mulheres. No entanto, conforme questão levantada pelo OEDT (2020), reflete-se sobre o peso de barreiras no acesso das mulheres ao tratamento, levando-se em conta ainda a maior quantidade de homens geralmente frequentes nas instituições voltadas para esse cuidado.

Considerando os lugares historicamente destinados às mulheres e o estigma enraizado em pessoas que fazem uso problemático de drogas, questiona-se qual lugar essas mulheres teriam, sendo frequentemente anunciadas como "vagabundas", "noiadas" e "loucas".

Percebe-se a anulação dessas mulheres e da função materna ainda sendo reforçadas por órgãos como o judiciário que, inúmeras vezes, determina peremptoriamente o tratamento ou internação para essas mulheres, ressaltando que, para aptidão a serem mães, ou qualquer outra coisa, é necessário que interrompam de vez e o quanto antes o uso de substâncias. Caso contrário, recorre-se a medidas como isolamento dos filhos e encarceramento.

Considerando esses fatores que, em maior ou menor grau, circundam as participantes da pesquisa, propõe-se aqui uma familiarização dessas mulheres. Cada uma delas pôde contar de modo muito singular como subjetiva o uso da droga e como isso afeta suas relações afetivas. Algumas chegaram ao CAPS AD por demanda espontânea, outras por determinação judicial, outras por encaminhamentos de unidades de saúde, para dar força ao companheiro que iniciara tratamento no local, por insistência de familiares e algumas até mesmo por se verem diante da morte e enxergarem a instituição como última aposta de vida.

Algumas mais eufóricas, outras mais chorosas, umas sérias, outras de riso fácil, mas, em suas diferenças, conseguiam ir estabelecendo eixos comuns que se tocavam e lhes permitiam se reconhecer e se identificar entre os encontros grupais.

Os temas discutidos apareciam de forma livre. Às vezes o grupo começava em função de como algumas estavam percebendo uma participante específica; outras, com elas contando sobre misturas de sentimentos que experimentavam; às vezes, contavam histórias familiares; contavam, também, sobre como lidavam com o uso e as tentativas de reduzi-lo ou interrompê-lo; mas, em meio a tudo isso, algo que sempre aparecia e retornava eram seus embaraços diante de aventuras amorosas, que às remetiam, frequentemente, a falar sobre matar ou morrer.

Essas mulheres apresentavam-se pela via dos excessos, em que suas relações e formas de se constituir eram atravessadas por grande empréstimo do corpo. Entre elas, uma mulher que quando criança andava a pé, descalça, vendendo doces em sinaleiros. Algumas mulheres que se prostituíam em troca de drogas. Outras que agrediam e eram agredidas fisicamente por "parceiros". Algumas delas, não sabendo o que fazer com a angústia, a transformavam em automutilações. Uma outra, por vezes, se machucava permanecendo na frente de veículos em movimento. Estiveram, entre elas, mães com companheiros presentes, mães com filhos abandonados pelos pais, mulheres que abortaram, mulheres casadas e solteiras.

Essas mulheres são representadas por A., 30 anos; J., 55 anos; G., cerca de 40 anos; L., 47 anos; M., 51 anos; M. I. (faleceu durante o período da pesquisa com suspeita de pneumonia); E. 59 anos; T., cerca de 30 anos; Frô1, cerca de 30 anos; R., 40 anos; S., 59 anos; R.B., 53 anos; A.L., 38 anos; e M.T., 50 anos.

 

O (im)possível de uma parceria

Lacan (1969-1970) traz que, no tocante à experiência analítica, a filha espera mais subsistência da mãe do que do pai, mas na impossibilidade de se obtê-la incondicionalmente, bem como a total transmissão da feminilidade, o que retorna a essa dupla mãe-filha é a devastação, em que a mãe é elevada à categoria do impensável em um misto de amor e ódio na relação com a filha.

Sobre isso, as participantes do referido Grupo de Mulheres trouxeram importantes sentimentos em relação às suas mães, que predominantemente variavam entre ódio, mágoa, raiva e sensação de humilhação diante de suas mães. Tamanha era a intensidade desses afetos e elas traziam os efeitos deles em suas relações amorosas e em suas próprias experiências de maternidade.

Somando à discussão, é inevitável trazermos Frô. Ela veio de São Paulo após um longo período de passagem pela cracolândia e estava morando em Uberlândia com a mãe fazia pouco tempo, cerca de um mês.

Frô foi levada ao CAPS AD pela mãe. Apesar de aparentemente não ter se identificado com as atividades oferecidas, conseguiu se interessar por particularidades ali existentes. Ateve-se a chegar todos os dias pela manhã, ir para uma mangueira no quintal, aguá-la, retirar sujeiras em volta e catar algumas mangas caídas ou de seu alcance. Em resposta a algumas "broncas" que ganhava por não aderir às atividades formalmente realizadas, distribuía mangas e sorrisos aos profissionais da unidade. Em pouco tempo ela já havia conquistado todos e, em acordo, a equipe concordou com que ela realizasse esse uso desengessado da instituição.

Quando a abordávamos, dificilmente compartilhava algo pessoal. Mas, como que por curiosidade em saber o que as outras mulheres faziam junto ali, Frô passou a entrar algumas vezes no Grupo de Mulheres e em uma de suas poucas aparições, teve participação importante. Nesse dia, queixou-se muito da relação com a mãe, chorou, dizia que queria o amor dela e mesmo estando tão perto não conseguia ter, então às vezes preferia ficar na rua a ficar tão perto e não ter esse amor.

Frô dizia que sua mãe tentava vigiá-la e por isso a trancava em casa. No dia anterior, sua mãe havia batido nela por ter tentado sair de casa. Frô inclusive mostrou algumas marcas no corpo que afirmou serem decorrentes desse episódio.

Ela falou algumas vezes sobre sentir-se "amargurada". "Eu quero atenção, quero carinho. Os outros na rua parece que me dão mais atenção, aí eu apronto. Você acha que eu não tô amargurada? A hora em que eu me sinto mais amargurada é de noite, quando tô naquela casa. Eu chego e escuto da minha mãe e do meu irmão: ‘a intrusa já chegou’" (sic).

Frô permaneceu chorando. Percebi que a necessidade de a acolher perpassava pelo grupo, que a ouviu em silêncio e com algumas lágrimas. Ela cogitava voltar para São Paulo. Apesar da condição degradante em que ficava nesse destino, considerava ser mais suportável do que o que vivia junto à mãe. Ela refletia: "Já perdi ela. Faz tempo. O que está acabando comigo é estar aqui perto dela e não ter ela. Lá em São Paulo pelo menos eu não tava perto dela!" (sic).

As falas no grupo circularam entre tentativas de acolhimento e partilhas de vivências identificadas. Pela primeira vez vimos Frô participar de um grupo do início ao final. Antes de retirar-se, ela disse que encontrou alguns "irmãos" no CAPS AD e que nesse dia ouviu mulheres maravilhosas contando ali como conseguiam encarar relações difíceis. Disse acreditar que "também poderia aprender a ser assim".

Em tom de agradecimento, voltou-se ao grupo: "Nasceu outra Frô aqui hoje. Caiu as pétalas e nasceu outra. Graças às outras frores. Ninguém me dá atenção como vocês me deram" (sic). No dia seguinte, Frô não compareceu ao CAPS AD. Mais um dia e recebemos a notícia pela mãe de que ela havia botado fogo na casa e ido embora, dizendo estar voltando para São Paulo.

A sensação é de que Frô havia transbordado e antecipou no grupo um rompimento em tom de despedida. Como já sinalizado como recurso comum dessas mulheres, foi pela via do excesso que se tornou possível para ela romper com o insuportável, porém deixando algo de si.

Soler (2005) afirma que cada um traz no mais íntimo de si a marca do Outro primordial e isso se reflete na fala de um analisando quando a mãe é infalivelmente convocada. Quando se trata especificamente da menina, as falhas da mãe ganham especial destaque no inconsciente. São as palavras da mãe e seus imperativos que inscrevem na memória a voz, às vezes devastadora e persecutória, que o analisando evoca em forma de "minha mãe diz/dizia que...".

Sobre isso, podemos dizer que Frô é, sem dúvidas, exemplo vívido do lastro de ódio remanescente (tão próximo do amor) da relação de uma filha com sua mãe. Se um dos destinos possíveis para isso é a devastação, ela mostra como é viver à flor da pele o indizível desse percurso.

Bem como a figura materna torna-se marca essencial no percurso dessas mulheres, a relação com a figura paterna mostra-se como peculiar e importante encontro, desvelando principalmente algumas tentativas delas se ampararem diante dos impasses frente ao laço social.

Desde as obras de Freud (1900-1938) sobre o pai, é apresentada a forte ambivalência entre essa figura, a constituição do sujeito e a cultura. Sobre isso, destaca-se o paradoxo nas falas das mulheres presentes no grupo em questão, as quais, mesmo compartilhando situações de abandono, violências, abusos e dependências, por exemplo, por parte dos seus pais, demonstravam internalizar essas figuras como algo bom, havendo uma espécie de ilusão a seu respeito.

Se na relação com as mães essas mulheres pendiam para o ódio diante da ambivalência, com os pais elas demonstravam um ato de fé nesse suposto garantidor pelo seu amparo. De encontro a isso, E. contava que, apesar de ter acompanhado anos de alcoolismo do pai, tê-lo visto brigar muito com a mãe e tê-lo buscado várias vezes em bares quando criança, ele (já falecido) foi uma perda nunca elaborada. Dizia que ele havia sido um verdadeiro companheiro para ela. Por diversas vezes, E. repetia que o que a fez entrar em depressão foi a morte do pai. No início de seu tratamento, sempre que E. falava do pai, chorava, e demonstrava raiva da mãe por algumas diferenças.

Dentre algumas vivências compartilhadas por ela em relação ao pai, duas em especial nos chamam atenção. Uma diz respeito à sua primeira gravidez, em que a paternidade não foi assumida pelo parceiro. Ao contar ao seu pai, E. recebeu dele um tapa na cara. Com esse desfecho, E. decide abortar e consegue.

Já em uma outra gravidez de E., novamente com a paternidade não sendo assumida, o pai dela decidiu registrar a criança no nome dele. E. menciona tal gesto sentindo-se grata, dizendo que essa foi uma forma, dessa vez, de o filho não crescer sem pai.

Mesmo com dificuldades de diferentes ordens no convívio com o pai e com a experiência da primeira gravidez, E. afirmava que quem ela identificou como parceiro em sua experiência de maternidade foi seu próprio pai, apontando uma ligação de ordem incestuosa que gerou certas disputas entre ela e sua mãe.

Retoma-se com essa passagem as primeiras formulações de Freud (1900-1910), que versavam sobre o pai edipiano junto à descoberta da sexualidade infantil. Evidencia-se aí a importância da interdição do incesto e a função de estruturação psíquica do Complexo de Édipo. Desde aí já se instaura uma ambivalência em relação à figura paterna. Ao mesmo tempo em que o pai protege de um mal, ele é figura de disputa.

Outras passagens que apareceram no grupo em relação a esses supostos heróis foram de pais que agrediam fisicamente as mães, homens que traíam suas mulheres e um relato sobre um pai que colocava balinhas em um bolso rasgado e pedia para a filha ainda criança pôr a mão ali.

Pensando nessa controversa imagem do pai, questiona-se o que é um, e associa-se a trajetória freudiana a esse respeito, que ultrapassou o aspecto da procriação e acrescentou o valor da transmissão simbólica à constituição de um pai e de uma mãe. Freud apontou ser o vínculo com o pai, e assim com a Lei, a condição necessária para que uma transmissão simbólica se torne possível, engendrando uma memória e uma historicidade (Senna, Gomes, Guilhon, & Kupferberg, 2010). Vale destacar que o pai na constituição do sujeito não é representado apenas pelo pai biológico, mas pela figura que encarne a função paterna nesse processo.

O sentimento de desamparo, já presente na infância, desperta a necessidade de proteção, a qual supostamente um dia foi proporcionada pelo pai. Assim, o reconhecimento de que o desamparo perdura durante a vida torna necessário aferrar-se à existência de um pai, mas um pai ainda mais poderoso (Freud, 1927).

De encontro a isso, Freud destaca ao longo de sua obra a impossibilidade de erradicar a necessidade humana de se iludir. A ilusão é estrutural e tem origem no desamparo originário (Santos & Lopes, 2013).

Passando pelas relações das mulheres do grupo com as figuras materna e paterna, p udemos encontrar particulares formas com que cada uma se virava diante da condição feminina e dos impasses na relação com o Outro que, desde a infância, lhes marcavam nas possibilidades e impossibilidades de parcerias frente suas reivindicações de amor e de proteção frente ao desamparo.

As condições partilhadas mostraram estranhos desencontros com que elas se esbarravam, fazendo com que recorressem ao gozo pela droga e o adotassem como ilusório protetor dos desafios do laço social. No entanto, a aposta nesse objeto tóxico acaba denunciando a falha em também tentar elencá-lo como parceiro possível, criando um circuito de insatisfação e degradação como consequência.

Destaca-se que, se a aproximação ao ser do outro por meio do amor é uma saída por excelência feminina, os destinos dados a uma relação homem-mulher permeada pela droga parecem potencializar o desmedido do amor, desembocando em complicados destinos como o da violência, o da miséria e o da própria solidão. Nesse sentido, as tentativas de parceria dessas mulheres com os homens e com a droga remete-nos à noção de parceiro-sintoma apresentada por Miller (2000), que destaca que há sintoma quando o Outro que é o parceiro fundamental do sujeito não reconhece seu desejo. Esse parceiro, tal como apresenta Lacan, é o objeto a, que passa de parceiro-sintoma a parceiro-gozo.

 

Se o (nosso) amor se acabar...

Apesar de até aqui termos levantado importantes pontos, considera-se que a discussão sobre as parcerias amorosas merece destaque por trazer à luz elementos essenciais à investigação de nossa pesquisa. A discussão possibilitou articulações sobre como uma mulher toxicômana pode ir se virando com o gozo feminino, com o processo de feminilidade e suas relações de maior investimento amoroso, nos fazendo questionar se é possível que algo ou alguém de fato a acompanhe como parceiro nesse percurso.

O sujeito, em sua incompletude, necessita do parceiro em sua constituição, sendo esse parceiro introduzido por Lacan como um parceiro simbólico, mas, como bem questionado por Miller (2000), até que ponto dele o sujeito necessita?

Em lembrança a um encontro do grupo em que as pacientes aguardavam o início cantando algumas músicas, temos o título desta nossa discussão. Dentre as músicas, uma passa a ser cantada em coro mais alto: "Se o nosso amor se acabar, eu de você não quero nada...". Percebendo a identificação das participantes com o trecho, considerou-se o movimento como um jeito de elas já iniciarem a conversa contando algo de si.

Em seguida, as participantes passaram a falar sobre situações complicadas em que já se envolveram em prol de relações amorosas, bem como os efeitos de algumas decepções, separações e a esperança com a retomada de alguns relacionamentos rompidos. Com isso, considera-se pertinente trazer para a discussão falas desse e de outros encontros que se somam à questão levantada.

E., por exemplo, trazia um relacionamento de cerca de 4 anos com um homem que fazia uso problemático de álcool e crack e que já esteve em tratamento no CAPS AD, mas não se vinculou ali como ela. Com os atendimentos, ela refletia sobre essa relação e dava-se conta dos danos causados, o que se intensificou quando se deparou com um resultado clínico positivo de exame para sífilis, que provavelmente havia sido contraída com esse parceiro.

E. oscilava entre chorar, gritar, isolar-se e, na semana em que descobriu o resultado, tomou vários medicamentos psiquiátricos de uma vez, como tentativa de alívio. Após percepção da própria E. de que seu ódio tomava a dimensão de descontrole, ela solicitou ajuda à equipe para que desse conta de elaborar a situação de forma mais protegida, protegida até de si mesma.

Ela foi então encaminhada para cuidados clínicos e psiquiátricos na unidade e decidiu terminar o relacionamento. Conforme a paciente, ela conseguia dizer ao namorado que não queria mais estar com ele, falar sobre sua decepção e sustentar o rompimento em momentos em que ele a procurava. No entanto, os efeitos dessa separação pareceram potencializar algo do insuportável que já se instalava sobre E.

Aos poucos, ela perdeu a motivação para sair de casa, realizava uso intenso de bebidas alcoólicas após meses de uso controlado e dizia que estava "atacando as pessoas do nada". Contou de uma discussão em que "voou em cima da mulher" (sic). Diante de tais acontecimentos, o psiquiatra que a acompanhava no CAPS AD propôs um encaminhamento para internação em enfermaria psiquiátrica de um hospital geral do município, ao que ela concordou.

Após 28 dias, E. voltou a frequentar o CAPS AD dizendo que nunca ficou tanto tempo assim internada. Dizia que "ficou louca" e não esperava que isso fosse acontecer "por causa de homem". Mostrava-se assustada com a vivência e, ao levantarem no grupo a possibilidade de investimento em novos relacionamentos, E. mostrava-se resistente. Dizia ter medo e falava que "homem nenhum iria mais fazê-la ir parar na psiquiatria".

Ela e outras participantes refletiam sobre relacionamentos que viviam, que já viveram e momentos em que já foram julgadas por algumas atitudes. Uma delas contou que foi casada por cerca de dez anos com um homem que a "sufocava" e, quando conseguiu levar adiante seu desejo de separar-se, ouviu de algumas pessoas que "mulher que separa é puta", o que em alguns momentos fazia sentir-se menos segura enquanto mulher.

E., após processo reflexivo e tomada pelos efeitos de sua internação, dizia ter aprendido a pôr limites em situações que lhe faziam mal - por mais que isso doesse nela - e entendeu que "não deveria se sujeitar a certas coisas". E. recomendava que as mulheres ali do grupo deveriam levar menos em consideração o que os outros diziam, complementando que: "Quem faz a gente de mulher é a gente mesma". Ser mulher parece passar de "ser amada" a uma invenção singular com que elas devem se haver.

Em relação às discussões sobre as parcerias amorosas, A.L., de início, não falava muito sobre suas relações para além das filhas e da dificuldade de interromper o uso de substâncias. Chamava atenção no bairro por andar pelas ruas com suas três filhas. Em alguns momentos, encontrava-se descuidada e entrava nos lugares apenas para pedir algumas coisas, como leite, alimentos e roupas.

Apesar de aparentar um autocuidado prejudicado, as pessoas não viam suas filhas assim. Elas encontravam-se sempre arrumadas e demonstravam afeto importante pela mãe. Em sua configuração familiar, A.L. até então também não apontava qualquer falha que pudesse haver no marido. No entanto, algumas situações aproximaram o Conselho Tutelar dessa família, como a suspeita de vizinhos de que seu companheiro estivesse consumindo crack na presença das meninas e o fato de que a criança do meio estivesse faltando à escola para cuidar da mais nova.

A partir dessa vigilância, aumentou-se uma cobrança de que A.L estivesse no CAPS AD em frequência mais regular e, após adquirir maior confiança no espaço, ela passou a desvelar no Grupo de Mulheres conflitos que perpassavam sua relação com o marido, suas formas de ir se virando com isso, com a criação das filhas e com outros desafios da vida.

No lugar de um homem bom para ela e para as filhas, que antes aparecia na fala de A.L., ela passou a trazer um companheiro agressivo, violento e que se descontrolava ainda mais quando realizava uso de drogas. Ela relata que o marido já chegou a pôr fogo em alguns pertences dela como tentativa de mantê-la sob seu controle.

A.L. compartilhou que já foi agredida por ele algumas vezes e que a relação era marcada por dúvidas e traições. Eles usavam crack juntos e, quando o dinheiro acabava, ele mesmo incentivava que A.L se prostituísse para que conseguissem mais dinheiro. Paradoxalmente, seu companheiro passou a questionar inclusive sua paternidade em relação à filha mais nova.

Nessas condições, A.L., que em alguns momentos parecia alheia, conseguia mostrar o quão atenta estava a tudo. Ela contou, por exemplo, que como saída, apesar de saber ler algumas coisas básicas, fingia que não sabia ler nada perto do marido e escondia debaixo do colchão alguns documentos seus que considerava importantes.

Além disso, o fato de A.L. sair andando para todos os lados com as filhas e permitir que a filha do meio faltasse à escola para cuidar da mais nova podem ser compreendidos como, em vez de pura negligência, uma tentativa de proteção diante do medo que ela tinha de deixar as meninas, principalmente a mais nova (fruto de desconfiança na relação), apenas com o marido, do qual podia se esperar o pior. A.L., após alguns encontros, disse que não tinha coragem de deixar que o marido "encostasse num fio de cabelo das meninas, como já fez com ela".

No entanto, apesar de explicitar seu sofrimento, A.L, assim como outras mulheres do grupo, encontrava argumentos para manter-se na relação quando confrontada com a possibilidade de mudança. Ela dizia que, apesar das dificuldades, o casal estava junto havia muito tempo e, "querendo ou não", ele era seu "parceiro", não deixava faltar as coisas em casa e era o pai das meninas.

Sobre isso, Miller (2000) compreende a fórmula de Lacan (1972) de que "não há relação sexual" destacando que "o parceiro essencial do sujeito é o objeto a, alguma coisa de seu gozo, seu mais-de-gozar" (p.169). Isso faz-nos questionar como se dá a escolha de cada parceiro sexual que, conforme o autor, é pautada por sintomas e afetos resultantes de um rastro do desencontro da relação sexual. Segundo Miller (2000), é isso que provoca o amor.

Como contraponto ao discurso de A.L., porém, destaca-se A., que dizia não valer a pena manter-se em uma relação que poderia lhe custar a vida. Apesar de não trazer sem dor a lembrança de sua separação do ex-marido, conseguia enxergar ganhos com esse rompimento.

Ela contou: "Quando separei, sofri muito. Quase morri por causa dele. Mas hoje tô bem. Não tô usando nada e ele tá se afundando cada vez mais, tá usando muita droga. E ele me traiu, ficou com a minha irmã. Eles têm um filho. E ela também tá entrando nessa. É por causa dele, eu sei. Porque quando eu tava com ele, eu tava igual ela, mal, muito magra" (sic).

As outras mulheres ouviam com atenção o relato sobre esse homem que teve um filho com A. e outro com sua irmã, e também reviviam traições e compartilhavam outros embaraços em suas próprias relações.

J., por exemplo, durante sua passagem pela unidade, ficou viúva. Seu marido morreu de forma inesperada, atropelado em um acidente. Apesar de J. com frequência falar sobre a dificuldade em elaborar o luto dessa perda, ela começou a se relacionar com outro homem que também se tratava no CAPS AD. Ele era cerca de 20 anos mais novo que ela e ainda mantinha um uso frequente de crack. A aposta em um relacionamento com uma pessoa mais nova e dependente de uma substância que, para ela, também era nova, trouxe algumas consequências.

Após o início dessa relação, J. emagreceu muito e passou a relatar alguns usos de crack junto com o rapaz. Ela começava a perceber que a entrada na relação lhe trazia alguns problemas, como dívidas, conflitos com vizinhos e com familiares, descuido com sua aparência (antes sempre se mostrava muito vaidosa) e até mesmo com a própria saúde.

Em dado momento, ela resolveu mudar de endereço e inicialmente cogitou não comunicar a esse homem, mas não conseguiu sustentar essa saída. J. ia contando sobre objetos que sumiam na casa, de brigas com os pais dele - que passaram a responsabilizá-la pelo uso dele -, de um homem que quanto mais presente, mais conflituoso se mostrava, e mais J. ia se dividindo entre o desejo de permanecer e uma racionalização sobre o sair.

Soler (2005), ao retomar a obra de Lacan, afirma que o autor:

Não recua em dizer que o amor é um tipo de suicídio. (...) A elação amorosa, a plenitude e a alegria dissimulam uma entrega ao Outro cujos graus são variados, mas que pode chegar ao extremo da abolição voluntária. Assim, quer se deixe apanhar, quer se furte, o amor sempre programa um desencanto e, ao se fiar nele, toda mulher fica meio... viúva!" (p. 81).

Com a morte do encanto do amor, soma-se à discussão as passagens de G. pelo grupo. Geralmente, ela demonstrava importante capacidade de reflexão e conseguia se implicar em mudanças pessoais e subjetivas.

G. iniciou o tratamento devido ao uso de álcool, que a estava atrapalhando no trabalho e em suas relações familiares. Conforme o desejo dela, conseguiu em poucos meses atingir abstinência total e se envolver em novas atividades, mas com frequência se queixava da relação com o marido devido ao consumo de álcool por parte dele. Dizia que, apesar de ter interrompido o próprio uso, não se encontrava totalmente satisfeita, porque não se sentia apoiada pelo marido e, às vezes, sentia-se mãe dele. Em alguns momentos falava que tinha dó do companheiro.

Entre suas vivências amorosas, marcou também uma experiência que ela repetia em alguns encontros sobre um período de três anos em que ela viveu uma relação permeada por violência. G. contou que ela e o ex-marido faziam uso de álcool e ficavam "muito nervosos", até que um dia ele bateu nela. Ela passara a falar sobre a loucura que viveu ao se dar conta da situação.

G. mostrou algumas cicatrizes no braço e contou sobre as consequências do ocorrido, em que pensava: "Um homem me bateu. Vou meter a faca nesse homem". No entanto, quando passou o efeito do álcool do ex-marido, ele a encontrou machucada e perguntou a ela o que houve, ao que ela respondeu: "Me cortei. Para não te matar, eu me esfaqueei".

É possível, com a vivência narrada por G., recorrer à História de O, de Réage (1954), apresentada por Ribeiro e Pinto (2012) em suas articulações sobre o feminino, o masoquismo e a máscara. Nesse romance é mostrada uma mulher que se entrega a realizações de fantasias sádicas de seu amante, mostrando certa atividade em sua passividade.

"O" consente com humilhações e espancamentos por parte de homens indicados por seu amante, permitindo ser entregue por ele como uma mercadoria, inclusive para outro homem mais exigente. Para seduzir esses homens, "O" se dispõe a reduzir-se a nada. Isso para que seu mestre possa fazer com ela o que desejar.

Na aproximação entre o feminino e o masoquismo, destaca-se a lógica da anulação para a qual "O" recorre como marca de existência diante dos homens que ama. Tal como "O"., G. se dispôs a reduzir-se a nada, talvez na ilusão de que essa redução a faria ser amada. Evidencia-se a ausência de limites às concessões realizadas por uma mulher a um homem, o que aponta a dimensão do gozo Outro, suplementar.

Nesse sentido, é possível considerar o masoquismo na mulher como uma de suas máscaras. Diante disso, Soler (2005) traz que:

O masoquismo da mulher seria, portanto, uma das máscaras a serem utilizadas para ser reconhecida como mulher, para adquirir "ares de mulher". Digamos de forma condensada, que a mulher às vezes assume ares de masoquista, mas para se dar ares de mulher, sendo a mulher de um homem, na impossibilidade de ser A mulher". (p. 66).

Tentar localizar-se como a mulher de um homem, no entanto, parece uma saída extremamente trabalhosa para várias das participantes do grupo. Dentre elas, acrescenta-se L., que trazia curiosas e paradoxais questões sobre sua relação conjugal.

L. lamentava o distanciamento e a falta de apoio do marido, mas também se queixava de tentativas de aproximação por parte dele. Quase toda semana contava sobre brigas com o marido, que ocorriam principalmente em momentos em que os dois se encontravam alcoolizados.

Muitas vezes L. relatava não se lembrar de detalhes das brigas, mas sempre havia alguém para lhe dizer que ela xingava o marido, tentava agredi-lo fisicamente e com frequência o chamava de "frouxo". Somado a isso, no decorrer dos atendimentos individuais e em grupo, por meio de suas falas, percebia-se um movimento de que quanto mais ele ameaçava deixá-la caso ela não parasse de beber, mais ela intensificava o uso do álcool.

No entanto, foi nos atendimentos individuais, acredito que operados pela transferência, que um elemento surpresa se desvelou. Devido a frequentes demandas da paciente por escuta individual, acordamos a realização de atendimentos de frequência semanal por um tempo para trabalharmos questões que ela eventualmente não conseguisse elaborar nos grupos.

Conforme Klotz (1997), o amor é o ponto de encontro na transferência que se apresenta como um obstáculo inescapável e introduz a dimensão da verdade na prática analítica. Tendo isso em vista, resgata-se que L. passou a compartilhar nesses atendimentos alguns relacionamentos homoafetivos que viveu. Dizia que sentia vontade de viver algo parecido novamente e que não encontrava em seu marido o que encontrou nas mulheres, mas por vergonha da família e, principalmente dos filhos, não conseguia bancar relacionamentos como esses.

L. relatava que seu marido sabia dessas vivências, inclusive de algumas que ocorreram enquanto já estavam casados. Ela questionava-se como o marido conseguia "perdoar isso", mas não conseguia perdoar seu uso de álcool. Quando começava a caminhar no sentido de deixar emergir o desejo pela separação conjugal, L. se apegava a questões sociais, como ser financeiramente dependente do marido, por exemplo, e não se implicava em mudar a situação.

Diante de confrontos e reflexões, em certo momento, a paciente passou a endereçar seu amor à analista. Com dificuldade, ela dizia estar com vergonha e que receava estar misturando as coisas, mas estava apaixonada. Dizia se sentir muito especial pelo jeito que ela a tratava. Em uma discussão com o marido, falou que estava apaixonada por outra pessoa. Isso desencadeou brigas físicas entre o casal e um episódio em que L. chegou a ser detida na delegacia.

L. parecia acreditar que conseguia esconder bem os seus desejos e a sua história, mas ela mesma dava pistas quando se entorpecia. Em uma das discussões em que ela novamente chamara o marido de "frouxo", foi surpreendida por falas do filho que o defendeu e indicou saber sobre o seu passado, o que a desconsertou.

Ela dizia que se preocupava com sua imagem, principalmente diante da filha, pois elas já não tinham boa relação e isso intensificava seus questionamentos em um caráter autopunitivo. Passou a indagar se o que viveu com outras mulheres era errado e o que deveria dizer caso seus filhos tocassem no assunto.

Convocou-se L. a refletir e a poder dizer ela mesma o que achava disso. Ela passava a ponderar que não achava errado, que experimentou o que não conhecia e que não sabia exatamente do que gostava. "De repente é como se tivesse encontrado o que o meu marido não me dá. Um apoio. Carinho... Busquei em outro lugar" (sic).

L. denunciava o tempo todo a falha do outro. Com isso parecia escancarar cada vez mais o seu "segredo". Questionou-se, então, de que forma ela incluía seu gozo na relação com o(a) parceiro(a) amoroso(a). Pautada em sua posição queixosa, parecia só conseguir permanecer na relação à medida em que introduzia um terceiro, ou uma terceira, que adquire a dimensão de um objeto constantemente inalcançável.

L. assume-se como verdadeira mulher ao castigar o homem que não a ama como ela demanda. Na impossibilidade de ele suprir o que ela exigia, ela passou a atacá-lo diretamente onde parecia mais doer nele, tal qual Medeia em um mito de amor e vingança.

Por fim, se o amor na mulher pode tomar a dimensão do arrebatador, da violência e da loucura, consideramos impossível finalizar a discussão sem acrescentar o que vivenciamos junto à T., uma mulher muito bonita de 28 anos que fazia uso de várias substâncias, encontrava-se morando com os avós e em uma relação com um homem que também tentava afastar-se do uso de drogas. Eles se conheceram em uma clínica de reabilitação em que estiveram internados e decidiram manter o relacionamento ao saírem.

T. relatava que há mais ou menos oito anos se prostituía em troca de drogas. Apesar de não se envolver mais nessa situação e encontrar-se em um relacionamento que considerava estável, ela contava dos efeitos dessa vivência e das drogas entre o casal.

Ela relatou que, quando conheceu o namorado, eles se propuseram a dar força um ao outro para lidarem com seus "vícios". T. apostou nessa relação confiando em uma possibilidade de parceria, mas isso parecia não se efetivar. Dizia que, toda vez que ele usava droga, ela "recaía". Falava que gostava muito dele porque conheceu um "cara" bacana nos momentos em que ele esteve sem o uso, mas recentemente estava se sentindo um "lixo".

T. falava algumas coisas como: "Sinto que estou perdendo minha identidade. Queria um parceiro para me fortalecer e para eu dar força para ele. Mas de uns tempos para cá não está dando, estamos muito irritados. Já tentei sair fora, mas ele não deixa. Acho que isso de se relacionar, se envolver, é muito complicado. Quando me prostituía era a coisa mais boa do mundo, eu me sentia por cima, porque era o tempo e ‘tchau’" (sic).

Durante suas participações nos grupos, T. foi se dando conta de vários elementos com os quais não concordava em seu relacionamento. Isso se intensificou pelo aumento do uso de crack do parceiro quando ela se mostrava decidida a se manter distante do uso. Algumas vezes ela falava que, se ele insistisse em certos comportamentos, ela ia "dar tchau".

Após alguns dias, uma colega da equipe informa que T. havia sido agredida pelo namorado e encontrava-se em estado grave no Pronto-Socorro do Hospital de Clínicas do município. Ela ficou com marcas roxas no corpo e tinha a costela fraturada. A profissional que comunicou a notícia disse que T. perguntou algumas vezes por sua técnica de referência do CAPS AD, que resolveu então ir até o local acolhê-la.

Preparamo-nos para encontrar uma T. fragilizada, com sua beleza desvitalizada e com desejo de manter distância do companheiro. No entanto, ao chegar ao local, nos deparamos com T. desperta, andando com aparelhos e curativos pelos corredores do hospital atrás de cigarro. Quando ela viu a profissional, a recebeu com um abraço e riu do quanto se mantinha inquieta mesmo naquela condição.

T. contou que a briga com o companheiro se deu quando ela o encontrou mais uma vez usando crack e decidiu terminar o relacionamento. Relatou que ele insinuava que ela já estivesse com outro homem e que esse seria o real motivo pelo qual ela queria terminar, o que foi o deixando mais agressivo. T. relatou que ele a empurrou no chão e, quando ela caiu, ele passou a lhe chutar e bater até ela não conseguir mais responder. Contou que, logo após o ocorrido, algumas pessoas de sua família o procuraram, mas ele já tinha desaparecido.

Apesar de dizer que não queria mais notícias do (ex)companheiro, T. falava dele com certo dó. Dizia que não fazia sentido continuar com um homem que havia batido nela, mas sabia que ele estava precisando de ajuda.

Retomando Lacan, não há limite para as concessões que a mulher se dispõe a fazer por um homem, com seu corpo, seus bens, sua alma (Soler, 2005). Entende-se que ela faz isso por intermédio do amor, mas se a devastação é o preço desse amor, indaga-se o que pode ser entendido por ele, a que tipo de parcerias essas mulheres se sujeitam e o que resta de si quando esse perigoso amor se acaba.

Por mais que ainda seja comum a idealização de um amor romântico, recíproco e apaziguador, a teoria, as experiências clínicas e, também, pessoais dos autores mostram que dificilmente o amor dissocia-se de conflitos e desencontros. Considerando, assim, as vivências dessas mulheres imersas na dimensão do sofrimento e marcadas em seus corpos por violência desde tão cedo, entende-se que o que essas mulheres chamavam de amor talvez fosse a única forma de amor que lhes foi possível.

 

A devastação sob o rastro do objeto tóxico

A partir de devastadoras experiências de amor com que essas mulheres se deparavam, destinou-se esta parte da discussão sobre o recurso que parecem buscar nas drogas em uma tentativa de amparo frente ao Outro.

Além da claudicante maneira de se apoiarem nessa parceira-droga para lidarem com perdas e com o desamparo, a partir de Zalcberg (2012) e Laurent (1990) construímos um diálogo teórico interessante a respeito e que nos dão novas possibilidades.

Zalcberg (2012), em uma reflexão sobre gozo feminino e devastação, aponta as dificuldades de se fazer laço em nosso tempo, supondo que o amor esteja em crise e denunciando que faltam semblantes que regulem e limitem os gozos que vão em direção oposta às relações e aos vínculos.

Se o amor está em queda na mediação do gozo, o que poderia entrar em seu lugar? Nesse sentido, apesar da droga poder ser vista como causa de aflição e devastação na mulher, Laurent (1990) traz que, em alguns casos, a droga pode servir como reguladora de gozo e alinhavo para se fazer laço com um parceiro sintomático. Assim, em vez do amor, o que acompanha a relação com o parceiro é o objeto droga.

Acompanhamos tal raciocínio lembrando de que as mulheres com que trabalhamos contavam como seus companheiros as introduziam, as acompanhavam e as mantinham em um enigmático e paradoxal uso de substâncias.

Apesar de Laurent (1990) não trazer essa lógica para o âmbito da toxicomania, colocando sobre esse fenômeno a ênfase em uma ruptura fálica e dos laços, chama atenção o fato de que as participantes do grupo permaneciam ou já tinham passado por longas relações com companheiros que também faziam uso problemático de drogas, tendo boa parte delas iniciado ou aumentado o uso a partir desses relacionamentos.

Assim, torna-se pertinente problematizar essa proposição teórica, considerando o grupo em questão. Se em dado momento a proposta do recurso ao tóxico como um gozo autístico diante do laço social parece prontamente responder ao fenômeno toxicômano, tem-se aqui um furo ao considerar as mulheres do grupo tal como se apresentaram em suas relações.

Outro ponto para se considerar neste tópico é pensar o quanto o objeto tóxico pode tomar lugar na vida de uma mulher, ao ponto de a toxicomania se aproximar de uma possibilidade de semblante de existência diante de duras perdas.

Para fomentar as reflexões levantadas, ilustra-se com mais algumas passagens colhidas dos atendimentos das pacientes do grupo. R., uma mulher que perdeu um filho de 16 anos devido a autoextermínio, durante muito tempo apresentou-se descuidada e cabisbaixa, até que em um dos encontros apareceu mais arrumada e foi elogiada pelas outras pacientes, ao que ela responde: "De que adianta? Por dentro tá tudo lambrecado. Eu sinto que fui mutilada viva. Arrancaram um pedaço de mim" (sic).

S., que perdeu um marido por cirrose há mais ou menos 12 anos, conheceu outro companheiro que fazia uso intensivo de cocaína e passou a acompanhá-lo no uso. Um tempo depois, passou por algumas unidades de saúde do município, começou a receber prescrições psiquiátricas e iniciou um uso problemático de medicamentos (em especial clonazepam).

Em um dos grupos ela conseguiu dar voz à sua perda. Chorando, S. disse: "Eu amava muito ele. Não acredito que ele morreu. Quando ele se foi, tampou meu coração com um pano preto, que hoje não tenho alegria de nada. Eu já pedi pra Deus me levar porque eu não tava aguentando ver mais nada. Sobre os remédios, com eles eu posso suportar quando acordo. A droga e os remédios é melhor que igreja! Com eles eu acho paz" (sic).

R.B., que manteve por mais de um ano uma relação (amorosa?) com um traficante, com frequência compartilhava impasses a respeito. Entrava em brigas com os filhos por eles tentarem tirá-la dessa situação, era humilhada, ameaçada e agredida. R.B. conseguia perceber que o maior elo entre eles era a droga. E, mesmo que em alguns momentos partilhasse angústias, mantinha-se em parceria com esse homem a duros custos.

As mulheres do grupo iam denunciando que, apesar da droga levá-las a pagarem caro, às vezes até mesmo com a própria vida, por seu gozo, ficar sem ela pode ser ainda pior. Durante períodos em que se encontram abstinentes, são confrontadas com o que tanto temem na realidade, como a solidão e os desencontros nos seus laços de amor. O usar a droga junto com alguém pode ser entendido como uma forma de permanecer no próprio gozo, em uma distância do confronto com a diferença sexual (Tarrab, 2001).

Como encontro emblemático de tal questão, tem-se um encontro em que E. surge falando que está com vontade de "matar um", ao que as outras interpretam como um indício de loucura que localizam em si mesmas. M. acrescentou que "também estava ficando doida", mas não pensava em matar, e sim na própria morte como solução. L. dizia que tinha percebido que ficar sozinha "é a coisa mais ruim do mundo" (sic).

Uma das participantes aproveitou para compartilhar dificuldades em lidar com pressões familiares e disse que às vezes pensava em se internar "para esquecer que tem filho e marido". Quanto à cobrança que faziam para que ela interrompesse o uso de substâncias, ela interpretava como uma exigência de mudança por não a suportarem como ela verdadeiramente é: "Querem que eu mude porque não me suportam".

Como viemos discutindo, mostrar-se como uma verdadeira mulher por vezes pode implicar em assumir os riscos dos estragos, do desmedido, do insuportável. Diante disso, a droga aparece como sedutora parceira possível, a única capaz de acompanhar uma verdadeira mulher nas dimensões do imensurável.

Finaliza-se esta discussão com a fala de J. de que as mulheres do grupo "buscam na droga o que não encontram nos filhos, no marido". Acrescentamos que o que quer que seja, também não parecem encontrar no pai ou na mãe. Assim, entende-se que, além de a droga poder ser um alinhavo em direção a um homem, ela pode ser um verdadeiro objeto de amor.

Se é a droga que em vários momentos lhes garante um anteparo diante da violência que as permeia, como não a amarem? Como não se curvarem à tal saída se o que lhes aguarda do outro lado é também da ordem do horror? Apontamos com essa reflexão o efeito phármakon presente nesse objeto. Com a capacidade de anestesiar o sujeito de sua dor, soma-se uma forma desmedida de prazer em uma linha muito tênue entre remédio e veneno.

Como diz Soler (2005), infelizmente o amor é arriscado. Quando ganhamos no encontro, é exaltante. Mas quando perdemos, pode ser deprimente. Assim, em grande frequência as mulheres buscam o ponto exaltante fazendo-se uma causa do amor e, quando este falta, ficam carentes de causa. Nesse sentido, apontamos que o amor também pode ser apreendido em um efeito phármakon. Ao mesmo tempo em que assume semblante de cura, aproxima-nos da desrazão.

Assim, pela via do pathos, ou seja, do excesso, do sofrimento, da paixão, de um assujeitamento a um suposto objeto de amor, compreende-se aí uma forma de essas mulheres tentarem esquivar-se de impasses, principalmente os que lhes são colocados pela diferença e o desencontro sexual.

 

Reverberações

"Reverberação: ação ou efeito de reverberar, reflexão, revérbero. Física: persistência de um som depois de ter sido extinta sua emissão por uma fonte e que ocorre como resultado de reflexões nas paredes de um recinto total ou parcialmente fechado" (Priberam, 2008).

Considerando o significado de reverberação atrelado a efeitos e reflexões que persistem, trazemos aqui algumas que ecoam do percurso pela escuta do Grupo de Mulheres, mas certos de que não esgotam as discussões iniciadas.

Compreendemos o quão pretensiosa é a intenção de responder ao que é a mulher ou o que uma mulher quer, como alguns autores já tentaram e denunciaram seus fracassos diante disso. Assim, enxergamos que a potência desta pesquisa está na possiblidade de darmos voz ao que algumas mulheres dizem de si e de complicados contornos que dão para o laço social.

Ao oferecer um lugar de escuta para além dos que lhes são frequentemente destinados socialmente, como os de "drogadas", "loucas" ou basicamente "mulheres-problema", possibilitou-se a emergência das marcas de perdas, abandono e desamparo que essas mulheres carregam e enfrentam, cada uma ao seu modo.

Diante de tanta dureza e da violência dos amores que retornam a elas como devastação, pensamos que a toxicomania pode ser uma alternativa "não-toda louca" para que deem conta de suportar a vida e a não complementariedade sexual, tornando essa saída um semblante de modo de existência possível.

Cabe a elas decidirem quais parcerias elencarão em suas caminhadas, podendo ser que algumas optem por continuar com as drogas e outras encontrem amores menos devastadores. Aposta-se que a possibilidade de dar voz a elas nesse trajeto lhes permitiu, ao menos, momentos de reflexão quanto a essas escolhas, certo desenrijecimento de posições, acolhimento e interessantes invenções femininas para, quem sabe, se aproximarem de novos amores.

Em consonância com nossas articulações, Tarrab (2001) afirma que, para uma mulher toxicômana, a droga é uma devastação como podem ser um homem e uma mãe. Assim, a análise deve permitir que o significante do Outro ganhe relevância por meio do amor transferencial, na tentativa de construir um saber sobre o que a faz propensa a não ter limites. Essa seria uma possibilidade de laço a um parceiro que não a devaste e que respeite sua disparidade.

Apesar das dificuldades que compartilhavam, ressalta-se que a caminhada com as mulheres do grupo não se direcionou a tomá-las como coitadas. Assim como T. demonstrou ao ser encontrada no hospital desperta, atenta e de bom humor após agressões sofridas, todas as participantes foram sinalizando de diferentes modos como é preciso ser "muito mulher2" para darem conta das loucuras que vivem.

Outro fator de relevância, como mencionado, é a impossibilidade de dissociarmos o sofrimento dessas mulheres da dimensão sociopolítica. Tendo em vista o peso imperativo do capitalismo e das práticas econômicas vigentes, em que o sujeito é violentamente empurrado ao gozo do consumo e do lucro, a toxicomania surge como uma emblemática e paradoxal solução para o sujeito. Assim, os tempos atuais são marcados pelo gozo mortífero, aproximando vida e morte, ou aproximando o sujeito "mais da morte do que da vida" (Rosa, 2016, p. 98).

As consequências resultam na relativização da experiência compartilhada, na fragilização dos laços, no descrédito da história de um sujeito e em tentativas globalizadas de se dar conta da questão. Sobre isso, Rosa (2016) reforça o quanto o s discursos jurídicos, médicos, políticos e policiais compõem uma montagem em que vários agentes sociais atuam no fenômeno toxicômano para impor a sua verdade.

Sendo assim, na contramão de tais discursos e em defesa do que entendemos pela ética da psicanálise, reforçamos a direção de nosso trabalho e a proposta de que a escuta realizada a essas mulheres possa alcançar outros espaços de acolhimento e cuidado, principalmente espaços públicos.

Segundo Figueiredo (2003), a psicanálise deve pautar-se pela ética da diferença em tempos de globalização e para quem o problema seja carente de múltiplos sentidos. Nessa perspectiva, entende-se que o trabalho com grupos tem se preocupado de modo crescente com a possibilidade de ampliar significados e operar com interpretações com as quais cada membro possa se apropriar ao seu modo, construindo um terreno mais propício para a singularização.

 

 

Referências

Castanho, P. (2018) Uma introdução psicanalítica ao trabalho com grupos em instituições. São Paulo: Linear A-barca. 412p.         [ Links ]

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Figueiredo, L. C. (2003). Psicanálise: elementos para uma clínica contemporânea. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

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Artigo recebido em: 01/08/2020
Aprovado para publicação em: 23/11/2020

Endereço para correspondência
Luma de Oliveira
E-mail: lumadeoliveira.udi@gmail.com
João Luiz Leitão Paravidini
E-mail: jlparavidini@gmail.com

 

 

*Psicóloga no Hospital de Clínicas de Uberlândia (HCU-UFU). Especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela ENSP/Fiocruz. Mestre em Psicologia, linha Psicanálise e Cultura, pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
**Psicanalista. Professor Associado do Instituto de Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Saúde Mental pela Universidade de Campinas (UNICAMP).
1Essa paciente esteve presente por pouco tempo na unidade, mas com passagem marcante. Quase não participava dos grupos. Costumava chamar todas as mulheres do local de "frô" e tinha uma peculiar relação de cuidado com uma mangueira do quintal, às vezes voltando de lá nos presenteando com mangas. Ao discutir sobre o caso, todos da unidade se lembravam da mesma como "frô", por isso não se fez possível pensar em outra forma de nomeá-la.
2Significante construído pelas participantes em relação ao que consideravam significar ser mulher. Entre partilhas de perdas, violência e abandonos, elas foram se identificando como "muito mulheres" por terem que suportar os pesos de tais vivências e se virarem com essas marcas. O termo foi destacado e retomado em outros momentos como um importante significante de análise durante a pesquisa.

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