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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n01A04 

SEÇÃO TEMÁTICA - DINÂMICAS SOCIAIS E PSICOLOGIA: COGNIÇÃO, FAMÍLIA, TRAUMA E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA EM RELACIONAMENTOS E TRATAMENTOS

 

A(s) maternidade(s) de mulheres em situação de rua: Entre violações e possibilidades de reparação subjetiva

 

Motherhood(s) of homeless women: Between violations and subjective restoration

 

La(s) maternidad(es) de mujeres sin hogar: Entre violaciones y posibilidades de reparación subjetiva

 

 

Iara Flor RichwinI; Valeska ZanelloII

IPesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. email: iararaflor@gmail.com
IIProfessora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. email: valeskazanello@unb.br

 

 


RESUMO

A maternidade de mulheres em situação de rua constitui uma questão pouco pesquisada, permeada por desconhecimento, estigmatização e violência. O objetivo deste estudo foi analisar os sentidos e experiências de maternidade sob essa condição, enfocando suas configurações subjetivas e seus efeitos sobre a saúde mental das mulheres. Foram realizadas pesquisa de campo etnográfica e entrevistas aprofundadas. Evidenciou-se que, num contexto cultural em que "ser mãe" é concebido como elemento essencial e definidor do "ser mulher", a maternidade pode promover importantes transformações existenciais para mulheres em situação de rua. Ela pode se constituir como um lócus de organização subjetiva, resgate identitário, reinstauração de uma dimensão desejante e prospectiva e alargamento das possibilidades de futuro. Contudo, também foi detectado que muitas mulheres em situação de rua têm essas possibilidades ameaçadas, já que sua maternidade é alvo de desamparo social, violações e separações. Constatou-se que essas violações e interdições da maternagem promovem acentuado sofrimento psíquico, com efeitos devastadores na saúde mental. Concomitantemente, fez-se evidente que as mulheres não as vivenciam de forma passiva, mas desenvolvem estratégias de resistência a partir da mobilização de arranjos alternativos de maternagem e redes de cuidado compartilhado, o que pode ter efeito restaurativo sobre sua saúde mental.

Palavras-chave: mulheres em situação de rua; violência de gênero; maternidade; maternagem; saúde mental.


ABSTRACT

The maternity of homeless women is an understudied topic, which blends lack of knowledge, stigmatization and violence. This study aims to analyze meanings and experiences of maternity under this condition, focusing on its subjective configurations and its effects on the mental health of women. Ethnographic fieldwork was conducted, with in-depth interviews. It was found that maternity can promote important existential transformations for homeless women, in a cultural context in which "being a mother" is conceived as an essential and defining element of "being a woman". Maternity can constitute a locus of subjective organization and identity rescue, re-establishing desire and prospective visions and broadening possibilities for the future. However, it was also noticed that many women living on the streets have these possibilities threatened, since their maternity is a target of social helplessness, violations and separations. It is evident that these violations and interdictions of motherhood promote deep psychic suffering, with devastating effects on mental health. Simultaneously, it was clear that women do not experience this hardship passively, but develop resistance strategies based on alternative arrangements of motherhood and shared care networks, which can have a restorative effect on their mental health.

Keywords: homeless women; gender-based violence; maternity; motherhood; mental health.


RESUMEN

La maternidad de mujeres sin hogar es un tema poco investigado, permeado por el desconocimiento, la estigmatización y la violencia. El objetivo de este estudio fue analizar los significados y experiencias de la maternidad en situación sin hogar, centrándose en sus configuraciones subjetivas y sus efectos en la salud mental de las mujeres. Se realizó investigación etnográfica y entrevistas en profundidad. Se hizo evidente que, en un contexto cultural en el que "ser madre" se concibe como un elemento esencial del "ser mujer", la maternidad puede promover importantes transformaciones existenciales para las mujeres sin hogar. Ella puede constituir un locus de organización subjetiva y rescate de la identidad, reinstaurando una dimensión deseante y prospectiva y ampliando las posibilidades futuras. Todavía, también se detectó que muchas mujeres sin hogar tienen estas posibilidades amenazadas, ya que su maternidad es objeto de desamparo social, violaciones y separaciones. Se encontró que estas violaciones e interdicciones del maternaje promueven un marcado sufrimiento, con efectos devastadores en la salud mental. Concomitantemente, se evidenció que las mujeres no las experimentan de forma pasiva, sino que desarrollan estrategias de resistencia basadas en la organización de formas alternativas de maternaje y de redes de cuidados compartidos, que pueden tener efecto reparador en su salud mental.

Palabras clave: mujeres sin hogar; violencia de género; maternidad; maternaje; salud mental.


 

 

Introdução

- Mulher, como você se chama? - Não sei.

- Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.

- Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.

- Desde quando está aqui escondida? - Não sei.

- Por que mordeu o meu dedo anular? - Não sei.

- Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.

- De que lado você está? - Não sei.

- É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.

- Tua aldeia ainda existe? - Não sei.

- Esses são teus filhos? - São.

Wislawa Szymborska (2011)

As mulheres constituem um grupo minoritário da população em situação de rua, representando, no contexto brasileiro, 18% do total de pessoas nessa condição, segundo a única pesquisa nacional realizada sobre esse segmento populacional (MDS, 2009). Contudo, o número de mulheres em situação de rua tem crescido nos países industrializados (Reppond & Bullock, 2019; Roze et al., 2019) e, como identificado por estudos anteriores, elas estão mais expostas a diversas vulnerabilidades (MDS, 2009; De Antoni & Munhós, 2016; Rosa & Brêtas, 2015; Richwin & Zanello, no prelo). Além das destituições que acometem pessoas em situação de rua de modo geral (Rodrigues & Fernandes, 2020), as mulheres enfrentam ainda a presença da violência como elemento intrínseco e transversal em suas vidas (Rosa & Brêtas, 2015). Violências que são conformadas pelas desigualdades raciais e de gênero e que se manifestam sob três formas principais: (1) violências físicas e sexuais, que constituem, muitas vezes, o principal deflagrador para a transição para as ruas; (2) violências estruturais, constituídas por macroprocessos históricos e sociais, como a fome, a pobreza extrema, o desamparo social e a criminalização da miséria; opressões raciais e gendradas; e reprodução de desigualdades e exclusões pelo poder público; e (3) estratégias de proteção e de sobrevivência que as submetem à violência, como a necessidade de envolver-se em trabalhos sexuais ou de manter-se em relações íntimas com homens que as agridem, para evitar a agressão de outros homens (Richwin & Zanello, no prelo).

O presente estudo tem como problema central a maternidade dessas mulheres, condição que adiciona às suas vidas complexidades e violações singulares, muitas delas relacionadas às normas e estereótipos de gênero sobre o que seria uma "boa mãe" (Benbow et al., 2019). Na realidade social brasileira, essa questão é objeto de desconhecimento e preconceitos (Almeida & Quadros, 2016; Sarmento, 2020) e a produção científica sobre o tema ainda é escassa (Barros et al., 2020; Costa et al., 2015). Embora mais desenvolvida do que no Brasil, a literatura científica internacional também é reduzida (Lapuente et al., 2020; Roze et al., 2019).

Um dos pontos destacados pelos estudos existentes, nacionais e internacionais, é o fato de que a maternidade em situação de rua é permeada por julgamentos morais, estigmatizações e discriminações, que são informados por estereótipos de classe, raça, gênero e idade (Benbow et al., 2018, 2019; Lapuente et al., 2020; Reppond & Bullock, 2019; Sarmento, 2020). Diante de uma dissonância entre a precariedade da vida nas ruas e os padrões dominantes de maternidade - conformados por normas patriarcais e neoliberais (Benbow et al., 2018) -, as mães nessa condição são discriminadas e rotuladas como incapazes, negligentes, preguiçosas, promíscuas, drogadas e indisciplinadas (Benbow et al., 2018, 2019; Reppond & Bullock, 2019; Sarmento, 2020). Ou seja, por meio de um reducionismo que ignora as desigualdades estruturais implicadas (Benbow et al., 2018) e que interpreta falta de moradia como falta de capacidade para maternar (Glumbíková et al., 2018), as mulheres são socialmente vilipendiadas e reputadas como "mães ruins", um perigo para si mesmas e para seus filhos (Benbow et al., 2019; Reppond & Bullock, 2019).

Essas estigmatizações e discriminações constituem uma das principais barreiras de acesso aos sistemas de saúde e assistência social, afastando as mães e grávidas em situação de rua dos espaços que, paradoxalmente, foram desenhados para oferecer-lhes refúgio e cuidado (Almeida & Quadros, 2016; Barros et al., 2020; Benbow et al., 2018, 2019; Costa et al., 2015; Gomes & Dias, 2017; Gordon et al., 2019; Reppond & Bullock, 2019). Dessa forma, suas condições existenciais e de saúde, já sujeitas a contínuas violações e precarizações, ficam ainda mais agravadas (Benbow et al., 2018; Gomes & Dias, 2017).

Outra dimensão central nas vidas de mães em situação de rua, evidenciada por estudos nacionais e internacionais, é a questão da separação compulsória de seus filhos (Benbow et al., 2019; Gomes & Dias, 2017; Gordon et al., 2019; Malheiro, 2018; Sarmento, 2020). No Brasil, essa questão se agravou acentuadamente nos últimos anos, na esteira do pânico moral e social em torno do crack e da espetacularização da figura das "mães e filhos do crack" (Alves, 2018; Malheiro, 2018). A partir de 2014, observou-se em diversas cidades brasileiras a publicação de recomendações de Promotorias e Varas da Infância e Juventude que orientavam as unidades de saúde a comunicar ao poder judiciário todos os nascimentos de filhos de mães usuárias de drogas ou com trajetória de rua. Desde então, os aparatos estatais têm promovido numerosos casos de retirada e abrigamento compulsório de filhos de mulheres em situação de rua, fundamentando-se num entendimento de que a situação de vulnerabilidade e pobreza das mães constituiria uma total impossibilidade de exercício de uma maternidade segura e sem riscos para as crianças (Alves, 2018; Gomes & Dias, 2017; Malheiro, 2018; Sarmento, 2020).

A análise da maternidade de mulheres em situação de rua exige observar que o próprio conceito de maternidade abrange diferentes aspectos e sentidos: a procriação, ligada a uma capacidade física e biológica; a maternagem, que diz respeito às funções e ao exercício do cuidado (Gradvohl et al., 2014; O'Reilly, 2007); e, ainda, os significados e representações socialmente construídos em torno dessas duas dimensões. Portanto, a maternidade não se reduz a uma habilidade natural e biológica, mas é também uma construção histórica, social e cultural, mediada por relações de poder (Mattar & Diniz, 2012; Zanello, 2018).

Como destacado por Badinter (1985), a partir do século XVIII o ideal de maternidade passou por importantes transformações nas culturas ocidentais. A noção de "instinto materno" foi naturalizada e houve um borramento ideológico entre procriação e maternagem (Zanello, 2018), o que caracterizou o cuidado como uma função eminentemente feminina. A ideia de que as mulheres deveriam ser totalmente devotadas aos filhos e ao lar, renunciando a outras aspirações e lugares sociais, ganhou cada vez mais pujança e respaldo, inclusive científico. Assim, configurou-se um ideal materno em que as mulheres são interpeladas para o exercício do sacrifício, autoabnegação, amor incondicional e total disponibilidade aos filhos. Paralelamente, ocorreu uma exaltação do "amor materno" e um enaltecimento da maternidade, que, por isso, também se configurou como um espaço de reconhecimento social e de valorização das mulheres enquanto mães (Zanello, 2018).

Segundo Zanello (2018), em torno dessas construções históricas e socioculturais de maternidade configurou-se um importante dispositivo de subjetivação para as mulheres - o "dispositivo materno" -, que as interpela no sentido de determinadas performances e processos identitários e constrói afetos e emoções. O dispositivo materno tem como um de seus principais fundamentos a associação entre procriação e cuidado supracitada, que, ao atrelar a capacidade de cuidado à posse de um útero, promove a naturalização das tarefas do cuidar (não apenas dos filhos, mas da casa, de idosos, de enfermos) como responsabilidade exclusivamente feminina. Subjetivadas por esse dispositivo, as mulheres são interpeladas a existir no "heterocentramento": tendo filhos ou não, elas são ensinadas a cuidar, estar disponíveis e priorizar o outro.

No Brasil, dada sua formação histórico-cultural, é necessário observar a construção da maternidade a partir dos processos de colonização e escravização, que imprimiram suas marcas em diferentes dimensões da sociedade e da cultura brasileiras (Gonzalez, 2020). Nesse sentido, quando trazidas para o Brasil colônia, as concepções de maternidade acima discutidas tomaram novos contornos a partir de seu encontro com culturas indígenas e africanas (Zanello, 2018). Além disso, os modos de experienciar e significar a maternidade também foram configurados dentro das dinâmicas de poder entre dominadores e dominados, senhores e escravos, mulheres brancas e mulheres negras.

Como mostram El Kareh (2004) e Telles (2018), no contexto brasileiro do século XIX, as mulheres negras escravizadas eram sistematicamente separadas de seus filhos. Isso se dava tanto para o aluguel das mães como amas-de-leite, quanto para a comercialização das crianças escravizadas, mercadoria lucrativa sobretudo após a abolição do tráfico africano, em 1850 (El Kareh, 2004; Telles, 2018). Observa-se, assim, que a maternidade e as relações entre procriação e maternagem foram configuradas pela gramática do racismo e da desumanização. Para as mulheres negras, a procriação era incentivada, dado o interesse senhorial em aumentar seu patrimônio de escravizados. Contudo, lhes era interditada a maternagem de seus próprios filhos, que eram apartados, como "bezerros separados de vacas" (Davis, 2016, p. 19). Já as mulheres brancas, que tinham seu lugar social reduzido ao de esposa e mãe devota, eram encorajadas a procriar e tinham sua maternidade glorificada; porém, a maternagem de seus filhos era exercida principalmente por mulheres negras (Gonzalez, 2020).

As separações e violações da maternagem não foram vivenciadas de modo passivo pelas mulheres negras, que criaram formas de resistência e enfrentamento. Diante das condições nefastas e da constante ameaça de desagregação vivenciadas pelas famílias escravizadas, elas constituíram redes de solidariedade e criação compartilhada das crianças, que envolviam relações de comadres e compadres, parentes de nação, e até novos parentescos forjados nos trajetos do tráfico de pessoas (Dos Reis, 2018; Telles, 2018). Além disso, a influência de culturas africanas - cuja concepção de maternidade não corresponde à noção de família nuclear do modelo eurocêntrico (Collins, 2019; Sarmento, 2020) - também contribuiu para a configuração de redes de maternidade cooperativa, em que o cuidado e a maternagem eram concebidos como responsabilidade coletiva e compartilhada.

Como apontado por Collins (2019) com relação aos Estados Unidos, grande parte dessa herança africana foi retida e retrabalhada nas concepções e experiências de maternidade também no contexto brasileiro. O cuidado compartilhado das crianças, arranjos temporários, adoções informais e redes de maternagem cooperativa - que transcendem os vínculos biológicos e incluem avós, tias, vizinhas ou parentes de consideração (Collins, 2019) - se espraiaram no Brasil e se imiscuíram na própria cultura brasileira, não se restringindo às comunidades negras. Essa forma de cuidado é mobilizada como adaptação e resistência por muitas mulheres (negras, brancas e indígenas) que tiveram e têm de maternar em situações de pobreza e em condições adversas, opressoras e violentas.

Observar essa construção histórica mostra-se essencial para a análise aqui proposta, uma vez que as mulheres em situação de rua são majoritariamente negras (mais de 63%) (MDS, 2009) e vivem em extrema pobreza. A maternidade dessas mulheres não pode ser adequadamente examinada a partir de perspectivas dominantes sobre a maternidade de mulheres brancas de classes favorecidas. Como destacado por Collins (2019), a maternidade é enquadrada por estruturas entrelaçadas de raça, classe e gênero, e as diferentes experiências de maternagem são profundamente moldadas pela dominação racial e pela exploração econômica. Nessa perspectiva, cumpre destacar que existem "hierarquias reprodutivas" que determinam que algumas maternidades são legítimas, aceitas e prestigiadas, enquanto outras são estigmatizadas, negligenciadas ou impedidas (Mattar & Diniz, 2012).

Considerando as discussões e reflexões apresentadas, este artigo tem o objetivo de analisar os sentidos e experiências de maternidade de mulheres em situação de rua em uma capital brasileira1, enfocando suas configurações subjetivas e seus efeitos sobre a saúde mental.

 

Método

O presente estudo é oriundo de uma investigação de escopo mais amplo, que consistiu em examinar a vida e as experiências subjetivas de mulheres em situação de rua, a partir da perspectiva dos estudos de gênero e saúde mental, em suas interseccionalidades com classe e raça. Essa pesquisa foi orientada pela metodologia clínico-qualitativa proposta por Turato (2018), que articula teorias epistemológicas de pesquisas sociais a métodos clínicos, referidos aos contextos das vivências em saúde. Segundo o autor, por meio do método clínico-qualitativo, ao mesmo tempo em que se oferece acolhimento e escuta a sofrimentos subjetivos, busca-se compreender e interpretar diferentes fenômenos a partir de perspectivas psicológicas e psicossociais.

Foi realizada uma pesquisa de campo que se aproximou da abordagem etnográfica, na qual intencionamos estabelecer uma convivência contínua e prolongada com mulheres em situação de rua, em seu próprio território existencial, construindo vínculos de confiança e colaboração (Souza, 2015). Buscamos, com essa aproximação, a obtenção de um material denso e nuançado e, a um só tempo, a conformação de uma postura ética de cuidado e respeito com vidas que foram submetidas a variadas e contínuas situações de perda, violência e discriminação (MacRae, 2004; Souza, 2015; Williams & Drew, 2020).

A pesquisa ocorreu na região central de uma capital brasileira, onde há uma concentração de pessoas em situação de rua. No período compreendido entre março de 2019 e maio de 2020, uma das pesquisadoras frequentou esse lugar de duas a três vezes por semana, passando cerca de três horas em campo, durante as quais caminhava pelo território, realizava observações, interagia em diferentes situações cotidianas e conversava com as pessoas que ali construíram seu espaço de moradia e sociabilidade. Buscamos acompanhar e apreender as histórias de vida das mulheres, seu cotidiano, suas relações, suas experiências subjetivas e os significados que elas constroem e compartilham (MacRae, 2004; Souza, 2015). Após cada incursão, as vivências, interações e reflexões suscitadas em campo foram registradas em áudios, cuja degravação compõe o caderno de campo da pesquisa. Totalizou-se 78 idas a campo, com cerca de 270 horas de pesquisa2.

Durante esse processo, foi identificado acentuado sofrimento psíquico e demandas de cuidado em saúde mental entre as mulheres. Assim, a pesquisa de campo também abrangeu a oferta de escuta qualificada, acolhimento e intervenção psicológica, de acordo com a indissociabilidade entre investigação e intervenção social (Thiollent, 2011) e com o método clínico-qualitativo (Turato, 2018).

Depois de estabelecida uma relação de confiança com algumas mulheres, cerca de seis meses após o início da pesquisa de campo, passamos à realização das entrevistas, de forma a enriquecer e aprofundar as informações e percepções oriundas das incursões e imersões em campo. Para a escolha das mulheres que seriam entrevistadas, utilizamos os seguintes critérios: (a) a mulher em situação de rua já deveria ter alguma proximidade e um vínculo estabelecido com a pesquisadora; e (b) a mulher deveria apresentar interesse e disponibilidade para participar da entrevista. Seguindo esses critérios de escolha, conseguimos entrevistar nove mulheres em situação de rua, até o momento em que teve início a pandemia de Covid-19 no Brasil, em 2020, impondo o distanciamento social e a impossibilidade de contatos próximos na pesquisa de campo. Dessa forma, foram realizadas nove entrevistas aprofundadas com roteiro semiestruturado (duração média de uma hora e meia). Buscamos proporcionar um espaço em que as mulheres falassem livremente sobre suas experiências de vida; sobre os sentidos e percepções acerca de suas histórias; sobre suas relações e laços sociais; e sobre a condição de viver nas ruas. Antes das entrevistas, fizemos explanações sobre a pesquisa, esclarecemos possíveis dúvidas, lemos conjuntamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e todas as mulheres registraram seu consentimento mediante assinatura do TCLE ou sob a forma sonora, na gravação da entrevista. Das nove entrevistas, oito foram gravadas (após concordância das mulheres), e uma foi registrada por escrito, pois a entrevistada disse ficar constrangida diante do gravador. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília (CAAE: 13547419.7.0000.5540, parecer nº 3.423.417). Os nomes utilizados são fictícios e dados que facilitassem a identificação das mulheres foram omitidos.

A análise dos dados foi focada nas vidas das nove mulheres entrevistadas. O corpus de dados - as entrevistas e o caderno de campo degravados - foi tratado por meio da análise de conteúdo (Bardin, 2016), conforme proposto por Turato (2018), que a particularizou e refinou de acordo com as características do método clínico-qualitativo. Ou seja, para trabalhar os dados em "estado bruto" provenientes da pesquisa de campo, das entrevistas e das intervenções psicossociais ofertadas, buscamos codificar, identificar e ordenar os elementos e temas recorrentes e relevantes para os objetivos e problemas de pesquisa, seguindo as etapas de análise indicadas por Turato (2018).

Na primeira etapa, foi realizada uma imersão aprofundada nos dados, na qual as duas pesquisadoras leram separadamente as nove entrevistas e, depois, cotejaram as reflexões e impressões construídas individualmente. A segunda etapa da análise consistiu na codificação temática do corpus de dados, de acordo com os "núcleos de sentido" ou unidades temáticas que se destacaram (Bardin, 2016; Turato, 2018). Na terceira etapa, foi feita a categorização dos dados, seguindo os critérios de relevância (que não é quantitativa, mas qualitativa) e de reincidência dos tópicos temáticos emergentes (Turato, 2018). A categorização foi orientada pelo aglutinamento dos dados a partir de seus aspectos comuns e de sua coesão; pelas distinções entre os grupos de temas; e pelo enquadre teórico mobilizado (Bardin, 2016; Turato, 2018), a saber, os estudos de gênero e saúde mental.

Esse processo engendrou a construção de quatro categorias de análise: (1) Violências e vidas precarizadas; (2) Maternidade; (3) Intensidade das relações afetivas; e (4) Sobrevivência, resistência e fruição. Diante do grande volume e complexidade dos dados obtidos, cada categoria é abordada em artigo independente. O presente artigo se atém à análise e elaboração da segunda categoria, "Maternidade". A categoria "Violências e vidas precarizadas" foi desenvolvida em artigo anterior (Richwin & Zanello, no prelo) e as outras duas serão apresentadas em trabalhos futuros.

 

Resultados e discussões

As nove mulheres entrevistadas eram mães. Questões relacionadas à maternidade e ao maternar apareceram com centralidade e relevância em seus relatos. Os resultados e discussões serão apresentados a partir dos três eixos analíticos que se mostraram mais evidentes e significativos na análise dos dados: (1) Tornar-se mulher-mãe: maternidade como divisor de águas e transformação das vivências e perspectivas futuras; (2) Maternidades violadas e interditadas; e (3) Outras configurações de maternagem: redes de cuidado compartilhado como forma de resistência e reparação narcísica.

1. Tornar-se mulher-mãe: maternidade como divisor de águas e transformação das vivências e perspectivas futuras

Tarsila (38 anos, negra) passou a viver nas ruas depois que seu ex-companheiro tentou matá-la. Ela contou que tinha três filhas e que o nascimento da primeira foi a experiência mais marcante e importante de sua vida: "Foi quando eu tive a Maria." Cora (32 anos, negra) vivia nas ruas desde a infância e teve seis filhos: "Três meninas e três meninos, são as bênçãos pra mim." Elis (58 anos, parda) vivia em situação de rua há mais de 20 anos, desde que sua filha mais velha foi vítima de feminicídio. Ela contou que teve quatro filhos e ressaltou a satisfação que o papel de mãe lhe trazia: "Ah é uma felicidade imensa! Eu gosto de ser mãe!" Bethânia (35 anos, branca) tinha um único filho, que aparecia em suas falas como um importante pilar de sua vida: "Ele é toda minha vida, meu filho!!! Amo tanto ele! Tudo que eu tenho na minha vida, lindo, maravilhoso!"

Como exemplificam as falas acima, a maternidade foi uma experiência muito significativa para a maioria das mulheres que participaram da pesquisa. No presente eixo, serão sublinhados os efeitos psicodinâmicos ocorridos com a transformação das mulheres em mães, que dispara processos subjetivos relacionados ao dispositivo materno, promovendo desdobramentos psíquicos.

Os dados evidenciaram que a maternidade provocou reconfigurações nas formas de experienciar a vida e a temporalidade. Muitas mulheres manifestaram profundas mudanças na vivência do tempo presente, como expressado de forma explícita por Bethânia: "Mudou muito, mudou muito depois que ele veio. Modificou muito, meu filho! Pro bem!" Cora disse que agradecia "meus filhos por ter aberto a minha mente", mostrando como o tornar-se mãe promoveu uma reorganização subjetiva e possibilitou a reconfiguração de alguns cursos e destinos em sua vida: "É uma experiência que eu adorei. Agrupou com a minha mente, deu uma fluida, me tirou dos crimes, do mundo do roubo, do tráfico, porque eu tava impossível. Sossegou. Quando eu não tinha filho eu era impossível, Ave Maria! Aprontava o escambau!" Consuelo (41 anos, branca) falou do alívio que sentiu ao conseguir deixar de se prostituir, o que ela atribuiu ao nascimento de uma de suas filhas: "Acho que essa menina veio pra me ajudar, não sei. Foi benção de Deus. Depois da Malena dei um basta. Hoje, graças a Deus, tem 11 anos que eu não me prostituo."

Além das transformações no presente, as mulheres relataram que a maternidade também operou transformações prospectivas, como uma experiência que reinstaura e redireciona os sonhos, desejos, metas e investimentos subjetivos voltados para o futuro. Tina (34 anos, negra) contou que o que mais lhe dava motivação eram seus três filhos: "Só pensar nos meus filhos quando eu quero saber deles, penso neles e corro atrás dessas coisas. Eu quero construir tudo para poder viver com os meus filhos. É meu sonho! Já pego arrumo um lugar desse para morar, tenho meus filhos do lado. É o meu sonho." Bethânia disse que sua meta era conseguir "um emprego. Emprego, dinheiro, pra cuidar do meu filho e da minha mãe, ir todo dia pra casa, parar de dormir na rua." Consuelo falou do medo de perder a guarda de suas filhas e de como isso a mobilizava a se reorganizar: "Eu não quero perder. Porque eu tenho que sair disso aqui. Eu tenho que me estabilizar. Pra poder pegar elas de volta. Eu tenho que me erguer, fortalecer. Eu tenho certeza que eu vou conseguir." Tarsila sempre afirmava sua necessidade de conseguir um trabalho e uma casa para voltar a viver com as filhas: "Quem me dá vontade de firmar num lugar são minhas filhas!"

Observa-se, assim, que o tornar-se mulher-mãe foi relatado pela maioria das mulheres como um divisor de águas em suas vidas, que promoveu uma cisão temporal, ressignificando o presente e conferindo uma atitude de relançamento às perspectivas futuras. Com Minkowski (2013), poderíamos afirmar que a transformação das mulheres em mães reinstaurou um "ímpeto pessoal vital", que orienta a vida em direção ao futuro, recriando e alargando as possibilidades do porvir.

Além disso, os dados também revelaram que, para muitas mulheres, os filhos se tornaram fonte de satisfação narcísica, experimentada a partir das realizações e êxitos alcançados por seus filhos e filhas, apreendidos como uma espécie de prolongamento de si mesmas (Freud, 1914/2010). Bethânia, por exemplo, expressava constantemente o orgulho de seu filho: "lindo, maravilhoso! Todo mundo fala que meu filho é lindo, véi. O bicho é gato, véi! Ele é muito gato, só tu vendo mesmo!" Consuelo e Rita (30 anos, negra) também manifestavam a satisfação que tinham com suas filhas e filhos: "Aí, depois disso, tive a Tati, eu tinha 20 anos, linda demais! Linda, linda, linda!" (Consuelo); "Estudam. Ele viaja também, o Pedrinho, pra jogar bola! A minha filha ela já parece a vó dela, linda, se tu vê ela você vai amar, ela é muito educada, véi!! Eu queria que você conhecesse eles também!" (Rita). Embora elas vivessem nas ruas, em situação de extrema precariedade e destituídas das insígnias sociais de uma vida considerada exitosa dentro dos padrões hegemônicos, seus filhos e filhas não estavam sujeitos às mesmas privações e puderam ocupar lugares sociais, realizar feitos e concretizar sonhos que lhes foram inacessíveis.

Identificamos que essas transformações vivenciadas pelas mulheres a partir do momento em que se tornam mães têm relação direta com os processos subjetivos engendrados pelo dispositivo materno. Como apresentado na introdução, a mesma construção histórica e cultural que configurou a instigação das mulheres ao cuidado e ao heterocentramento também produziu uma magnificação do ser mãe (Zanello, 2018; Badinter, 1985). Assim, a maternidade, construída culturalmente como essência e principal atributo de uma mulher, passou a constituir uma posição que confere valorização e reconhecimento (embora não subverta as estruturações de poder e opressão) (Zanello, 2018).

Nesse sentido, em nosso contexto cultural binário em que o tornar-se pessoa significa tornar-se homem ou mulher (Zanello, 2018), o tornar-se mãe - o próprio cerne do que é concebido como ser mulher - promove uma afirmação identitária. Portanto, observa-se que a experiência de gestar, parir e colocar um ser no mundo transforma o status das mulheres em situação de rua e possibilita um processo de reparação narcísica e um resgate identitário decorrentes da adequação às prescrições e expectativas hegemônicas relacionadas ao que é ser mulher. Ou seja, a experiência de tornar-se mãe, numa sociedade que enaltece a maternidade como principal função e essência das mulheres, pode promover um processo de autointerpretação (Brinkmann, 2008) que constrói sentidos de autorrealização por meio da adequação às expectativas sociais gendradas, de autovalorização e de satisfação consigo mesmas e com o lugar social ocupado, impactando positivamente seu amor-próprio.

É importante pensar esse processo de maneira interseccional com as questões de classe e raça e com a própria condição da vida nas ruas. As trajetórias dessas mulheres foram marcadas por uma série de violências estruturais, tais como pobreza, desproteção da infância, trabalho infantil e baixa escolaridade; exploração sexual e prostituição; trabalhos precários e dificuldades de geração de renda (Richwin & Zanello, no prelo). Diante da estigmatização, da negação de advires e da estreiteza de possibilidades identificatórias engendradas por essas violências e precarizações, a maternidade resta como um dos poucos espaços de realização e autovalorização, que incide na própria autoestima e na questão identitária do que é ser mulher, reorganiza subjetivamente, cria futuros e reinstaura sonhos, desejos e projetos. Contudo, como será discutido na próxima seção, isso também tem sido ameaçado para as mulheres em situação de rua, que, majoritariamente, têm seu direito à maternidade violado pelo poder público, que entende que mulheres que moram nas ruas não podem ou não conseguem maternar.

Antes disso, cumpre apontar que essa configuração específica da maternidade no contexto da situação de rua, embora tenha o potencial de promover reorganizações subjetivas e resgates identitários, não desconstrói totalmente os altos custos e vulnerabilizações promovidos pela construção patriarcal da maternidade e pelo dispositivo materno (Zanello, 2018; Collins, 2019). Na mesma perspectiva, não se trata de romantizar a maternidade como uma situação idílica e de salvação, mas de mostrar que, quando enquadrada pelo entrelaçamento de classe, raça e gênero próprio da situação de rua, a maternidade não pode ser reduzida a um lócus de opressão, podendo funcionar, também, como espaço humanizador (hooks, 2007), que promove autovalorização e fortalecimento identitário (Collins, 2019).

2. Maternidades violadas e interditadas

Desde que passou a viver nas ruas, Tarsila não conseguiu estar próxima de nenhuma de suas filhas. A caçula, de 11 anos, encontrava-se institucionalizada em uma unidade de acolhimento; a do meio, de 13, vivia com o pai; e a mais velha, de 16 anos, havia fugido recentemente do "abrigo". Tarsila relatou que a unidade de acolhimento em que estavam suas filhas proibia que ela fosse visitá-las, violando um princípio central desse programa: a preservação dos vínculos e a promoção da reintegração familiar, conforme o art. 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990). Esse distanciamento de suas filhas - "que vêm da minha carne, do meu sangue" - lhe causava grande sofrimento. Se o principal fator precipitador para sua ida para as ruas foi a violência do ex-companheiro, ela disse que foi essa dor acentuada que contribuiu para a permanência e perpetuação dessa condição: "depressão porque a porta do abrigo fechou pra mim".

Consuelo disse ser mãe de seis filhos. Ela contou que precisou "entregar" para adoção o segundo, pois foi expulsa da casa de sua mãe e não tinha condições de criá-lo: "Eu nunca esqueci meu filho. Você entregar seu filhinho com 11 dias de nascido" Embora não tenha conseguido cuidar dessa criança, Consuelo enfatizou que sua vida foi dedicada à criação das demais: "Enfrentei a vida criando esses filhos, sem ajuda de família, com a ajuda do trabalho. Eu fui pai e mãe. Mãe de levantar cedo, café da manhã, hora de escola, hora de creche, fazendo tudo pra filho, sabe?"

Maíra, a terceira filha de Consuelo, envolveu-se em práticas criminosas e foi presa aos 19 anos. Consuelo sentia-se responsável por compensar ou reparar possíveis traumas e danos causados a Maíra pelo fato de ela ter sido concebida num estupro. Sozinha no cuidado dos filhos, Consuelo disse que a dedicação a Maíra no período em que ela esteve presa implicou menos tempo e disponibilidade para dedicar-se aos outros filhos: "Eu falei pra Maíra 'Maíra, eu deixei de correr atrás [dos outros] pra ver você. Porque você já veio de um fato'. Minha filha foi através de um abuso sexual, né? E eu pensava muito nela. Aí eu falei, deixa eu cuidar da Maíra primeiro, pra depois correr atrás." Nesse momento de dificuldades - além da filha presa, seu companheiro tinha sido assassinado - Consuelo perdeu a guarda de suas duas filhas mais novas: "Tomaram elas de mim."

Ao mesmo tempo em que ressaltou que seus filhos foram "bênçãos", Cora não deixou de apontar as dificuldades e sofrimentos enfrentados: "Também sofri com eles cabuloso. Principalmente com o Gil, que já ficou nas ruas comigo até os dois anos." Ela disse que o pai de Gil piorou muito as já precárias condições para cuidar de uma criança nas ruas. Além de se desresponsabilizar pelo cuidado com o filho, ele dependia inteiramente de Cora - "Virou um gigolô" -, roubava seu dinheiro e "até tirar as coisas do meu filho pra vender e usar droga ele já tirou vendeu o pacote de fralda".

Em um momento de esgotamento - "cansada de acordar por causa do Gil, ele acordava de madrugada pra mamar e essas coisas, aí era aquele sono mesmo!" -, Cora pediu que o pai cuidasse do menino para ela "tirar um cochilinho". Enquanto Cora dormia, Gil, que já começava a andar, "atravessou aquela pista ali e foi lá pro lado da rodoviária. E o pai dele na casa do caralho usando droga. Aí acordei com uma mulher me chamando: 'Moça, moça, seu filho tá na Assistência Social'." Cora contou que precisou acompanhar a equipe do serviço social: "Aí lá a juíza pegou e falou: 'Olha, vocês não vão poder ficar com seu filho, que vocês tão ainda na rua [] ele vai ficar numa creche'. [] Aí, meu Deus, pra largar o menino naquela creche, isso foi difícil! Coração, meu irmão, uma dor!" Pouco tempo depois, Cora foi presa. Ela contou que um oficial de justiça esteve no presídio "pra poder assinar o papel, porque tavam querendo já meu filho pra adoção", o que a deixou com muita raiva: "Não vou assinar esse papelzinho aí não, senhor, pode levar esse papel que eu não vou assinar porra nenhuma, não vou botar meu filho pra adoção caralho nenhum."

Os casos descritos acima, dentre vários outros observados ao longo da pesquisa, evidenciam o desamparo, a desproteção social e a violação que caracterizam as experiências de maternidade de mulheres em situação de rua. Como apontamos anteriormente, as trajetórias dessas mulheres foram marcadas, além das violências físicas e sexuais, por violências estruturais e por variados modos de vulnerabilização. Nos momentos em que engravidaram e tiveram seus filhos, a ineficiência ou ausência de políticas públicas e programas sociais - que já vinham atravessando suas trajetórias desde a infância - revelaram uma face ainda mais perversa (Mattar & Diniz, 2012).

Os casos de Tarsila, Cora e Consuelo mostram que, além de não garantir o amparo social da maternidade por meio de programas de saúde, assistência social, geração de renda e moradia, o Estado intervém promovendo a separação dos filhos. Como não houve oferta de proteção e moradia para Tarsila quando sofreu uma violência de gênero, ela precisou buscar refúgio nas ruas, o que foi usado como justificativa para a institucionalização de suas filhas. Durante os dois anos em que Cora cuidou de um bebê nas ruas da cidade, não houve a intervenção da "assistência social" para proporcionar moradia e condições saudáveis e seguras para que ela criasse seu filho. Mas em um momento de esgotamento físico e psíquico de Cora, somado à negligência do pai, prontamente ocorreu a intervenção no sentido do afastamento e acolhimento institucional da criança.

Como destacado por estudos sobre o tema, a retirada dos filhos ocorre a partir de uma associação automática e reducionista entre "situação de rua", "uso de drogas" e "inaptidão para maternar" (Benbow et al., 2018, 2019; Glumbíková et al., 2018; Gomes & Dias, 2017; Gordon et al., 2019; Malheiro, 2018; Sarmento, 2020). Segundo Alves (2018), a "situação de vulnerabilidade social", entendida como atributo de incapacidade e irresponsabilidade e como risco para as crianças, é apresentada em discursos de profissionais e em documentos oficiais como o principal argumento para a separação compulsória.

Nessa perspectiva, cumpre ressaltar que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990) - que muitas vezes é invocado para dar legitimidade às ações de separação entre mães e filhos, no sentido da proteção e melhor interesse das crianças (Gomes & Dias, 2017; Siqueira et al., 2018) - estabelece inequivocamente que a "falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar" (art. 23). Além disso, vale lembrar que nem todas as mulheres que vivem em situação de rua fazem uso de drogas e que, mesmo para aquelas que o fazem, esse consumo não pode ser entendido a priori como incapacidade para a maternagem (MDS, 2016; Gomes & Dias, 2017).

Para compreender esse processo de desamparo social, violação e interdição que atinge a maternidade de mulheres em situação de rua, é importante salientar que ele é informado por um padrão ideal de "boa mãe", que se fundamenta em pressupostos racistas e sexistas e na criminalização da pobreza (Alves, 2018; Gomes & Dias, 2017; Malheiro, 2018; Mattar & Diniz, 2012; Sarmento, 2020). A maternidade de mulheres em situação de rua, pobres e majoritariamente negras, é diametralmente oposta a esse ideal e encontra-se no nível mais baixo da hierarquização reprodutiva. Como destacado por Mattar e Diniz (2012), essa hierarquização é determinada pela matriz de opressões interseccionais que permeiam o campo social (Akotirene, 2019). Quanto mais "acidentada" por essa matriz de opressões (Akotirene, 2019, p. 47) for a mulher, mais sua maternidade será subalternizada e desamparada (Mattar & Diniz, 2012).

Tarsila, Cora, Consuelo e a maioria das mulheres em situação de rua acumulam muitos desses "acidentes" e atributos que levam à deslegitimação e violação de sua maternidade e maternagem: encontram-se em situação de pobreza extrema e radical; são majoritariamente negras; são associadas automaticamente ao uso de drogas, mesmo que não o façam; algumas exercem trabalhos sexuais; algumas têm envolvimento criminal. Portanto, além das opressões de classe e raça, contribuem ainda para a deslegitimação de sua maternidade o fato de romperem com estereótipos e performances associados ao ideal materno: a imagem sacralizada e assexuada, a passividade e a submissão, o pudor, o devotamento e o sacrifício, a autoabnegação e dedicação ao outro (Zanello, 2018).

Destaca-se, ainda, que a separação dos filhos de mães em situação de rua apoia-se em uma construção social e cultural em que as mulheres aparecem como responsáveis exclusivas pelo cuidado e criação das crianças (Zanello, 2018). Ao fundamentar-se nesse borramento entre a capacidade de procriar e a capacidade de cuidar e focar apenas na responsabilidade individual da mulher, essas ações ignoram que a maternidade deve ser socialmente amparada e que a responsabilidade deve ser compartilhada com os homens, com a família e com a sociedade (Mattar & Diniz, 2012). Uma concepção de maternidade como trabalho social (Mattar & Diniz, 2012) possibilitaria o investimento em políticas públicas de suporte social à maternidade, por meio de programas que garantissem moradia, renda, alimentação, trabalho digno, saúde e educação, ao contrário dos processos de violação, destituições e interdições que têm sido infligidos às mulheres em situação de rua.

Em consonância com estudos anteriores (Benbow et al., 2018; Lapuente et al., 2020; Malheiro, 2018; Reppond & Bullock, 2019; Zabkiewicz et al., 2014), as falas das mulheres revelam que a separação dos filhos e a interdição da maternidade constituem um elemento devastador para sua saúde mental. Os momentos em que Tarsila falava de suas filhas e da separação imposta revelavam uma enorme ferida psíquica; ela chorava muito e falava de uma dor insuportável. Ao contrário dos estereótipos estigmatizantes amplamente difundidos, ela nunca fez uso de drogas ilícitas. Mas quando suas filhas foram levadas "pro abrigo", passou um período fazendo uso de álcool, tentando lidar com a dor da separação.

Quando contou que havia recebido a notícia de que a filha mais nova tinha sido adotada, Tarsila estava em franco desespero e buscava assegurar-se internamente de sua vinculação com a criança: "Mas esse laço ninguém vai romper, eu sou a mãe dela. Ela é muito pequena e deve estar sofrendo. O que me tranquiliza é que ela está em boas condições []. Mas eu sou a mãe dela." Além dos sentimentos de autoculpabilização, ela também era acusada pela filha mais velha: "O pior é que a mais velha tá me culpando por eu não ter tido condições de tirar ela [a mais nova] do abrigo."

Durante o período em que acompanhamos Tarsila (cerca de um ano), em três ocasiões diferentes ela nos disse que achava que estava grávida, mesmo que isso fosse muito improvável, seja porque estava menstruando normalmente, seja porque não havia mantido relações sexuais nos meses anteriores. Tratava-se, talvez, de uma tentativa de reparação psíquica, pela via da fantasia, da separação de suas filhas e de suas experiências de maternidade violadas.

Chorando, Consuelo falou dos sentimentos de tristeza e impotência relacionados à separação de seus filhos: "Você vê assim tudo que você dedicou a seus filhos, a escola, a tudo e hoje você vê assim seus filhos desmoronando, sabe?" Ela expressou a solidão, a falta de suporte e a dor que vivenciou nesse processo, experimentado como uma espécie de mutilação: "Quando meus filhos precisou de mim eu tava ali pra apoiar. Mas olha, eu preciso de ajuda. [] pra mim, eu perdi meu pedaço, meus filhos. Porque eu nunca deixei meus filhos por ninguém."

Diante dessa situação de desamparo e sofrimento, Consuelo, que já havia vivido nas ruas na infância, voltou a essa condição: "Eu, tipo assim, me isolei. Eu falei assim, quer saber de uma coisa? ah! eu vou ficar na rua." Entre muitas dificuldades que a vida nas ruas lhe impunha, ela disse que a "falta dos filhos" era o que mais lhe machucava, destruía sua saúde mental e minava sua autoestima: "Não tenho mais eu sinto assim minha autoestima muito lá embaixo, sabe? Não tenho mais vontade de me arrumar, devido a isso ter acontecido com os meus filhos, né?"

Cora disse ter ficado "desesperada" quando seu filho foi retirado: "Chorei, chorei 'Pelo amor de Deus, não tira meu filho, não!'." Assim como Consuelo, usou a figura da mutilação e do desmoronamento para falar de como se sentiu nesse momento: "Ah, o mundo caindo nas minhas pernas, arrancando minha cabeça assim. Um pedaço de mim cabuloso."

É importante destacar que as mulheres não vivenciaram esses processos de forma completamente rendida. Como será discutido no próximo eixo, diante da desproteção social de sua maternidade e das contínuas ameaças de separação dos seus filhos, elas mobilizaram modos de resistência e recriaram possibilidades de exercer a maternagem.

3. Outras configurações de maternagem: redes de cuidado compartilhado como forma de resistência e reparação narcísica

A análise dos dados evidenciou que muitas mulheres recorreram a familiares e pessoas próximas para garantir o cuidado e criação de seus filhos. Isabel (36 anos, parda) teve sua primeira filha aos 14 anos: "A avó dela abraçou. Eu sou grata por [ela] cuidar da minha filha, um pedaço de mim, né." Seu segundo filho nasceu quando ela tinha 18 anos e também foi criado pela família estendida do pai, pois Isabel foi presa pouco depois. Bethânia engravidou após ter sido estuprada por dois homens diferentes. Seu filho, que já estava com 14 anos, morou com a avó materna desde que nasceu. Tina contou que morou um tempo com os filhos na rua, mas quando eles chegaram à idade escolar, ela decidiu deixá-los com as avós paternas. Os três filhos de Rita também foram criados por avós e tias paternas. Dos seis filhos de Cora, três foram criados pelas famílias paternas, a mais velha cresceu com sua madrinha, e os dois caçulas, cada um com uma tia diferente.

Essas configurações evidenciam que, se as mulheres buscavam evitar a separação e a perda do poder familiar, elas tampouco queriam que os filhos fossem criados no ambiente hostil e desprotegido das ruas, como mostram as seguintes falas: "Eu não iria ficar com eles toda vida no meio da rua, né, tinha que colocar na escola" (Tina). "Eu falei: 'ô tia, pega ela, pelo amor de Deus! Olha ela pra mim que eu não quero levar ela pra rua, ela dormiu um dia comigo na rua e já começou a ter pneumonia, um dia só, recém-nascida'." (Cora) "Não quero que minha filha cresça [na rua], vai que um cara desse, né, faz maldade, então eu prefiro deixar [com a avó]." (Rita)

Diante das múltiplas vulnerabilizações e violências que marcaram suas trajetórias de vida, elas buscaram articular, principalmente com avós e tias, redes de cuidado e amparo que possibilitassem, a um só tempo, a criação de seus filhos em lugares saudáveis, dignos e protegidos e a manutenção dos vínculos e laços de afeto com eles. Identificamos na pesquisa duas situações excepcionais, com um dos filhos de Rita e com a filha caçula de Cora, em que a tia e a avó dificultavam o contato e convivência entre as mães e as crianças. Contudo, de modo geral, os dados evidenciaram que esses arranjos alternativos de maternagem, fundamentados num paradigma de cuidado e responsabilidade mais cooperativo e menos centrado na mãe biológica (mas que recai sobre outras mulheres, evidenciando o cuidado ainda concebido como função feminina), constituíram um recurso fundamental para a resistência à interdição da maternidade enfrentada pelas mulheres em situação de rua, evitando que elas fossem separadas radicalmente de seus filhos. A fala de Cora sobre como conseguiu tirar Gil da unidade de acolhimento para que fosse cuidado por sua tia é elucidativa nesse sentido: "Perdi [o filho], mas resgatei com a minha tia."

Identifica-se, assim, que as mulheres em situação de rua mobilizaram formas de resistência e "adaptações funcionais" (Collins, 2019) similares àquelas que, como descrito na introdução, tiveram influência das culturas africanas e indígenas e se espraiaram em diversos contextos brasileiros, em que as mulheres exercem a maternagem em condições de precariedade e adversidade. Destaca-se que esses arranjos alternativos operam como estratégia para enfrentar as opressões de raça, classe e gênero e como forma de resistir aos desamparos, violações e interdições que recaem sobre a maternidade de mulheres em situação de rua. Por meio das redes de cuidado compartilhado, as mulheres de nossa pesquisa, em sua maioria, conseguiram preservar algumas formas de exercício da maternagem e resistiram à total desqualificação e estigmatização do seu lugar social e subjetivo de mães.

Ainda que não convivessem cotidianamente, os dados mostram que as mulheres que tiveram seus filhos cuidados pela família estendida cultivaram laços de afeto e compromisso e participaram, em maior ou menor medida, dos cuidados com as crianças. Bethânia relatou que, mesmo morando nas ruas, ela assumiu a responsabilidade e buscava compartilhar com sua mãe o cuidado: "Meu filho era pequenininho, e eu deixava leite de peito. Minha mãe esquentava no banho-maria para dar pra ele." Bethânia contou que, depois de desmamar, envolveu-se no tráfico de drogas para garantir as necessidades básicas da criança: "Eu via meu filho pedindo leite sem eu poder fazer nada. Aí eu falei 'Ah, vou vender é droga!'" Ela disse que nunca deixou de frequentar a casa de sua mãe para levar dinheiro; participar da educação - "Eu falei: 'quero só que tu estude, fio. Tu acha que um amigo teu vai te oferecer [drogas], é teu amigo? Não é teu amigo não!'" - e vivenciar o cotidiano com seu filho - "Eu dobrei as roupas dele tudo aí falei: 'Ó! Quando for tirar as roupas tu tem que aprender, mano!'", "Quando a gente tá junto, ele ri, ele brinca", "Eu faço um sanduíche doido pra ele lá."

Tina, Rita e Cora disseram que interagiam com seus filhos frequentemente (com exceção daqueles de quem a tia e a avó dificultavam a aproximação): "Ela me cobra muito, a minha filha, 'mãe, que dia que a senhora vai vir aqui, passear comigo? Quero te apresentar meu namorado'." (Rita) "A Laís, eu vi ela domingo passado na rodoviária. Já me deu abraço, me beijou." (Cora) "Direto vou lá, vejo, levo alguma coisinha, algum presentinho pra eles. Brinco com eles que nem criança!" (Tina)

Ademais, os dados evidenciam que, mesmo que o cuidado não estivesse centrado nelas, as mulheres não se sentiam destituídas e, principalmente, não renunciavam ao papel de mães. Rita narrou que a tia que cuidava de um de seus filhos pedia que ela lhe passasse a guarda da criança: "'Rita, a gente tem que combinar pra tu me passar a guarda dele, que, caso eu se for, as coisas vão ficar pra ele'. Aí eu digo: 'não, minha filha, não é assim não. Ele vai crescer e vai saber se virar, mas a guarda não, a guarda não'." Ou, nas palavras de Cora: "Eu já ponho no sono que o que eu fiz pelos meus filhos nenhum pai fez. O meu papel eu já terminei, consegui criar só pedi ajuda da minha família porque porra!" Cora percebeu que "atribuir a uma única pessoa a plena responsabilidade pela maternagem nem sempre é uma opção sensata ou mesmo viável" (Collins, 2019, p. 298), o que lhe possibilitou reconhecer e valorizar sua própria experiência como mãe.

Nesse sentido, observa-se que não só o tornar-se mãe promove transformações subjetivas e existenciais (conforme discutido no primeiro eixo analítico), mas também o próprio maternar. De um lado, tem-se a afirmação identitária, a reinstauração do desejo e o relançamento ao futuro decorrentes da transformação das mulheres em mães numa cultura em que a maternidade é apontada como o principal traço de feminilidade. De outro lado, como mostram os dados analisados no presente eixo, há as implicações subjetivas operadas pelo exercício do cuidado e da maternagem, no âmbito dessa representação e lugar social da maternidade.

Embora o maternar seja ameaçado pelo Estado nos frequentes sequestros e interdições que ele opera, há resistência e recriação das formas de exercê-lo. Por meio de redes cooperativas e de um rearranjo da distribuição de cuidados, as mulheres se sentiam capazes de cuidar, o que, enquadrado pelas prescrições do dispositivo materno, promove sentidos de autorrealização, valorização e satisfação consigo mesmas. A análise dos dados revelou, ainda, que os cuidados não se restringiam apenas aos filhos, mas também podiam ser exercidos com outras pessoas em situação de rua. Elis, por exemplo, disse que era conhecida como a "mãezona da rua": "Me sinto muito feliz, todo mundo me chama de tia, mãe!" Bethânia disse que cuidava "daquelas pestezinhas ali [um grupo de crianças e adolescentes]. Às vezes eu pego um fiado ali, uma marmita Aí dou pra elas." Destaca-se, portanto, que a fruição do dispositivo materno por meio do cuidado partilhado de seus próprios filhos ou por meio do cuidado com outras pessoas em situação de rua também pode ter um efeito de reparação narcísica para as mulheres, constituindo um fator de proteção para sua saúde mental.

 

Considerações finais

A partir de pesquisa de campo de cunho etnográfico e da realização de nove entrevistas aprofundadas, identificamos nas narrativas de mulheres em situação de rua a centralidade e relevância da maternidade e da maternagem em suas vidas e experiências subjetivas. Três dimensões principais apareceram de forma mais saliente e significativa, constituindo os eixos analíticos deste estudo.

O primeiro eixo mostrou que o tornar-se mãe constitui-se como um divisor de águas, que promoveu satisfação narcísica, transformações existenciais e ressignificações da temporalidade. Em um contexto cultural em que "ser mulher" é diretamente relacionado a "ser mãe", a maternidade pode promover efeitos de afirmação e resgate identitários, sobretudo em situações de violências estruturais e precarizações múltiplas, nas quais ela resta como um dos poucos espaços de realização e autovalorização. Sucintamente, identificou-se que a maternidade de mulheres em situação de rua pode constituir-se como um lócus de organização subjetiva; relançamento ao futuro; reinstauração de uma dimensão desejante e prospectiva; e alargamento das possibilidades do porvir.

Contudo, a maioria das mulheres em situação de rua tem essas possibilidades ameaçadas, uma vez que seu direito ao exercício da maternagem também está sob constante ameaça. Corroborando outros estudos, o segundo eixo analítico evidenciou que a maternidade de mulheres em situação de rua é alvo de desamparo, violações e interdições. O Estado não logra assegurar a proteção social da maternidade de mulheres em situação de rua e, além disso, intervém frequentemente promovendo a separação compulsória de seus filhos. Destacou-se que esse processo de violação é informado por um ideal materno que se fundamenta em pressupostos racistas e sexistas e na criminalização da pobreza. Os acúmulos de violências estruturais e as situações de extrema precariedade que marcam as vidas de mulheres em situação de rua, interpretados como atributos de inaptidão para a maternagem e de risco para as crianças, são utilizados como justificativa para a separação e retirada de seus filhos.

As falas e narrativas das mulheres revelaram que esse processo de violação e interdição da maternidade promove intenso sofrimento psíquico e pode ter efeitos devastadores sobre sua saúde mental. Foram identificados sentimentos de tristeza, revolta, desmoronamento e mutilação; culpabilização e baixa autoestima; dor psíquica acentuada e desespero; uso de álcool, isolamento e retorno à condição de viver nas ruas.

Por outro lado, o terceiro eixo mostrou que as mulheres não vivenciam esses processos de violação de forma passiva, mas desenvolvem estratégias de resistência e recriações das possibilidades de maternar. Para evitar a separação operada pelo Estado e para proteger seus filhos das condições precárias e violentas das ruas, elas recorreram frequentemente a avós, tias e familiares, articulando arranjos alternativos de maternagem e redes de cuidado cooperativo, menos centrado na mãe biológica. Essas articulações possibilitaram às mulheres a garantia da criação de seus filhos em lugares dignos e protegidos e, ao mesmo tempo, a manutenção de formas de cuidado e laços de afeto com as crianças e de valorização de suas próprias experiências como mães. Nesse sentido, identificou-se que, além dos processos subjetivos de afirmação e resgate identitários promovidos pela maternidade, a própria experiência de maternagem também pode ter efeitos de reparação narcísica, constituindo um potencial restaurativo sobre a saúde mental das mulheres.

Para encerrar, ressaltamos que, diante de um campo marcado pelo preconceito e estigmatização e pela escassez de estudos científicos, faz-se urgente a realização de novas pesquisas e a construção de saberes que façam frente às violências e opressões de classe, raça e gênero que recaem sobre a maternidade de mulheres em situação de rua. O presente estudo busca atentar para essa lacuna de conhecimentos e evidenciar o potencial interventivo e terapêutico de perspectivas de gênero sobre o tema, podendo ser utilizado no campo da saúde integral e da saúde mental, no campo jurídico ou da assistência social. As políticas públicas, programas e serviços que lidam com essa questão podem ter maior alcance e efetividade se levarem em consideração a dimensão de organização subjetiva, âncora identitária e construção de novos futuros que o dispositivo materno pode representar para mulheres em situação de extrema vulnerabilidade.

 

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Recebido em 10 de abril de 2021
Aceito para publicação em 12 de outubro de 2021

 

 

Não houve qualquer fonte de financiamento para a pesquisa e elaboração do artigo.
1 Não revelamos o nome da cidade, de forma a garantir maior proteção à privacidade e anonimato das mulheres que colaboraram com a pesquisa.
2 Esta pesquisa contou com a prestimosa colaboração da redutora de danos Juma Santos, que facilitou o vínculo com as mulheres em situação de rua. Seu olhar e suas considerações enriquecedoras constituíram um aporte significativo para a pesquisa.

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