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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O primogênito não-humano na observação de bebês

 

The non-human first-born element in a baby observation context

 

El primogenitor no-humano en la relación madre-bebé

 

 

Marta Úrsula Lambrecht*

Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir das variadas situações que se apresentam ante os olhos do observador, no decorrer de cada encontro no lar dos bebês, são aventadas conjecturas imaginativas, à guisa de seminários de discussão psicanalítica, para que possam ser pensadas por outras mentes. Dentro do enquadre familiar do material clínico que nos serve como ilustração, encontrava-se, permanentemente presente, um componente não-humano que despertava sentimentos, avivava fantasias e solicitava a atenção da mãe, dos bebês e da observadora, estabelecendo com eles um nutrido diálogo verbal e não-verbal. Pelo peculiar carisma de ternura e por ser representante externo do mundo mental primitivo, é incluído, ludicamente, como parte de uma unidade funcional.

Palavras-chave: Elemento não-humano, Observador, Núcleo funcional, Unidade originária, Relação mãe-bebê.


ABSTRACT

From the diverse range of situations presented before the observer’s eyes during each meeting in the babies’ home, imaginative conjectures will be proposed in the psychoanalytic observational context, in order for them to be thought by other minds. In the clinical material here illustrated, the family context had a non-human component permanently present that awake and animate feelings and phantasies. It requested the attention of the mother, the babies and the observer, establishing with them a rich verbal and non-verbal dialogue. For its peculiar charisma and tenderness and, being an external representative of the primitive mental world, it is enclosed, in ludic fashion, as part of a functional unit.

Keywords: Non-human element, Baby observation, Functional nucleus, Originary unit, Mother-baby relationship.


RESUMEN

A partir de las variadas situaciones que se presentan ante los ojos del observador a lo largo de cada encuentro en el hogar de los bebés, son levantadas conjeturas imaginativas de acuerdo con los seminarios de discusión psicoanalítica, para que puedan ser pensadas por otras mentes. Dentro del encuadramiento familiar del material clínico que se nos servirá como ilustración, un componente no-humano se encontraba permanentemente presente, avivando fantasías y solicitando la atención de la madre, de los bebés y de la observadora, estableciendo con ellos un nutrido diálogo verbal y no-verbal. Debido al peculiar carisma de ternura y por ser representante externo del mundo mental primitivo, será incluido, ludicamente, como parte de una unidad funcional.

Palabras clave: Elemento no-humano, Observador, Núcleo funcional, Unidad originaria, Relación madre-bebé.


 

 

Estais aqui somente para observar e mais nada

Esther Bick

...E, de um só golpe, estamos projetados, despidos, livres de todos os nossos a priori, de toda nossa ciência, de toda nossa arrogância, forçados a perguntar se estamos capacitados a calar-nos, a respeitarmos o outro e seus movimentos, a estarmos pacientes, a esperarmos, a assistirmos, como testemunhas de um pensamento que se forja, que se organiza pelo mistério da atenção.

Hafs Chbani

Proposta

A partir da observação dos fenômenos e, pelo fenômeno da observação, através da possibilidade de pensar as variadas situações que se apresentam ante os olhos do observador, no decorrer de cada encontro no lar dos bebês, serão aventadas conjecturas imaginativas, à guisa de seminários de discussão psicanalítica, para que possam ser pensadas por outras mentes (dramatizando aspectos do self ao permitir que a problemática passe pela multiplicidade de vértices como nos apontam Alicia Lisondo e V. Ungar, 2002), enriquecidas, ou até mesmo invalidadas, embora a realidade última dos fatos seja inapreensível. Virginia Ungar (2000) não nos deixa esquecer que o observador é o elemento fundamental a se ter em conta. É ele o instrumento da observação e, ao mesmo tempo, parte do campo.

Por estar provido e acompanhado de sua bagagem vivencial, o observador é passível de contaminações transferenciais e contratransferenciais que, apesar de serem consideradas como uma forma de comunicação, não estarão disponíveis para serem veiculadas na elaboração da interpretação, já que, como foi assinalado na epígrafe, somente estamos ali para observar.

Dentro do enquadre familiar do material clínico que nos servirá como ilustração, encontrava-se, permanentemente presente, um componente não-humano que despertava sentimentos, avivava fantasias e solicitava a atenção da mãe, dos bebês e da observadora, estabelecendo com eles um nutrido diálogo verbal e não-verbal. Pelo peculiar carisma de ternura e por ser representante externo do mundo mental primitivo, será incluído, ludicamente, como parte de uma unidade funcional.

 

Introdução

A unidade originária que é criada após o nascimento, no seio da família, tende a resgatar a estabilidade de cada um dos seus participantes. É o que Perez Sanchez (1983) nomeou como “núcleo funcional”, capaz de propiciar o desenvolvimento mental. Esse núcleo funcional, permeado pela rêverie, é o espaço vital em cujo seio emergirá o mundo psíquico do bebê. E, salvando-se as redundâncias, é ele a base de qualquer desenvolvimento, graças ao qual se iniciam os processos de pensamento para fazer frente às mais variadas emoções.

A trama que compõe o núcleo básico funcional sói encontrar-se ampliada por outros membros capazes de estabelecer entre si relações de rêverie, ou, inclusive, imbricarem-se pela via das identificações, exercendo, no bebê, influências sensoriais cenestésicas, tranqüilizadoras, continentes e moduladoras de emoções primitivas que favorecerão o pensar.

Perez Sanchez (1983) alerta-nos que a energia psíquica que surge do encontro do bebê com seu mundo, dando lugar a uma experiência emocional, é o motor que põe em marcha a unidade originária.

O observador sensível e receptivo a incluir novos elementos na unidade originária &— mãe-pai-bebê &— pode funcionar como uma ponte, estabelecendo uma relação integradora entre tais elementos que potencializa o desenvolvimento deles.

 

Material clínico

Diz respeito à observação de gêmeas que nasceram quase um mês antes do tempo provável do parto. Periodicamente os pais comunicavam-se com a observadora para informar-lhe o andamento da gravidez, já que esta presenciaria o nascimento. Ambos os pais mostravam-se interessados no trabalho de acompanhamento dos bebês, embora não conhecessem algo similar. Eles foram indicados pela ginecologista, com quem mantinham um vínculo idealizado, o que fez da observadora sua enviada.

A família da mãe, Paola, é do interior, em contraposição à do pai, que mora na mesma cidade do casal. A mãe de Paola acudiu-a nos primeiros dias após o parto e logo voltou para sua terra.

Paola permanece a maior parte do dia em casa, com as gêmeas, uma empregada e seu cachorrinho de estimação, cuidadosamente procurado para atender às necessidades da família. Deveria ser um exemplar claro, de porte médio ou pequeno, dócil e meigo, que interagisse com eles e não sofresse a solidão, já que ambos trabalhavam e voltavam para casa de noite. Foram muito longe para encontrar tal espécie, de raízes tibetanas, e eles exigiram pedigree.

Na primeira observação, depois de mostrar-me as fotos das gêmeas ao saírem da maternidade, Paola abre uma pasta em que guarda todos os dados gestacionais do cão e um documento de identidade canina, com uma foto plastificada de quando ele nasceu. Descontraidamente, profere uma aula sobre a raça. É uma das poucas vezes em que ela conversa nesse tom comigo, a respeito de um tema. Freqüentemente, solta frases impessoais no ar, que são captadas e respondidas pela empregada, Zélia, geralmente presente na observação e ocupada com os afazeres domésticos.

Um dos bebês apresentou uma intercorrência perinatal, tendo de retornar ao hospital, junto com a mãe e a outra gêmea, durante uma semana, para efetuar um procedimento curativo. Esse bebê é mais miúdo, irrita-se com mais facilidade e é menos tolerante à espera da chegada do seio. Também apresenta cólicas freqüentes.

 

A observação dos primeiros dias

Quem abre a porta da casa é Paola. Logo atrás dela, um cachorro lhasa apso cheira-me de cima a baixo e coloca-se à minha frente, dificultando o passo. Sou obrigada a parar no meio da sala. Paola me parece muito calma, tranqüila, olhar meigo e profundo, silenciosa. O ambiente é claro, com perfume de bebê, limpo e decorado com mobílias leves. Paola trata de afastar o cão de mim. Ela parece incomodar-se com a defensiva atitude do cachorro. Pergunta-me se quero entrar no quarto. Sinto que está preocupada em poupar-me daquela cena com o cão. Comenta que as meninas dormem. Sem dizer nada, vou atrás dela, que me conduz até o quarto dos bebês. O cachorrinho não me abandona, pulando incessantemente nas minhas pernas. Antes de entrar no quarto, uma senhora vem afastá-lo de mim. Paola diz-me que é Zélia, a pessoa que a ajuda em casa. A empregada pega o cão no colo dizendo: “Deixa a doutora entrar!”. Ele consegue se soltar e entra, também, conosco no quarto de dormir.

 

Reflexões

A mãe recebe-me solícita. Tenho empatia por ela desde o primeiro momento. É receptiva e agradável comigo, parece disposta a participar de alguma empreitada comum. É perceptível, porque se palpa no ambiente, que há vidas novas. Serenamente, acompanha-me para me apresentar o que seria o objeto de nossos encontros. Ela está empenhada em mostrar-me, orgulhosa, seu produto, no qual, ela sabe, estou interessada. Sendo eu a doutora, respira-se um clima de segurança e intimidade. Está implícito que mãe e observadora se reúnem num movimento de interação em que ambas se beneficiariam num processo complementar.

Minha atitude é de expectativas, embora me mantenha neutra e reflexiva à espera. Intriga-me quão freqüentemente sou solicitada para ir a um campo sensorial que chega até a ser poluidor.

A contrapartida do resguardo e da calma da mãe está estampada na atitude aloprada do cachorro. Arrojado, intranqüilo, desconfiado a meu respeito, toca-me, nas pernas, com seu focinho como para descobrir, de verdade, quem eu sou e o que ouso fazer no lugar. É ele quem obstaculiza meu andar em direção às gêmeas.

A mãe, como disse antes, parece incomodar-se com a atitude do cachorro, mas, pensando melhor, ele foi escolhido a dedo, cautelosamente procurado para cumprir uma função: ser branco (passível de refletir), interagir, não precisar do outro, ser autêntico (de pedigree), ou seja, estar habilitado para mostrar e demonstrar o que sente.

Nessa casa, há uma ajudante, Zélia, que me é apresentada como tal. Responde ao pedido de Paola para segurar o cão, a fim de que ele não me importune. Por essas coisas do “acaso”, o cachorro escapa e continua livre e solto, profanando meu campo visual. Indubitavelmente alguém se interpõe para ser observado, para afastar-me de meu objetivo preestabelecido: as gêmeas junto a sua mãe. Perfila-se mais alguém à espera de um olhar. Pressinto um incremento no meu cardápio. Algo assim, numa forma figurada, como trigêmeos! E, deixo bem claro, o animal também será observado.

Mudando um pouco o tom, pergunto-me: não seria o cachorro o catalisador e representante não-humano quem carrega a hostilidade, a desconfiança, a perseguição para que a mãe possa se entregar livremente na relação com seus bebês de uma forma paciente, compreensiva, desarmada, total e inteiramente disponível?

Mas..., sem hesitar, Paola conduz-me ao quarto dos bebês....

Num berço geminado, com uma divisória comum, de dimensões enormes, placidamente descansam dois bebês indistinguíveis, um parece réplica do outro. Temo pela minha possível confusão. Ambos estão colocados sobre um outro acolchoado em forma de U, que lhes oferece uma espécie de envoltura, deixando os braços colados ao corpo e dando-lhes um limite, no meio daquele aposento majestoso. A mãe apresenta-me a elas: “Esta é Isabel e esta é Bela”. Fico de pé junto ao berço, próxima à divisória entre as duas partes. Dois rostos angelicais dormem num invólucro fofo, com roupas de cores diferentes, edredons também diferentes.

Duvido se poderei identificá-las, apesar da diversidade das cores. Que marca pode ter uma que à outra falte? Olho-as por um longo tempo e entro em desespero, quando vejo que não encontro nada que as desidentificasse. Paola me diz: “A Isabel é mais gordinha, apesar de ter nascido depois. A Bela sofre mais de cólicas”.

Foi uma cena estremecedora presenciar, na imensidão daquele berço, duas figuras idênticas, diminutas. Dois em um, Isabel e Bela, Isabela. Também a mãe há de ter tido alguma sensação similar, deduzo eu, já que, quando levanto o edredom, noto que os bebês estão deitados sobre outra base aconchegante, de forma côncava, que aglutina as partes num todo.

Ao juntá-las, Isabela, flagro-me pensando que quiçá na observação eu não poderei estar a sós com Isabel e Bela.

Posicionando-me no meio do geminado berço, estou no ponto de convergência de um duplo especular.

Surpreendentemente, a mãe vem ao meu encontro, dando os parâmetros para a discriminação, acalmando-me. O paradigma também é sensorial e, como veremos mais tarde, eu também descubro uma fórmula desidentificatória da mesma ordem, na planície das cores.

... Diz-me que ela coloca roupas diferentes e que cada uma tem a sua, porque, às vezes, até ela as confunde. Respiro fundo de alívio. Ela me oferece água e, ante minha negativa, diz-me que irá tomar um copo.

Novamente somos testemunha do perseverante esforço desta mãe para conceder uma identidade a seus bebês, safando-se, dessa forma, das garras do mordaz terror da indiscriminação.

Você, leitor, também há de convir comigo que nem hoje nem outrora as vestes genuinamente diferenciam. Mas que utopia! Em que canto escondi de mim esse conhecimento? Vejamos:

...Quando Paola sai, aproveito para ver se as duas usam o mesmo brinquinho. Aliviada, constato que Isabel tem brincos verdes e Bela os tem de ouro.

Uma outra questão salta aos olhos: não é sugestivo que, submersa na angústia que a duplicidade do ser acarreta, eu pule, irrequieta, em direção ao lhasa apso para conversar com ele justamente sobre sua identidade? Vejamos:

...Enquanto eu converso com Paola sobre igualdades e diferenças, o lhasa apso está irrequieto, pula enquanto chora entrecortado. Tem uma expressão de desespero, como duvidando do que possa eu estar fazendo lá. Eu digo: “Como você se chama, cachorrinho? Você está com ciúmes?”. Paola o apresenta: “Ele se chama Panda e deve estar querendo que você as leve embora”. Levo um choque com o que ouço e, ao mesmo tempo, digo: “Panda, também você vai ser acompanhado”.

Estaria o Panda-Bela denunciando o não-seio incapaz de receber as evacuações das terroríficas ansiedades de aniquilamento?

O desejo filicida, fortemente reprimido e/ou cindido da mãe, e “cuspido” em Panda, concede a autorização para que Paola cuide de “todos os seus filhos” com tanto afinco,

Embora não seja oportuno lembrar teoria neste apartado, colocarei entre aspas o seguinte: “A projeção pode ter um caráter defensivo. Pode constituir um modelo para fazer consciente o inconsciente, por traspasso dos processos endopsíquicos a um mundo perceptual”, ou, dando uma guinada no referencial, “os processos defensivos não seriam vistos como uma defesa frente à ansiedade, conseqüência da destrutividade inata, seriam uma defesa frente aos afetos ou às ligações emocionais de amor, ódio, conhecimento”. Outrossim, e como bem se assinalara no material clínico:...também isso vai ser acompanhado.

... Enquanto Isabel dorme serenamente, Bela acorda, contorce-se toda, chorando, como de dor. Paola coloca as mãos por cima do edredom e Bela dorme novamente. A mãe vira, com suas mãos, a cabecinha de Bela para um lado. Noto que os globos oculares mexem ritmicamente.

Em algum nível, Bela (a gêmea que teve problemas perinatais e que precisou retornar ao hospital, ficando internada) pode ter captado nuances da ansiedade da mãe, e, despossuída de seu continente, rompe a chorar, contorcendo-se numa tentativa de despojar-se do estigma da dor e do pavor da morte. Quando sente que é tocada por uma presença viva, a mãe, acalma-se, dorme e sonha novamente (função alfa), tendo devolvido para ela todo o conteúdo de ansiedades indigestas e tóxicas que a fazem acordar chorando. Paola vira a cabeça de Bela de lado, obstruindo um ouvido com o travesseirinho, embora seja com o corpo todo que o bebê apreende as emoções. A mãe, pressagiando o desconforto, tenta recolher a experiência sensorial do bebê para ser digerida por ela.

E, em virtude de já ter aberto precedentes ao deixar entrar “a bruxa metapsicológica” no parágrafo anterior, abusarei da boa vontade do leitor para mencionar que, mercê da ontogênese (evolução do indivíduo de cada espécie durante o seu desenvolvimento, e a partir de seu patrimônio genético), o bebê carrega em seu acervo a pré-concepção do seio e que, depois do nascimento, encontra-se com uma realização aproximada daquela pré-concepção, dando origem à concepção do seio. Doravante sua ansiedade será experimentada como um objeto, um não-seio, que expulsa conteúdos, das mais variadas formas (choro, grito, vômito, cólicas), partes angustiadas da sua personalidade que contêm o não-seio na forma de temor da morte. Caso a mãe se mostre capaz de receber isso graças a sua preocupação por conter as identificações projetivas do bebê como seu meio de comunicação, sua rêverie e função alfa, poderá assim tirar a dor da parte que foi projetada pelo bebê, juntamente com um seio presente que substituirá o não-seio. É este o vínculo de conhecimento mediante o qual o bebê introjeta o seio como objeto interno, o qual permite que a função alfa torne-se operativa na mente deste. Em conseqüência, continente e conteúdo são susceptíveis de estarem unidos e impregnados pela emoção, o que configura a possibilidade de crescimento psíquico. Passível de cair em redundâncias, assinalo que estamos frente a um sábio legado bioniano.

...Panda quer pular no berço, mas não alcança subir. Paola o pega no colo, e ele olfateia primeiro Isabel e depois Bela e fica me olhando insistentemente. Paola diz: “O que você quer dizer com esse olhar? Você quer mostrá-las para a Dra. Marta?”.

Há conhecimentos que nunca são alcançados pelo proprietário, embora, freqüentemente, sejam nitidamente mostrados ao próximo. Eu, observadora, poderia fazer inferências, sem rebuscados, das mais variadas formas, sob o perigo de enveredar no franco delírio. Mas demos as costas a ele e ouçamos: o olhar de Panda é tão gritante, que até ele quer denunciar para mim o que Paola denega: “Marta, a Paola quer mostrar para você que eu, Panda, quero que você veja meu desejo de levar as gêmeas embora!” e, acrescento eu, observadora: “O cão, um Antares no reino dos pandas”.

...Por acaso, olho em direção a uma estante e vejo três fotografias: num primeiro plano, um pôster de Panda e, mais atrás, as gêmeas. Detrás delas, um outro retrato do casal abraçado.

 

Finalmente, o indizível

Uma vez concluído meu projeto de observação, Paola telefonou para meu consultório procurando uma “conversa informal”. Insistiu para que, mais uma vez, eu fosse à casa dela. Não transcorrera ainda um mês do fim de nosso trabalho. Ao ouvi-la lembrei-me de Panda, o simpático cachorrinho que me deixou saudades. Lembrei-me de seu olhar triste, detrás da porta, quando alguém saía da casa. Num segundo momento, a viva imagem das gêmeas desfilou por minha mente. Não pensei que a procura de Paola fosse motivada por alguma dificuldade com Isabel ou Bela.

Temi pelo destino do casal: o pai nunca estivera presente ao longo do ano em que freqüentara a casa deles. Recordei-me do porta-retratos que guardava a foto de ambos posicionado no lugar mais afastado da estante, e que exigia um movimento de atenção para enxergar o casal. Não sabia, mas também não podia perguntar, o porquê de estarem ambos tão escondidos, tão afastados, tão ao resguardo dos olhares.

Hesitei antes de atender ao pedido dessa mãe, entretanto não me senti autorizada a negar-me. Simplesmente fui...

Ao chegar à porta, a habitual respiração ofegante do cão, que farejava minha presença a cada visita, não me deu as boas-vindas. Também não vi nem ouvi o choro das gêmeas. Nem Zélia ia e vinha daqui para lá como sempre o fazia. Na sala, Paola e eu. Eu e ela.

Mais uma vez, como outrora, observei e mais nada. Aguardei em silêncio e, logo, o desabafo de Paola.

Contou-me que Zélia tinha enfartado; “não podia acontecer isso com ela, que tão bem cuidava das meninas e com tanto carinho”. Os olhos de Paola encharcaram-se.

Enquanto isso, confidenciou-me que não estava preparada para ser mãe. “Estávamos organizados somente para conviver com Panda e mais ninguém.”

Preocupada, Paola, sem a proteção de Zélia, sem a presença do esposo que trabalhava o dia todo fora da cidade, teria que se ver com uma carga além do que poderia suportar.

Ouvi o que tinha a me dizer com toda atenção e, com cuidado redobrado, não deixei transparecer minhas conjecturas: talvez ela e Panda quisessem que eu levasse as gêmeas comigo.

 

Referências

Asociación Bick España (1995). Boletín, 1.        [ Links ]

Braier, E., comp (2000). Gemelos, narcisismo y dobles. Buenos Aires: Paidós.        [ Links ]

Dorado de Lisondo, A. B. & Ungar, V. (2002). Permanencias y cambios en el método de observación de bebés de Esther Bick. Trabalho apresentado no Congresso Latino-Americano de Psicoanálisis, 24, Montevideo, 20-28 set. 2002.        [ Links ]

Perez Sanchez, M. (1983). Observação de bebês. Rio de Janeiro: Paz e Terra.        [ Links ]

Ungar, V. (2000). Los fundamentos teóricos en el método de observación de bebés de Mrs. Bick. Trabalho apresentado em Clínica Pais-Bebês, Porto Alegre, out. 2000.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marta Úrsula Lambrecht
Av. 9 de Julho, 1717/52
13810-798 Jundiaí, SP
E-mail: martaursula@terra.com.br

Recebido em: 06/03/07
Aceito em: 29/03/07

 

* Membro Associado da SBPSP.

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