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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.3 São Paulo  2022

 

Hermes nos campos de Apolo: desidealização e excentricidade na paternidade neurodivergente

 

Hermes in the fields of Apolo: Deidealization and eccentricity in neurodivergent pattern

 

Hermes en los campos de Apolo: desidealización y excentricidad en la paternidad neurodivergente

 

 

Fabio C. C. E. Villar

Médico psiquiatra. Candidado a analista em formação pelo IJUSC/AJB/IAAP. e-mail: drfabiovillar@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo apresenta o início de uma investigação a respeito da neurodiversidade numa perspectiva arquetípica, especificamente sobre certos aspectos da chegada de um filho neurodivergente em uma família, buscando levantar reflexões vivenciais a respeito da diversidade no mundo, lares, escolas e consultórios. Essa investigação parte de experiências tanto pessoais quanto clínicas e elabora, sob uma lente arquetípica, relações entre a imaginação do trickster e dois fenômenos psíquicos presentes na ocorrência da neurodivergência em uma família: a desidealização e a excentricidade.

Palavras-chave: neurodiversidade, trickster, paternidade, desidealização, psicologia analítica.


RESUMEN

El artículo presenta el inicio de una investigación sobre la neurodiversidad desde una perspectiva arquetípica, específicamente sobre ciertos aspectos de la llegada de un niño neurodivergente a una familia, buscando plantear reflexiones experienciales sobre la diversidad en el mundo, los hogares, las escuelas y los consultorios. Esta investigación parte de experiencias tanto personales como clínicas y elabora, bajo una lente arquetípica, las relaciones entre la imaginación del trickster y dos fenómenos psíquicos presentes en la ocurrencia de la neurodivergencia en una familia: la desidealización y la excentricidad.

Palabras clave: neurodiversidad, trickster, paternidad, desidealización, psicología analítica


 

 

Introdução

Neurodiversidade é um termo que foi cunhado na década de 1990 pela socióloga australiana Judy Singer, que se coloca como alguém localizada "em algum lugar do espectro autista" (ABREU, 2021). É um termo político, em vez de científico, e "descreve a ideia de que as pessoas experimentam e interagem com o mundo ao seu redor de muitas maneiras diferentes; [...] e as diferenças não são vistas como déficits" (BAUMER, 2021, p. 1). O conceito de neurodiversidade ganhou o mundo e vem ajudando a dissolver a crença de "que todos nós mais ou menos vemos, sentimos, tocamos, ouvimos, cheiramos e classificamos informações, mais ou menos da mesma forma, (a menos que visivelmente deficiente)" (SINGER, 2019, p. 1). Segundo Singer, a neurodiversidade inclui e é patrimônio de toda humanidade, não havendo distinção entre "normais" e "neurodiversos", pois o termo aponta exatamente o fato de que, em graus e dimensões variadas, todo ser humano se distingue unicamente em sua forma de processar os dados do mundo, esteja mais perto ou mais distante de uma suposta "média" imaginária. O termo neurodiversidade também é utilizado no contexto mais específico para se referir ao movimento sociopolítico no qual pessoas que apresentam condições neurológicas incomuns lutam por seus direitos, seu espaço de fala e sua legítima forma de ser no mundo.

Neurodivergente refere-se ao indivíduo que se afasta em maior grau do hipotético ser humano "típico", também sendo usado frequentemente o termo neuroatípico como sinônimo. Dou preferência ao termo neurodivergente pois fornece uma imagem mais interessante para nossa reflexão, na qual o fenômeno central é o da divergência neurológica entre pais e filhos, culminando nos fenômenos da excentricidade e desidealização. Estar no espectro autista, apresentar transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), dislexia, dispraxias e outras condições são possibilidades de neurodivergência (SINGER, 2019)

 

Incidências tricksterianas: desidealização e excentricidade

Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje (OURO PRETO, FIÓTI, 2020) - ditado iorubá.

A constatação da neurodivergência em um filho é uma situação potencialmente conflitante, na qual nós, pais, mães e familiares, somos impelidos a uma encruzilhada, a partir da qual podemos trilhar diversos caminhos: negar a diferença e o próprio conflito, lutar heroicamente contra o mal, paralisar frente ao desconhecido ou, quem sabe, trilhar o caminho do inusitado que a vida nos apresentou com esse "desvio" de percurso, em abertura à neurodiversidade. As tais rotas "normais" são fictícias, criações de nosso impulso apolíneo idealizador, tanto na perspectiva pessoal quanto cultural. Essa idealização supõe quais as medidas adequadas para nossos traços, quais os contornos harmoniosos para nossa forma de ser, o que está (cor)reto e o que está torto. Proponho que, como pais, possamos receber tal conflito em nossas vidas como a chegada de Hermes, irmão caçula do idealista Apolo, que subverte certa ordem e inaugura um novo cosmo com sua chegada ao mundo. O caminho arquetípico do trickster também pode ser uma alternativa na elaboração de tais conflitos e uma atitude interessante para trilhar os caminhos "desviantes" que se apresentam, deslocando um suposto centro de normalidade. A imaginação do trickster nos convida a adotar outra perspectiva quanto ao que é excêntrico, conduzindo-nos na desidealização e, adiante, para o acolhimento da novidade.

Ao receber o diagnóstico de autismo1 de meu filho caçula, senti como se levasse uma "puxada de tapete" da vida. Escutei, desde então, diversas frases semelhantes de outros pais de crianças neurodivergentes: "a vida me pregou uma peça", "perdi meu chão", "meu mundo virou de cabeça para baixo". Ao constatar a neurodivergência em um filho, ocorre uma ruptura com toda uma imagem idealizada, sejamos mais conscientes ou menos conscientes dessa idealização. Não só há uma ruptura com a imagem do filho, mas também há uma ruptura com o papel idealizado de pai ou mãe; fantasias de como ser pai ou mãe se desmancham no ar, pois esse filho, diverso de tudo daquilo que eu poderia imaginar com meu repertório, requer uma paternidade outra, também diversa. Quando se fala em termos como ruptura, mudança, avesso, inverso, diverso, se fala no trickster, essa figura que também representa a desconstrução em si mesma. Vale ressaltar que o termo "idealizado" é aqui utilizado para designar uma imagem psíquica constituída de forma autônoma e inconsciente, que se projeta sobre os fatos tingindo-os com as tonalidades que tendemos a ver no mundo e na vida.

A respeito das várias diversidades humanas possíveis, escuto absurdos como "para mim, meu filho morreu", dito por pais que não aceitam a sexualidade dos filhos, posicionamentos políticos ou escolhas profissionais inusitadas; todos já presenciamos ou ouvimos falar de como um pai pode negar um filho por causa da verdade expressa por sua alma. No autismo, observo fenômeno semelhante, mas com uma apelação médico-espiritual, exemplificado na frase "o autismo roubou o meu filho". Essa frase representa uma cisão com a realidade, um artificialismo defensivo (e ofensivo) que procura separar o "ser" e sua "forma de ser", como se a última fosse resultado da simples interferência de um processo externo ao ser, que o invade e o possui. O autismo é elevado então à categoria de entidade per se, como se fosse uma coisa que possuiu o filho perfeito e o estragou, devendo ser arrancada dele para que possa novamente voltar a ser aquele filho. Busca-se incessantemente a cura médica ou espiritual para o mal que "roubou" a criança de seus pais. Podemos imaginar os inúmeros danos psíquicos que acometem a alma familiar a partir dessa atitude de negação: um filho real que não é visto, um filho ideal cultivado com saudosismo, pais e mães afundados em culpa, raiva, medo e resistência aos lutos que precisam ocorrer.

A neurodivergência não é causada por eventos externos que possam ser extintos, nem pela presença de uma entidade fantasmagórica que, se extirpada, revelaria uma criança neurotípica por debaixo daquela interferência. Nada mais fora da realidade do que esse entendimento. O autismo é a expressão de uma organização neurológica diversa, ou seja, a maneira que o cérebro e todo o sistema nervoso se desenvolveu é diversa, os caminhos dos neurônios, a organização das redes neurais, as áreas cerebrais mais dominantes e as menos dominantes, tudo isso é constituído de maneira diversa, junto ao desenvolvimento do ser, pois é sua forma de desenvolvimento e, portanto, inseparável do próprio ser. Isso torna a ideia de cura do autismo algo tão surreal quanto a ideia de tornar a água seca, ou tornar o fogo frio. Ao tentar aplainar as diferenças do autista, consegue-se no máximo uma negação de sua forma legítima de ser, pois sua diferença é constituinte, como nos relata Temple Grandin (2021): "só ouvi a palavra autista referida a mim aos 12 ou 13 anos; lembro-me de ter pensado, Ah, é que eu sou diferente" (p. 18). De fato, há o roubo de um filho, ao nos depararmos com sua neurodivergência, assim como aconteceu em nossa casa com nosso filho caçula; mas qual filho o autismo roubou?

 

Hermes e Apolo

Recorro aqui às primeiras aventuras de Hermes logo após seu nascimento, mas para tanto é preciso demarcar diferenças entre a figura específica de Hermes e uma figura genérica do trickster, como nos apresenta Karl Kerényi (1972 apud RADIN, 1972) em seu comentário sobre o texto de Paul Radin (1972), no qual contrasta Hermes, o deus olímpico com atributos tricksterianos, e Wakdjunkaga, o "pregador de peças", herói trickster dos Winnebago. Ambos carregam atributos em comum: o movimento, a mentira, a traquinagem, o engano, o roubo, a subversão, a astúcia, o aspecto fálico; no entanto, Hermes apresenta outros atributos que não compartilha com o herói trickster, como o comércio, a comunicação e a condução das almas. Hermes apresenta um cosmo próprio, bem caracterizado como o guia das almas (KERÉNYI, 2015). Apesar de exceder a semântica do trickster, a condução das almas por Hermes não deixa de contar com tonalidades tricksterianas, já que "ela não é algo unilateral ou linear; ele guia, na verdade, desguiando, desnorteando" (BARCELLOS, 2019, p. 107). Nos desdobramentos da desconstrução, caminhos nos são apresentados de forma inusitada e somos convidados a cultivar a alma em rumos novos e necessários; em outras palavras, é através dos "erros" e "desvios" que Hermes guia a alma a seu destino (BARCELLOS, 2019).

Segundo os Hinos Homéricos (RIBEIRO JR., 2010), ainda em seu primeiro dia de vida, Hermes rouba as vacas sagradas arrebanhadas por Apolo, seus ideais. Apolo é "o que fere de longe", cuja flecha "voa reta para seu destino claramente visível, a verdade", através da qual "o caótico deve tomar forma, o impetuoso deve marchar segundo um compasso, o contraditório deve equilibrar-se na harmonia", o "instituidor da ordem do mundo e da vida humana", aquele que "não quer a alma, e sim o espírito, ou seja, o movimento que se livra da proximidade e de seu peso" (OTTO, 2005). Apolo nos inspira a idealizar, traçar as medidas supostamente adequadas, eleger os traços apropriados, buscar a composição harmoniosa. Seu irmão caçula, Hermes, subverte esse cenário e inaugura um outro caminho, que se mostra tão valioso e necessário quanto o apolíneo, sendo mais apropriado a certas ocasiões; tratando-se do diverso, do inusitado, do singular, de pouco vale a semântica de Apolo, pois "o sentido de sua revelação não diz respeito à dignidade do ser de cada um em particular, nem à profundeza interior das almas individuais; diz respeito ao que está acima da pessoa, ao inalterável, às formas eternas" (OTTO, 2005).

A mudança incide em um campo idealizado, como na chegada de Hermes que altera a estabilidade dos campos de Apolo, subvertendo sua ordem ao roubar o gado e guiá-lo de trás para frente, para depois realizar um sacrifício em oferenda aos deuses, forjando um lugar para si mesmo entre os olímpicos, alterando permanentemente a ordem divina. Hermes invade um campo imutável e "jamais ceifado", onde pasta o gado dos deuses e se coloca eternamente dentro da ordem divina, chega para ficar, ao menos enquanto possibilidade, já que esse aspecto tricksteriano está sempre chegando e partindo, nunca se demorando demais num mesmo lugar; sua morada é na encruzilhada das possibilidades, nas rotas de movimento, desconstruindo por onde passa.

O filho ideal não é só roubado pelo autismo, ele é, como as vacas de Apolo, sacrificado. Qualquer ideia prévia que se pudesse ter de um filho é sabotada pelo autismo. Aqui, nesse ponto, os pais se deparam com uma encruzilhada, somos convidados a entender o autismo como um mal em si, a ser combatido pelo bem, pelos pais-heróis, guerreiros da normalidade que buscam devolver seus filhos aos trilhos do desenvolvimento típico, ou, por outro lado, podemos tomar o rumo de abrir-nos ao desconhecido; tratando-se de encruzilhada, convém se atentar a Hermes. Somos instigados por ele a trilhar o caminho do novo, do inimaginado, para fora do julgamento moral de bem e mal, em abertura à experiência e acolhimento ao filho real, mas somente se suportarmos o luto do filho ideal. Talvez essa seja uma forma interessante para todos acolhermos nossos filhos, mas no fenômeno do autismo, ela é imperativa. Acabamos obrigados a isso com maior intensidade, ou então estaremos condenados a não termos relação alguma com aquela criança que divergiu do caminho idealizado.

Quando um filho nasce, a idealização se faz presente, com maior rigidez e especificidade ou maior flexibilidade e generalidade, mas está presente. Por mais que eu fosse um pai aberto quanto às características que meu filho expressaria em sua personalidade, os valores que ele professaria e as escolhas que tomaria em sua vida, não me passava pela cabeça a dúvida quanto a se ele desenvolveria, e em que grau, a comunicação verbal, as habilidades básicas de relação social, o nível simbólico de entendimento do mundo, a regulação sensorial e por aí vai a lista. Quando se descobre ter um filho autista, essas novas questões surgem como se fossem, a "descoberta" das Américas e seus povos: algo aparentemente fora da realidade, mas que sempre esteve aqui em nosso mundo, com toda sua vida e história.

Mas o guiar de Hermes, como vimos, nos desvia de nossos preciosos ideais cultivados ao nos jogar na tortuosidade da vida; uma vez "perdidos" do caminho que antes acreditávamos estar destinados, temos a possibilidade de uma real abertura ao que se revela como nosso destino de fato. Não foram outros filhos, mas exatamente esses, que o destino me reservou. A neurodivergência, nesse sentido, nos propicia um "perder-se" para atingir novas terras, novos campos a serem cultivados, mais propícios aos grãos que recebemos do destino. A metáfora do guiar é assunto compartilhado também pelo irmão Apolo, mas diferentemente do embusteiro, o guiar do arqueiro solar "indica aos colonizadores o caminho para uma nova pátria" (OTTO, 2005, p. 62). A imaginação do "colonialismo" é interessante para pensarmos a neurodiversidade, pois é justamente numa atitude decolonial que se pode perceber o quanto a diversidade humana e suas singularidades tendem a ser aplainadas e formatadas por força de valores "superiores", impostos de cima para baixo, distanciando-as da verdade orgânica e pulsante de cada ser. O campo político da neurodiversidade é hoje disputado por diversos discursos, mas pode-se observar facilmente aqueles com maior acento hermético e aqueles com maior acento apolíneo, ao menos quanto à valorização da singularidade (Hermes) ou à ordenação impessoal (Apolo).

 

Trickster

Podemos entender o imaginário da figura do trickster como aquilo que evoca a desordem, a subversão, a trapaça, o logro. Os humoristas, os golpistas, os malandros, os "loucos", os "excêntricos", os marginais; todos evocam a dinâmica do trickster.

O core do arquétipo do trickster é a desconstrução em si mesma, o desfazer de uma estrutura, de uma ordem, de uma estabilidade. É a mudança, o giro, a troca, o cruzamento, o furo, a inversão. Quando uma mudança envolve níveis inimagináveis de existência, o mundo conhecido é subitamente retirado. Ao enxergar com olhos sinceros a realidade diversa um filho (em um sentido maior, considerando a ampla diversidade de características que um indivíduo pode expressar), o primeiro impacto que isso causa é a perda de uma imagem, a perda de um ideal, por mais saudável que seja, ainda assim será desconstruído (ou destruído, a depender de como nos abrimos à mudança); mas o que é inescapável é que a mudança nos rouba aquela criança, deixando a princípio um vazio, uma cena desconhecida e irreconhecível; sentimos o golpe da vida que nos leva um filho, mas nos convida a legitimar o nascimento de outro, num renascimento enquanto imagem interna dos pais em atualização.

No ciclo mítico Winnebago (RADIN, 1972), temos duas passagens nas quais os pais perdem seus filhos para o trickster, o que se pode imaginar como perder os filhos para a mudança. Em uma das aventuras, o trickster deseja para si os filhos de um pai apegado e zeloso, um pai enorme que guarda filhos pequeninos em uma bolsa a tiracolo, dosando precisamente a quantidade que os filhos podem comer, pois poderiam morrer caso comessem em excesso, como a criança que morre por ter crescido, se transformando em adulto. O trickster seduz o pai das crianças e convence-o a deixá-los sob seus cuidados, mostrando-se solitário e carente de afeto, o que nos indica a temática do apego por trás do excesso de zelo do pai. Como esperado, o trickster dá comida em excesso aos filhos e eles morrem, tendo que fugir do pai furioso que o persegue mundo afora, ziguezagueando para escapar dos golpes do pai ofendido, salvando-se finalmente ao se atirar no meio do oceano, como quem retorna ao inconsciente, temporariamente, para logo voltar a bagunçar a vida de todos sob a luz do dia. Nessa história o trickster os mata incidentalmente, indicando que não há retorno, aqueles filhos já não existem mais. Inevitavelmente, como aponta Lewis Hyde (2017) em sua obra a respeito da figura do trickster,

O pai que ama o filho está fadado ao fracasso na tentativa de mantê-lo a salvo de todo perigo. Neste mundo, as pessoas morrem; os animais morrem. Desejar o contrário é desejar uma perfeição imutável, um paraíso, um ideal (p. 44).

Numa outra passagem (RADIN, 1972), o trickster vê lindas ameixas na água e mergulha para apanhar, porém dá de cabeça com as pedras no fundo do rio, tenta mais algumas vezes apanhar as ameixas, até finalmente se dar conta de que se trata do reflexo das frutas na água, não são as ameixas em si, mas uma ilusão, pois as ameixas desejadas estão de fato inacessíveis, no alto da árvore. Trickster usa essa descoberta para enganar duas mães guaxinim: prometendo a elas uma colheita farta e saborosa dos frutos, se oferece para ficar cuidando de seus filhos até retornarem, com a verdadeira intenção de devorar os pequenos guaxinins. As mães, iludidas pelo trickster por tentarem prover o melhor aos filhos, aceitam a ajuda do Trickster, pois precisam manter os filhos sempre dentro da proteção da casa. Ou seja, é como se através do desejo de conservação dos filhos terminassem expondo-os ao trickster. Psiquicamente, imagino que por vezes essa seja a saída de transformação para filhos tão vigiados e protegidos; a cristalização e a imutabilidade convidam o trickster a exercer seu papel desconstrutor. Após a saída das mães, ele desmembra os filhos, decepa um deles e coloca sua cabeça na frente da casa com um sorriso no rosto, enganando as mães que de longe observavam. Após devorá-los, ele foge para a colina e lá cava um túnel para usar de emboscada. Fingindo ser outra pessoa, ele retorna para a casa dos guaxinins e encontra-se com as mães aos prantos e furiosas. O enganador lamenta a terrível perda, mas diz que viu o trickster esconder-se no buraco recém-cavado na colina. As mães se metem no buraco atrás de vingança, mas são mortas pelo trickster que ateia fogo em ambas as saídas do buraco, imagem que nos remete a como a situação é inescapável. Assim, as mães, ensandecidas com a perda dos filhos, terminam também mortas na tentativa de capturar o agente da mudança.

Essa passagem nos remete ao fato de que não só a imagem dos filhos é desidealizada (desconstruída), mas a de pais e mães também, que tentam em vão exercer seu poder de controle sobre a situação, esperando frearem a mutabilidade constante da vida. A figura dos pais é despedaçada, devorada e digerida; há a dissolução da estrutura anterior, que regride a um estágio indiferenciado, de onde o novo pode emergir. Jung (2011a) aborda o trickster como:

[...] uma estrutura psíquica arquetípica antiquíssima. Esta, em sua manifestação mais visível, é um reflexo fiel de uma consciência humana indiferenciada em todos os aspectos, correspondente a uma psique que, por assim dizer, ainda não deixou o nível animal (par. 465).

Sobre a transformação da imagem dos filhos, compartilho um sonho que me ocorreu em um momento no qual passava por um período de intensa ressignificação quanto à neurodivergência de meus filhos. O sonho tem início com dois palhaços acrobatas, vestidos à la Pierrot, que invadiam minha casa; um andava de pernas para o ar, caminhando com as mãos, enquanto o outro caminhava normalmente e assim iam se invertendo, um de ponta cabeça para o outro. Tinham a roupa metade preta e metade branca, assim como o chapéu cônico que usavam e seus rostos pintados ao meio; levavam botões coloridos em seus macacões. Logo entendi que se tratava de um assalto, em seguida aparece o chefe deles, um homem enorme, com feições maori, lembrando a versão da Disney do trickster Maui, semideus transmorfo da mitologia polinésia. Ele vai ao quarto dos meus filhos e sai carregando meu caçula nos braços, ainda adormecido. Quer levá-lo como garantia, mas intervenho e vou argumentando sobre o autismo, as crises e a necessidade de cuidados especiais; por fim ele concorda em deixar meu filho comigo, porém exige que eu fotografe os dois juntos embaixo da água do chuveiro, junto ao meu outro filho que fora trazido para dentro da cena.

O sonho se inicia com forte acento tricksteriano, ao apresentar os dois palhaços acrobatas vestidos à la Pierro. Um dos atributos dos palhaços, e figuras afins, é o de transmitir-nos conteúdos "imorais" (na perspectiva moralista), que habitualmente seriam rejeitados, mas acabam penetrando nas brechas que se abrem através do humor, do deslumbre e da magia. Da mesma forma, o arquétipo do trickster favorece que conteúdos barrados por nossas defesas deslizem para a consciência e a fertilizem, encontrando brechas por meio do disfarce, do entorpecimento, do acidente, e principalmente do humor. Apesar de perceber a invasão de minha casa e da natureza da situação, permaneço embasbacado pelas peripécias da dupla fantasiada; não há tempo para se armar, as defesas são enroladas pelas artimanhas tricksterianas. Em seguida aparece o grande chefe ladrão, obeso, forte e bonachão (remetendo também a um Rei Momo), caminha com tranquilidade e bom humor enquanto carrega meu filho adormecido nos braços com intenção de levá-lo consigo. Podemos associar a voracidade tricksteriana ao seu enorme tamanho (HYDE, 2017), a mudança que a tudo devora, transformando alimento em corpo, destruindo e recriando a vida. Por outro lado, podemos pensar essa figura sombria como um correspondente inconsciente da inflação paterna, a contraparte inconsciente da pretensão em defender e proteger o filho de todo mal, como observamos na enorme figura paterna que tem seus filhos mortos na mítica Winnegabo abordada acima.

De qualquer modo, o sonho deixa claro que o filho será levado embora, em alguma dimensão, seja seu corpo, seja sua imagem prévia. Nesse sentido, a cena na qual sou exigido que os fotografe embaixo d'água, nos remete a um registro, uma constatação, a coagulação da realidade de uma cena. O trickster coloca-se junto aos meus filhos, debaixo d'água, um meio que reúne a todos que estão imersos em uma continuidade só. Em certa medida, o trickster se incorpora à imagem dos filhos diversos. Uma mudança foi concretizada, ou melhor, uma cena prévia foi desconstruída, roubada. Quando esse sonho ocorreu, ainda não havíamos nos dado conta da neurodivergência de nosso filho mais velho, essa conscientização foi antecipada pelo sonho. Em minha primeira investigação sobre o sonho, não pude compreender a vinda de meu filho mais velho para a cena, mas no desenrolar dos meses, conforme meu filho amadurecia, também amadurecia em nós a sensibilidade para enxergá-lo com uma lente mais apropriada, revelando uma imagem mais fidedigna a seu ser. Sua neurodivergência, por ser menos disruptiva e saliente, passou desapercebida durante um tempo maior.

A temática do "roubo do filho", presente no discurso de diversos pais, se apresentou no sonho na forma literal de um ladrão-sequestrador. Quando tive esse sonho, ainda não estudava o assunto e não me era familiar esse discurso sobre "o roubo do filho" pelo autismo. Tampouco me era conhecido o fato de que em 2007 uma campanha midiática feita pelo Centro de Estudo da Criança da Universidade de Nova York representou o autismo como um sequestrador de crianças. Percebemos que as imagens de roubo e sequestro brotam espontaneamente frente a esse evento, revelando que arquetipicamente há de fato um roubo, mas o que é roubado é a imagem idealizada do filho, sendo, portanto, um roubo necessário. É justamente através desse roubo que surge o espaço para o desenvolvimento da imagem real do filho, fiel à sua singularidade. Ser roubado é um jeito eficaz de se livrar daquilo a que se está apegado defensivamente.

O pai deve deixar a imagem ideal do filho ser ferida e marcada pelo trickster; quando essa imagem ideal permanece protegida pelo pai, é o filho real quem sofre a ferida. O filho é ferido pela imagem ideal do pai, quando este se nega a deixar que seu ideal de filho morra. Lewis Hyde (2017) comenta uma passagem do mitologema tsimshian sobre o trickster Corvo a respeito do tema:

O Corvo não é o jovem idealizado pelo pai que escapou deste mundo; ele é, na verdade, uma besta faminta e insaciável que está nesse mundo justamente porque o idealismo do pai o feriu, e ele provou o fruto dessa ferida (p. 45).

A fome insaciável do Corvo nos remete ao vazio irremediável que habita o filho não reconhecido e não legitimado em sua forma de ser, um vazio que devora todo o alimento de uma vila e permanece insatisfeito, levando o pai a expulsar o Corvo de sua aldeia, dando início as andanças do jovem que encarna a figura do trickster, recriando o mundo e a si mesmo; livre da imagem sustentada pelos pais, o Corvo teria uma chance melhor, porém carrega consigo a ferida já feita. O luto da imagem ideal, quando não realizado, pode culminar em uma rejeição, em maior ou menor grau, da realidade do filho, impedindo uma relação de almas, pois ambos permanecem separados pelas defesas do pai, enquanto zela pela imagem ideal do filho. O pai é impedido de enxergar o filho real pois a imagem ideal projetada por ele ofusca seus olhos, tamanho o brilho daquilo que tem sua sombra dissociada. O trickster nos dá um novo mundo ao libertar-nos da cristalização estéril do ideal: "O trickster cria o mundo, dá a ele a luz solar, os peixes e os frutos, mas cria-o 'como ele é', um mundo de constante necessidade, trabalho, limitação e morte" (HYDE, 2017, p. 47).

*

Insistir na imagem idealizada dos filhos pode levar os pais a uma busca desenfreada por uma cura ou pela normalização comportamental, para que o filho pareça normal. Auxiliar o indivíduo a encontrar saídas quanto ao sofrimento da desregulação sensório-afetivo-cognitiva é apoiar e favorecer o desenvolvimento de caminhos criativos frente as questões colocadas pela própria constituição neurodivergente: girar até se acalmar, se enfiar em cantinhos apertados, cantar e pular freneticamente, repetir determinado som e determinado movimento; assim, o filho aparece exatamente como se deve parecer alguém que está encontrando uma resposta única a um evento único: singular.

Quando acolhemos a neurodivergência de um filho como forma legítima de ser, favorecemos o entendimento dele sobre sua realidade intrínseca, provendo o chão para que possa trilhar sua caminhada. Negar esse entendimento é negar a realidade, dificultando seu "estar no mundo", para que o transforme e por ele seja transformado. Na presença de qualquer diversidade, somos convidados a uma desidealização da imagem de filho que naturalmente habita nossas psiques, muito antes da concepção do próprio filho. Não só a imagem do filho requer desidealização, mas também a imagem dos próprios pais, já que a maneira que se imaginavam como pais não servirá para a tarefa demandada pela criação do filho diverso. Falo especificamente do autismo, localizado em meio à neurodiversidade, mas de maneiras distintas essas reflexões devem valer para vários modos de ser diverso nesse mundo. A imagem do filho, pré-concebida, cultivada na alma dos pais é idealizada por excelência, já que desprovida de matéria real. Vem antes da possibilidade de se conhecer o filho; por vezes a idealização dos pais se aproxima do campo de possibilidades do filho, o que requererá pouca desidealização por parte dos pais; no entanto os pais que idealizam normativamente seus futuros filhos terão que aceitar a desconstrução dessas imagens caso seus filhos tragam ao mundo uma diversidade qualquer, em maior ou menor grau terão que passar por um luto quanto ao filho e a si mesmos, enquanto pais de um filho que não veio.

O filho autista é, comparativamente e em algum grau, excêntrico, que etimologicamente significa aquilo que está fora do (suposto) centro. Se imaginarmos uma esfera habitada por inúmeros pontos, cada qual representando um indivíduo, e ordenados a partir de características compartilhadas em comum entre todos, encontraremos os autistas provavelmente na periferia dessa esfera, assim como indivíduos representantes de outras formas de diversidade no mundo. A região do normal não existe, pois cada um ocupa seu espaço singular nessa esfera, porém há uma região mais comumente habitada, onde há maior concentração de pontos próximos uns aos outros, que por aproximação, permite que nosso olhar racional divida a esfera entre os que habitam a tal zona comum e os periféricos, os normais e os excêntricos. Uma imagem paralela é a de nossa galáxia, na qual percebemos zonas altamente concentradas de estrelas próximas ao centro e outras mais rarefeitas em direção à periferia; o centro gravitacional dessa organização é um buraco negro supermassivo, zona onde nenhuma estrela pode estar, pois seria imediatamente engolida. Essa imagem nos é interessante pois, tal como na galáxia, um indivíduo que artificialmente se colocar, ou for colocado, no centro de nossa esfera imaginária, terá sua singularidade engolida pela normalidade, perdendo relação com sua alma.

A saúde do autista, bem como de todos nós, requer exatamente que tal excentricidade seja bem acolhida por sua rede afetiva, sendo tarefa dos pais o cultivo de um campo aberto no qual caibam diversas possibilidades de desdobramento, como num sarau, onde não se sabe se haverá uma performance de dança, uma canção, uma poesia, uma encenação, uma performance. No entanto, não é possível estar previamente livre de qualquer idealização, em especial quando o filho é diverso a ponto de expressar características que não podiam ser imaginadas sinceramente pelos pais, como quando me lembro que era completamente incerto, até os quatro anos de idade, se meu filho desenvolveria a fala ou não, e de que forma e em que grau isso se daria, o que ainda está em aberto hoje aos cinco anos de idade. Aceitar que essa desconstrução ocorra é permitir-se ser ferido, com a perda da imagem que se projetava sobre o filho, assim como de si mesmo enquanto pai. A ferida causada pela diversidade, desconstruindo os ideais estabelecidos, tem sua cura no trilhar caminhos diversos. A diversidade pede por diversidade, a ferida e a cura compartilham da mesma natureza: "O 'aproximar-se do salvador' é, pelo contrário - confirmando a verdade mítica - o fato de que o feridor e ferido cura, e o que padece repara ou remedia o sofrimento" (JUNG, 2011a, par. 457).

O trickster em geral, e mais especificamente a figura de Hermes, nos oferece a oportunidade de, com sua ousadia e desobediência, abrir novos caminhos que possam conceder um espaço de existência a sua forma de ser. A paternagem requerida por uma criança, em detalhes, é sempre única, pois cada criança difere da outra. Mas entendo que no âmbito da neurodivergência somos convocados a desviar de forma muito importante da norma, nos afastando muito mais da forma habitual de agir numa paternagem típica. O trickster nos oferece não só a chance de desconstruir, mas também a oportunidade do improviso, do movimento novo e intuitivo que resulta de uma experimentação direta com a matéria viva, abdicando das abstrações condensadas através das experiências acumuladas: aquilo tudo que "sempre funcionou". Assim, podemos entender que a chegada do trickster, a princípio altamente disruptiva, vai se apresentando como processo de transformação criativo e sensato, que oferece caminhos arquetípicos de elaboração para os pais.

Porém esse movimento pode ser tão desafiador a ponto de estacionar a meio caminho desse processo, num limbo, um lugar psíquico onde o filho ideal continua a ser buscado, mas não pode ser encontrado, pois não está na realidade, e onde o filho real não é visto, pois não cabe no imaginário idealizado do pai. Esse processo culmina com a tentativa inescapável de forçar sobre o filho as roupagens ideais que o pai tem a oferecer, o que também é comumente exercido pela escola, por terapeutas e por qualquer instituição ou grupo social onde esteja inserido. O indivíduo, para caber nessa imagem que lhe é oferecida, perde-se de sua alma, que permanece na periferia de nossa esfera imaginária, enquanto o indivíduo força-se rumo ao centro da normalidade, o buraco negro que a tudo devora, de onde nada escapa e onde a criatividade não ocorre.

 

Stims

Os stims, movimentos autoestimulatórios usados pelos autistas como forma de autorregulação psíquica, são frequentemente reprimidos por pais, professores, terapeutas e demais adultos do convívio da criança autista, processo que pode ser incorporado pelo próprio indivíduo, que passa a mascarar tais comportamentos na tentativa de encaixar-se na norma. Com frequência essa repressão tem como intuito camuflar a excentricidade, forjando uma aparência "normal". O stim é uma ponte direta pela qual o autista se encontra consigo, mantendo-se inteiro, reunindo partes dispersadas numa crise, frequentemente vivenciada por indivíduos autistas. A psiquiatria utiliza outro termo para o stim, estereotipia, porém prefiro utilizar o termo eleito pela própria comunidade autista, organicamente formada, que vem colocando sua voz no mundo há anos, ocupando seu legítimo espaço que antes era totalmente tomado pelo discurso médico e ecoado por pais em busca da cura. A excentricidade do filho diverso é uma imagem valiosa para nós, já que entendemos a alma como aquilo que nos é único, autêntico, espontâneo; a alma habita os recônditos periféricos de nossa personalidade, os vales de nossa topografia psíquica, as brechas de nossas edificações conscientes.

O stim é um aceno de que o autista pode e deve apresentar ao mundo uma nova poética, na qual sua diversidade seja legitimamente exercida esteticamente: "Entendo como experiência estética um despertar da consciência para o desconhecido, desautomatizado, não ordinário, perspectiva que é obliterada pelo tempo da neurose" (PALOMO, 2022). A tentativa de normalização é neurótica, como se colocar o sujeito em guerra consigo mesmo fosse um ganho interessante no desenvolvimento. A contenção dos stims, o forçar-se a olhar nos olhos, o policiar-se para não parecer diferente, são atitudes exaustivas e ansiogênicas, gerando angústia e desorganização psíquica, pois tais comportamentos "excêntricos" surgem como estratégias orgânicas de regulação sensorial e psíquica. Coibir tais comportamentos, como uma vez me disse um paciente, seria como se tirássemos a válvula de uma panela de pressão em ebulição: quem está do lado de fora deixa de ouvir o apito e supõe a paz, mas a panela sente a pressão subir, forçando sua estrutura de dentro para fora, explodindo em crises de meltdown ou shutdown (crises expansivas ou de "desligamento"), que podem durar de minutos a semanas, conforme ouvimos nos relatos de nossos pacientes.

 

Considerações finais

Apreciar e celebrar a singularidade não é o mesmo que romantizar qualquer condição, negligenciando cuidados necessários ao bem-estar do indivíduo e ferramentas capazes de propiciar o seu melhor desenvolvimento. Se um stim traz risco à criança, pois envolve algum comportamento perigoso para si ou para outros, obviamente requererá cuidados e encaminhamentos. Se não houver esforço por parte de pais, terapeutas, professores, muitos autistas estarão aquém de seu potencial, mas nada disso é específico, pois é válido para qualquer ser humano. A pergunta necessária a se fazer antes de toda e qualquer proposta terapêutica ou educacional é: "A quem serve essa intervenção? Ao desenvolvimento do filho, ou ao narcisismo dos pais? Ao aprendizado do aluno, ou ao autoritarismo do professor? Ao processo do paciente, ou à teoria defendida pelo terapeuta?". Ações "terapêuticas" plenamente difundidas e aparentemente inocentes, como condicionar crianças a olhar nos olhos enquanto interagem, parecem servir a qualquer propósito, menos a uma necessidade intrínseca do desenvolvimento da criança. As justificativas dadas para tais intervenções não param em pé frente a menor brisa de questionamentos.

É numa atitude voltada para a contingência que melhor trafegamos num cenário neurodivergente, em que o que pode ou não acontecer é incerto e aberto, pois a singularidade do indivíduo é acentuada conforme se afasta da norma. Obviamente manter essa atitude é bastante desafiador, pois os "vizinhos mais estabelecidos" se incomodam com as andanças e bagunças do trickster, tentando imobilizá-lo com frequência (HYDE, 2017). Sempre necessitaremos dos demais deuses, cada qual entregando sua contribuição ao mundo psíquico, mas quando se trata daquilo que é diverso, estaremos em campo novo e inovar começa na desconstrução, dádiva tricksteriana. O aprender, além de estudar o que já foi estabelecido, comprovado, e teorizado, pode também ser empírico, e a caminhada "distraída" fornece as peças que se encaixam espontaneamente ao se testar o que funciona ou não. Distraídos das diretrizes, podemos nos atentar aos resultados dos movimentos, compondo aos poucos nosso próprio entendimento junto aos filhos, um entendimento necessariamente aberto, pois será sempre insuficiente e potencialmente defasado, pois mesmo se pudermos compreender perfeitamente a um filho hoje, amanhã esse entendimento já não servirá.

É sempre necessário enfatizar que acolher a necessidade da atitude tricksteriana não é fazer uma ode ao caos. Todo movimento requer estrutura para acontecer, a desconstrução é um caminho para adaptá-la criativamente, provendo sua organicidade. A estrutura psíquica depende do trickster para manter sua vitalidade, como a terra depende das minhocas para manter sua oxigenação: através de seus furos e túneis circula o ar, a água e o calor que sustentam a vida subterrânea. Uma estrutura sem seus agentes desconstrutores não terá vivacidade, assim como a falta de estrutura será também uma perda, e não a ênfase da vivacidade.

A temática da neurodivergência precisa de cada deus com seus devidos cosmos, especialmente de amor, de razoabilidade, de organização, de rotina, de constância, de certa dose de obstinação, temas tão necessários em serem abordados; mas enquanto lares, escolas e consultórios estiverem presos na insistência da normalização daquilo que é diverso, seja pelo enquadramento do comportamento, seja pela negação da diferença, será necessário primeiro falar da abertura à mudança, primeiro falar de desconstrução, pois como observamos na mitologia iorubá, é Exu quem come primeiro, é por ele que todo caminho começa (PRANDI, 2001).

 

Referências

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Recebido: 05/08/2022
Revisado: 14/12/2022

 

 

1 Espectro autista refere-se ao campo, plural e vasto, no qual cada indivíduo apresenta de forma única diferenças na comunicação, linguagem, comportamento social, percepção e processamento sensoriais. Pessoas no espectro autista podem ter uma ampla gama de pontos fortes, habilidades, necessidades e desafios, podendo ser capazes de se comunicar verbalmente, com um QI normal ou acima da média e vivendo de forma independente; outros podem não ser capazes de comunicar suas necessidades ou sentimentos, ter comportamentos prejudiciais que afetam sua segurança e bem-estar e depender de apoio em todas as áreas de sua vida. Além das características intrínsecas a cada um, pessoas no espectro autista e pessoas neurodivergente, em geral, sofrem com barreiras impostas pelas normas sociais, causando exclusão social e iniquidade (BAUMER, 2021).

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