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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

Por uma visada clínico-política da homossexualidade

 

For a clinical-political view of homosexuality

 

Pour une vision clinico-politique de l'homosexualite

 

 

Ricardo Salztrager*

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é analisar o ato de enunciar-se homossexual como um ato clínico-político. Em um primeiro momento, nos voltamos para o processo de constituição da homossexualidade pelo saber psiquiátrico em meados do século XIX. Em seguida, questionamos como é possível resistir a estas concepções médicas que vieram a classificar a homossexualidade como uma anormalidade. Por fim, destacamos que o próprio ato de se enunciar homossexual merece ser visto como um ato de resistência que vem a propiciar ao sujeito certa elaboração de suas questões, promovendo, concomitantemente, certa ressignificação na concepção de homossexualidade.

Palavras-chave: Homossexualidade, Foucault, clínica psicanalítica.


ABSTRACT

The purpose of the article is to analyze the act of declaring oneself homosexual as a clinical-political act. At first, we turn to the process of constitution of homosexuality by psychiatric knowledge in the mid-nineteenth century. Then, we question how it is possible to resist these medical conceptions that came to classify homosexuality as an abnormality. Finally, we emphasize that the act of declaring oneself to be homosexual deserves to be seen as an act of resistance that provides the subject with a certain elaboration of their questions, promoting, at the same time, a certain resignification in the conception of homosexuality.

Keywords: Homosexuality, Foucault, psychoanalytic clinic.


RÉSUMÉ

L'objectif de l'article est d'analyser l'acte de se déclarer homosexuel comme un acte politico-clinique. Dans un premier temps, nous nous tournons vers le processus de constitution de l'homosexualité par le savoir psychiatrique au milieu du XIXe siècle. Ensuite, on se demande comment il est possible de résister à ces conceptions médicales qui en sont venues à classer l'homosexualité comme une anomalie. Soulignons enfin que l'acte même de s'exprimer comme homosexuel mérite d'être vu comme un acte de résistance qui apporte au sujet une certaine élaboration de ses questionnements, favorisant, du même coup, une certaine resignification dans la conception de l'homosexualité.

Mots-clés: Homosexualité, Foucault, clinique psychanalytique.


 

 

A proposta deste artigo é, em linhas gerais, demonstrar que o ato de se enunciar homossexual é, ao mesmo tempo, um ato clínico e político. Ato clínico porque, quando um sujeito assim se enuncia, ele necessariamente acaba por propiciar algumas transformações em sua vida, como se tal enunciação funcionasse como um gatilho que faz intervir um processo de devir. E ato político porque, ao enunciar-se homossexual, uma pequena - porém importante - ressignificação passa a operar na própria concepção da homossexualidade, já que tal sujeito passará a ser homossexual a sua própria maneira. Trata-se, em outros termos, de sublinhar que clínica e política são indissociáveis, não deixam de se entrecruzar e, até mesmo, de se superpor, já que um devir subjetivo indubitavelmente gera um devir social e vice-versa.

Por este viés, a indicação de encarar clínica e política como estando em um constante atravessamento implica, necessariamente, em pensar os processos de subjetivação como configurados socialmente e, ao mesmo tempo, como os constituintes mesmo do social. Temos, aqui, uma forma de reler a máxima de Freud (1921/1996) "a psicologia individual [...] é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (p. 81), enfatizando que toda mudança subjetiva é inseparável de uma transformação social e vice-versa. Ou seja, sujeito e sociedade jamais devem ser entendidos como dissociáveis ou como que estabelecendo uma mera relação de influência recíproca. Segundo a proposta em jogo, nos situaremos para além das relações dicotômicas entre sujeito e sociedade - como se se tratasse de dois domínios separados, ainda que se influenciando mutuamente - para enfatizar o caráter necessariamente subjetivo dos processos sociais e o caráter cultural dos processos de subjetivação (Rey, 2004). Nesta medida, fica claro que, quando empregamos os termos "sujeito" e "sociedade" (bem como termos de sentido equivalente), o faremos pressupondo o atravessamento em questão.

E é justamente por considerar tal atravessamento que podemos falar em uma dimensão clínico-política da homossexualidade (o que é diferente de falar que a homossexualidade tem uma dimensão clínica e uma dimensão política, como se clínica e política pudessem se separar uma da outra, ainda que em meio a esta separação estabelecessem relações), bem como de todos os fenômenos subjetivos-sociais. Dessa forma, com o propósito de analisar a homossexualidade por este viés, em um primeiro momento nos debruçaremos sobre o próprio trabalho de sua constituição pelo saber psiquiátrico em meados do século XIX. Em seguida, veremos, a partir de um olhar foucaultiano, como é possível resistir a estas concepções médicas que vieram a classificar a homossexualidade como uma anormalidade. Por fim, destacaremos que o próprio ato de se enunciar homossexual merece ser visto como um ato de resistência que vem a propiciar ao sujeito certa elaboração de suas questões, promovendo, concomitantemente, certa ressignificação na concepção de homossexualidade.

 

A constituição da homossexualidade

Assim, visando compreender o alcance clínico-político da enunciação "eu sou homossexual", devemos primeiramente analisar como ocorreu a constituição da homossexualidade em nossa sociedade. Para tal, é interessante partirmos da afirmação foucaultiana de que o poder, muito mais do que repressor, é eminentemente produtivo. Temos aqui algo incessantemente repetido em seus mais variados escritos - tais como a coletânea Microfísica do poder (Foucault, 1979), além de Vigiar e punir (Foucault, 1996) e A história da sexualidade volume 1: A vontade de saber (Foucault, 1988) - sendo este último a base da nossa argumentação.

Em si, o livro é aberto com uma crítica cortante ao que Foucault denominou de "hipótese repressiva". Trata-se, em linhas gerais, da hipótese de que, ao longo do século XIX, a Europa teria assistido a certo aumento da repressão sexual, algo errôneo para Foucault, pois segundo seus argumentos durante estes anos não teria havido por parte do Estado ou da Igreja quaisquer formulações que objetivassem à interdição das práticas tidas como extravagantes ou libertinas. Pelo contrário, por este período, ocorreu até certo afrouxamento dos códigos penais, além de considerável diminuição do poder da Igreja em relação aos comportamentos privados. No entanto - e este é o ponto importante - dizer que não houve uma repressão sexual ao longo do século XI, não implica em dizer que, por esta época, os sujeitos exerciam suas sexualidades de forma livre, como que intocados por qualquer espécie de poder (Foucault, 1988).

De acordo com o autor, o que ocorreu foi a entrada em cena de uma artimanha de poder muito mais sutil do que a repressão e que se denominou "poder disciplinar" (Foucault, 1996). Em si, o poder disciplinar foi aquele que se adentrou por entre todas as instituições sociais europeias, atuando na normatização - segundo estratégias muito sutis - dos mais diversos sujeitos. Esta é uma estratégia de exercício de poder que teve na figura do cientista o seu principal agente e, de fato, os séculos disciplinares foram aqueles que assistiram à invasão de uma horda de psicólogos, pedagogos, psiquiatras e neurologistas - dentre outros - nas mais variadas instituições, tais como famílias, escolas, prisões etc. Com isto, o saber científico encontrou para si um lugar de destaque na sociedade, passando a tomar conta do cotidiano das grandes cidades. Seu principal modo de exercício foi, justamente, o de sugerir uma classificação sumária de seus objetos de estudo - os sujeitos e as sociedades - que ia da normalidade à anormalidade. Deste modo, a ciência passou a construir uma série de polêmicas formulações sobre o que seria, por exemplo, uma "família normal" e, consequentemente, uma "família desviante"; uma "criança normal" e uma "criança desviante"; e, finalmente, uma "sexualidade normal" e uma "sexualidade desviante"1. Aos classificados como anormais, costumava-se prescrever o devido tratamento com o intuito de normalizá-los, claro que conforme os padrões idealizados pelos próprios cientistas. (Foucault, 2010).

Dentro do campo das designadas "sexualidades anormais" estava, é claro, a homossexualidade. Em linhas gerais, sua constituição se deu em meio às incessantes lutas por poder, no auge dos anos disciplinares, entre juristas e psiquiatras. Com efeito, em alguns países do continente europeu - sobretudo na Alemanha - os até então designados sodomitas eram considerados criminosos, embora não se soubesse definir ao certo o que vinha a ser uma prática de sodomia. Por vezes, tal categoria remetia a quaisquer atos tidos como depravados (e não exatamente ao amor entre dois homens ou duas mulheres); por outras vezes, a referência era exatamente este amor (e esta talvez fosse a concepção dominante); e também havia casos nos quais somente o que assumisse o papel de passivo era tido como sodomita (Foucault, 2017). Fato é que, embora existisse tamanha imprecisão conceitual, homens que amavam outros homens eram recorrentemente conduzidos às prisões, sendo que no Império Austro-Húngaro as condenações se estendiam inclusive às mulheres (Lanteri-Laura, 1994).

E foi justamente contra a prática dos juristas de condenar os sodomitas que o saber psiquiátrico entrou em cena, argumentando que tais sujeitos jamais poderiam ser presos posto que não eram criminosos, mas sim, anormais. Deste modo, com o intuito de melhor fundamentar seus argumentos, o saber psiquiátrico trouxe para a discussão a noção um tanto imprecisa de "instinto sexual", tido como o que motiva e dirige nossos prazeres. Nesse sentido, o funcionamento instintivo normal seria aquele que conduzia o apetite do homem para a mulher (e vice-versa), culminando no próprio coito genital. Em contrapartida, todas as manifestações que escapassem a este esquema seriam consideradas da ordem da perversão - e não mais do crime -, dentre elas incluindo-se os agora chamados "homossexuais". Portanto, em seu próprio ato de emergência, a homossexualidade já era considerada sinônimo de anormalidade, de desvio e, sobretudo, de perversão (Foucault, 2010).

E é por esse viés que deve ser compreendida a afirmação foucaultiana acima mencionada de que o poder, mais do que reprimir os sujeitos, os produz. Ou seja, de acordo com essa concepção, o sujeito não seria a princípio livre e autônomo até ser atingido por um poder propriamente repressor que o limitaria ou o contivesse. Pelo contrário, o sujeito sequer preexistiria ao exercício do poder. Ele é seu efeito, produto do modo de atuação do poder, como se à medida que o poder fosse se efetuando, uma série de sujeitos fossem, em série, produzidos: com efeito, o sujeito homossexual só passou a existir a partir da entrada em cena do poder disciplinar na sociedade, sendo um dos frutos de sua maneira de atuar, tal como foi com os demais "sujeitos perversos", "anormais" ou "desviantes".

Assim, fica claro que, segundo a ótica foucaultiana, não se trataria de afirmar que o poder científico do século XIX veio a descobrir uma realidade que lhe era anterior - a homossexualidade - passando, então, a analisar o que nela havia de errado ou impróprio. De fato, a ordem da homossexualidade efetivamente não existia antes dos finais do século XIX, sendo, aos poucos, criada e implantada pelo poder disciplinar como consequência de sua forma de efetivação (Foucault, 1988). E, nesta medida, o mais estapafúrdio de todos os processos aí em jogo é a própria disciplinarização dos homossexuais àquilo que formulam os cientistas. Ou seja, trata-se aqui de destacar a estranha aceitação dos próprios homossexuais das verdades enunciadas pela ciência, de modo que eles acabam tomando-as para si e se identificando em maior ou menor grau, com a anormalidade que lhes é atribuída. Em si, este processo de identificação ocorre porque, afinal de contas, vivemos em uma sociedade que legitima o discurso científico enquanto verdadeiro, ou seja, aquele encarregado de enunciar as mais variadas verdades a respeito dos fenômenos do mundo, da sociedade e, sobretudo, dos sujeitos. Portanto, em virtude desta convicção nas verdades da ciência, os homossexuais acabam encarnando-as, muitas vezes, sem o necessário senso crítico e até de forma mesmo espontânea. E, por este viés, podemos dizer ser, em parte, devido a este processo de identificação - com os homossexuais incorporando aquilo que sobre nós é dito - que tais verdades científicas conseguem atravessar gerações e transmitir-se sem maiores questionamentos.

Daí o intuito crítico de demonstrar que a atribuição da anormalidade à homossexualidade jamais consistiu em uma verdade em si, ou seja, a uma verdade absoluta que estava desde sempre escondida até ser finalmente descoberta, em fins século XIX, por algum cientista. Pelo contrário, embora os mais diversos cientistas não tivessem a exata consciência disso, é fato que eles próprios construíram tal verdade. No entanto, convém marcar que, ainda que não se trate de uma verdade em si, ela consegue se efetivar enquanto tal, já que, conforme afirmamos, a própria sociedade demonstra grande credulidade ao que enuncia a ciência e a esta se entrega com uma convicção quase cega. Nesta medida, tal postulação passa a promover, no tecido social, o que se pode chamar de "efeito de verdade", ou seja, algo que por ser entendido como verdade passa a ser capaz de conduzir a consequências semelhantes às provocadas por uma verdade propriamente dita.

 

Micropoderes e resistências

A questão que agora se coloca é a de saber se é possível resistir a tal estado de coisas. Para tal, nos voltemos a algumas considerações a respeito de como poder e resistências se articulam na obra de Foucault.

Conforme destacamos, o pensamento foucaultiano parte do pressuposto de que o poder não é algo que necessariamente assume uma função repressora, como que agindo exclusivamente de maneira descendente. Para ele não existiria um foco único de onde o poder emana, sendo o poder representado como que se exercendo nos mais variados pontos de uma extensa rede microfísica de forças que ora se apoiam, ora se reforçam, ora se afrontam, ora se isolam etc., de forma a se propagar por entre os meandros das mais diversas trilhas existentes nesta imbricada trama.

De acordo com esta concepção, os micropoderes provêm de todos os lugares e, desta maneira, se produzem a cada instante e em todas as relações, em especial, nas mais periféricas e cotidianas. Com efeito, a princípio, o poder não seria uma espécie de dote que alguém - ou algum grupo ou classe - detém ou não, mas algo que apena circula. Ele também não seria um dote que se adquire de uma vez por todas - ou então se deixa escapar -, mas algo que se exerce em todos os campos. Em meio a este contexto, o interesse recairia, portanto, não em perguntar quem possui poder ou quem dele é privado, mas sim, em perceber as estratégias - simples ou razoavelmente complexas - de poderes cotidianos que por aí se exercem. Trata-se de, sobretudo, reparar o quanto as relações de poder são sempre moveis e transitórias, por mais que, às vezes, pareçam por demais fixas ou estáveis. Na trama de micropoderes, o que há são infinitas distribuições e redistribuições de poder, além de intermináveis realinhamentos e rearranjos e mesmo importantes - porém fugazes - afrontamentos e convergências (Foucault, 1979).

E é justamente nesta rede microfísica de poderes que se situam as resistências. Daí a afirmação de que "onde há poder há resistência" (Foucault, 1988, p. 105) para sublinhar que, por onde o poder caminha, por qualquer direção ou alvo que venha a tomar, ele necessariamente vai se esbarrar com a força das resistências. Por isto o caráter relacional da trama de micropoderes: eles só se exercem em função e em relação a múltiplos focos de resistências. Estes, por vezes, representam meros - ou mesmo fortes - entraves e, por outras, tomam mesmo a forma de artimanhas ou estratégias que colocam imensas dificuldades a quaisquer tentativas de imposição de poder. Tais resistências se configuram, portanto, como "possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício" (Foucault, 1988, p. 106), também se dispondo na rede microfísica de forma móvel e instável. Efetivamente, as resistências sempre se deslocam e rompem unidades, atam elementos e remodelam astúcias e fazem advir acordos, ajustamentos, pactos e combinações por todos os cantos.

Nessa perspectiva, também é importante ressaltar a afirmação de que as resistências jamais se encontram em posição de exterioridade ao poder, não podendo existir senão neste campo estratégico. Por isto Foucault (1988) considera não haver um lugar da grande recusa, lócus inacessível e inatingível pelas artimanhas do poder e no qual alguma resistência se dá. Pelo contrário, as resistências jamais podem se dar em oposição ao poder ou de forma a ele imune, sendo na própria cadeia microfísica que se fazem sentir.

Assim, trazendo esses apontamentos teóricos para nosso campo de interesse, seria importante novamente frisar que o século XIX não assistiu a uma repressão em si da homossexualidade, de forma que a questão não deve ser a respeito das leis que, então criadas, vieram a instituir a normalidade ou não dos mais diversos comportamentos sexuais. De acordo com Foucault, a questão em jogo deve ser a de como, em um plano micro e de forças cotidianas, juristas e psiquiatras lutaram entre si; e de como, a partir desta briga por poder, a homossexualidade foi, aos poucos, se instituindo. Em outros termos, trata-se de perguntar quais foram as relações de poder locais que produziram a figura do homossexual como anormal. Trata-se também de questionar como todo um trabalho de construção de verdades tornou viável o surgimento de um discurso científico sobre a homossexualidade e também como o discurso da ciência serviu de suporte legítimo a tudo o que passou a se falar a respeito dos homossexuais. Em suma: segundo a ótica foucaultiana, tratar-se-ia de situar os mais variados discursos sobre a homossexualidade atuantes no século XIX em um campo microfísico de poderes, sempre múltiplos e móveis, passíveis de arranjos e rearranjos, conjunções e disjunções e alinhamentos e realinhamentos.

Por conseguinte, pressupondo que em todo este jogo de micropoderes as resistências são sempre possíveis, devemos indagar como efetivamente resistir a estas artimanhas de poder que identifica a homossexualidade à anormalidade. Para tal, partimos da premissa acima colocada de que uma resistência viável jamais pode se dar fora deste campo microfísico ou mesmo à parte ou independente dele. E é justamente por isto que Foucault (1988) coloca como problemáticos os discursos que visam resistir a tal configuração através de tentativas de liberação do desejo sexual das amarras do poder. Teríamos, nestes casos, aqueles que se autointitulam subversivos e que possuem a ilusão de, a cada discurso que enunciam, estarem "batendo de frente" com o poder, de forma a desafiar a ordem estabelecida. Além desta atitude desafiadora, tais subversivos, através de suas lástimas não cessariam de prometer uma liberdade futura a ser alcançada com a construção de uma nova sociedade com leis mantenedoras da felicidade. Trata-se, aqui, de uma forma de pregação que açoita a ordem reinante, denuncia as hipocrisias existentes, subverte todas as leis e nos fazem sonhar com uma nova configuração social a ser devidamente arquitetada.

Ora, de acordo com Foucault (1988), tais formas de resistência incorrem a três sérios enganos. O primeiro é acreditar que a relação entre sexualidade e poder é da ordem da repressão. Temos, portanto, discursos repletos de termos como "rejeição", "recusa" e "exclusão", dentre outros, que se associam ao exercício de poder enquanto uma espécie de barragem. Em meio a este contexto, partem do pressuposto de que o desejo sexual era inicialmente livre até a chegada de um poder que veio reprimi-lo; e tão logo o poder em questão venha a ser vencido, o desejo poderia ser novamente livre. No entanto, para Foucault, o desejo sexual jamais foi livre ou reprimido, sendo esta uma falsa maneira de se colocar o problema. Segundo seu pensamento, o desejo sexual é constituído pelo próprio poder da disciplina e, portanto, o desejo homossexual se forma a partir da identificação e disciplinarização dos sujeitos homossexuais àquilo que sobre eles se fala. A questão não é, portanto, de repressão ou liberdade, mas sim, de disciplinarização, sendo o poder disciplinar nosso verdadeiro inimigo.

O segundo engano é acreditar que este discurso de pregação irá, um dia, vencer o opressor imaginário. Quanto a isto, Foucault salienta que mais do que barrar o inimigo, o discurso em questão acaba reforçando-o. A explicação para este efeito colateral remete ao que ele denominou de "benefício do locutor" (Foucault, 1988, p. 14), ou seja, o prazer daquele que promete a destruição do presente e a construção de um novo futuro, colocando-se como um grande transgressor capaz de tudo desordenar e desafiar. Algo, sem dúvida, prazeroso e, por vezes, até demais. O problema é que tamanho prazer para ser cada vez mais intensamente sentido precisa necessariamente reforçar a figura do dito opressor; caso contrário, se não haver mais repressor, não se terá mais o prazer de contra ele combater. Daí a interessante afirmação de Foucault (1988) de que "o enunciado da opressão e a forma da pregação referem-se mutuamente; reforçam-se reciprocamente" (p. 14). Ou ainda: "a questão que gostaria de colocar não é porque somos reprimidos mas, por que dizemos com tanta paixão [...] que somos reprimidos" (p. 15).

Por fim, o terceiro engano seria o de acreditar que haveria, no seio da sociedade, um lugar de recusa apartado de qualquer possível inscrição de poder. Ora, de acordo com Foucault (1988), ninguém - absolutamente ninguém - está fora do alcance do poder. Tampouco há a possibilidade de se conseguir ultrapassá-lo ou transcendê-lo. Pelo contrário, mesmo os que se acreditam fora do poder ainda sofrem seus efeitos e, às vezes, de forma ainda mais contundente. Deste modo, estando o poder em todos os lugares, qualquer possível estratégia de resistência teria que se dar na própria trama de micropoderes. Conforme colocamos, esta já se constitui a partir de múltiplos e infindáveis pontos de resistências que inviabilizam quaisquer pretensões de exercício de poder totalizante, sendo a questão em jogo, segundo Foucault (1988) a de saber "de que maneira o jogo dessas relações de poder vem a ser modificado por seu próprio exercício - reforço de certos termos, enfraquecimento de outros, efeitos de resistência, contrainvestimentos, de tal modo que não houve um tipo de sujeição estável dado de uma vez por todas" (p. 108).

 

A polivalência tática dos discursos

Assim, com base nestes argumentos, nossa questão é saber quais as resistências viáveis dentro da própria malha de micropoderes. Para tal, devemos partir da ideia acima destacada de que, justamente, por haver múltiplos focos de resistências espalhados por esta trama, uma tentativa de imposição de poder jamais será global ou totalizante. Aliás, nenhuma pretensão deste tipo será mesmo estável ou duradoura visto que esbarra com núcleos de resistências a todos os instantes. Portanto, é por compor poder e resistências lado a lado que a rede microfísica merece ser compreendida como estritamente movediça, volúvel e oscilante.

Deste modo, tendo em vista que toda e qualquer tentativa de imposição de poder é precisamente descontínua, fica difícil falarmos em um mundo binarista dividido entre dois discursos estanques ou razoavelmente estáveis - seja um dominante e outro dominado, um repressor e outro reprimido ou um aceito e outro excluído. Por este viés, é mais interessante considerarmos que os múltiplos elementos discursivos são passíveis de a qualquer momento - e mesmo logo após sua enunciação - entrar em estratégias diferentes e, a partir daí, estabelecer alianças, contatos e, sobretudo, gerar resistências. Por exemplo, quando alguém ou algum grupo enuncia determinada coisa, este discurso pode ser apropriado e exatamente repetido por outro alguém ou grupo, o que necessariamente fará com que ele passe a ter uma significação diferente. Isto porque agora quem o fala, o faz de outro lugar, em outro contexto e em outra posição na trama de micropoderes. Ou seja, um enunciado qualquer pode trazer consigo a pretensão de fazer vigorar uma autoridade, mas, dependendo de quem o enunciar, pode também funcionar como uma interessante resistência ou, inversamente, um discurso qualquer pode se incluir em um ato de resistência, mas dependendo de quem o enuncia, vem a servir como ponto de partida para uma nova estratégia de tentativa de obtenção de poder. Lembrando aqui que quaisquer dessas pretensões de impor poder e de a ela resistir são sempre fugazes e oscilantes.

Dessa maneira - e trazendo a discussão para nosso tema de interesse - é por tais fatores que Foucault considera que o nascimento da categoria da homossexualidade pelo discurso psiquiátrico permitiu ao saber científico certa apropriação de todo o domínio do amor entre dois homens ou duas mulheres. No entanto, também possibilitou que os próprios homossexuais - disciplinando-se à ciência e, neste mesmo ato de disciplinarização, resistindo a tal imposição - pudessem falar por si próprios:

O aparecimento, no século XIX, na psiquiatria [...] de toda uma série de discursos sobre as espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e "hermafroditismo psíquico" permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de "perversidade"; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso "de reação": a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua "naturalidade" e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988, p. 112).

A passagem acima traz consigo a importante noção de "discurso de reação" ou "discurso reverso" enquanto forma de resistência viável às pretensões de poder do discurso da ciência. Ou seja, se, por um lado, com a produção do sujeito homossexual, a psiquiatria passou a obter um lugar de destaque no que concerne à tática de enunciar verdades a respeito do amor entre iguais, por outro lado, a identificação dos próprios homossexuais com tais verdades também permitiu que, em alguma medida, eles pudessem a todo esse contexto resistir. Por exemplo, se, por um lado, os psiquiatras passaram a trabalhar em cima de uma naturalização do desejo homossexual atribuindo-lhes o status de uma natureza anormal, por outro lado, homossexuais puderam, a partir dos mesmos argumentos, reivindicar às suas práticas o status de comportamento legítimo: como se dissessem "a gente obedece à nossa natureza e, por isto, não há por que falar em depravação ou devassidão. É assim e pronto!". E, nesta medida, nunca é demais lembrar que grande parte do discurso de resistência homossexual se instaurou, justamente, com este argumento: disciplinando-se ao que da homossexualidade preconizava a ciência e acatando a ideia de uma espécie de natureza em comum a todos os homossexuais; mas, ao mesmo tempo, ressignificando este discurso, de forma, a dele tirar certo proveito. Deste modo, o que era tido como consequência de uma natureza anormal aos olhos da ciência adquiria o sentido de prática legítima - posto que conforme à natureza - aos olhos do homossexual. Trata-se exatamente do mesmo discurso, porém transvertido pela força das resistências, de forma a fazer reverter as garras do poder contra si próprio.

Temos, portanto, uma forma de resistência que se dá no próprio contexto das relações de poder. E é justamente por isto que o ato de se enunciar homossexual merece ser considerado um ato de resistência, uma resistência que se faz neste mundo mesmo e não em outro utópico e deste apartado. Com efeito, esta espécie de "pé no chão" faz desta enunciação, ao mesmo tempo, um ato de disciplinarização e de resistência, resistência que se dá a partir do que é pretensamente imposto e não independente dele. Desta maneira, não se trataria de recusar o que sobre os homossexuais a ciência enuncia e, assim, rejeitar a categoria da homossexualidade. Tampouco se trataria de confrontar o inimigo, atitude que, conforme destacamos, pode acabar por reforçá-lo. Mas também não se trata de pura e simples submissão, pelo contrário. Trata-se de um trabalho de ressignificação de um discurso pretensamente dominante e totalitário, com o intuito de revertê-lo e, talvez, futuramente ir modificando-o.

 

"Eu sou homossexual"

Esta importante possibilidade de ressignificação ocorre, justamente, porque cada um que se enuncia homossexual o faz de maneira singular a cada vez que assim se enuncia - e, de fato, um homossexual assim se enuncia por inúmeras e repetidas vezes ao longo da vida (e mesmo várias vezes ao dia). Enfim, tudo se passa como se, ao se enunciar homossexual, ele tivesse sua subjetividade marcada; porém, ao mesmo tempo, com a possibilidade de estar em constante rompimento com tal marcação. De fato, a partir desta enunciação inaugural - incessantemente repetida, porém sempre inaugural a cada vez que se repete - um processo de singularização vai se instaurando e, com ele, cada homossexual assim será a seu próprio modo.

Ao assim se enunciar, o homossexual vai encontrar-se apto, por exemplo, para vivenciar o momento solene de dizer-se homossexual e, ao mesmo tempo, poder questionar o porquê deste momento ter que ser tão solene; apto para experimentar as dores e as delícias de ser uma ovelha negra em quaisquer ambientes que venha a frequentar e, ao mesmo tempo, poder se perguntar porque as coisas devem ser desta forma; apto para frequentar guetos e encontrar os seus em meio a certa clandestinidade e, ao mesmo tempo, questionar os motivos de tamanha delimitação; apto para escolher novas amizades e, ao mesmo tempo, se modificar a partir destes novos contatos; apto para, se desejar, tentar romper com todo um passado e, ao mesmo tempo, perguntar se isso é efetivamente necessário; apto para vivenciar inúmeros dissabores e, ao mesmo tempo, devir a partir do que tanto machuca, dentre tantas outras coisas a serem - ou não - vivenciadas a seu próprio jeito e desejo, mas sempre trazendo consigo a experiência paradoxal que envolve o "marcar-se" e o "incessantemente romper com esta marcação".

Nessa perspectiva, enunciar-se homossexual implica em um trabalho de transformação e de constante reinvenção de si: um extenso processo de elaboração daquilo que se é que, por vezes, consegue mesmo amenizar parte do sofrimento aí em jogo. O mal estar em questão seria elaborado, justamente, a partir das tantas criações e produções que se abrem a partir da enunciação "eu sou homossexual".

Claro está que tal processo de devir se faz a partir de uma categoria - a homossexualidade - que, em si, possui seus modelos, codificações, protótipos, padrões e normas; mas que também, por admitir uma série infindável de variantes a serem mais ou menos buscadas, pode se tornar maleável e admitir em seus domínios a abertura para uma possibilidade de criação. Por este fator, aquele que se enuncia homossexual está, ao mesmo tempo, disciplinando-se à ciência, mas também reinventando-se a partir desta disciplinarização. De acordo com Eribon (2008), "não se trata apenas de estudar o passado que nos constituiu como o que somos. Trata-se igualmente de nos depreender dele, tanto quanto possível" (p. 409), com toda a ênfase recaindo neste "tanto quanto possível", o que vem a delimitar o caráter parcial de toda atitude de resistência.

Enunciar-se homossexual é, portanto, um ato clínico; mas também um ato político. E isto porque se cada sujeito que assim se enuncia o faz de maneira singular, passando a desenvolver seu próprio roteiro de vida a partir deste ato inaugural, eles não deixam de introduzir algumas modificações na própria concepção sociocultural da homossexualidade. Deste modo, aos poucos, é a própria representação da homossexualidade que vai também passando por um processo de ressignificação, sendo incessante reconstruída - e ao mesmo tempo descontruída tão logo reconstruída - pelos novos sujeitos que, a cada instante, vêm se dizer homossexuais. São as interrogações propostas por cada um em conjunto com as novas organizações ou estilos de vida construídos os responsáveis por tal processo de devir social, estando claro o atravessamento deste processo pelos demais discursos sobre a homossexualidade, sejam estes científicos, religiosos, artísticos, jurídicos, dentre tantos outros.

Temos, assim, certa ressignificação das concepções científicas tradicionais sobre a homossexualidade sem que se entre em uma guerra com o inimigo, afrontando-o. Neste sentido, o inimigo, ao invés de morto, é trazido para participar do jogo, só que sem o poder que anteriormente imaginava lhe caber. Dessa forma, homossexuais conseguem parcialmente escapar do poder da ciência e construir, tijolo por tijolo, novas possibilidades de se representar e viver. Vale frisar, porém, que estas novas construções serão frágeis posto que não cessarão de ser ressignificadas, o que faz com que incessantemente novas reconstruções venham a advir.

Ato clínico e político, portanto, na medida em que estas ressignificações subjetivas e políticas são inseparáveis, bem como as mudanças sociossubjetivas daí decorrentes. Trata-se, em suma, de uma maneira de frisar que o subjetivo é social e que o social é subjetivo, o que implica necessariamente em uma escuta clínico-política para a questão da homossexualidade. Com ela, o alcance da clínica psicanalítica passa a ser situado para além da proposta da elaboração de um mal estar subjetivo, já que tal elaboração impreterivelmente passa a conduzir a um redimensionamento mais amplo, o do próprio convívio entre homossexuais e o de suas inserções no mundo.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ricardo Salztrager
E-mail: ricosalz@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
1Cabe ressaltar que este histórico está sendo analisado aqui de forma resumida. Para maiores detalhes, remeto a Costa (1995), Salztrager (2020) e Salztrager (2021).

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