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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008

 

TRADUÇÕES

 

Tremores

 

Trembling

 

Temblores

 

 

Miguel de Azambuja*

Analista da Association Psychanalytique de France, clinica em Paris
Membro do comitê de redação da revista penser/rêver
Maître de conférences associé na Université de Paris V

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tremor é uma figura que privilegio para pensar o método analítico. Deveria dizer tremores, para assim desdobrar seus múltiplos sentidos: por um lado, o tremor é inerente às formações do inconsciente e, em particular, à situação transferencial explorada a partir de uma de suas qualidades mais misteriosas, o deslocamento temporal. Por outro lado, o método analítico convoca uma espécie de tremor – através da associação livre, da atenção flutuante – que permite distender a trama psíquica e obter assim a emergência dos mapas de Roma. Exploraremos essas pistas com a ajuda – entre outras coisas – de um bestiário inexplorado.

Palavras-chave: Tremor, Deslocamento temporal, Inquietante estranhamento, Método analítico.


ABSTRACT

Trembling is how I prefer thinking figuratively the analytical method. Perhaps I should say tremors expanding its multiple meanings: on one side, tremor is inherent to unconscious formations and especially to the transferential situation, where it can be explored in one of its most mysterious particularities, the temporary dislocation. On the other hand, the analytical method summons a kind of trembling inherent to free association and floating attention, which opens up the psyche and creates the possibility of the emergence of the Roman plans. We will explore these tracks in part with the help of an unexpected bestiary.

Keywords: Tremble, Temporal dislocation, Uncanny, Analytical method.


RESUMEN

El temblor es la figura que nos ayuda a pensar el método analítico. Debería decir temblores, y poder así desplegar sus múltiples sentidos: por un lado, el temblor es inherente a las formaciones del inconsciente y en particular a la situación transferencial, explorada a partir de una de sus cualidades mas misteriosas, la dislocación temporal. Por otro lado, el método analítico convoca una suerte de temblor – a través de la asociación libre, de la atención flotante – que permite distender la trama psíquica y obtener así la emergencia de los mapas de Roma. Exploraremos estas pistas con la ayuda – entre otras cosas – de un bestiario inesperado.

Palabras clave: Temblor, Dislocación temporal, Inquietante extrañeza, Método analítico.


 

 

A lembrança é clara, embora cercada de brumas: apresentou-se a mim de modo intempestivo e provocou uma cascata de conseqüências inesperadas, sendo a última este texto que estou lendo para vocês. Acabara de falar por telefone com Jean-François Daubech sobre a possibilidade de participar em um dos debates científicos da APF1 e estava um pouco – como dizer –, perturbado. Tudo se pôs a tremer por dentro, a desordem tornou-se meu reino e a angústia um animal inquieto que passeava pelo meu corpo. Eu pedira um “prazo de reflexão”, o que era uma espécie de resposta-padrão, de piloto automático, permitindo que me escondesse em algum lugar. Apresentara, lembro-me também, argumentos-escudo, e mencionando ainda interrogações sobre a minha prática “que treme neste momento”, dissera eu – ao que Jean-François Daubech me respondeu ao mostrar como a psicanálise era também uma arte marcial, que justamente isso poderia ser um bom ponto de apoio para pensar a conferência. Não sei se ele percebeu esse oximoro maravilhoso que me oferecia: apoiar-se naquilo que treme. Eu mesmo só me dei conta depois, quando tentava encontrar os traços que antecederam à aparição da lembrança.

A lembrança é clara, embora cercada de brumas. Em pleno caos interior, lembrei-me do momento em que, durante uma sessão com o Senhor A., pensei que ocorrera um tremor de terra. É a partir daí que começa a exploração que conduzirá a pensar que o tremor é uma figura privilegiada para pensar o método analítico, e permitirá mostrar alguns de seus desdobramentos (penso no tremor inerente às formações do inconsciente, de um lado, mas também na instabilidade necessária proposta pelo método para que a análise aconteça). Entretanto, quis apresentar esse quadro, pois ele antecipa a exploração que virá, representa-a sob outro patamar, assim como Freud, quando fala do superego e suas origens, evoca a batalha dos Hunos (Die Hunnenschlacht), a tela de Kaulbach, onde se vê o combate prosseguir nos céus, depois de travado na terra.

Acreditei que ocorria um tremor de terra. Guardo só a lembrança de um sobressalto furtivo e nada mais. É verdade que essa pista do tremor, da fragilidade do solo, da catástrofe a vir, será fecunda na análise do senhor A. Evocando um ato falho durante um jantar (ele derruba a xícara de café), falará da maré negra, e verei uma maré negra enchente, agitada, prestes a engoli-lo; foi ele que me levou a pensar – maneira de figurar a situação transferencial – nessas histórias em quadrinhos infantis, onde se vê o herói que, fugindo dos inimigos, tem de atravessar pantanais infestados de jacarés. Não hesita um instante sequer e anda por cima dos jacarés, transformados em tábuas de salvação provisória. Releio então as notas tomadas na ocasião da primeira entrevista com o senhor A.: “Agarra-se à poltrona como de fosse sua bóia de salvação, sua jangada da Medusa”. Às vezes, nosso eu esgota-se ao evitar que a terra trema, ao evitar os perigos da excitação, evitando a vida, por vezes. (Saberei mais tarde que sua mãe bebia e dançava embriagada em cima da mesa de bares, o tremor, a tempestade, a excitação sexual.)

Contudo, é no encontro entre seus tremores e os meus que a atividade alucinatória acontece, vem me buscar aí, onde eu não a esperava, no íntimo – e uma maneira de despertar desse encontro, que poderia se tornar traumático, foi acreditar que tinha havido um tremor de terra. Dito de outro modo, a atividade alucinatória funda os limites no momento em que se constitui, mas ela se constitui porque justamente os limites foram postos em xeque. Captura o movimento da excitação, revela-o, permite sua exploração. Dá a mim notícias da análise de maneira imprevista (André, 2004), solicita minhas zonas obscuras para colocá-las em trabalho e faz-me reproduzir o que me escapa (Gribinski, 2005). Dessa perspectiva, podemos entender a frase de Tom Zé, artista brasileiro, como uma forma provocadora e ao mesmo tempo justa de pensar o método analítico: Se o médico persistir, consulte os seus sintomas...

(Entendo esta frase como alguma coisa que o analista diz a si mesmo, pois sabe o quanto é difícil permanecer analista e fácil ser médico.)

Lima e minhas lembranças de infância associam-se a tremores de terra. E é provavelmente isso que tinge a experiência do tremor de uma cor inquietante e me faz perder o pé durante algumas frações de segundos. Com efeito, a criança que acredita que há um tremor de terra no meio da sessão parece materializar-se de modo inesperado, vir de um além que não é doravante aqui. Devemos evocar um deslocamento temporal, Roma e seus múltiplos planos, devemos evocar o cubismo (Helft, 2004) do mundo para imaginar essa experiência dos tempos misturados, tal como a chama Pontalis (1986), própria às formações do inconsciente e, nesse caso particular, ao agieren transferencial. Nas palavras de Fédida, “...é o tempo do Zeitlos (que) desorienta, é verdade, nossa concepção laboriosa do tempo” (Fédida, 1977, pp. 1-3). As formações do inconsciente são pequenas máquinas para viajar no tempo, fazê-lo tremer, esquecer sua linearidade laboriosa. É por isso que a ficção científica e a literatura fantástica, sendo gêneros literários que permitem o deslocamento temporal, são espaços privilegiados para colocar em palavras esse aspecto do funcionamento inconsciente. Penso, por exemplo, na teleportação, que ajuda a pensar essa colisão de tempo que acabamos de relatar. O equivalente na literatura fantástica seria a aparição que pudesse ser pensada fora de toda cronologia, uma aparição que traz em si a colisão. Voltaremos a isso.2 Persigamos a princípio esta pista, esta do tremor ligado ao deslocamento temporal, visitando outros domínios...

Trata-se provavelmente do conto mais curto do mundo, foi escrito por Augusto Monterroso, escritor nascido na Guatemala:

O dinossauro
Quando acordou, o dinossauro ainda
estava lá.3

Gosto dessa idéia de que fragmentos de sonhos possam nos visitar, sair da noite e apoderar-se do dia e assim permanecer entre nós. Esse fragmento de sonho, esse dinossauro, é um resto noturno, traços da noite que vieram vestir o dia, atualizar-se criando uma forma inédita. Com efeito, quando o sonho veste o mundo, este não é mais um sonho e o mundo não é mais o mundo, mas sua estranha mistura. É, aliás, nesses termos que Aby Warburg evoca as figuras de Botticelli: “Somos tentados a dizer, a propósito de certas figuras femininas ou de certos jovens, que acabaram de sair de um sonho para despertar à consciência do mundo exterior: e mesmo que se voltem ativamente a ele, as imagens do sonho assombram ainda seu espírito”.4

A criança, cujos terrores e prazeres são figurados pelo tremor de terra, o dinossauro, as figuras de Botticelli são filhos de Zeitlos, as formas tomadas pelo deslocamento temporal. Certamente, a experiência da transferência, o sonho, a obra de arte são planetas diferentes e não tentarei torná-los homogêneos, apenas salientar um de seus pontos de contato: os tempos misturados. Se pensarmos numa outra formação do inconsciente, se pensarmos no sintoma sob esse ângulo, poderemos considerar uma colisão difícil entre um passado que ressurge e procura uma brecha – o recalcado empurra para o alto – e um presente que se atualiza ao mesmo tempo que lhe impede a permanência. A colisão desta vez é terrível, as forças se esgotam, o cavaleiro freudiano (Freud, 1984b, pp. 237-239) agita-se e parece como um cowboy de rodeio, como Ben Hur às voltas com sua carruagem. Podemos evocar aqui esse momento em que, crianças, queremos vestir nosso pulôver e enfiamos um braço numa manga, outro braço noutra manga, e é a vez da cabeça que procura saída e não a encontra (Cortázar, 1974), continua a procurá-la e não a encontra, e ei-nos no meio do mundo estirado de forças que se opõem e que procuram se exprimir, que procuram uma forma, através das transformações e deformações, que produz esse combate que não cessa jamais e que nos vemos em obra na imagem dessa criança que quer vestir seu pulôver para evitar o frio.

Fédida, em seus últimos seminários, falava do sintoma como produto monstruoso, como formação teratológica. Creio que podemos entender essas proposições à luz dos tremores que produz o desacordo temporal. Em A mosca, o filme realizado por David Cronenberg, Seth Brundle, gênio inventor, cria uma máquina que permite a teleportação através de um processo de desintegração molecular do objeto teleportado na cabine de chegada. Depois de diferentes tentativas, decide testar a maquina sobre si mesmo. Entra na primeira cabine, mas há uma convidada inesperada, uma mosca. Vocês imaginam o resultado. Uma produção inédita acontece, uma espécie de mutação genética que desarranja as classificações, não há mais um homem, não há mais mosca, mas uma forma nova que escapa à leitura evolucionista. A cronologia foi assim arrebentada e isso permite o monstro Zeitlos, o sintoma.5 É essa a dificuldade de pensar o tipo de processo no qual a repetição e a novidade estão em obra. Deleuze6 gostava de ilustrar a complexidade da repetição lembrando as palavras de Péguy a propósito de Nymphéas (Nenúfares), de Monet: “Não é o último nymphéa que repete o primeiro, mas o primeiro que repete todos os outros”. Podemos compreender essa afirmação se pensamos cada nymphéa como um dos mapas de Roma...

Mas, voltemos ao nosso tremor, a esse momento na sessão em que somos apanhados, tomados pela situação transferencial. Nessa situação precisa, a oscilação alucinatória funciona como despertar. É aí que gostaria de me deter por alguns instantes, nessas experiências em sessão que nos despertam, que nos fazem voltar.

Escuto minha paciente, Senhora F.: “Desculpe-me, mas não sei falar espanhol”. Surpresa e tremor. Suas palavras têm sobre mim um efeito interpretativo. Fazem-me voltar bruscamente – teleportação inesperada –, retomar meu lugar, perplexo, faltoso, desconcertado.7 A oscilação alucinatória (com quem acabo de falar em espanhol? Onde estava com ela? Quem éramos?) dissipa-se no momento exato em que constato sua existência. E a constatação produz-se pela intervenção da Senhora F. que me desperta, faz-me sair do sonho: Quando desperta, a Gradiva estava ainda lá, mas ela desaparece no momento preciso em que a encontro, como esses sonhos que tentamos agarrar quando acordamos, mas se tornam fragmentos, desaparecem, vão-se. Ou então somos nós que nos vamos do sonho, deixamos seu mundo porque outro nos espera8... Mutatis mutandis, o fenômeno é similar aquele do tremor com Senhor A.: a alucinação chega aqui ao sinal de alarme e permite redefinir as cenas, separá-las.

Encontramos essa “confusão de línguas” no relato de Jensen. Norbert Hanold chegou à Pompéia em busca de Gradiva e a vê, sentada entre duas colunas. Dirige-se a ela e fala em grego, convencido das origens antigas da jovem. Ante o seu silêncio, tenta o latim, mas ela também não responde. Norbert tem medo, crê estar com uma estátua muda, com uma sombra. A jovem responde-lhe então: “Se você quiser falar comigo, deve fazê-lo em alemão”. Esperamos a surpresa, esperamos o despertar, uma língua inesperada e, no entanto, familiar lhe é dirigida, é a sua língua materna que lhe chega por surpresa, enquanto com a senhora F. deixo a minha com o mesmo movimento intempestivo. Mas Norbert não parece espantado, inclui a informação, digamos, no delírio, nenhum despertar dessa vez. A razão é a mesma que faz desaparecer Gradiva no exato momento em que acordo em vez de permanecer no cômodo, como o dinossauro. As experiências (entre Norbert e Gradiva, entre mim e a Sra. F.) tocam-se em um ponto, aquele que diz respeito ao alucinatório, mas se organizam diferentemente. No interior da experiência delirante, é verossímil que Gradiva possa falar com Norbert em alemão. O delírio acolhe essa possibilidade porque não faz senão realizar; como o sonho, submete o mundo ao regime primário.9 Não podemos falar nesse caso de cláusula de irrealidade, retomando a expressão de Laurence Kahn (Kahn, 2000; 2004), mas antes de uma irrealidade sem cláusula. A cláusula implica justamente a noção de contrato, de um território que permite a experiência alucinatória, mas acompanhada de uma limitação firme do campo da experiência. Os coelhos podem sair do chapéu do mágico, mas sem invadir a sala, sair à rua, cobrir a rua toda. É a cláusula de irrealidade que produz a área de transferência, em suma, sem evitar, todavia, os abalos que virão suspender a cláusula provisoriamente, abolir os limites, desorganizar o julgamento de realidade (Kahn, 2004, p. 80) e fazer-me falar espanhol ou experimentar o tremor de terra na sessão.

É essa abolição inesperada dos limites que dá a essas experiências seu caráter unheimlich. O surgimento inesperado do recalcado, atualizado pelo agieren transferencial perturbou meu julgamento de realidade, os espíritos convocados (Freud, 1991b, p. 31) são os do paciente e os meus e a vida animista capturou a sessão. O eu solta as rédeas, tal Ben Hur desorientado, a vida se põe a tremer e fora encontro meu dentro quando perco o “solo da realidade” (Kahn, 2002).

Se o eu solta as rédeas é porque o retorno do recalcado empurra para o alto e perturba “a unidade englobante do eu”, como dizia Freud (Freud, 1984a, p. 47). Esse assalto das pulsões ineducáveis acaba por conquistar o cume e, modificado, torna possível a presença do dinossauro ou, no relato freudiano, do jacaré, último recruta do inesgotável bestiário freudiano, onde encontramos ratos, lobos, porcos-espinhos, o cavalo de Schilda, o cavalo de Itzig e aquele do pequeno Hans, leões que saltam, cachorros que dormem, coelhos que se tornam caçadores – e paro por aqui.

Encontramos o relato na revista inglesa Strand, e ele permite a Freud ilustrar o efeito unheimlich que se produz “...freqüente e facilmente quando a fronteira entre fantasia e realidade se encontra apagada”. Coisa curiosa, Freud não dá a referência bibliográfica precisa – não dá titulo da história, nome do autor, ano da publicação –, talvez porque achasse a história “um pouco tola”, mesmo se “...sentimos no mais alto grau seu efeito de inquietante estranheza” (Freud, 1985a, p. 251).

Trata-se de fato de Inexplicable, de Lucy Gertrude Moberly, relato ilustrado por Dudley Tennant, publicado por Strand Magazine, em dezembro de 1917. Descobrimos ali um jovem casal que acaba de mudar para uma casa em Prillsbury, nos arredores de Londres. Os antigos inquilinos lá deixaram um objeto que atrai imediatamente sua atenção: uma mesa de madeira octogonal, ornada de jacarés esculpidos. Rapidamente, acontecimentos inquietantes se produzem, um odor repugnante, que se espalha à noite; a aparição de formas difíceis de definir escorregam pelo chão da casa assustando os habitantes; “...tropeçamos no escuro no que não sabemos o que é”, nos diz Freud e o relato nos sugere, e retomo minha citação freudiana, que “...em conseqüência da presença dessa mesa, a casa fica assombrada por jacarés fantasmas ou que os monstros de madeira ganham vida no escuro, ou alguma coisa do gênero” (Freud, 1985a, p. 251). “Alguma coisa me faz tropeçar”, dirá um dos personagens; “Alguma coisa parecia escorregar entre meus pés e me desequilibrei”, dirá outro (Quackelbeen & Nobus, 1993, pp. 83-87). Tropeços, tremores, a frase freudiana “tropeçamos no escuro no que não sabemos o que é” poder-se-ia aplicar a isso que nos acontece às vezes em sessão, quando o traço mnésico se atualiza na transferência, e os jacarés saem da madeira esculpida.10 Gosto de pensar que os jacarés já estavam lá, eram os grandes sáurios (Freud, 1985c, p. 287) e eles não fazem senão retornar; quando saem da madeira esculpida e retomam uma forma viva, abandonam sua forma glaciária.

E os jacarés inscrevem-se no rasto dos dinossauros, da Gradiva, das ninfas de Botticelli, da mosca, da criança do tremor de terra, do peruano que se apropria da sessão para se dirigir a alguém, todas as aparições marcadas por tempos misturados; diferentes maneiras, mais ou menos desajeitadas, de circunscrever esse encontro singular que permite a situação transferencial, o próprio coração do método analítico. Além disso, a hipótese é bizarra, mas apresento-a: tenho vontade de aproximar os jacarés que saem da madeira esculpida da mulher que sai do baixo-relevo de mármore, porque creio que os jacarés desenham o lado escuro desse texto ensolarado11 que é a Gradiva. Talvez tenham sido os jacarés que fizeram fugir Norbert, que fazem fugir o Senhor A. Podem ser pranchas de salvação provisórias e permitam-nos atravessar pântanos, ou ainda se tornarem belas mesas na casa, mas pode também retomar suas formas antigas, sair das mesas dos bares e nos encher de excitação e de medo...12

O tremor, os abalos, o momento em que o chão racha e faz sair “...isso que deveria permanecer secreto, na sombra” (Freud, 1985a, p. 222). Freud está no trem,13 um solavanco mais rude que os outros e a porta se abre; vê um senhor de certa idade que devia ter se enganado de compartimento. Levanta-se para avisá-lo e percebe estupefato que o intruso é sua própria imagem devolvida pelo espelho (Freud, 1985a, p. 257). Isso treme e a porta se abre, e Freud é posto em contato com isso que deveria ter permanecido secreto, escondido em outro cômodo dele mesmo. O trem é certamente o lugar de todos os tremores, fonte das excitações sexuais, devidas às sensações prazerosas do movimento, mas também o lugar de obstáculo e de matre nudam (Freud, 2006, p. 339), a mãe excitante.

Mas o trem é também a imagem da qual Freud se mune para ilustrar um dos aspectos do método analítico, a regra fundamental: “Comporte-se à maneira de um viajante que, sentado perto da janela de seu compartimento, descreveria a paisagem tal qual se desenrola diante de uma pessoa localizada atrás dela” (Freud, 1985b, p. 94).

Há, portanto, tremores e tremores, por vezes tornam a vida excessivamente difícil porque não nos deixam chão. Creio que é isso que nos deixa entender uma grande poeta argentina, Alejandra Pizarnik, quando nos fala de um “...tremor constante ali onde os demais pensam”, “un temblor constante allí donde los demás piensan” (Pizarnik, 2003, p. 321). Ademais, a vida talvez possa ser também difícil se tentamos a todo preço evitar os tremores... Abordamos a maneira pela qual certos desses tremores podem surgir em sessão. Mas o exemplo freudiano mostra-nos ainda outra possibilidade, como é necessário para que a análise possa ter lugar. Sobre isso é que gostaríamos de dizer ainda algumas palavras...

Antes de chegar à regra fundamental, passemos pelo cavalo de Schilda. Freud fala dele no fim de sua última conferência na Clark University, quando evoca um dos resultados possíveis do trabalho psicanalítico: “Certa parte das moções libidinais tem o direito de receber uma satisfação direta e deve encontrar essa satisfação na vida” (Freud, 1991, p. 115). As exigências culturais impõem o recalcamento sexual e nos fazem esquecer “...a animalidade original de nossa natureza” ou, ainda, que a satisfação e a felicidade são fins culturais. Uma sublimação “...sempre mais exaltada” pode tornar “...a pulsão sexual estrangeira a seus fins próprios”. É aí onde evoca os burgueses de Schilda, donos de um cavalo excepcional que, entretanto, consumia muita aveia cara. Então, per qualche dollaro in più, decidem reduzir cotidianamente sua ração, até a abstinência total. As coisas pareciam ir bem, o cavalo comia cada vez menos – mas no dia em que deveria trabalhar sem receber sua porção de aveia, o animal foi encontrado morto. As leituras são múltiplas – Marx poderia ter utilizado esse apólogo – e, certamente, como sublinha Pontalis, Freud simplifica ao extremo para tornar menos escandalosa14 sua teoria escandalosa na América. Mas Freud lembra ao menos que o que está em jogo é fundamental na construção da cultura e que muito pouco bastaria para que tudo vire e a cultura se torne aquilo que procura recalcar.

O apólogo lembra-nos também o difícil equilíbrio entre as pulsões e o mundo. Para que haja mundo, devemos recalcar, construir um chão aí onde não havia senão tremor. Devemos postergar, desviar, percorrer aí onde não havia senão realização e descarga. É o eu que é encarregado dessa função de ligação, que permite certa estabilidade do aparelho psíquico, um chão psíquico aí onde não havia antes senão excitação, movimento perpétuo. Mas o equilíbrio é difícil entre o tremor e o solo, porque o tremor é a vida e a perturbação. Às vezes, o chão se endurece, o movimento, a livre circulação não mais é possível nessa terra que se tornou hostil a si própria: a isso podemos chamar neurose. Ela consegue frear o movimento, ou ainda fazê-lo sobreviver sobre o império da repetição. O chão tornou-se sólido, liso, perdeu suas pregas.

E é aí que chegamos à regra fundamental. Talvez seja ingênuo de minha parte formular as coisas assim, mas creio que o gênio de Freud consiste em propor um método que está de acordo com o mundo psíquico e suas perturbações. A livre associação e a atenção flutuante, permitindo afrouxar a trama e tornar mais complexa a superfície psíquica, permitem igualmente os mapas de Roma. O solo torna-se assim instável, uma instabilidade, contudo, necessária ao trabalho analítico.1516 Uma instabilidade que libera, que desliga, que distende. O desligamento fragiliza o chão, a terra treme e depois as brechas aparecem e com elas, por vezes, animais inesperados.

Isso não significa que devemos fazer um elogio do desligamento, da instabilidade como único fim do trabalho analítico ou das intervenções do analista. Temos necessidade da terra e do tremor, da ligação e do desligamento. Somos também pára-excitantes,17 palpamos a superfície psíquica do paciente, moderamos a descarga da excitação (Kahn, 2000, pp. 70-82), temos necessidade de calma. Aline Petitier diz a esse propósito “...que é preciso ser portador de disposições absolutamente contraditórias saber esperar indefinidamente e ao mesmo tempo experimentar a urgência em apreender o que se vai dissipar” (Petitier, 2000, pp. 30-31).

Tremor e terra, portanto. Poderíamos pensar que a construção viria paralisar os tremores, dar-lhes um pouco de razão e propor um edifício sólido. Mas Michel Gribinski nos lembra do caráter insensato da construção18 (Gribinski 1996, pp. 8-35; 1998, pp. 49-65), como é ela também tomada pela “perturbação da realidade”, como construir sobre as ruínas não significa propor o edifício intacto e impecável, mas adivinhar sem cessar as cenas da vida pulsional. A construção é também sem fim, como a análise, é sólida e não cessa de tremer. É talvez também por isso que Freud fala de uma estátua em solo de argila (Freud, 1973, p. 136) ou ainda de uma bailarina que dança na ponta dos pés (Freud, 1986, p. 137) quando evoca o Moisés, que é um texto atravessado pela questão da construção.

Nossas construções são sólidas e em movimento, são sempre em devir; mesmo se chegam a tomar uma forma, esta é provisória, construída em um mundo movente.

Isso as torna belas e, apesar de tudo, sempre imprevisíveis. Quando era criança, ante ao álcool e a briga dos pais, senhor A. ia para seu quarto e brincava com Lego. Construía casas, pontes, uma cidade. Tentava, à sua maneira, apoiar-se sobre o trêmulo, transformar a excitação.

É provavelmente isso que fazemos em análise, transformar a maré negra e os jacarés de tal modo que possamos atravessar os pântanos. Apoiar-se sobre o que treme, porque os tremores estarão sempre aí e, mesmo se conhecemos sua existência, tomar-nos-ão sempre desprevenidos. Porque, diferentemente do caçador índio, que aproxima sua orelha do chão e ouve ao longe a chegada dos bisões, podemos estar prontos, ouvir mesmo os animais ao longe no pasto, imaginar sua rota – mas seja o que for que façamos, os bisões acabarão sempre por nos surpreender.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Miguel de Azambuja
21 rue d’Odessa
75014 Paris, France
Tel.: 01 43 22 13 36
E-mail: tfranca.tln@terra.com.br

Recebido em: 30/10/2008
Aceito em: 25/11/2008

 

 

Tradução do francês de Sandra Lorenzon Schaffa
* Analista da Association Psychanalytique de France, clinica em Paris. Membro do comitê de redação da revista penser/rêver. Maître de conférences associé na Université de Paris V. Contribui em revistas psicanalíticas como penser/rêver e Libres cahiers pour la psychanalyse.
1 Conferência apresentada nas Journées de l’Association Psychanalytique de France (APF), em outubro de 2008. (N. do T.)
2 Beckett, para quem os sobressaltos e a catástrofe coexistem com a imobilidade e a espera, exprime assim essa idéia, em um diálogo com Charles Juillet. Este diz que Beckett “...é extremamente presente no concreto, capta o mínimo detalhe, e, ao mesmo tempo, fixado perto de Sirius, seu olho pode abraçar o conjunto.” “Sim” – aprova Beckett. “É preciso estar lá” – indicador apontado para a mesa – “e também” – indicador levantado para o alto – “a milhões de anos-luz. Ao mesmo tempo.” Um longo silêncio. “A queda de uma folha e a queda de Satã são a mesma coisa.” E, rindo francamente: “Maravilhoso, não? A mesma coisa.” Longo silêncio. (Rencontres avec Samuel Beckett, 1999, pp. 63-64.)
3 El dinosaurio. Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí. (Monterroso, 1986, p. 51.)
4 Aby Warburg, La naissance de Venus et Le printemps de Sandro Botticelli (1893), trad. S. Muller, Essais florentins, Paris, Klincksieck,1990, p. 90, citado por Georges Didi-Huberman (Didi-Huberman,1999, p. 29). Aby Warburg retomará o termo sobrevivência, proposto por Tylor e a escola anglo-saxônica (Nachleben des Antik).
5 Na versão original, da qual o filme de Cronenberg é reprise (The Fly, realizado por Kurt Newman em 1958), a mutação é menos sublinhada, em proveito das forças em conflito.
6 Cf. Seminaire du 12/11/82 (Deleuze, 1982) e, também, L’abécédaire, lettre B comme Boisson (Deleuze, 2004).
7 Freud fala do “...fenômeno desconcertante que nomeamos transferência.” (Freud,1991, p. 109.)
8 Cf. Vera Ocampo, Les portes du rêve, inédito.
9 O delírio mudará de estatuto no fio do relato, pois a cura terá lugar graças ao estabelecimento ulterior da cláusula de irrealidade...
10 Cf. com esse propósito: “Répteis”, desenho de M. C. Escher.
11 Freud dirá a Jung de seu trabalho sobre a Gradiva: “...foi realizado em dias ensolarados e me deu tanto prazer”, carta de 26 de maio de 1907 (Freud, 1975, p. 101) ; cf. também Jones (1988, p. 362).
12 São talvez “...os véus escuros que o obstruem”, de que nos fala Catherine Chabert (2003, p. 181).
13 Cf., a propósito da tópica ferroviária, J.-B. Pontalis (1989) e Sylvie Nysenbaum (1982).
14 Cf. o prefácio de Pontalis às Cinco conferências (1991) e o prefácio de Gribinski (1987) aos Três ensaios.
15 “...‘o trabalho analítico’, isto é, a meu ver, a fala, tal qual a associação livre e a atenção igualmente flutuante fazem ‘tremer’ a evocação do atual e do antigo”, nos diz François Gantheret (1996, p. 187).
16 Deleuze dizia que ter um estilo consistia em gaguejar na sua própria língua. A imagem é forte, mas creio que ele visava romper a linearidade vocal – da mesma maneira que a regra fundamental procura romper a linearidade do relato –, obter o movimento sofreado que permite a criação, como na poesia de Ghérasim Luca, que faz da gagueira o lugar do poema. O tremor está também ligado à criação. Dessa vez, se a porta se abre, ouvimos a sonata de Vinteuil, onde descobrimos a região em que as vogais têm cores... Sobre a relação entre tremor e criação, cf. E. Gómez Mango (1994, pp. 44-48).
17 Laurence Kahn propõe, nesse sentido, que certas intervenções do analista funcionam como pára-excitantes no interior da sessão: “...falar para nada dizer, agitar-se, fazer pequenos ruídos” (Kahn, L., 2000, p. 70), para tentar fragmentar a carga de excitação. Cf. Les petites choses. Enfants de Coteau, temps de guerre, entrevista com Laurence Kahn, penser/rêver, 2008.
18 Cf. Furtiva nox in Le démon de l’interprétation (Gribinski,1998).

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