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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo Dec. 2011

 

FORMAÇÃO PSICANALÍTICA

 

A delicadeza no campo analítico: estudando contratransferência e enactment pela internet

 

The delicacy in the analytical field: studying countertransference and enactment through the internet

 

La delicadeza en el campo analítico: estudiando contratransferencia e enactment por internet

 

 

Ana Clara Duarte Gavião1, I ; Antonia Maria de Almeida Camargo 2, II; Fauzi Palis Jr. II; Francesca Maria Ricci II; Lídia Maria Chacon de Freitas II; Mara Guimarães Pereira Lima Degani II; Maria Cristina Aoki Sammarco II; Roosevelt Moisés Smeke Cassorla 3, I, III

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
II Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
III Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do trabalho é descrever movimentos grupais em um seminário eletivo sobre contratransferência e enactment solicitado por membros filiados da SBPSP, na sua maioria residentes fora da capital paulista. Foi criado um formato experimental com carga horária condensada em dois encontros, no início e no fim do semestre, complementados por comunicação por correio eletrônico no período intermediário. O coordenador indicou um texto para cada mês do debate digital e uma bibliografia complementar. O ritmo inicialmente acelerado das mensagens foi "brecando" conforme o conteúdo estudado foi se aproximando da pessoa real do analista. No transcorrer da troca de 110 emails, contradições entre real/virtual, presença/ausência, conexão/desconexão, exposição/ocultamento, proximidade/distância, comunicação/confusão, típicas da cultura informatizada, foram configurando um interessante modelo para pensar os paradoxos do próprio setting psicanalítico. O estudo das transformações de impasses clínicos em conhecimento intersubjetivo evidenciou a reversão de perspectiva pela qual a contratransferência é vista, tanto no processo de uma análise como na história do movimento psicanalítico.

Palavras-chave: Contratransferência, Enactment, Intersubjetividade, Pessoa real do analista, Transmissão da psicanálise.


ABSTRACT

The objective of this work is to describe group movements inside a countertransference and enactment elective seminar, requested by Brazilian Psychoanalytical Society of São Paulo sbpsp, members which were in most nonresidents of São Paulo. An experimental format with condensed hours was created, with two meetings at the beginning and the end of the semester, added by electronic communication in the meantime. The coordinator recommended a text for each month of digital debate, as well as some complementary bibliography. The initially accelerated rhythm of the messages began to slow down as the content studied became closer to the "real" person of the analyst. Throughout the 110 emails exchange process, contradictions between real/virtual, presence/absence, connection/disconnection, exposure/hiding, proximity/distance, communication/ confusion, typical of the information culture, began configuring an interesting model to think over paradoxes of the psychoanalytical setting itself. The study of the transformations of clinical impasses into intersubjective knowledge revealed the "reversion of perspective" by which countertransference is seen, both in the process of an analysis and in the history of the psychoanalytical movement.

Keywords: Countertransference, Enactment, Intersubjectivity, "Real" person of the analyst, Psychoanalysis transmission.


RESUMEN

El objetivo del presente trabajo reside en describir los movimientos grupales en un seminario electivo sobre contratransferencia y enactment solicitado por miembros afiliados a la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo SBPSP, que en su mayoría habitan fuera de la capital paulista. Se creó un programa experimental con una carga horaria distribuida en dos encuentros presenciales, al inicio y al final del semestre, y con comunicación por correo electrónico durante el período intermedio. El coordinador recomendó un texto para cada mes del debate virtual y bibliografía complementaria. El ritmo inicialmente acelerado de los mensajes fue "frenándose" conforme el contenido estudiado, aproximándose a la persona "real" del analista. Durante el transcurso del intercambio de 110 emails las oposiciones entre real/virtual, presencia/ausencia, conexión/desconexión, exposición/ocultamiento, proximidad/distancia, comunicación /confusión; típicas de la cultura informatizada, fueron configurando un interesante modelo para pensar en las paradojas del propio setting psicoanalítico. El estudio de las transformaciones de impases clínicos en conocimiento intersubjetivo evidenció la "reversión de perspectiva" a través de la cual la contratransferencia es vista, tanto en el proceso de un análisis como en la historia del movimiento psicoanalítico.

Palabras clave: Contratransferencia, Enactment, Intersubjetividad, Persona "real" del analista, Transmisión del psicoanálisis.


 

 

As coisas estão fermentando dentro de mim, mas não concluí nada…
O principal paciente que me preocupa sou eu mesmo… (Freud, 1897,
Carta 67 a Fliess)

 

Atendendo à demanda por um seminário eletivo no primeiro semestre de 2011, apresentada por membros filiados da sbpsp, em sua maioria do interior de São Paulo e Minas Gerais, foi proposto um formato experimental que contornasse as dificuldades dos participantes quanto à presença frequente na capital paulista, incluindo o coordenador, que também reside no interior.4

Com a carga horária regulamentar condensada em dois encontros presenciais realizados em 26/02 e 02/07, a comunicação grupal durante o período intermediário ocorreu pela Internet.5 O encontro inicial permitiu a imersão nos temas programados, com troca de experiências clínicas, aquecendo o grupo para o "encontro virtual" que se seguiu via correio eletrônico, no qual a cada mês foi discutido um artigo principal (Alvarez, 1994a; Cassorla, 2007; Gabbard, 1995) e, ocasionalmente, artigos complementares6. O encontro presencial final configurou a emersão do aprofundamento teórico-clínico alcançado, transpondo para o face a face a inédita experiência.

Além de diferentes níveis de envolvimento, que ocorrem em qualquer seminário, experimentamos situações peculiares à era digital. O "setting Internet" facilitou o acesso ao debate, criando paradoxos relativos à clínica psicanalítica, como real/virtual, presença/ausência, conexão/desconexão, exposição/ocultamento, proximidade/distância, comunicação/confusão, entre outros.

Exceto pelo encontro inicial de algumas horas, muitos participantes não se conheciam pessoalmente, de forma que a comunicação desprovida da imagem visual dos interlocutores tornou-se um tanto quanto incômoda. Sem a voz, expressões faciais e corporais, evidenciou-se o valor do contato afetivo, presencialmente.

Mas a possibilidade de ler e reler as mensagens favoreceu aproximações, e a grande liberdade quanto ao momento de acessarmos o grupo constituiu um desafiador exercício de autonomia e de autopercepção nas motivações e dificuldades com o compromisso assumido.

Foi curiosa a contradição entre a economia de tempo pela dispensa de encontros presenciais frequentes e a necessidade que se impôs de disponibilizarmos muitas horas para as estimulantes mensagens. Se pudéssemos calcular o tempo médio despendido nessa troca digital, provavelmente seria bem maior que o de seminários convencionais!

O conteúdo temático, tradicionalmente polêmico, e a variedade de estilos de comunicação nos emails caracterizaram uma dinâmica grupal conflituosa, em dado momento nomeada Torre de Babel.

Retornando a Freud em sua correspondência com Fliess, nos primórdios da transmissão da psicanálise, podemos imaginar a proposta deste seminário formulada mais ou menos assim: Não podendo nos encontrar pessoalmente, e com interesse comum por certos temas psicanalíticos, vamos experimentar trocar "cartas"?

Antes de relatar a troca de emails, abordaremos sucintamente os itens teóricos debatidos.

 

Contratransferência: a evolução do conceito em movimento espiral

A imagem da espiral tem servido como modelo do complexo desenvolvimento do processo analítico, por englobar tridimensionalidade, circularidade em torno de pontos centrais em diferentes planos, aproximações/afastamentos ou evoluções/regressões, conforme o sentido percorrido.

Uma visão histórica da literatura psicanalítica também permite reconhecer um movimento espiralado, no qual certas questões que ocupavam Freud e outros grandes autores retornam, periodicamente, tão intrigantes quanto na época de suas publicações originais.

A contratransferência, com controvérsias e avanços, continua evidenciando a importância da autopercepção do analista em dimensões não sensoriais. Em sua primeira grande publicação, A interpretação de sonhos (Freud, 1900/1990b), ao interpretar seus próprios sonhos, não estaria Freud inaugurando o método psicanalítico com o que tem sido cada vez mais explicitado hoje em dia, ou seja, o olhar do analista para sua própria mente ou para o "sonho e não-sonho a dois" (Cassorla, 2007), sem maiores constrangimentos quanto a levar em conta sua pessoa real?

No recente Congresso da IPA, realizado no México em agosto de 2011, o "moderno" tema enactment foi amplamente abordado. Ora, uma marcha ré em nossa espiral mostra que a riqueza da experiência clínica vivida por Freud (1900/1990b), relatada no paradigmático "sonho da injeção de Irma", pode ser compreendida como o primeiro enactment publicado na história da psicanálise. A interpretação desse instigante material considera, essencialmente, as mesmas experiências emocionais vividas pelo analista no fenômeno atualmente nomeado enactment contratransferencial: intenso envolvimento pessoal com a paciente, resistências sentidas como intransponíveis e angústias agudas relacionadas ao sucesso ou fracasso terapêutico, elaboradas a posteriori pela conexão com inseguranças, rivalidades e outros conflitos deslocados de relacionamentos íntimos pessoais.

Um ponto de partida significativo para acompanharmos a espiral conduzida pelos autores aqui estudados pode estar na seguinte passagem:

Mas tenho outras dificuldades a superar, que estão dentro de mim mesmo. Há uma certa hesitação natural em revelar tantos fatos íntimos sobre nossa própria vida mental, e não pode haver qualquer garantia contra a interpretação errônea por parte dos estranhos. Mas deve ser possível vencer tais hesitações. "Tout psychologiste", escreve Delboeuf (1885), "est obligé de faire l'aveu même de ses faiblesses s'il croit par là jeter du jour sur quelque problème obscur".7 E é correto presumir que também meus leitores logo verão seu interesse inicial nas indiscrições que estou fadado a cometer transformado num interessante mergulho nos problemas psicológicos sobre os quais elas lançam luz.
(Freud, 1900/1990b, p. 127)

 

O dinamismo de uma evolução teórica: Gabbard (1995)

O artigo de Gabbard, "Contratransferência: o surgimento do terreno comum" (1995), aborda a convergência de autores de diversas tradições psicanalíticas em torno da contratransferência, animando a participação grupal no primeiro mês do debate.

Compreendida como fonte crucial de conhecimento sobre o paciente, a contratransferência, enquanto criação conjunta da dupla analítica, tem aproximado várias escolas na observação da subjetividade do analista sugada pelo mundo mental do paciente, inviabilizando a postura historicamente equivocada de neutralidade. Dois conceitos-chave são rastreados: identificação projetiva e enactment.

A identificação projetiva, originalmente concebida por Melanie Klein como fantasia inconsciente ligada à posição esquizoparanoide, é reconsiderada em sua dimensão interpessoal, na particularidade de causar reações no alvo de projeção. Além da análise do analista, valoriza-se a comunicação por parte do paciente de sentimentos intoleráveis, não só a descarga, como na relação mãe-bebê.

Mas Gabbard pontua a preocupação de Klein, herdada de Freud, quanto à culpabilização do analisando pelas dificuldades contratransferenciais do analista: "seria inadequado supor que todos os sentimentos do analista provêm do paciente." (1995, p. 8).

Inúmeras citações8 referem a terminologia sugerida a partir dos anos 40 relacionando contratransferência e identificação projetiva, tais como identificação introjetiva, contratransferência concordante e complementar, contraidentificação projetiva, responsividade, empatia, intersubjetividade, atualização, atuação, entre outros.

O termo enactment, adotado na década de 80, refere-se a dinâmicas inconscientes de caráter persuasivo, levando o par analítico a atuar transferencial e contratransferencialmente vivências traumáticas até então impensáveis, cujo insight decorre da visibilidade que adquirem na própria atuação.

Gabbard observa um continuum que vai da maior contribuição do analista, num extremo, à maior contribuição do paciente, no outro. Em suas palavras:

Existe amplo reconhecimento de que um aspecto inevitável da análise é que o paciente tentará tornar o analista um objeto da transferência. Também, as reações contratransferenciais do analista envolverão uma criação conjunta de contribuições provenientes do paciente e do analista, sugerindo que parte do que o analista vivencia reflete o mundo interno do paciente. Uma das tarefas do analista, em colaboração com o paciente, será, então, a de elaborar o enactment contratransferencial e compreender com o paciente o que está ocorrendo, de maneira interpretativa. A este respeito, os domínios intrapsíquico e interpessoal estão juntos, e a perspectiva positivista do analista como tela em branco não é mais viável. (1995, p. 14)

 

Sutilezas da autopercepção: Alvarez (1994a)

Passamos no segundo mês ao texto de Anne Alvarez, "Problemas técnicos no uso da contratransferência com pacientes borderline", apresentado em conferência na SBPSP em abril de 1994.9

O ritmo de emails do debate sofreu nítida desaceleração, possivelmente por ser um texto que, voltado a nuances da experiência emocional do analista, introduz um clima mais introspectivo.

Partindo da definição clássica de contratransferência e suas controvérsias, Alvarez admite incluir no conceito todos os sentimentos do analista – derivados ou não das projeções do paciente – com exceção do que considera "percepção empática".

Ressalta a importância da contratransferência quando o paciente ignora seu estado emocional que sequer aparece, expelindo poderosamente o que sente. Citando Pick (1990)10, a autora prioriza a elaboração da contratransferência: "O que está ocorrendo é um dueto, não um solo." (Alvarez, 1994a, p. 1).

A noção de perspectiva é associada a manejos técnicos peculiares ao desenvolvimento do paciente, focalizando inconsistências no self e no objeto, e nos processos introjetivos mais que no fenômeno evacuativo. Importa-lhe que um sentimento seja vivido e pensado, abandonando questões supérfluas sobre quem o suscitou. Sua experiência com autistas permite aprofundar a autopercepção na dor de inexistir, contendo interpretações precipitadas, equivalentes a descargas.

 

Modelos de intersubjetividade e "não-sonho": Cassorla (2007)

Retomando a espiral em torno da contratransferência e seu eixo conceitual na mente do analista (Freud, 1900/1990b), imaginamos com Alvarez diâmetros menores do que a abrangente revisão teórica de Gabbard, já que a autora revela suas próprias experiências emocionais na função analítica.

O artigo de Cassorla (2007), "Do baluarte ao enactment: o 'não-sonho' no teatro da análise", concilia essas duas amplitudes. Caminha com vários autores ao redor do eixo contratransferencial, resgatando verticalmente Freud (1900/1990b) e passando, inclusive, por Gabbard (1995). No relato clínico ilustrativo do enactment a espiral contrai-se novamente em direção à mente do analista, acompanhando o recrutamento da dupla por partes psicóticas que paralisam a análise.

Coincidência ou não, o movimento de emails também parou. A proximidade com a pessoa do autor, coordenador do seminário, e o tema da pessoa real do analista estariam interferindo? Retomaremos tais hipóteses adiante.

Nos modelos freudianos do analista como pintor, escultor, arqueólogo, cirurgião, militar, espelho e jogador de xadrez, Cassorla identifica a transição de uma visão em que o analista aparece como mais ativo para outra em que o paciente também é ativo: no metafórico jogo de xadrez o paciente pode derrotálo ativamente.

Outros modelos de intersubjetividade são destacados como "continente/ contido" de Bion, "campo analítico" e "baluarte" dos Baranger, expressando a estagnação da análise em enredos estereotipados.

O "não-sonho" é ponto fulcral nas proposições de Cassorla. Considerando a situação analítica um "sonho a dois" – pensamento onírico de vigília no referencial de Bion –, o analista usa sua capacidade sonhante (função alfa) onde o paciente não pode usar. Ataques de elementos beta e defesas à dor mental excessiva impedem que o não-sonho do paciente seja transformado em sonho pelo analista, levando-os a compartilhar um "antissonho", configuração característica do enactment.

O caso clínico mostra um conluio sadomasoquista crônico com uma paciente com queixas somáticas infindáveis e abortamento persistente das intervenções do analista,11 até o momento em que ele reage energicamente batendo a mão no braço da poltrona. Os conflitos decorrentes acabam favorecendo a recuperação da função analítica.

O termo "act" de enactment é relacionado ao teatro, adotado como modelo no qual o analista assume funções de personagem, espectador, coautor, diretor, crítico e iluminador, flexibilizando seu papel.

Ao apontar a tendência contemporânea de aproximações entre clássicos e intersubjetivistas, este artigo reafirma a clínica psicanalítica enquanto encontro humano e o analista como pessoa que, de fato, é.

 

Expansões na contratransferência: alguns textos complementares

Os artigos indicados como leitura complementar ampliam a visão do campo em estudo, a começar pela legitimação de sentimentos no analista de medo e ódio do paciente (Winnicott, 1947).

A convicção de Freud da necessidade do analista dominar sua contratransferência não significa exigência de simplesmente excluí-la por ser perturbadora; pelo contrário, indica que seu "domínio" favorece a investigação do inconsciente do paciente, tanto é que o abandono da hipnose decorre do reconhecimento da resistência como força de oposição emanada de defesas a serem elaboradas associadamente ao trabalho psíquico do analista (Heimann, 1950/1995).

O perigo de a análise ser governada inconscientemente por forças destrutivas justifica a inclusão das emoções do analista, evitando deixar de fora o amor que mitiga o ódio. A suposição de neutralidade impecável em que o analista não seria afetado pela destrutividade do paciente representa hipocrisia ou insensibilidade (Pick, 1990).

O valor da contratransferência igualado ao da transferência permite que o trabalho psicanalítico evolua em sua dimensão intersubjetiva, relativizando a noção de fracasso terapêutico (M. Baranger & W. Baranger, 1961-1962/2010; Cassorla, 1997; Yardino, 2010).

 

O primeiro encontro

O contato grupal pela Internet começou semanas antes do início propriamente dito do seminário (ocorrido na reunião presencial em 26/02), por meio de um email do coordenador, anexos um texto introdutório (Cassorla, 1997) e o de Gabbard (1995). Além dessas leituras prévias, solicitou-nos levar à reunião o Livro Anual de Psicanálise de 2010 para estudo complementar. Concluindo a mensagem, considera: "Por se tratar de uma nova experiência teremos que criá-la em conjunto."

No referido sábado,12 as leituras e a aproximação grupal contribuíram para um mergulho no assunto, tratado com especial autenticidade quando escrevemos anonimamente e em poucas palavras uma concepção pessoal de contratransferência: "todo sentimento que cega", "reprodução de objetos internalizados", "vivência estranha aproximando de sentimentos não falados", "um caminho das questões do paciente", "um provocar mútuo", "enactment", "bússola empática"…

Lemos o artigo de Yardino (2010) comentando sobre ressonâncias da identificação projetiva e movimentos criativos que transformam impasses ou enactments em campos de contato. Consideramos contraindicações técnicas da confissão contratransferencial pela sobrecarga ao paciente, além de questões gerais sobre o desenvolvimento da psicanálise refletido em mudanças de posicionamentos divergentes para diferentes, de verdades absolutas para relativas.

O artigo dos Baranger (1961-1962/2010) e o de Heimann (1950/1995) foram indicados como leitura complementar.

 

Dialogando no espaço virtual

Em 01/03 é aberto o debate com novo email do coordenador definindo o prazo até 31/03 para discussão de Gabbard e solicitando ao menos dois comentários com dúvidas, questionamentos, associações ou ampliações.

Apesar do incômodo de algumas perdas de mensagens devido a falhas humanas nos endereços eletrônicos e a eventuais desatenções ao "Responder a todos", ou pela simultaneidade de envios, foi possível recuperá-las graças ao permanente cuidado do coordenador com a "colagem" e reenvio ao destinatário coletivo.

Além do cuidadoso acompanhamento, a participação do coordenador restringiu-se a algumas sínteses ou esclarecimentos teórico-clínicos, com a colaboração da monitora nesse mesmo sentido.

Em 06/03, dois emails são enviados em horários próximos, sem conhecimento um do outro, inaugurando a troca entre os participantes13.

Enfatizando a diversidade de questões levantadas por Gabbard, o primeiro privilegia questões teóricas que remetem ao fato do conhecimento psicanalítico não ser construído no campo das ciências positivistas e não se prender a verdades definitivas:

Há tanta coisa a ser comentada que tenho dificuldade de saber por onde começar, mesmo assim arrisco-me a iniciar pela questão do sentido, significado e desenvolvimento dos conceitos. Cada conceito criado por Freud sofreu inúmeras mudanças efetuadas a princípio por ele mesmo, e depois pelos diversos analistas… A questão é que os desenvolvimentos levam a expansões (e às vezes distorções).

No segundo email, o olhar clínico focaliza a importância da subjetividade do analista:

Penso ser inerente ou até mesmo o que define o processo de análise a condição do paciente "usar" a mente do analista como "receptor" de sua maneira de ser. Sendo (a meu ver) a condição inerente ao processo, esse analista precisa cada vez mais "afinar-se" consigo mesmo a fim de saber de si e discriminar-se de seu paciente. Talvez lá na frente, ao discutirmos a pessoa real do analista, possamos incluir algo nessas ideias.

Os dois colegas continuam dialogando sobre confusões conceituais, considerando o contraste entre a concepção intersubjetiva de contratransferência e a ortodoxa que a vê como um problema a ser evitado. Segue uma oportuna sugestão: "Acho que seria interessante falarmos de nossas vivências pessoais na clínica… enriqueceria muito o debate teórico."

De pronto a sugestão foi atendida: "Por muito tempo a questão da contratransferência foi um tabu… Entre alguns analistas havia medo e vergonha de expor sentimentos e fragilidades". Relatando uma vivência clínica a colega reconhece que atuou sua identificação com sentimentos de desprezo comunicados por um paciente com características perversas, reconduzindo-nos ao centro da espiral imaginária: "Conforme ele contava os detalhes eu ia sentindo uma angústia, não queria ouvir o que ele me dizia… fui sendo invadida por um sentimento de desprezo… procurava dentro de mim a analista."

Após mensagens concordantes chegam dois emails com depoimentos clínicos. No primeiro, admitindo a necessidade de mais análise pessoal (como outros também admitiram), a colega relata uma experiência na qual a paciente apresenta um problema familiar semelhante ao seu: "Isso veio como um raio que entrou em mim e me arrebentou." No outro, situações de difícil manejo mostram impactos da violência emocional na função analítica: "a paciente vai se inclinando na minha direção, seus olhos vão ficando cada vez mais arregalados e injetados… chego a ficar atordoada com toda aquela descarga."

Discutindo técnica, alguns emails valorizam o contato com os afetos: "O analista terá que encarar a dor psíquica como ingrediente intrínseco ao crescimento mental." Uma colega contrapõe representação e experiência emocional:

O paciente, ao interagir comigo, ativa em mim fantasias primitivas que desencadeiam afetos. É essa a ferramenta, a do afeto consciente, da qual disponho. Caso essas fantasias tenham sido elaboradas em minha análise, posso usar este afeto como ponto de partida para pensar sobre o aqui e agora da dupla. Caso contrário, sou de fato sugada.

Surgem desconfortos com uma suposta desarticulação das mensagens atribuída a sua extensão14: "Não conseguimos até agora articular de fato um debate…quem sabe se resumirmos nossa escrita o máximo possível para facilitar a leitura dos colegas." A liberdade de ritmo é então defendida:

Concordo que seria muito bom escritas mais rápidas que nos permitiriam ler, pensar e responder mais prontamente. Por outro lado também tem sido muito interessante tudo que tem sido escrito e compartilhado… talvez esses estímulos sejam mesmo para serem pensados (aos poucos), sem a obrigação de serem "respondidos" de imediato.

Aparecem, assim, diferentes expectativas em relação ao "debate virtual", indicando a superposição de significados implícitos: debate conceitual, intelectual, clínico, emocional, temporal, institucional, ideológico ou, até, a experiência de "debater-se" nesta inédita imersão na web.

Sentindo-se "um pouco confusa quanto a esta forma de trabalho", uma colega comunica uma experiência clínica relacionada a um trágico evento que chegou à imprensa. Recolocando o foco na pessoa real do analista, comentou sua vivência com a paciente envolvida em tal tragédia:

Comecei a sentir o quanto ela mobilizava em mim afetos angustiantes e ficava impregnada depois da sessão… tive que pedir para o próximo paciente me aguardar um pouco para me recompor. Levei o caso para supervisão, análise… Senti-me paralisada, sem condições de pensar.

Outra colega comenta: "É, estamos numa área de risco… Brincando um pouco: e dá-lhe análise!"

Com o bom humor também se fazendo presente, fomos trabalhando com a complexidade da experiência e interlocução psicanalíticas. Após ler o original de Gabbard, em inglês, um colega refere nuances de tradução, outro fator complicador.

Mas, como no texto de Gabbard, há convergências ou consensos também entre nós:

Desde os comentários acerca da teoria até os emocionantes relatos clínicos mesclados por tantos sentimentos e pensamentos dos respectivos analistas, me pareceu que o "fato selecionado" ou o "mínimo denominador comum do debate", é a questão da autoanálise necessária enquanto o analista estiver com seu paciente.

Nas poéticas palavras de outra colega:

O rastreamento que Gabbard fez das ideias destes grandes autores nos aproxima mais e mais destes variados "materiais radioativos" (pelo seu poder de contaminação) que brotam incessantemente de dentro de nossas relações analíticas. E com esse material bélico todo cuidado (técnica) é pouco! Parece convergente também entre os colegas o uso da contratransferência na compreensão do paciente.

O clima consensual logo muda:

À medida que lia o texto sentia essa enxurrada de informações. Parece que sofri uma avalanche e todo o pouco que eu sabia foi levado embora. Acho complexo e surpreendentemente intrigante… o coordenador conseguiu nos deixar com a cabeça fervendo. Estou a própria analista que sai incomodada da sala de análise sem saber direito o que aconteceu, mas profundamente mexida…

Após articular contratransferência e "espaço potencial", outro email com relato clínico remete (sem referência direta) ao enactment vivido por Yardino (2010): analista e analisando se desencontram no horário da sessão em frente ao consultório depois de atuações transferenciais e contratransferenciais, como um "esconde-esconde doido".

Compartilhamos inquietações em relação à experiência contratransferencial e ao próprio debate: "Colegas, tem sido muito inquietante para mim essas situações da clínica com pacientes que provocam sentimentos primitivos como irritação, de estar sendo controlada, de impossibilidade de penetração, de opressão, de não poder pensar meus próprios pensamentos." Quanto ao debate, outro email: "Sinto que o grupo está sem sintonia de continuidade – comum a uma condição esquizoparanoide – pois uma ideia é lançada e logo se perde no emaranhado de outras."

Algumas formulações emergem de um vértice interessante para considerar a função analítica ou ideias bionianas como "pensamentos sem pensador" e "linguagem de êxito":

Acabei me dando conta que além do texto de Gabbard havia os textos de todos vocês. Cada um me tocou de forma diferente… tentava associar o texto ao autor, tarefa impossível pois não conheço a maioria dos integrantes do grupo, não tinha referências de quem dizia o que. Quando nos chega um novo paciente, também não temos ideia de quem é… estou experimentando a vivência da fala "sem" o corpo… faz pensar na força do relato, no formato da comunicação… ainda não alcancei toda a riqueza que isso pode trazer como exercício para o psicanalista. Um abraço (de corpos).

Na mesma linha, outro email:

Esta inquietude surgindo de alguns colegas (e minha também) para chegar a uma maior adaptação ao debate pode ser um fenômeno grupal desta diferente interação via internet… penso que uma nova ordem possa ser descoberta a partir das vibrantes manifestações.

Posteriormente, outro:

Há certos comentários que impactam mais que outros e recebem resposta, tornam-se sólidos. Já outros ficam soltos no ar. Mexem no clima, mas como microelementos. O quanto e o que estimulam em nós? É uma nova experiência conversar sem um verdadeiro outro, mas com uma nuvem de outros…

Segue-se um turbilhão de mensagens. A monitora procura dar um contorno a três perspectivas presentes – teorias e conceitos, experiências clínicas e experiências em relação ao debate. Considerando vivências de saturação e dispersão, comenta:

Acho prudente não confundirmos inevitáveis diferenças de pontos de vista com uma espécie de "vale tudo" conceitual, pois a teorização científica em psicanálise implica muita dedicação na análise pessoal, na clínica, na supervisão, nos estudos e nos seminários, o que permite certa estabilidade aos fundamentos dos conceitos… As experiências clínicas sensivelmente descritas enriquecem a reflexão sobre a dialética das dimensões intrapsíquica e interpessoal… Tão interessantes os comentários sobre nossa inédita experiência via Internet… Um laboratório para a "pessoa real" do analista que somos?

Segue um email do coordenador, aprofundando e esclarecendo questões centrais:

O conceito clássico de contratransferência implica fatores inconscientes do analista que respondem à transferência do paciente, fruto de pontos cegos e conflitos próprios não suficientemente elaborados… demandando análise pessoal. O conceito totalístico é o que Gabbard coloca, e envolve fatos conscientes e inconscientes… tudo o que ocorre dentro do analista seria fruto de sua contratransferência e ela serviria também como instrumento diagnóstico. Atualmente há uma tendência a investigar aspectos mais finos da contratransferência: 1. O que é transferência do analista, fruto de suas características pessoais; 2. O que é transferência do analista à transferência do paciente; 3. O que é consciente, empático (o conceito de empatia é ainda mais controverso) e o que é inconsciente; 4. É possível para o analista entrar em contato com sua contratransferência inconsciente ou ela somente poderá ser vista a posteriori, em autoanálise ou análise pessoal? 5. Qual o alcance da autoanálise do analista (no instante em que se sente envolvido contratransferencialmente, ou mesmo depois)? 6. O paciente pode tornar-se "terapeuta" de seu analista em determinados momentos? 7. É possível separar transferência de contratransferência ou estamos frente a um complexo imbricamento cuja discriminação é impossível? 8. Finalmente: frente a toda essa confusão não seria melhor deixarmos de usar o termo "contratransferência" e passarmos a utilizar algo como "experiência emocional" do analista, "transformações" efetuadas pelo analista, ou pela dupla (já que nem sempre se sabe de onde provém a transformação)? … O importante é que, em algum momento, cada um de vocês acabará por escolher as ideias que melhor lhe fizerem sentido, a partir de sua experiência clínica… Todos terão pensamentos originais.

Quanto ao debate digital, o coordenador continua: "Que tal o seguinte modelo: os escritos que lemos servem como resto diurno… que nos estimula a sonhar. Ressonhar o sonho do colega, em outras vertentes… Seria nossa contratransferência (no sentido totalístico) ao material do colega."

As mensagens prosseguem: "Independente destes deslizes na prática analítica, a rêverie e o vínculo são fundamentais. Não me percebo tão sonhadora ou crédula, mesmo assim creio que sempre existe algo a fazer." Outra: "Os pontos enumerados pelo coordenador fazem entrever o trabalho que está pela frente…" E outra: "Ainda fica uma sensação de algo muito grande que parece que vai tomando forma aos poucos…"

Os enactments até então relatados envolviam hostilidade, levando à recomendação, por um colega, da leitura de "O ódio na contratransferência" (Winnicott, 1947). Outro email alerta para reações contratransferenciais relacionadas a sentimentos amorosos, sedutores "tão ou mais difíceis de manejar… alimentam aspectos narcísicos do analista."

Inúmeros vértices são contemplados: "Relendo a síntese do coordenador eu ia pensando: 'é isso', 'isso também', 'pode ser isso também', enfim, todos os conceitos me pareciam possíveis dependendo do paciente, do analista, do momento de cada um e da análise."

Entre outras reflexões relativizando a noção de verdade, são enviados dois poemas, de Drummond e de Borges.15

Paradoxalmente ao clima de sintonia e introspecção, manifestações de incômodos com o espaço virtual continuaram, suscitando a ideia de um encontro presencial extra, além da proposta de transferirmos nosso grupo para o Yahoo. Ambas foram descartadas por resistência da maioria ou, talvez, por serem expressões de dificuldades com os temas, aos poucos superadas, e não propriamente com o "setting virtual", fenômeno recorrente na psicanálise e na vida.

Como colocado em um email citando Bion: "Dispomos de um universo de discurso finito para representarmos um universo de acontecimentos infinito." Outro: "Não há como 'não estar, ficar ou ser' cindido e confuso enquanto grupo, até para poder crescer."

Em 01/04 passamos ao texto de Alvarez (1994a). A frequência de emails caiu de cerca de 70 mensagens em março para 13 em abril. Sem podermos precisar até que ponto houve um entusiasmo inicial e o interesse diminuiu, o fato é que a desaceleração resultou em um contato aprofundado com o conteúdo do texto. Lembrando do autor argentino Bleger, um colega comenta:

Quando estudamos um determinado tema, esse tema entra na dinâmica emocional do que acontece no grupo e não fica apenas no plano intelectual. A experiência aqui está não no texto, não na autora, não nos pacientes, mas em nós mesmos, portanto, é preciso antes de tudo coragem.

Configurou-se certo recolhimento grupal na contraposição entre perspectiva e projeção. Citações literais de Alvarez foram recorrentes, em tom indagativo, como se estivéssemos nos dando conta mais profundamente das variações de perspectivas, em maior sintonia interna.

Um email elucidativo relata vivências na análise de um autista:

L. sobrevivia em seu isolamento cognitivo-afetivo-social, onde eu era mais um "não sei o quê" das séries de coisas que ele pegava ou largava, como objetos inanimados mesmo. O que mais me mantinha ligada a ele eram seu olhar atento, rápido e às vezes furtivo e sua energia e força físicas, quase inumanas, mas vivas! … estão presentes elementos como posição, proximidade e perspectiva, além de tentativas para aproximação e foco de um olhar.

De uma "perspectiva autística", inconscientemente qualquer pessoa experimenta vazios e a falta de uma "companhia viva". Nesse sentido, certos enactments podem corresponder a demandas autísticas, mesmo em pacientes não autistas, para explorar no analista a possibilidade de conter e elaborar dores profundas de ser "um não sei o quê", autômato, coisa.

Em maio, com o artigo de Cassorla (2007), a desaceleração em nossa troca curiosamente chega ao "breque": pela primeira vez durante 15 dias nenhum email foi enviado. Considerando o contato próximo com o autor – coordenador do seminário – e, circunstancialmente, seu afastamento por férias na primeira semana do mês, seria possível supor componentes transferenciais no inédito "silêncio" grupal?

A hipótese foi levantada pelo próprio autor/coordenador próximo/distante em um email enviado em 16/05, quando o debate começou a ser lentamente retomado. Sem descartá-la, os colegas associaram outras justificativas para a interrupção: sobrecarga, maior dispêndio de tempo em relação a seminários convencionais, desmotivação pelo retraimento grupal anterior, além da densidade do texto em pauta.

O coordenador lidou com sentimentos estimulados pelas situações, como dúvidas em relação à qualidade de sua coordenação e da bibliografia escolhida, sendo que a monitora também vivenciou inseguranças quanto à qualidade de sua colaboração. Como todo o grupo, ambos experimentaram inquietações com a quantidade e o fluxo das mensagens.

Mas, conforme novos emails foram chegando, surgiu um interessante processo elaborativo. Foi mantido o mesmo texto em junho, até o final do seminário, totalizando 28 emails nessa última etapa.

O modelo do teatro utilizado por Cassorla desencadeou associações com a própria clínica e com enactments, como nas mensagens de diferentes colegas:

Estive pensando sobre o material clínico que relatei a vocês [em março]… caímos numa área [chamada pelo autor] diplomática.
Este texto me remeteu a uma situação de atendimento atual de uma paciente com quem comecei a fazer atos falhos.
Ao ler vi-me em contato com experiências pessoais e clínicas que se vitalizaram por novas aberturas e significados.

A conexão com os afetos é valorizada em seu potencial transformador: "O paciente percebe algo de si por uma experiência e não por uma interpretação." Outro email: "Há necessidade de aceitarmos a 'reencenação' daquilo que não pôde ser representado e que só sendo revivido através de um acting, acompanhado pela experiência emocional 'digerida', tem a chance de ganhar status de representação."

Segue o relato de um filme16 em analogia ao enactment: o protagonista com traumas de guerra é internado em uma clínica psiquiátrica onde é "recrutado" por sintomas semelhantes aos seus manifestados por outro paciente, com benefícios terapêuticos improváveis em tratamentos tradicionais.

A conceituação de enactment é questionada no adjetivo "patológico" associado ao termo quando há identificações projetivas massivas: "Concordo com uma dificuldade em conceituar enactment e a condição de patologia nele embutida. Será que o que chamamos patologia não poderia ser melhor descrito como uma etapa necessária do processo que gostaríamos de pular?" Outra colega recupera o texto "Construções em análise", de Freud (1937/1990c), sugerindo serem os enactments uma espécie de atualização conceitual da concepção freudiana de "construção", ou seja, sua versão "contemporânea, moderna e mais profunda", efetuada ao vivo.

Assim nossa espiral continua circulando em variados ritmos, em um vai e vem por diversos planos da teorização psicanalítica… Vários autores foram citados além da bibliografia recomendada, revelando-se um grupo bastante estudioso.

Como com Gabbard e Alvarez, também com Cassorla o eixo central do debate foi encontrado na liberdade para olhar a mente do analista em sua real vulnerabilidade. Se a proximidade com o autor a princípio causou algum bloqueio, a interlocução direta com sua pessoa favoreceu uma experiência de aprendizado inovadora, não tanto pela sofisticação tecnológica da Internet, mas principalmente pela transparência que caracterizou o diálogo grupal em assunto tão controvertido.

 

O segundo encontro presencial

Em 02/07 o grupo emerge de seu mergulho na web com a presença de 23 participantes, na paradoxal experiência de intimidade simultânea ao estranhamento pelo fato da maioria estar se encontrando pessoalmente pela segunda vez.

A proposta do coordenador de retomarmos os casos clínicos relatados nos emails reacendeu o clima de proximidade real/virtual. Os conceitos foram reelaborados abordando questões como: área psicótica impensável, traumas, traumatismos, áreas autísticas, "pele grossa e pele fina" (Rosenfeld, 1988), "todo terrorista é uma pessoa aterrorizada" (Sapienza, 1987), contratransferência e experiência emocional (Bion, 1967), entre outras.

Ao final, o coordenador solicitou autoavaliações individuais a serem enviadas a seu email, para depois reenviá-las, sem identificação, a todo o grupo. Propôs, ainda, que escrevêssemos um relato da experiência, motivando-nos a estender ao leitor as reflexões aqui comunicadas.

 

Descontração e autoavaliação

Nos dias seguintes ao último encontro, o tema "perspectiva", que tão seriamente nos ocupou, foi compartilhado em novos emails que surpreenderam pelo bom humor, com anedotas, dicas de exposições em cartaz (como a de Escher), caracterizando uma descontraída despedida.

Além de desconfortos com a novidade do contexto de estudo e com a quantidade de emails, as autoavaliações indicaram ganhos significativos quanto à compreensão dos conceitos relacionados à contratransferência, à sua evolução histórica e à percepção dele no setting analítico.

De modo geral, impasses clínicos foram vistos com menos constrangimento por meio de um olhar científico para o fenômeno contratransferencial, como no comentário: "Agora percebo meu desconforto com mais conforto."

Houve interesse por novas trocas pela Internet, como por Skype, e pela continuidade do estudo em seminários presenciais.

 

Considerações finais

Ao longo de cerca de 110 emails, a elaboração do conteúdo temático do seminário foi construída concomitantemente à apropriação do espaço da Internet enquanto um didático modelo para pensar a clínica psicanalítica.

As inquietações decorrentes da privação sensorial imposta pelo setting virtual foram uma constante. Mas tal privação não seria um exercício favorável ao estudo da função analítica, no sentido de um olhar interno relativamente desprendido do plano externo? Ou, por este vértice mais concreto, a pregnância das palavras e da estética textual na apresentação por escrito das ideias, em contraste com sua volatilidade na comunicação oral, não estaria promovendo o cuidado com a publicação (escrita ou não), ou até exercitando a escrita para futuros relatórios?

De qualquer modo, a riqueza do material publicado nessa centena de emails implicou um esforço de elaboração considerável, individual e coletivo.

Vivenciamos conflitos pelo tempo despendido, com grande variação de disponibilidade. Essas oscilações na conexão ao debate teriam alguma relação com os diferentes graus de abertura em nossas "caixas de entrada" junto aos colegas em seminários convencionais, aos analisandos na escuta clínica ou na vida?

A qualidade da escuta depende da possibilidade de considerar eticamente diferentes perspectivas, aprendizado precioso obtido nesses meses no ciberespaço.

Vimos que a concepção clássica da contratransferência como patologia do analista que obstrui seu trabalho vem sofrendo uma verdadeira "reversão de perspectiva" por outros pontos de vista que a reconhecem como principal instrumento da função analítica, no sentido de que a pessoa real do analista e a pessoa real do analisando elaboram, em parceria, o conhecimento psicanalítico emocionalmente experimentado.

Ao que parece, o maior representante da visão ortodoxa – Freud – é também o principal precursor da visão intersubjetiva contemporânea voltada à mente do analista, como mostra a interpretação de seus próprios sonhos ousadamente publicada em 1900 e atualmente postada e lida na Internet em versão digital!

 

Referências

Alvarez, A. (1994a). Problemas técnicos no uso da contratransferência com pacientes borderline. Conferência proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 7 de abril.         [ Links ]

Alvarez, A. (1994b). Tornando o pensamento pensável: perspectivas sobre introjeção e projeção. In A. Alvarez, Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas (pp. 88-102). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Baranger, M. & Baranger, W. (2010). A situação analítica como um campo dinâmico. Livro Anual de Psicanálise, 24, 187-214. (Trabalho original publicado em 1961-1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1967). Second Thoughts – Selected Papers on Psycho-Analysis. London: Heinemann.

Cassorla, R. M. S. (1997). No emaranhado de identificações projetivas cruzadas com adolescentes e seus pais. Revista Brasileira de Psicanálise, 31 (3), 639-676.         [ Links ]

Cassorla, R. M. S. (2007). Do baluarte ao enactment: o "não-sonho" no teatro da análise. Revista Brasileira de Psicanálise, 41 (3), 51-68.         [ Links ]

Freud, S. (1990a). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 1, pp. 251-384). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1892-1899)        [ Links ]

Freud, S. (1990b). A interpretação de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4-5, pp. 323-566). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1990c). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 289-304). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Gabbard, G. O. (1995). Contratransferência: o surgimento do terreno comum. International Journal of Psychoanalysis, 76, 475-485. (T. M. Zalcberg & H. Pedreira, trad., 2000. Tradução não publicada, disponível na Biblioteca da SBPSP)        [ Links ]

Heimann, P. (1995). Sobre a contratransferência. Revista de Psicanálise de Porto Alegre, 2 (1), 171-176. (Trabalho original publicado em 1950).         [ Links ]

Pick, I. B. (1990) Elaboração na contratransferência. In E. B. Spillius (Ed.), Melanie Klein hoje, desenvolvimentos da teoria e da técnica (Vol. 2, pp. 47-61). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Rosenfeld, H. (1988). Impasse e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Sapienza, A. (1987). Comunicação pessoal a Roosevelt Cassorla.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1947). O ódio na contratransferência. In Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978, pp. 341-353.         [ Links ]

Yardino, S. M. (2010). "Ponto de quebra": um momento significativo na transferência. Livro Anual de Psicanálise, 24, 9-16.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Clara Duarte Gavião
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Roosevelt Moisés Smeke Cassorla
Av. Francisco Glicério, 2331/24
13023-101 Campinas, SP
Tel: 19 3234-8414
E-mail: rcassorla@uol.com.br

Recebido em: 17/09/2011
Aceito em: 1/12/2011

 

 

1 Membro associado da SBPSP.
2 Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Membro efetivo e analista didata da SBPSP e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas.
4 Módulo Eletivo "Desenvolvimentos em técnica analítica: contratransferência, enactments e a pessoa real do analista", coordenado por Roosevelt Moisés Smeke Cassorla, com monitoria de Ana Clara Duarte Gavião. Participantes: 24 Membros Filiados ao Instituto da SBPSP (16 residindo fora da cidade de São Paulo) – Ana Maria Calazans de Toledo Piza, Ana Patrícia Rosa Ribeiro, Antonia Maria de Almeida Camargo, Camila Paiva Petean Danesi Rossi, Diva Aparecida Cilurzo Neto, Eliane Saslavsky Muszkat, Fauzi Palis Jr., Francesca Maria Ricci, Guilherme Alencar Lacombe, Ivana Márcia Cavicchioli de Marino, Leila Zipoli Martinez Di Renzo, Lídia Maria Chacon de Freitas, Mara Guimarães Pereira Lima Degani, Marcy Motta
Carmona Gerbelli, Maria Bernadete Figueiró de Oliveira, Maria Cecília Ramos Borges Casas, Maria Cristina Aoki Sammarco, Maria Lúcia de Almeida Console Simões, Neuci Maria
Gallazzi, Patrícia de Campos Lindenberg Schoueri, Roberta Abreu Sodré de Toledo Piza Bonde, Rosangela Bernardi Gonçalves, Rubens Hirsel Bergel, Walkiria Nunez Paulo dos Santos e um Membro associado da sbprp – Maria Roseli Pompermayer Galvani.
5 Crédito de 12 horas/aula referentes a oito seminários presenciais condensados nas datas mencionadas, sem carga horária computada durante a comunicação pela Internet.
6 Alvarez (1994b), M.Baranger e W.Baranger (1961-1962/2010), Cassorla (1997), Heimann (1950/1995), Pick (1990), Winnicott (1947) e Yardino (2010).
7 "Todo psicólogo é obrigado a confessar até mesmo suas próprias fraquezas, se acreditar que assim lança luz sobre algum problema obscuro."
8 Como o objetivo central do presente artigo é comunicar de maneira abrangente as experiências neste formato de seminário, procuramos situar o leitor na bibliografia estudada e não propriamente aprofundar a discussão teórica.
9 Ano da publicação de seu livro Companhia viva, cujo capítulo 6 estudamos como texto complementar (Alvarez, 1994b).
10 Outro texto complementar de nosso estudo.
11 Apesar de não mencionada por Cassorla, aproveitamos nosso "passeio pela espiral" para observar uma interessante similaridade entre o aprisionamento em sintomas somáticos de sua paciente "K", assim designada neste relato clínico, e o da paciente Irma do famoso "sonho modelo" de Freud (1900/1990b), com poderosa força de obstrução do processo analítico.
12 Os dois encontros presenciais ocorreram na antiga sede da SBPSP, na rua Sergipe.
13 A autoria individual dos emails não foi identificada, privilegiando a perspectiva do conteúdo grupal.
14 As mensagens aqui reproduzidas correspondem a trechos ilustrativos, sendo que sua transcrição integral demandaria um espaço bem mais extenso e inviável nos limites de um artigo.
15 "Verdade", de Carlos Drummond de Andrade (1984), e "O outro tigre", de Jorge Luis Borges (1960).
16 "Adam – memórias de uma guerra" (2008), baseado no livro de Yoram Kaniuk (1968).

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