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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Atravessar desertos – psicanálise e utopia

 

Crossing desertspsychoanalysis and utopia

 

Atravesar desertospsicoanálisis y utopía

 

 

Edson Luiz André de Sousa

Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo propõe a ideia de deserto como metáfora possível de lugares totalitários onde as imagens se apresentam como imperativas e prescritivas. Tem sido este um cenário muito presente na atual situação política de nosso país. Em que medida o campo dos estudos utópicos e da psicanálise podem trazer ferramentais críticas para identificarmos e atravessarmos esses desertos? Procuramos dialogar com a reflexão de Pierre Naville em seu livro A revolução e os intelectuais, no qual propõe o célebre slogan “É preciso organizar o pessimismo”.

Palabras clave: psicanálise; utopia; política; Pierre Naville.

ABSTRACT


This paper proposes the idea of desert as a possible metaphor of totalitarian places where images are presented as imperative and prescriptive. This has been a very present scenario in the current political situation in our country. To what extent can the field of utopian studies and psychoanalysis provide critical tools for identifying and traversing these deserts? We sought to dialogue with Pierre Naville’s reflection in his book The Revolution and the Intellectuals, where he proposes the famous slogan “It is necessary to organize pessimism”.

Keywords: psychoanalysis; utopia; politics; Pierre Naville.


RESUMEN

En este artículo se propone la idea del desierto como una metáfora posible de lugares totalitarios donde las imágenes se presentan como obligatorio y preceptivo. Este ha sido un escenario muy presente en la actual situación política de nuestro país. ¿En qué medida el campo de los estudios utópicos y el psicoanálisis puede aportar herramientas críticas para identificar y atravesar por estos desiertos? Buscamos el diálogo con la refléxion de Pierre Naville en su libro La revolución y los intelectuales que propone el famoso lema “Hay que organizar el pesimismo”.

Palavras-chave: psicoanálisis; utopía; política; Pierre Naville.


“Meu poema é minha faca”
Paul Celan
“O que é um rebelde? Um sujeito que diz NÃO, mas cuja recusa não implica renúncia”
Albert Camus

São muitos os desertos que temos que atravessar em nosso país. As recentes chacinas nos presídios de Manaus (Complexo Penitenciário Anisio Jobim) e Boa Vista (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo) e Natal (Penitenciária Estadual de Alcaçuz), nos lançam violentamente no coração das trevas. Corpos mutilados, vitimas sobretudo da negligência do poder público, que pouco tem feito para enfrentar as condições precárias e desumanas da politica carcerária em nosso país. Definitivamente o que vimos nesses massacres é o fracasso do nosso laço social. Não há pacto social possível diante de cenas como essas. Embora com algumas particularidades diferentes, revivemos mais uma vez Carandiru. O que é mais chocante é que basta ouvir as primeiras declarações públicas do atual governo para perceber que a lógica da violência surge nos gabinetes dos políticos. Estarrecedor ouvir o Secretário Nacional da Juventude, Bruno Júlio1 dizer “tinha que matar mais, tinha que fazer uma chacina por semana”.

Um deserto não se atravessa sozinho. Diante desses cenários que tentam nos inundar de paralisia e conformismo anestesiando o que temos de mais precioso, ou seja, nossa direito à revolta, nossa potência de desejar, nosso dever para com nossa imaginação, neste ponto é sempre importante evocar o que nos lembra Ernst Bloch (2005) em sua trilogia O princípio esperança quando tenta discorrer sobre a função das utopias na historia da humanidade: “A consciência utópica quer enxergar bem longe, mas, no fundo, apenas para atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido, em que todo o DEVIR está a deriva e oculto de si mesmo” (Bloch, 2005, p. 23). Em outras palavras, escreve ele, “necessitamos de um telescópio mais potente, o da consciência utópica afiada, para atravessar justamente a proximidade mais imediata, assim como para atravessar o imediatismo mais imediato” (Bloch, 2005, p. 23).

Vamos então nos aproximar desse deserto, colocar o pé em seus contornos e esboçar uma travessia possível. Jorge Luis Borges em seu texto “O deserto do Saara” (2010), dá o tom de uma estratégia possível para esse percurso. Escreve ele:

A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais longe e disse em voz baixa: estou modificando o Saara. O fato era mínimo, mas essas palavras pouco engenhosas eram exatas e pensei que havia sido necessária toda minha vida para que eu pudesse dizê-las. A memória daquele momento é uma das mais significativas de minha estada no Egito (Borges, 2010, p. 27).

Esse punhado de areia nas mãos é uma resposta possível à provocação do poeta T. S. Eliot em seu clássico poema “The Waste Land”, no qual nos lança a pergunta: ousarei eu perturbar o universo? O desafio aqui diz respeito às estratégias possíveis de desfazer as formas totalitárias, abrindo rasgos nos territórios que se apresentam como imagens absolutas, prescritivas, definitivas. O punhado de areia nas mãos é uma metáfora potente do ato analítico, do ato criativo, do ato poético. Perturbar o universo neste sentido é escrever um nome próprio nos regulamentos anônimos, marcar uma diferença nas monocromias das prescrições, rasgar um mapa para construir seu mapa, afirmar uma posição singular. De uma maneira bem simples o que vemos nesse fragmento é um pensamento sobre a responsabilidade diante de um ato que faça diferença, ou seja, não renunciar a fundar um lugar de autoria, de protagonismo diante desses desertos da história. A passividade anda de mãos dadas com a tristeza que nos joga para fora da história como o bagaço da fruta, e nesse ponto a tristeza é acreditar que há alguém que pensa por nós, que faz por nós e, ainda pior, que vive por nós. Não se trata aqui da ingenuidade de um otimismo estéril, arma potente desses mecanismos de controle que nos apresentam esperanças que Bloch nomeia como fraudulentas.

O que entendo por deserto? Aqui vou inverter a definição do senso comum que tende a pensar Desertos como metáfora de um lugar onde faltam mapas, espaços que se abrem à deriva, ao incerto, ao vazio, sem contornos, sem medida, desconhecido, incerto etc. Penso desertos em outro sentido, ou seja, desertos como lugares totalitários onde as imagens se apresentam como imperativas, onde os caminhos já estão exaustivamente indicados, repleto de prescrições, regulamentos, onde não há espaço para o inédito, para o fora de lugar, para o desvio, para a deriva. Em outras palavras, penso o deserto como esses espaços onde não conseguimos fundar um lugar em que nos sentimos efetivamente autores, sujeitos, recuperando algum protagonismo em nossa história. Não é esse o compromisso ético da prática psicanalítica?

Como cruzar por imagens que se impõem? Como recortar esses espaços de certezas e prescrições para fundar um lugar? Fatiar a totalidade em um ato de resistência. Todo ato de resistência supõe uma arte, lembra Didi-Huberman, e aqui a ideia de arte aparece como um dispositivo de ficcionalização, buscando as imagens ainda não disponíveis. É com ela que podemos refundar origens, inverter lógicas de funcionamento, recusar instruções, recuperar uma dimensão da incerteza e da imaginação. Por isso a psicanálise está, ou deveria estar, tão perto da arte, pois a radicalidade do que chamamos de ATO (como corte dessas superfícies continuas) está sempre em pauta, nos ajudando a recuperar a dimensão da incerteza e da imaginação. Lacan, como todos sabem, abre seu seminário do Ato analítico aproximando o ato analítico do ato poético.

Vemos na imagem Lucio Fontana e seus cortes nas telas monocromáticas, esforço de esburacamento e fundação de uma nova geografia.

 

 

Vemos Michelangelo Pistoletto, artista italiano da arte povera, em suas ações de redesenhar espelhos, quebrar essa fascinação do duplo, injetando desordem na imagem me faz lembrar uma proposição lúcida de Herman Melville em seu Moby Dick, obra na qual escreve em determinado momento: “Há certas empreitadas em que uma desordem cuidadosa é o método mais eficaz” (Melville, 2005, p. 384).

 

 

Um dos trabalhos emblemáticos da arte brasileira contemporânea é sem dúvida a bandeira proposta por Hélio Oiticica, onde se reproduz a imagem do bandido “cara de cavalo” morto com dezenas de tiros pela polícia do Rio de Janeiro. Trago essa cena como um paradigma do que temos vivido diariamente, e lembrando o que disse Maria Rita Kehl no encontro do Clinicas do Testemunho em Porto Alegre, que a polícia brasileira continua matando e torturando hoje tanto quanto ou ainda mais do que na época da ditadura. Que mecanismos são esses que a sociedade brasileira ainda tolera e sustenta?

 

 

Abaixo da imagem do corpo estendido escreveu “Seja marginal, seja herói”. Essa frase acabou sendo um dos slogans mais conhecidos de sua obra, pois indica a posição clara desse artista ao refletir sobre tudo aquilo que está na margem, no fora de eixo evocando as histórias que ainda não foram lidas. Seu trabalho plástico vem à luz como uma espécie de aviso de incêndio no sentido mesmo do que Walter Benjamin escreve no texto com esse mesmo título: “É preciso cortar a mecha que queima antes que a faísca chegue no dinamite” (Benjamin, 1988, p. 193). O ato de criação surge, nesse contexto, como um grito utópico, indicando que pode haver, eventualmente, outro destino que não o da explosão mortífera. Contudo, esses avisos nem sempre são escutados e o fogo chega antes que a esperança.

O que é mais catastrófico é quando não temos a coragem de ir ler o texto das cinzas. Sabemos que há mecanismos sociais e psíquicos potentes que tentam barrar esse caminho e que precisam ser considerados se quisermos entender um pouco das razões da covardia e obscurantismo de um determinado tempo. Acredito ser este um caminho promissor para reagir contra a violência que nos paralisa. Vale aqui lembrar, por exemplo, as reflexões de Jean Nabert em seu ensaio sobre o mal. “Sem dúvida uma certa esterilização das lembranças, somado ao apagamento ou atenuação das reverberações emocionais de nossos atos, favoriza a produção de um momento onde o passado mais pesado parece se separar do eu” (Nabert, 2001, p.138).

Neste ponto preciso vemos o quanto o campo da psicanálise desdobra sua vertente política uma vez que o enunciado de Nabert retoma teses que encontramos quase literalmente em Sigmund Freud e em Karl Marx. Aqui os conceitos de recalque e alienação surgem como pequenos microscópios para o bacilo oportunista. Por sorte, a história não pode se esquivar totalmente dos efeitos do retorno do recalcado.

Será que essa bandeira do Oiticica já virou cinza? O que ainda nos resta? A única resposta possível talvez seja a de Pierre Naville que se tornou célebre

na pluma de Walter Benjamin. Segundo eles nossa missão seria a de organizar o pessimismo. Walter Benjamin é explícito ao dizer que organizar o pessimismo significa descobrir um espaço de imagens no campo da conduta política (política da imagem). É curioso que o texto de Naville A revolução e os intelectuais, escrito no final dos anos vinte, vai justamente desenhar o panorama de violência e obscurantismo de uma Europa marcada pela tirania staliana e ascensão do nazismo. A questão disparadora do texto, contudo, é uma defesa feroz do surrealismo contra todas as críticas a essa revolução artística. O texto de Naville é de uma atualidade impressionante.

Naville defende a ideia de um pessimismo responsável e consequente indicando que a desesperança pode cumprir uma função importante no cenário político.

Faz uma certa crítica à esperança ingênua, associada, segundo ele, aos aspectos medíocres de uma época. Nesse sentido podemos dizer que Naville propõe um pessimismo ativo e que precisa encontrar seu prumo. “É preciso organizar o pessimismo, ou melhor, já que não se trata de submeter-se a um chamado, é preciso deixar que ele se organize” (Naville, 1975, p. 117). O desafio colocado em cena seria o da necessária resistência ao que ele nomeia como tirania do futuro. Contudo, a questão que fica é justamente de saber como é possível injetar potência utópica na desesperança.

O caminho não é simples, mas, certamente, a única saída é poder narrar e testemunhar ao mundo esse afeto. Em outras palavras, verter em linguagem o que experienciamos. Assim, algumas imagens potentes talvez possam surgir ajudando a ver e entender melhor o que vivemos. Charlotte Beradt, por exemplo, entre 1933 e 1939 recolheu inúmeros sonhos de angústias de centenas de pessoas que, como ela, eram acossadas todas as noites por fortes pesadelos. Esses textos constituem, segundo Didi-Huberman, um documento psíquico do totalitarismo, do terror político, “um sismógrafo íntimo da história política do III Reich” (Didi-Huberman, 2009, p. 117).

Aqui temos uma indicação preciosa de um pessimismo que não silencia e que reage à catástrofe do continuum da história. Pessimismos, portanto, inquietos, críticos, criativos. Como diz Naville “vemos que este pessimismo não é a fadiga, e não é tampouco o abandono, longe disto... O desespero é uma paixão virulenta. Ele se nutre de desejos dilatados e profundos. Ele coloca à prova a paciência” (Naville, 1975, p. 113).

O tema da Bienal de São Paulo em 2016 foi potente embora não possa dizer o mesmo da mostra: A INCERTEZA VIVA. A atualidade do tema adquire ainda mais força quando um dito vice-presidente com um sobrenome sugestivo ao assumir ilegitimamente a presidência de nosso país disse em alto e bom tom no seu primeiro pronunciamento em rede nacional: “O momento é de esperança e de retomada de confiança no Brasil. A incerteza chegou ao fim. É hora de unir o país e colocar os interesses nacionais acima dos interesses de grupos. Essa é a nossa bandeira. É preciso recolocar o Brasil nos trilhos. O presente e o futuro nos desafiam. Não podemos olhar para a frente com os olhos do passado”.

O que ele está dizendo: esqueçam o passado e como sabemos esquecer o passado é se submeter a sua lógica de repetição, de nunca sairmos desse bafo do porão da história. Esse é o deserto de alguém que se arvora ter a certeza, nos impor sua certeza, nos colocar em seus trilhos. Nessas horas sempre me lembro de Estamira (filme de Marcos Prado) que no meio do lixão do aterro sanitário do Jardim Gramacho pensava a lógica do poder com tanta lucidez que a considero um dos testemunhos mais contundentes destes tempos: falava do “trocadilho”, dos espertos ao contrário, estratégias de submeter os outros a suas lógicas de poder e certeza. Com que autoridade, indignação, consistência conduz sua fala! Esquecer o passado é anular o julgamento do Carandiru, um verdadeiro escândalo que recentemente motivou uma intervenção do artista Nuno Ramos em São Paulo. Convidou 24 pessoas para uma performance que durou 24 horas na qual cada convidado ficou lendo o nome dos 111 presos assassinados durante uma hora.

Esperávamos que um secretário nacional da juventude pudesse dizer que seria importante uma performance como essa por semana.

Em 2016 comemoramos 500 anos da publicação da Utopia de Tomas Morus. Esse texto, que fundamentalmente é uma ilha de papel, uma ficção que nos interroga sobre o que ainda podemos sonhar, portanto algo muito próximo do que a prática psicanalítica abre como possibilidade, ou seja, recortar os mapas que herdamos, lê-los minimamente para poder redesenhá-los. Não é tarefa fácil mas cada vez mais necessária e lembro aqui uma passagem do texto de Morus que deveríamos ter sempre perto de nós: “não renunciamos a salvar o navio na tempestade só porque não saberíamos impedir o vento de soprar” (Morus, 1997, p. 57). Não seria esse um dos princípios da ética da psicanálise?

 

Referências

Benjamin, W. (1988). Sens unique, les lettres nouvelles. Paris: Maurice Nadeau.         [ Links ] Bloch, E. (2005). O principio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ] Borges, J. L. (2010). Atlas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ] Didi-Huberman, G. (2009). Survivance des lucioles. Paris: Editions de Minuit.         [ Links ] Melville, H. (2008). Moby Dick. São Paulo: Cossac Naify.         [ Links ]

Morus, T. (1997). Utopia. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ] Nabert, J. (2001). Essai sur le mal. Paris: Cerf.         [ Links ]

Naville, P. (1975). La revolution et les intellectuels. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

Recebido em 30 de outubro de 2016
Aceito para publicação em 15 de março de 2017

 

 

1Bruno Julio é Presidente da Juventude Nacional do PMDB. Essa declaração o obrigou a pedir demissão do cargo que ocupava.
2Encontro do seminário Clinicas do Testemunho no Centro Cultural Erico Verissimo em Porto Alegre em 28 de outubro de 2016.

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