BREVES ESCRITOS

 

Resenha: adoção – vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva

 

Review: adoption – Making and breaking affectional bonds

 

Reseña: adopción – vínculos y rupturas

 

 

Autora: Cynthia Peiter
Editora: Zagodoni, São Paulo, 2011
Resenhado Por: Denise Salomão Goldfajn¹

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Endereço para correspondência

 

 

Há boas razões para ler o livro de Cynthia Peiter: Adoção – vínculos e rupturas: do abrigo a família adotiva. A primeira e mais urgente é que há pouca literatura sobre o tema. O livro de Peiter trata da adoção tardia, ou adoção de crianças maiores, como a autora prefere chamar. À partir da experiência clínica da autora em casos de adoção, lemos sobre o atendimento à Joana, uma menina de quatro anos, órfã e em transição para uma nova família. A autora fez um estudo abrangente das relações institucionais que afetam o setting e a relação analista-paciente, e de todas as instâncias sociais que permearam esse encontro entre paciente e analista – abrigo, profissionais, famílias. O resultado é que esse livro nos fornece uma fotografia multidimensional de como está o processo de adoção de crianças maiores em nosso país.

A segunda razão para ler esse livro, que acredito ser a mais prevalente, é termos em mãos um excelente exemplo de pesquisa clínica psicanalítica, onde a autora, como analista, mantém-se fiel à função de investigadora dos processos psíquicos, primeiramente na díade paciente analista, onde prioriza a observação daquilo que chama de "movimentos psíquicos," e que entendo como o acolhimento pela analista do constante movimento da paciente de construir e romper vínculos afetivos. É a partir do acolhimento desse movimento que o par analítico cria um lugar seguro para que a paciente possa investir em suas imagos parentais, o que assegura o crescimento psíquico da paciente e facilita sua transição – seja em seu crescimento emocional, seja na transição para uma nova família. Todo esse processo não se dá sem grande angústia. Os temas humanos mais contundentes se apresentam no relato desse caso clínico; abandono, luto, reconstrução. Para isso a autora nos ajuda a pensar, mostrando-nos o caminho através das ideias de Winnicott, Green e outros autores de escolas psicanalíticas relacionais.

Peiter ressalta:

A narração do material clínico que parece nos envolver em uma atmosfera afetiva, nos emociona, mas também nos ensina … Podemos estudá-lo na investigação dos movimentos psíquicos vividos por uma criança nesse período de transição; ou podemos refletir sobre as consequências dos rompimentos de vínculos entre crianças de tenra idade e os desdobramentos na realização de novos vínculos. Mas podemos também aprofundar conhecimentos sobre alternativas de intervenção clínica junto a circunstâncias especiais, buscando atender a uma demanda de casos mais ligados a problemáticas sociais de nosso país. O caso abre perspectivas também para uma reflexão sobre práticas de outras áreas afins, levando conhecimento da clínica psicanalítica a outras disciplinas que também se ocupam do tema da adoção. (Peiter, 2011, p. 43)

O relato do caso termina, mas a autora prossegue em sua investigação observando os mesmos movimentos psíquicos de vincular e romper, agora em torno da dupla paciente/analista, ou seja, analisando as instâncias sociais que lidam com a inserção da criança maior em seu processo de adoção. O mesmo olhar clínico da analista dentro do consultório com Joana é usado na desconstrução de pré-conceitos que acometem essas crianças, socialmente vistas como abandonadas, embora muitas vezes se sintam acolhidas em seus abrigos transitórios, tendo que romper com esses vínculos primários para refazer novos vínculos familiares. A autora questiona: uma criança que é deixada, necessariamente não é somente abandonada, mas ela tem que lidar com a construção de uma família dentro de si. A mãe que abandona pode ser a mesma mãe que permite que outro cuide daquilo que ela não pode cuidar. Há pressa em acelerar um processo de adoção, que muitas vezes independe do tempo cronológico, mas dependerá principalmente de cada criança e de seu amadurecimento frente a tantas rupturas traumáticas por elaborar. Peiter, além de relatar o caso Joana, utiliza outras vinhetas clínicas para ilustrar que o acompanhamento psicanalítico dessas crianças é fundamental para facilitar o processo de adoção, preparando a criança e a nova família para um enlace menos turbulento. A autora mostra como o entendimento da dinâmica dessas crianças em sua condição jurídica e social pode oferecer subsídios para que programas de ação social nessa área sejam desenvolvidos.

Por exemplo o papel do terapeuta, que como afirma Peiter, deve ser o lugar do Intermediário:

A figura do terapeuta, como afirmei, passa a ser representante e memória de um passado, e simultaneamente aponta para um futuro fazendo a mediação entre dois momentos importantes da história da criança. Assim também com a figura do profissional intermediário que faz a preparação descrita. Trata-se de um lugar bastante especial, no qual se instala um vínculo que paradoxalmente fala de separação e união. É também um lugar que sustenta uma passagem permitindo o compartilhamento de angústias com um adulto que reassegura uma continuidade e sustenta possíveis experiências que poderiam ser vividas catastroficamente. (Peiter, 2011, pp. 82-83)

O entendimento e atenção a essas fases de construção e elaboração são importantes para que a adoção tenha sucesso, assegurando o crescimento da família adotiva e da criança adotada.

Uma outra contribuição importante da pesquisa de Peiter é o estudo das motivações psíquicas que levam uma família a adotar uma criança.

Os dados revelados por essas pesquisas apontam para a predominância de dois perfis adotantes. Um grande grupo que traz motivações ligadas a tentativas de contornar a impossibilidade de procriação biológicas … portanto, narcísicas. Outro grupo, que busca adotar crianças maiores e, em um percentual significativo, relaciona seu desejo com motivos considerados, pelos pesquisadores, altruístas, … de ajuda e colaboração social. (Peiter, 2011, p. 95)

Conforme Peiter, famílias que têm por motivação um preenchimento narcísico têm um lugar psíquico melhor estabelecido para a criança:

As concepções do filho como continuidade de si, como herdeiro e prolongamento da própria existência, que trazem resíduos do narcisismo perdido dos pais, podem facilitar o processo identificatório entre pais e crianças. Assim exercem função essencial no estabelecimento do período idílico, de ilusão primordial inerente ao papel da família com anfitriã da criança recém-chegada. (Peiter, 2011, p. 96)

Ainda acompanhando o movimento psíquico de vincular e romper, um último capítulo é dedicado às fantasias dos pais de revelar e elaborar as narrativas na adoção, como e quando contar e conversar com os filhos adotivos sobre adoção e sua vida pregressa:

Assim, a elaboração de narrativas que integram passado e presente trazem significados àquilo que foi vivido por pais e filhos, mas, acima e tudo, permitem uma vinculação afetiva na nova rede familiar que permitirá construções de outras histórias. (Peiter, 2011, p. 120)

Uma terceira razão para ler esse livro é o mero prazer de se deixar levar pela leitura curiosa. Esse é um livro bem escrito e com um projeto gráfico agradável. Por ser bem escrito, é um livro de fácil leitura, embora não menos sofisticado em ideias. Não se trata de um livro leve, pois o tema mobiliza, uma vez que somos todos adotados e adotantes em termos dos vínculos que fazemos e rompemos a cada dia.

O impacto dos "movimentos psíquicos" permanece após a leitura desse livro. Esse impacto me levou a divagar sobre os primórdios da psicanálise de crianças onde Anna Freud, Esther Bick, John Bowlby e Winnicott construíram suas teorias, a partir de suas observações sobre o valor e o cuidado que se deve ter para que os vínculos emocionais possam se estabelecer. Foi a partir da observação de crianças órfãs, institucionalizadas, traumatizadas pela guerra que esses autores puderam formular as primeiras ideias sobre a importância da formação dos vínculos emocionais e criar teorias instrumentais para a compreensão do funcionamento humano, inaugurando assim a psicanálise relacional como entendemos hoje. Como Cynthia Peiter faz em seu livro, também eles se perguntaram, o que tem a psicanálise a contribuir para melhorar as políticas sociais de atendimento a essas crianças? Com essas questões em mente, espero que o leitor compartilhe minhas razões para ler esse livro ou encontre outras para além daquelas que descrevi.

 

 

Endereço para correspondência
Denise Salomão Goldfajn
Av. Faria Lima, 1826, sala 813
01451-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3031-7094
E-mail: dgoldfajn@uol.com.br

Recebido em: 10/6/2012
Aceito em: 27/6/2012

 

 

¹ Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.