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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

 

Raspas e restos nos interessam: sobre o amor em tempos de sobrevivência

 

Raspaduras y restos nos interesan: sobre el amor en tiempos de supervivencia

 

 

Luciana Ximenez

Psicóloga clínica, mestre em estudos junguianos pela PUC-SP, analista em formação pelo Ijusp, AJB e IAAP. Membro do LAPA, laboratório de psicologia arquetípica, membro fundador do Coletivo Aisthesis e coordenadora do Thiasos, oficina de imaginação compartilhada. e-mail: <luximenez72@gmail.com>

 

 


RESUMO

Este ensaio propõe-se a refletir sobre a experiência do amor, partindo de vivências em tempos sombrios e desesperançosos como o que assolou o Brasil no período de pandemia da Covid-19, ocorrido a partir de dezembro de 2019. Para tanto, utiliza-se de autores da psicologia arquetípica, bem como de filósofos e sociólogos. Traz exemplos da clínica e da literatura e direciona-se para uma análise na qual o amor é ação e pressupõe fragilidade, pertencimento, flexibilidade e alteridade. Nesse sentido, a entrega aos relacionamentos amorosos, seja na amizade, na maternidade, no casamento ou em outras manifestações amorosas, poderia viabilizar o reconhecimento do lugar ocupado pelo eu e pelo outro, o que possibilitaria uma vida mais harmônica do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com a anima mundi.

Palavras-chave: amor, pandemia, pertencimento, narcisismo, alteridade.


RESUMEN

Este ensayo propone reflexionar sobre la experiencia del amor, a partir de vivencias en tiempos oscuros y sin esperanza como el que asoló Brasil en el período de la pandemia de Covid 19, ocurrida a partir de diciembre de 2019. Para eso, utiliza autores de la psicología arquetípica, así como filósofos y sociólogos. Trae ejemplos de la clínica y la literatura, y se dirige a un análisis en el que el amor es acción y presupone fragilidad, pertenencia, flexibilidad y alteridad. En este sentido, la entrega a las relaciones amorosas, ya sea en la amistad, la maternidad, el matrimonio u otras manifestaciones amorosas, podría posibilitar el reconocimiento del lugar que ocupan el yo y el otro, lo que permitiría una vida más armoniosa del individuo consigo mismo, con el otro y con el anima mundi.

Palabras clave: amor, pandemia, pertenencia, narcisismo, alteridad.


 

 

De onde parti

Em 1975, em escavações feitas em uma gruta chamada Lapa Vermelha localizada no município de Pedro Leopoldo - região metropolitana de Belo Horizonte - foi encontrado o fóssil humano mais antigo da América Latina, com cerca de 12.500 a 13.000 anos: Luzia. Ela foi uma mulher que morreu entre 20 e 24 anos de idade, e essa descoberta polemizou a teoria existente até então sobre o povoamento da América. Luzia teria vindo da África e não da Ásia, como afirmavam as primeiras teorias. Polêmicas à parte, o fato que aqui nos importa é que o precioso crânio de Luzia foi levado para o Museu Nacional, localizado em São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

Em 2 de setembro de 2018, a sede do museu foi devastada por um incêndio que destruiu quase a totalidade do acervo histórico e científico da instituição, que abrangia cerca de 20 milhões de itens. Os danos e perdas foram irreparáveis. A equipe de resgate do museu passou meses identificando e reconhecendo os restos da história que se misturava com as cinzas. Em 19 de outubro do mesmo ano, o museu anunciou que, em meio aos escombros, ressurgiu Luzia; 80% dela, porque sobreviver à pulsão de morte deixa marcas. Mas ela renasceu. Resistiu. Voltou do mundo de Hades com as marcas da negligência e do descaso, mas insiste em ser registro do passado.

Nos escombros do mesmo trágico incêndio, foi encontrada uma pedra. Quem visitou a bienal de São Paulo em 2021 pôde vê-la, logo na entrada. Uma ametista que, com o calor do fogo, transformou-se em citrino. De quartzo violeta para quartzo amarelo. Uma alquimia longa que só é possível com um calor de 450 graus. A tragédia foi inevitavelmente absorvida pela pedra, que se transformou, como uma forma de testemunhar o processo doloroso que viveu. Mas algo nela sobreviveu, insistiu e resistiu. Transformou-se, mas é a mesma pedra. Continua sendo a mesma pedra porque soube se transformar. O que imaginava a pedra enquanto o fogo a penetrava? Saberia ela que estava vivenciando um processo que não a mataria, mas a modificaria irremediavelmente?

Em 17 de março de 2020, após o registro da primeira morte no Brasil pela Covid-19, o governo de São Paulo adotou uma série de medidas de isolamento social para tentar conter a disseminação e alastramento do vírus. Era o início da pandemia, que duraria, até o momento, inimagináveis 2 anos, com um número de mortes que ultrapassa os 620 mil. Um pesadelo coletivo interminável, temperado com um cenário político de irresponsabilidade e descaso que nos deixou por nossa própria conta e risco. Ainda não temos a noção exata de que marcas nos deixará, mas uma coisa é certa: só os alienados não sairão modificados em algum nível por essa experiência devastadora. O que sobrará de nós após essa tragédia que nos abateu?

Uma pergunta sem resposta que nos desperta uma infinidade de reflexões. Durante esse período, adotei uma espécie de mantra: "brechas de sobrevivência". Onde eu as encontrava? Ao constatar a resistência do amor transferencial nas sessões on-line, ao testemunhar encontros amorosos que aconteciam apesar do isolamento social, ao presenciar as relações parentais, os nascimentos de novos filhos, as amizades que não só sobreviveram, mas se fortaleceram. Ao me emocionar com mães confeccionando capas plásticas para poder abraçar filhos e netos.

Muitas foram as histórias de amor que resistiram e ainda teimam em resistir. A história de Madalena, por exemplo. Madalena havia sido minha paciente nos tempos em que as pessoas podiam se aproximar sem máscara. Um processo de aproximadamente dois anos que se encerrou juntamente com um dos ciclos de sua vida. A pandemia trouxe-a de volta. Como tantas histórias vividas durante esse período, o isolamento social havia acelerado nela a intensidade de uma relação amorosa recém-iniciada. O mergulho da convivência precipitou processos que talvez demorassem anos para virem à tona. Esse foi o momento do nosso reencontro. Um reencontro virtual, sustentado pela transferência e que me proporcionou um dos mais belos momentos da minha vivência na clínica. Madalena engravidou. Acompanhei o crescimento de sua barriga, sempre destacada de seu rosto: ela tinha que baixar o celular para me mostrar o quanto seu bebê crescia. Se eu via a barriga, não via seu rosto. Fui percebendo as alterações em sua face, em seu semblante, em seu olhar. E ela me relatava, com detalhes que no atendimento presencial seriam desnecessários, suas mudanças corporais. A partir da 38ª semana, todas as vezes que seu horário se aproximava, eu ficava ansiosa para saber se ela estaria do outro lado da câmera. E lá estava ela, com sua barriga que não parava de crescer, até a 41ª semana. Na 42ª, ela também estava! Com seu bebê não mais na barriga, mas no colo. Ela acabava de sair da maternidade e entrou em sua sessão para me contar todos os detalhes de seu parto. Pela primeira vez, ela verbalizava como foi o momento do nascimento de seu filho. Uma narrativa detalhada, emocionada, viva. Era como se eu estivesse naquelas horas do parto, desde as primeiras contrações até a primeira sucção de seu filho em seu peito. O amor em tantas formas: amor romântico, amor materno, amor transferencial.

Foram muitas as brechas. E entramos em contato de forma intensa e inevitável, com a palavra sobrevivência. Somos sobreviventes. Isso não nos coloca em nenhuma posição de hierarquia ou de sucesso. Não somos sobreviventes porque somos heróis ou porque temos históricos de atleta. O que nos coloca no lugar de sobreviventes é a morte de tantos outros. Tantas mortes que poderiam, sim, ter sido evitadas. Ser sobreviventes remete-nos à vulnerabilidade da vida que é vivida, lança-nos para o reconhecimento de que temos um corpo que corre riscos ao viver. Sobreviver pode ser solitário. Quantos lutos estão sendo vivenciados em nossos consultórios, em nossas famílias? Quantas pessoas que sobreviveram choraram, isoladas, a morte de seus amores? Quanto medo sentimos de sobreviver e de transmitir a doença, a morte para as pessoas que amamos? No entanto, a antropóloga trans/feminista Bru Pereira (2021) afirma que, ainda assim, "sobreviver é antes sobre a vida do que sobre a morte: é sobre a vida de quem sobrevive tanto quanto um testemunho sobre a vida que se perdeu", (p. 69).

A pulsão de morte esteve insistentemente presente ao longo desse período, não só pela presença literal da morte, da doença, do medo, mas também pelo descuido, pelo descaso, pela irresponsabilidade e pela intolerância. O que nós, brasileiros, vivenciamos é muito maior do que atravessar a pandemia, o que já seria uma missão e tanto. O que nós, brasileiros, tivemos que atravessar, foi a pandemia no atual panorama político do Brasil, que demonstra uma situação de desrespeito com a diversidade e as diferenças individuais sem precedentes na história brasileira, com exceção, talvez, dos horríveis anos de ditadura.

 

Desenvolvendo alguns conceitos

Na sociedade contemporânea, alguns princípios básicos de comunidade e coletividade têm sido feridos, principalmente com a onda da extrema direita que invadiu o Ocidente. Com o advento da pandemia, alguns desses princípios ficaram mais evidentes, talvez pela falta que a comunidade nos fez, talvez pela necessidade intensa que tivemos de um governo que olhasse para o seu povo. E não tivemos.

Um desses princípios vem da noção de pertencimento. Dentre alguns outros fatores, a crise de identidades que testemunhamos provém da falta de referências externas e da falta de reconhecimento, o que deixa o sujeito com um imenso leque de possibilidades, que ele não é capaz de escolher. Na sociedade tradicional, a identidade e o sentido de existência eram pré-constituídos pelo local de nascimento, linhagem familiar e papéis sociais designados ao sujeito (LIPOVETSKY, 2009). As transformações sociais possibilitaram a reflexão e a escolha do sujeito, que tomaram o lugar dos dogmas e da autoridade hierárquica. As escolhas passam a fazer parte da construção da identidade e não são mais definidas simplesmente pelas origens.

A passagem da sociedade tradicional - com suas regras e conceitos rígidos - para a entrada da sociedade contemporânea - que enaltece a autogestão e autoconstrução do indivíduo -, no entanto, demonstra que a sociedade continua agindo de forma polarizada. O sujeito que vivia na sociedade tradicional era tiranizado pelo peso das normas e regras, enquanto o sujeito contemporâneo é tiranizado pela obrigação de ser livre, recusando toda e qualquer referência externa, buscando em si mesmo as referências para a construção de sua identidade (LIPOVETSKY, 2009).

Durante este período, emerge um sujeito que se sente cada vez mais independente e autônomo e, para afirmar essa conquista, precisa negar qualquer poder que exija dele submissão. Antes, na sociedade tradicional, o desafio era confrontar as instâncias externas que direcionavam seu destino. Agora o desafio passa a ser administrar os conflitos internos entre desejos e interdições, normas e transgressões. Nota-se uma transferência do transitar externo para o transitar interno, do objetivo para o subjetivo.

O imperativo social modifica-se de obediência a regras, convenções e hierarquias sociais, para a necessidade incessante do indivíduo em confirmar seu valor, seus méritos e sua força, unicamente pela própria produção e atuação nos planos social, econômico e pessoal. O preço a ser pago pela substituição de referências externas rígidas (porém estáveis), por uma performance que seja socialmente aceita (porém instável e transitória), torna os indivíduos mais inconsistentes.

Nesse sentido, é preciso pertencer a um grupo para que se constitua a própria identidade. Segundo Francisco Bosco (2017), por sermos seres sociais, "nossa experiência é radicalmente intersubjetiva. Dependemos do reconhecimento do outro para ascendermos a um sentimento de segurança sobre nossa própria realidade, uma vez que a realidade é ela mesma uma experiência intersubjetiva" (p. 9). Por outro lado, o excesso desse senso de pertencimento a um único grupo pode causar um estranhamento patológico a outros grupos divergentes de seu próprio pensamento, o que pode se transformar em preconceito, discriminação e violência. Intolerância. E o preconceito, como forma de poder, "faz com que muitos indivíduos, por serem de antemão enquadrados em identidades desvalorizadas pelo sistema da tradição, não sejam devidamente reconhecidos (ibid., p. 9).

Francisco Bosco traz as questões das lutas identitárias em seu livro A vítima tem sempre razão? O reconhecimento de si mesmo é exatamente o que os movimentos identitários podem proporcionar aos indivíduos que fazem parte de seus grupos. Através do reconhecimento mútuo, os indivíduos sentem-se pertencentes a uma causa coletiva, ganham força e se unem nas mais diversas lutas. Diz a socióloga Eva Illouz (2011) que o amor vê e reconhece. Ser amado é ser visto e ser reconhecido. Há, porém, o risco de que o reconhecimento só seja válido entre iguais. Tudo o que é diferente, estranho a si mesmo e aos seus precisa ser eliminado. As lutas identitárias são fases do desenvolvimento psíquico individual e coletivo de extrema importância. Porém trazem consigo o perigo de perda da conexão com a multiplicidade. Identificar-se demais com um determinado padrão de funcionamento pode trazer uma rigidez que leva à falta de empatia e à intolerância. Leva ao desamor, ao ódio, ao fundamentalismo que, juntamente com a falta de pertencimento, arranca o sujeito de um lugar de coletividade que pode levar a muitas tragédias sociais.

O perigo é que, nessa dinâmica fundamentalista, o conceito de liberdade apareça deturpado na medida em que qualquer intromissão no contorno da esfera individual seja considerada nociva. Assim, pode vir à tona um caráter negativo da liberdade, que demanda que, não só o Estado, mas também qualquer interação social se mantenha neutra para não esbarrar na fronteira individualizada. Nesse sentido, o outro é considerado inimigo e a intervenção do Estado, tirania, e não bem comum. Vemos aqui uma grande confusão entre liberdade e individualismo desenfreado e irresponsável.

Ou seja, as noções de grupo, de coletivo, de pertencimento, de liberdade e de comunidade aparecem pela via da sombra. E assim, o amor cai em desuso. Tira-se do amor toda a sua importância. Ele é despotencializado pela lógica capitalista narcisista e individualista e se torna mais um produto na sociedade de desempenho.

A palavra amor, para bell hooks (2020), "é um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação" (p. 46). É uma atitude ou uma imaginação porque "o que não podemos imaginar não pode vir a ser" (p. 55). O amor se realiza no mundo em uma atitude de doação. Diferente da espera passiva por receber pois é a doação do amor que cria o amor.

Byung-Chul Han (2017), em seu livro A agonia do Eros, afirma que hoje as pessoas estão narcisicamente voltadas para o desempenho e para seu próprio sucesso. O outro desaparece em um processo dramático de narcisificação do si mesmo. Para o sujeito narcísico, não existe uma diferença entre o eu e o outro, e sim uma extensão ou uma projeção de si. O indivíduo é incapaz de reconhecer e perceber o outro em sua alteridade. Isso significaria enxergá-lo na sua diferença única e incomparável. Essa é a condição sine qua non para o amor. Ainda Byung-Chul Han (2017) afirma que

a primazia do outro distingue o poder de Eros da violência de Ares. Na relação de poder enquanto relação de domínio eu me afirmo e me estabeleço frente ao outro na medida em que o submeto a mim. Mas o poder de Eros, ao contrário, implica uma impotência na qual, em vez de me afirmar, me perco no outro ou me perco para o outro, ele que depois volta a me colocar de pé (p. 49).

Eros arranca o sujeito de si mesmo. Nesse sentido, a utopia de Eros é o reconhecimento do outro. O sair de si seria relacionar-se com o outro, mas na sua diferença e não na sua semelhança: outros seres, outras culturas, outras histórias, outras vivências. Uma relação com o outro que se estabelece para além do desempenho e do poder, sem a tentativa de apreendê-lo e de convertê-lo a um igual, porque assim ele deixará de ser o outro. Para Alain Badiou (2013),

defender o amor naquilo que ele tem de transgressor e heterogêneo é mesmo uma tarefa do momento. No amor, no mínimo, confia-se na diferença, em vez de desconfiar dela. E, na reação, sempre se desconfia da diferença em nome da identidade. Se, ao contrário, quisermos uma abertura para a diferença e para tudo o que ela implica, ou seja, que o coletivo seja capaz de ser o coletivo do mundo inteiro, um dos pontos praticáveis da experiência individual é a defesa do amor (p. 60).

O amor pressupõe morte. Morte do eu, morte de ideais narcisistas, morte do poder, morte de ideias pré-concebidas, morte do antropocentrismo. De quais outras mortes Eros necessita para ter espaço e se instaurar? Quais as projeções egoicas que precisam ser retiradas para o despertar de Eros?

Percebemos na atualidade uma necessidade de manutenção da distância emocional. As escolhas amorosas tendem a não mais ser feitas intuitivamente, mas racionalmente. Os aplicativos de relacionamento tentam calcular - de preferência sem margem de erro - o par que encaixaria perfeitamente em seu perfil. Deixam pouco espaço para uma escolha pela via do improvável e do inesperado. O amor aparece aqui como uma espécie de objeto de consumo disponível em prateleiras e aquele que se afeta é rotulado como "emocionado", como se fosse uma crítica ou uma qualidade negativa. Porém, qual seria a explicação para tantos desencontros ocorridos nas escolhas amorosas feitas por essa via?

Segundo Liv Stromquist (2021), no livro A rosa mais vermelha desabrocha, o distanciamento emocional vem tanto a serviço de proteger a masculinidade que está sob risco, como a serviço de uma reação das mulheres a anos do patriarcado do qual, em sua forma sombria, subjuga e menospreza pessoas que valorizam as emoções e os sentimentos.

Cabe aqui lembrar que o distanciamento social exigido pela pandemia não colaborou em nada para um afrouxamento do distanciamento emocional. Muito pelo contrário, os efeitos desse distanciamento devido à pandemia, ainda não podem ser mensurados.

Mas não se trata apenas, e não seria pouco, de falar desse distanciamento emocional nas relações românticas, de amizade ou familiares. Trata-se de um Eros agonizando na anima mundi: na natureza, nas cidades, na política, na economia. Uma agonia pela perda de tudo aquilo o que no mundo é capaz de animar a existência. O amor realmente tornou-se irrelevante e insignificante? Estaria a linguagem do amor esquecida? É possível imaginar uma linguagem capaz de ser falada e entendida na diversidade? Uma linguagem de nativos e estrangeiros que respeite as diferenças e que leve as pessoas para uma ação amorosa? Ou será que estamos aprisionados à maldição da torre de Babel, onde todos falam, cada um em sua própria língua e ninguém é ouvido e muito menos compreendido? Seria a morte do amor parte desta maldição?

Conta o mito da torre de Babel no capítulo 11 do Livro do Gênesis:

antes de Babel todos os homens da Terra tinham uma única língua, usavam as mesmas palavras. Disseram um ao outro: Vamos construir para nós uma cidade e uma torre cujo topo toque o céu e vamos nos dar um nome para não dispersarmos sobre toda a terra. Mas o Senhor desceu do céu e disse: "Eis, eles são um só povo e todos têm uma única língua e eis, esse é o início da sua obra. E agora quanto planejarão fazer não será impossível, quer dizer, agora poderão fazer qualquer coisa. Desçamos para lhes confundir a linguagem de sorte que já não se compreendam um ao outro (BÍBLIA SAGRADA, 1957, p. 57).

Assim acontece que Deus dispersou os homens por toda a terra, e criou uma infinidade de línguas, e o povo não foi mais um só. Essa foi a punição. Os homens foram punidos porque ultrapassaram os limites impostos por Deus. Queriam alcançar o céu ou, em outras interpretações, atacar o céu. Por isso foram punidos e destinados a jamais voltarem a se compreender. No entanto, e talvez aqui encontremos a brecha para o encontro com Eros, Hillman (2016) nos abre uma nova possibilidade de interpretar o mito. A dispersão dos homens por todo o planeta e a grande variedade dos lugares geográficos, que estão ligadas à multiplicidade das línguas, constitui uma resposta à hybris da unificação. Seria a diversidade de línguas, de fato, uma punição? Não poderia ser vista como um desafio? A pergunta seria: como os seres humanos poderiam se comunicar apesar de falarem línguas diferentes?

Talvez a resposta esteja em imaginar a utilização de um pensamento e de uma linguagem menos fundamentalista, fixa, rígida e mais flexível, maleável, fluida. Para tanto, vamos recorrer a Paul Preciado, um filósofo que fala a partir das encruzilhadas por ser a encruzilhada, do seu ponto de vista, o único lugar existente. Um pensamento que não fala nem da direita e nem da esquerda. Pensar a partir da encruzilhada, seria não se fixar em nenhum lugar. Seria pensar na errância, um pensamento da travessia. E ele questiona qual a voz que poderia ser ouvida neste não lugar, já que "falar é inventar a língua da travessia, projetar a voz numa viagem interestelar" (PRECIADO, 2020, p. 25). Não nos interessa mais "traduzir nossa diferença para a linguagem da norma, enquanto continuamos a praticar em segredo um blábláblá insólito que a lei não entende" (ibid., p. 25).

Permanecer nas extremidades não promove diálogos frutíferos. Permanecer nas extremidades é o que promove guerras, intolerância, pensamento único, solidão, desamor. É preciso caminhar. Sair das extremidades rumo a outros caminhos: caminhos periféricos, caminhos alternativos, atalhos; caminhos de terra, de asfalto, de pedra, com mato ou sem mato, múltiplos caminhos.

É preciso encontrar caminhos para retornar ao senso de comunidade, aquele que, segundo o mito da Torre de Babel, faria todas as obras possíveis de serem feitas. Não mais com uma única língua, mas com a língua da pluralidade, preservando as diferenças, as singularidades, as peculiaridades e, dessa forma, com as vulnerabilidades advindas desse modelo, nos sabermos mais fortes, justamente porque somos fracos.

Para completar esse pensamento, trago Francisco Bosco novamente:

Diferentemente do que se poderia pensar a princípio, um ego forte não é um ego sólido. Ao contrário, os sujeitos que têm uma relação mais segura com a sua autoimagem são aqueles que a têm leve, arejada, inconsistente, frágil em certo sentido. Lembremos que estereótipo vem do grego stereos, que quer dizer sólido. Um ego sólido é frágil porque depende todo o tempo da confirmação de sua autoimagem. Um ego frágil é, ao contrário, forte, porque não se abala facilmente com os reflexos distorcidos que o outro lhe apresenta (2015).

Não se abala porque se relaciona, vê e é visto. Reconhece e é reconhecido. Ego forte poderia, então, ser concebido como o ego que tem um certo nível de adaptação e controle da realidade, através da razão e da vontade. A adaptação do ego imaginal (HILLMAN, 1984), por sua vez, significa poder imaginar a realidade. O ego imaginal é impelido a ser fiel a si mesmo, pois as fantasias são fruto da vida psíquica inconsciente e acompanham o indivíduo em sua trajetória.

Acredito que esse conceito poderia nos ajudar a encontrar uma forma de relação, mesmo que dentro da torre de Babel. Existe nele uma plasticidade que o faz mais flexível do que forte e heroico e pode, através da imaginação e da fantasia, nos levar a encontrar saídas que respondam às demandas de uma alma, que não é individual, mas inserida em um todo muito maior do que nós mesmos.

Paul Preciado (2020) radicaliza. Cito suas palavras, que nos aproxima das nossas fraquezas e até das nossas covardias, como uma forma de falar de amor:

Mas como eu os amo, meus corajosos iguais, desejo que vocês também percam a coragem. Desejo que lhe falte força para repetir a norma, que não tenham energia para continuar fabricando identidade, que percam a determinação de continuar acreditando que seus papéis dizem a verdade sobre vocês. E quando tiverem perdido toda a coragem, loucos de covardia, desejo que inventem novos e frágeis usos para seus corpos vulneráveis. É por amá-los que os desejos frágeis e não corajosos. Porque a revolução atua através da fragilidade (p. 142).

A partir desta fragilidade, retornamos à pedra. Aquele quartzo que foi transformado de ametista em citrino pela alta temperatura do incêndio. A pedra que não morre, mas transforma-se, que segue viva com sua substância primordial e imutável, mas transforma sua relação com sua própria natureza. Hillman associa justamente nossas fragilidades, nossas excentricidades, nossas vulnerabilidades com pedras na psique. Aquilo que é imutável em nós. "Algumas coisas não mudam nunca. São como rochas na psique. Existem cristais, minérios de ferro, existe um nível metálico em que certas coisas não mudam" (HILLMAN, VENTURA, 1995, p. 19). Reconhecer a imutabilidade de algumas de nossas características nos lança para a aceitação de si e para a possibilidade da descoberta de um novo caminho. Isso é individuar. Estabelecer uma nova relação com nossos fracassos, fragilidades e excentricidades.

O amor também é pedra. O amor é pedra porque ele só pode existir na fragilidade. Diz Byung-Chul Han que "um sujeito do amor é tomado por um tornar-se fraco todo próprio, que vem acompanhado ao mesmo tempo por um sentimento de fortaleza. Mas esse sentimento não é o desempenho próprio de si mesmo, mas o dom do outro" (2017, p. 11). O dom do outro que nos leva a uma impotência, aquela impotência, repito, que leva o indivíduo a se perder no outro e para o outro e que só se revela na fraqueza.

Um bom exemplo encontrado da literatura é o livro O amor nos tempos do cólera, de Gabriel Garcia Marques. Florentino Ariza era um jovem que se apaixonava facilmente pelas coisas da vida. Para ele, o mundo era cheio de novidades e ele não se economizava em correr riscos e viver as aventuras que cruzavam seu caminho. Isso, porém só aconteceu depois de ter sido rejeitado pelo seu primeiro amor. A descoberta do amor para Florentino Ariza chegou cedo e com a dor que costuma acompanhar os grandes amores. Por ser intensa a forma com que vivia o amor, Florentino conseguiu sentir no corpo os sintomas do amor:

perdeu a fala e o apetite, passava as noites em claro rolando na cama. [...] Sua ansiedade se complicou com caganeiras e vômitos verdes, perdeu o sentido da orientação e passou a sentir desmaios repentinos, e a mãe se aterrorizou porque seu estado não se parecia com as desordens do amor e sim com os estragos do cólera (MARQUES, 1985, p. 81-2).

Mas depois de um exame minucioso, o médico comprovou que os sintomas do amor são os mesmos do cólera. Ou seja, o amor enfraquece corpo e alma. Florentino amou várias vezes e de muitas formas diferentes. Porém, a pedra do seu primeiro amor retorna na velhice porque o amor é um daimon. Daimon, segundo Hillman (2001) é uma espécie de guia que a alma de cada um de nós recebe ao nascer, como se fosse um portador dos nossos destinos, que nunca vai embora e nunca nos deixa esquecer o que a alma deseja.

O amor é daimon porque ele é a parte da nossa vida que não nos pertence. É a parte que rompe com as pretensões do ego de bastar-se a si mesmo. Porém é inevitável abandonar-se a ele, pois sua exigência é nossa exigência e sua felicidade é nossa felicidade (AGAMBEM, 2017). Florentino abandona-se, espera e retorna. Transformado, claro. Assim como a ametista se transformou em citrino, o amor de Florentino Ariza não era mais um amor adolescente. Ele foi julgado por querer realizar seu amor na velhice. Mas a psique quer, deseja e necessita. Hillman (2016) afirma que a alma quer mais do que necessita e o querer pertence ao mundo do amor, que está na base do amar. O amor está para além da necessidade, para além da vontade. É o amor que nos tem e só o que nos resta é transformá-lo em ação.

Nesse sentido, Jung (2012) afirma que a meta de Eros é estabelecer, unir e conservar relações. Sua natureza é tanto espiritual quanto animal, por isso Eros se faz presente em todos os tipos de relacionamento e inclui todo o espectro da afeição emocional: da sexualidade e amizade ao envolvimento com profissão, hobbies e arte.

Eros intima, inicia, excita, cria vida. Eros tem conexões míticas com muitos dos deuses do panteão olímpico, dentre eles Pã, a força masculina da natureza, Dioniso, a indescritível energia viva, além de ser filho de Afrodite, a deusa da beleza. O amor em sua forma masculina e feminina. Eros abarca corpo, alma e espírito. É ele quem penetra e colore padrões de determinados comportamentos provocando eventos transformadores. É ele o intermediário entre o pessoal e algo além do pessoal. É ele que enlaça, mantém juntos e une os opostos.

 

Últimas palavras

Para finalizar, gostaria de apresentar um poema da poetisa americana Hilda Doolittle. Aos 74 anos, internada em um sanatório, Hilda se apaixona por um jornalista que a visita para uma entrevista e para descrever seu amor escreve o seguinte poema:

Por que vieste perturbar meu declínio?

Sou velha (eu era velha até a sua vinda)

A rosa mais vermelha desabrocha (o que é ridículo, neste momento, neste lugar, impróprio, impossível, até um tanto escandaloso).

A rosa mais vermelha desabrocha; (ninguém pode impedir, nenhuma ameaça imanente ao ar, nem mesmo o tempo, que rói nossos frutos de verão),

A rosa mais vermelha desabrocha (é preciso levar isso em conta) (STROMQUIST, 2021, p. 66-7 apud DOOLITLLE, 1972, p. 1).

E, assim, finalizo essas reflexões. Sem nenhuma conclusão, porque o amor é a sua própria conclusão. "A amizade é uma conclusão. O amor é uma conclusão absoluta. É absoluto porque pressupõe a morte, a entrega de si mesmo [...]. e enquanto conclusão absoluta, atravessa a morte. Morremos no outro, mas dessa morte surge um retorno a si mesmo" (HAN, 2017, p. 47).

É através dessa morte do Eu, via relação com o outro e da vivência da alteridade, que a individuação acontece. Individuação é o encontro das próprias singularidades e excentricidades, porém nunca alheio ao mundo, mas inserido nele. É uma vivência com o coletivo, com a comunidade, com o mundo e com outras formas de vida.

 

Referências

AGAMBEM, G. Profanações. São Paulo, SP: Boitempo, 2017.         [ Links ]

BADIOU, A.; TRUONG, N. Elogio ao amor. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2013.         [ Links ]

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Recebido em: 25/02/2022
Revisão: 30/05/2022

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