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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

PSICANÁLISES POSSÍVEIS

 

Dear Freud*

 

 

Andrea Sabbadini

 

 

Londres, 6 de maio de 2006

Caro Professor Freud,

A rica correspondência que o senhor manteve com seus colegas por toda sua vida me encorajou a superar minha reserva inicial de me dirigir ao senhor para lhe desejar um feliz aniversário.

Minha escolha das duas palavras que precedem seu nome, Caro Professor, não é ao acaso - de fato, como o senhor mesmo nos ensinou, pouca coisa o é. O Caro representa minha afeição pelo senhor, ou ao menos pelo que passou a representar para mim - e eu estou seguro que ela está colorida pelas projeções e idealizações de todo o tipo. Numa só palavra, pela minha transferência em relação ao senhor que evoluiu nos muitos anos em que estive em contato com suas ideias, estudando e mais tarde ensinando seus textos, praticando sua teoria no meu trabalho clínico, assim como aplicando-os no meu entendimento da minha própria vida pessoal e daqueles que me cercam.

Associado à palavra "Caro" há também para mim uma memória particular, distante, mas ainda clara feito água (ou pelo menos assim quero crer), a qual eu gostaria de compartilhar com o senhor. Eu tinha mais ou menos cinco ou seis anos e meu pai estava longe de casa por um tempo. Minha mãe me convenceu a escrever uma carta para ele - e lá estava ela, como sempre durante minha infância, sentada do meu lado para tentar me ajudar. Assim que escrevi Caro papá 1, ela insistiu para que eu substituísse Caro2 pela forma superlativa Caríssimo3. Eu me recusei. "Caríssimo" sendo uma palavra mais comprida para escrever do que "Caro", ela decidiu que minha desobediência devia ser um sintoma da minha preguiça. Contudo, acredito (ou talvez queira acreditar) que eu já tinha percebido naquela época que minha relutância não era - ou melhor, não era somente - o sinal de uma limitação no meu caráter, e certamente não era uma limitação no meu amor pelo meu querido pai, porém era sinal de algo mais, que eu descrevo como uma restrição em comunicar meus sentimentos. Esta crença numa certa austeridade como a forma mais correta, e principalmente mais efetiva da pessoa se expressar sempre me acompanhou. É uma característica, aliás, se o senhor me permite generalizar, que eu tenho em comum mais com os habitantes do meu (e do seu) país adotivo, a Grã-Bretanha, do que com os do meu país de origem, a Itália que o senhor visitou com tanta frequência. É por isso que eu ainda me sinto inclinado hoje em dia a descrever, por exemplo, os afrescos da Catedral de Orvieto (pintados, como o senhor deve se lembrar, por Luca Signorelli) como "impressionantes" em vez de "muito impressionantes", pois eu penso que a forma mais curta, "preguiçosa" transmite melhor meu sentimento. Uma comovente interpretação do Ein Deutsches Requiem de Brahms não é menos intensa que uma interpretação muito comovente.

Se o Caro no começo da carta, portanto, reflete minha afeição pelo senhor, o Professor que o acompanha é uma manifestação do meu respeito: não apenas pelo conhecimento e autoridade implicados no magistério, mas também pela sua coragem face à hostilidade encontrada diante de suas controversas ideias, uma hostilidade indubitavelmente acrescida ao fato de o senhor pertencer a uma minoria racial (se não religiosa), de ser judeu numa sociedade anti-semita. Aqui também há elementos de identificação. Se graus de ateísmo4 pudessem ser medidos, eu me consideraria apenas ligeiramente menos judeu e ateu que o senhor. De fato, cresci basicamente como judeu não praticante como o senhor, num ambiente mais gentil que o seu. Tendo nascido não muito tempo depois do fim das atrocidades nazistas e da sua grotesca contrapartida fascista, eu nunca fui pessoalmente perseguido (a não ser uma vez quando era criança por uma mulher que me chamou sporco ebreo [judeu sujo] mais para minha surpresa do que horror - e diferente de seu pai eu não estava usando um chapéu que pudesse ser jogado no meio da rua), mas eu certamente tive desde cedo na vida um sentimento de ser diferente enquanto apenas queria ser igual a todo mundo.

Falando em diferenças, se o senhor me permitir agora entregar-me a algumas associações livres, me ocorreu que, digamos, a pintura de Leonardo da Gioconda é mais parecida com o retrato de um cachorro (quer dizer: com outro quadro) do que com a Monna Lisa (quer dizer: com uma mulher). Ao mesmo tempo em que tomei conhecimento com René Magritte que a representação gráfica de um cachimbo nést pas une pipe, também aprendi com o senhor que há momentos em que um charuto é apenas um charuto. Se o senhor me permite (um não-fumante) estender esse rasgo de sabedoria (apócrifo como provavelmente o é) para guarda-chuvas, posso lhe dizer que ainda lembro de carregar o meu da forma ligeiramente irracional que eu via outros ingleses fazerem enquanto andavam pelas ruas de Londres, durante minha primeira visita à cidade quando eu tinha dezesseis anos, na intenção de ser tomado, não obstante minhas feições mediterrâneas, como um deles. Em Londres como os ingleses, como diz mais ou menos o provérbio. Se agora eu carrego meu guarda-chuva de um modo menos derivativo, e também sei que, diferente do senhor, eu não sou um líder - uma palavra, esta sim, que em sua língua tem o som sinistro de Fuhrer. Em vez de fundar clubes, eu me junto a eles, e então talvez faça o meu melhor para aperfeiçoá-los

Por falar nisso, o paradoxo de Groucho Marx frequentemente citado a respeito do cavalheiro que se recusa a fazer parte do clube que o aceite como membro é pertinente para nosso trabalho, pois ilustra aquela forma de ambivalência em que o narcisismo é apenas o outro lado da baixa auto-estima. Sua teoria do narcisismo é crucial para nossa compreensão do desenvolvimento normal e patológico, em particular sua descrição da psicose como uma condição narcísica acarretando - em palavras mais palatáveis para o seu fin de siècle do que para o começo do nosso - numa retirada da energia libidinal dos objetos, a qual é então recatexizada para dentro do self. Eu ousaria, no entanto, discordar das suas conclusões acerca da impossibilidade de tratar as desordens narcísicas tendo como base o fato de que suas qualidades narcísicas não permitiriam uma relação transferencial. Na minha experiência limitada vejo que o oposto se verifica: uma intensa transferência psicótica realmente se desenvolve com frequência, e cedo na análise. Se houver algo, é a falta da assim chamada aliança terapêutica que talvez seja problemática com tais pacientes.

Nesta conexão, usar como o fiz a palavra "impossibilidade de tratamento" é inconsistente com minha visão de que o termo "tratamento" (apresentado como Behandlung nada menos do que 1.874 vezes na Standard Edition dos trabalhos clínicos) não deveria de fato pertencer ao vocabulário psicanalítico. Nós não tratamos nada nem ninguém. Nisto, é claro, estou influenciado pelas teorias antipsiquiátricas alternativas de autores tais como R. D. Laing em moda no final dos anos 1960 e quase tão controversas na época quanto as do senhor foram meio século mais cedo. Tudo isso, me parece, está no cerne de muitos debates sobre a função da psicanálise. Tratamento da doença mental ou exploração profunda da vida emocional, experiências pessoais ou relações interpessoais? Ou o senhor talvez tenha afirmado o primeiro, embora acreditasse que fosse o último? Eu ainda não consigo entender - talvez porque ao contrário do senhor, eu não venha de uma formação científica ou mesmo empírica, meus estudos foram numa tradição filosófica e humanística clássica de nossa civilização descontente - porque muitos dos nossos colegas ainda parecem confundir a análise de eventos psicológicos com o Behandlung de doenças mentais.

Uma relevante questão que talvez pudesse ajudar nossa geração de analistas a responder é a seguinte: a psicanálise contemporânea basicamente é a mesma disciplina que o senhor desenvolveu cem anos atrás, ou é uma forma radicalmente diferente daquela? Ela continuou como era, ou sofreu um processo natural de evolução ou até mesmo uma revolução maior?5 Alguns dos detratores da psicanálise, tais como Thomas Szasz, e mais sutilmente Donald Spence, atacam o senhor na intenção de minar in toto o edifício analítico. Outros diriam que o que os psicanalistas acreditam e fazem na sua prática agora é tão diferente daquilo que o senhor fez nos seus dias, que dificilmente faz algum sentido trazer seus pontos de vista para uma discussão sensata da psicanálise contemporânea. Tudo isso, por sinal, sem ter em conta as importantes mudanças que o senhor mesmo introduziu, ano após ano, na sua metapsicologia e em sua implicação clínica.

Nesse contexto seria útil tentar separar provisoriamente a teoria da técnica (de uma forma artificial como toda separação desse tipo inevitavelmente pode ser) e considerar se as duas evoluíram no mesmo passo, ou se ao invés, como eu prefiro supor que foi o caso, elas mudaram, radicalmente ou não, em duas velocidades diferentes: tanto que os psicanalistas falam hoje em dia uma linguagem similar ao do senhor, Professor Freud, mas no entanto se comportam de forma um tanto diferente em seus consultórios. Ou, ao contrário, o pensamento analítico sofreu uma revolução maior envolvendo a descoberta de novos continentes - a psicologia do ego e do self, as relações objetais, hermenêutica, intersubjetividade etc. - todos solidamente fundados em suas criações originais, claro, e no entanto tão diferentes quanto a teoria quântica da física newtoniana. Ao mesmo tempo alguns iriam afirmar que essas alterações radicais nos conceitos psicanalíticos dificilmente se manifestaram em formas diferentes de conduzir nosso trabalho diário com os pacientes - os quais, afinal de contas, ainda vêm para sessões de cinquenta minutos, deitam-se no divã, associam livremente, e sentem amor intenso, ódio intenso ou intensa indiferença por nós. E nós ainda oferecemos a eles (mediante uma taxa) - como o senhor também fez, rodeado por estatuetas egípcias na Berggasse 19 - interpretações não diretivas da resistência, dos conflitos e da transferência, num setting relativamente seguro, consistente e neutro. As maçãs caem das árvores hoje em dia na mesma velocidade que caíam no final do século XVII.

Pensamentos sem expressão, tais quais frutas maduras deixadas no chão, tendem a apodrecer. Do contrário, servi-las na mesa de jantar a uma audiência simpaticamente crítica, ou correspondente, lhes dá a chance de sobreviver e talvez se transformar num alimento apetitoso. A este respeito, querido Professor, gostaria de usar esta carta - como o senhor fez com seu amigo Fliess há mais de um século - como uma sondagem de certas ideias ainda in nuce para serem exploradas. Seus pontos de vista sobre os componentes narcísicos dos estados psicóticos, eu sugeriria, podem ser aplicados também à compreensão das atividades maníacas. Sabendo de sua predileção pela mitologia grega, sugiro um voo mágico através da lenda de Ícaro. Algumas crianças presas a seus próprios narcisismos desproporcionais são pegas num espiral ascendente autodestrutivo de atividade maníaca, voando mais e mais alto (na direção oposta daquela seguida pelas maçãs maduras) para evitar o enfrentamento do pânico de serem incapazes de incorporar o objeto do qual elas tentaram se separar, que assim se torna progressivamente inacessível. Quanto mais longe ele está, maior é o desespero, mais urgente é o uso das defesas maníacas para evitá-lo. Mas esses tipos de atividades defensivas estão condenadas a levar o sujeito - não muito diferente do jogador que perigosamente aumenta suas apostas para cobrir suas perdas - ainda mais longe do objeto ao qual ele desesperadamente tenta se reunir. A necessidade das criancinhas e adolescentes se voltarem para seus pais para preenchimento emocional, tão acuradamente observada por Margaret Mahler, refere-se às excitantes e também arriscadas jornadas de descobertas das crianças a respeito de si mesmas e do mundo ao redor. Entretanto, quando os pais estão indisponíveis, distantes ou vazios, tal preenchimento se torna problemático. O caminho de volta à segurança é finalmente barrado, as ceras que sustentam as asas da separação e individuação juntas gradualmente derretem no calor do sol, algumas vezes com resultados catastróficos.

O que estou sugerindo aqui é que as atividades maníacas podem ser interpretadas não apenas como tentativas de reparar o objeto danificado, isto é, de superar a culpa por causa dos ataques agressivos e, portanto, como defesas contra a angústia depressiva, mas também como uma tentativa de recuperar objetos perdidos, isto é, de lidar com a angústia de separação ao tentar reconciliar os sujeitos com o que eles perderam. Eu acrescentaria que atividades maníacas (e incluo aqui a quase normal promiscuidade adolescente, explosões frenéticas de criatividade em artistas e workaholism em psicoterapeutas) são sempre também atividades mágicas. Embora algumas vezes elas não deixem de ter um resultado bem-sucedido, são intrinsecamente irreais e o sujeito acaba ainda mais removido de suas fontes de alimento e segurança. O afogamento de Narciso, de Ícaro, e tantos outros "rebeldes sem causa" podem então ser vistos como uma manifestação trágica de sua necessidade inconsciente de retornar ao útero materno.

Deixe-me agora voltar ao meu respeito pelo senhor, expresso pela palavra Professor. O que quer que isso diga sobre meu superego, minha combinação particular de ambivalência a respeito da figura de autoridade e minha história pessoal da relação com ela, é fato que sua imagem junto com aquela da disciplina que o senhor criou, e realmente com todo aquele novo "clima de opinião", como o poeta W. H. Auden descreveu, o qual se difundiu pela cultura do século XX, está agora sofrendo um novo round de desrespeitoso ataque. Eu acho um fenômeno interessante que, especialmente nos anos 1990, ainda era sua hipótese da sedução, e o que então parcialmente a substituiu, que causava as discussões mais calorosos sobre a psicanálise. Se eu puder fazer uma pergunta retórica: foi o abandono da sua visão original sobre o abuso de crianças como a causa da psiconeurose, uma traição, como os antigos colegas Jeffrey Masson e Alice Miller afirmaram, ou um tanto o contrário, um corajoso movimento que abriu o caminho para a descoberta (no sentido oposto a encobrir) da verdade sobre a sexualidade infantil, perversão polimorfa e vida inconsciente de fantasia em geral? Uma verdade que, graças ao seu trabalho intelectual titânico, se tornou universalmente aceita depois de ser, por duas gerações, inconcebível ao extremo.

Sedução ou abuso? A ênfase mudou, com as palavras, de uma visão do conluio da criança, isto é, de desempenhar algum papel no evento, embora ambiguamente definido, para aquela de ser uma vítima passiva. O dilema, que vai muito além da semântica, parece frequentemente sem solução. E isso, imagino que o senhor vai concordar comigo, querido Professor, é por causa de dois problemas fundamentais bem conhecidos de filósofos e intrínsecos a qualquer tentativa psicológica de compreensão da nossa condição humana. O primeiro problema diz respeito à impossibilidade de diferenciar os efeitos relativos da realidade psíquica e da externa - fantasia de história. O segundo problema se relaciona com a insolúvel tensão entre seu princípio do determinismo inconsciente e nossa liberdade primordial dirigida pela angst para escolher como viver nossas vidas. Em outras palavras, somos responsáveis pelo nosso comportamento se ele é motivado por forças alheias ao nosso controle consciente? Por que deveríamos ser culpados por nossos assassinatos e estupros incestuosos, poderia ser hiperbolicamente argumentado, se não podemos também ser culpados por nossos pesadelos?

Entristece-me que os psicanalistas dificilmente reagem a frequente enxurrada de acusações, mesmo quando seria fácil fazê-lo - na realidade, mais fácil para nós hoje em dia, do que foi para o senhor nos seus dias. É o nosso silêncio, e na nossa ausência da arena de debate tanto na mídia como nas universidades, uma evidência de nossa fraqueza de cordeirinho? As revistas de domingo podem ter muitas páginas sobre neurose obsessiva sem uma única contribuição de um psicanalista ser citada; artigos sobre interpretação dos sonhos sem um único psicanalista ter sido entrevistado. Mas percebo que estou começando a falar em nós e eles como se fossem partes opostas, arsenais de armas, territórios a serem ocupados, espólios a serem tomados, prisioneiros a serem trocados, corpos mortos a serem enterrados... Na verdade, devo confessar, querido Professor, que frequentemente me senti crítico sobre o uso de metáforas e conceitos militares, tais como conflito interno, mecanismos de defesa, resistência e afins (para os quais eu próprio não consigo pensar em termos alternativos válidos). Mas, então, Hannibal nunca foi um dos meus heróis! Imagino que foi seu zelo terapêutico que o fez pensar na mente humana como uma terra a ser conquistada e não apenas explorada, e seus conteúdos como habitantes belicosos incapazes de manter a paz, ou apenas por pouco tempo, uns com os outros e com seus vizinhos. Embora o senhor tenha sido o primeiro a admitir que a busca pela paz, ou pelo prazer e além, seja o objetivo principal do bebê. À medida que a criança cresce, o problema passa a ser como evitar o conflito e a dor, ou, ao menos, como restabelecer o estado pacífico das coisas após o equilíbrio de forças ter sido transtornado por todos aqueles distúrbios que - ai! - caracterizam nossa relação problemática com o mundo. Doses manejáveis de frustração, inevitáveis como são até com o melhor cuidado suficientemente bom, tornam-se úteis visto que elas compelem as crianças a imaginar um mundo melhor e a inventar soluções alternativas para seus problemas. Em outras palavras, a desenvolver o pensamento criativo.

Isto, poder-se-ia sustentar, é o ponto inicial da vida psicológica; um ponto no tempo que não coincide com o nascimento fisiológico ou emocional do ser humano, mas o acompanha de alguma forma. Nossa percepção e compreensão mental do mundo são aquisições graduais que tomam tempo e, sem dúvida, dor, embora o processo de descoberta possa ser também excitante. Na verdade, um dos prazeres da vida é encontrar - ou, como o senhor preferiria colocar, reencontrar - os objetos perdidos. Para ter sucesso onde Ícaro, cegado pela luz brilhante demais do seu narcisismo, falhou. Vamos dizer: Reencontrar velhos objetos naqueles recém-encontrados - um esquema para futuras explorações, atividades artísticas e esforços científicos.

Os dilemas concernentes à criatividade humana, para a qual uma explicação psicológica satisfatória ainda não está disponível, são realmente intrigantes. Se relacionarmos criatividade com narcisismo, esperaremos que todos os artistas demonstrem fortes traços de caráter egocêntricos, se não desordens narcísicas de personalidade inteiramente formadas. Pelo que sabemos, muitos, mas não todos, têm. A conexão que existe não apenas na cabeça das pessoas entre genialidade e loucura - se nós voltarmos de novo para nossa definição de psicose como uma patologia narcísica na sua essência - confirmaria essa sugestão. Talvez, então, a criatividade fosse apenas uma saída alternativa para nossa loucura, solidão ou perversão... O senhor acreditaria nisso, caro Professor, que numa tentativa de se sentir menos solitário algumas pessoas vão a tal extremo de enviar cartões a si próprias, ou mesmo escrever longas cartas a objetos de adoração mortos há muito, iludindo-se que eles ainda estão vivos e se contatando com elas?

Desde que os registros históricos existem e em todo lugar do mundo, homens e mulheres têm investido uma enorme energia psíquica em criar trabalhos de arte, a ponto de dedicar suas vidas a eles, a maior parte das vezes com pouca ou nenhuma recompensa tangível. Por quê? O que fez Michelangelo - para escolher para nossos esforços interpretativos, dentre incontáveis outros, um artista que não é desconhecido - ficar de pé num andaime por meses sob o teto da Capela Sistina, sua cabeça curvada para trás, seus braços esticados, a tinta salpicando seu rosto e assim o transformando - como ele escreveu a um amigo - "num rico mosaico"? A ambição, talvez, de imitar Deus ao representar Sua criação? Ou era apenas seu desejo, nosso desejo, de em certa medida sobreviver ao Julgamento Final e a total extinção? Se nossos corpos se decompõem debaixo da terra (o seu, como talvez o senhor não saiba, foi incinerado e agora está acondicionado numa maravilhosa urna grega não muito longe de minha casa), possivelmente nossos escritos irão sobreviver, ou nossas pinturas ou músicas ou fotografias... Alguém algum dia em algum lugar irá encontrá-las, relacioná-las, tirar algum conhecimento ou proveito delas e ser grato a nós. Estas, ao menos, são nossas expectativas ingênuas e com poucas exceções, irreais - uma ilusão do futuro.

Devo confessar aqui que mesmo esta carta desconexa para o senhor talvez seja então parte da minha tentativa de sobreviver, ao menos brevemente, ao meu iminente desaparecimento do mundo... Ao menos a sabedoria do Bardo de que "o amor próprio, meu senhor, não é um pecado tão abominável quanto a autonegligência" (Henrique V, 2, iv, 74) me provê com alguma justificativa bem-vinda. É uma quantia mínima saudável de narcisismo, então, a razão por que eu estou escrevendo? Claro que é! Mas deve haver algo mais que isso. Mesmo esta minha modesta atividade epistolar é motivada por uma multiplicidade de fatores (sua descoberta do princípio da sobredeterminação é essencial para nossa compreensão do fenômeno psíquico). Mas não estou me propondo aqui a chateá-lo com minha auto-análise para perscrutar minha alma; de qualquer forma eu queria dividir com o senhor alguns dos meus pensamentos sobre criatividade e obras de arte, e não sobre correspondência privada.

O senhor, caro Professor Freud, postulou a existência de um impulso epistemofílico originando do self e então se submetendo a uma complexa metamorfose - um processo que o senhor chamou de Sublimação - em algo além. E o senhor sugeriu que tal Pulsão, a qual pode primeiramente ser encontrada em relação à curiosidade sexual das crianças, é o protótipo para todo empenho artístico humano posterior e a procura por explicações científicas. Nisto o senhor parece concordar com Dante Alighieri, que sete séculos atrás escreveu em seu "Inferno" (XXVI, 119-120): Fatti non foste a vivere come bruti, ma per seguir virtute e conoscenza [Vocês não foram destinados a viver como bestas brutas, mas a perseguir a virtude e o conhecimento].

Lógico que seria absurdo postular que foi um impulso idêntico que motivou Vasco da Gama, Galileu Galilei e por fim Arthur Miller: seus passados culturais, personalidades, histórias familiares, vicissitudes da vida (para não mencionar seus dotes genéticos) foram tão diferentes, que se quiséssemos chegar a alguma explicação remotamente convincente, deveríamos pesquisar dentro deles individualmente em vez de procurar por um princípio criativo universal e abstrato. Esse é um dos propósitos das biografias (inúmeras já foram escritas sobre o senhor) e patografias como a sua corajosa, mas permita-me acrescentar, pouco convincente, sobre Leonardo da Vinci.

O conceito de um impulso epistemofílico foi adotado por Melanie Klein, da qual o senhor e sua filha nunca gostaram muito, e por seus seguidores; mas, contraditoriamente, eles então chegaram à conclusão de que nossas atividades exploratórias, inventivas e criativas originam de uma necessidade de reparar algum dano catastrófico causado a nossas mães. Em outras palavras, nós esculpiríamos bustos de mármore e descobriríamos leis da termodinâmica e exploraríamos dentro dos vulcões para mitigar nossa culpa por algum crime indenominado que, sendo inconsciente (ocorrendo na fantasia), não conseguimos sequer recordar que o cometemos. Acho esta hipótese fascinante, mas insatisfatória, porque não tenho dúvida de que as atividades criativas geralmente provêm de uma necessidade de produzir alguma coisa boa no presente e para o futuro, mais do que apenas da culpa por ter feito algo ruim no passado.

Seria arrogante afirmar que a psicanálise privilegiou o acesso à interpretação crítica de qualquer produto criativo. Entretanto, será útil correlacionar a relativa universalidade da sede humana pelo conhecimento com a constelação de Édipo, e sugerir que nós criamos, com variados graus de sucesso, não apenas para reparar alguns danos, mas para ajudar a nós mesmos a resolver os dilemas insolúveis inerentes ao complexo de Édipo - para impressionar um dos nossos pais, para punir o outro, para competir com ou para recompensar ambos e, mais especificamente, para recuperar os objetos perdidos de nossos amores e identificações primárias. Para ter sucesso, em outras palavras, onde Ícaro falhou.

Artistas, eu acrescentaria, precisam de um companheiro imaginário (uma Musa, ou a plateia nas suas mentes) cuja presença indica a natureza triangular, e portanto edípica, de suas atividades. Os bebês, literalmente ou de outra forma, são sempre concebidos por dois pais. E não será difícil reconhecer o significado edípico apenas ligeiramente disfarçado do conteúdo de muitas produções artísticas, da tragédia grega e pinturas renascentistas aos romances, óperas italianas e filmes de Hollywood. Esta terceira parte, se nos permitirmos mudar para uma metáfora diferente, não precisa necessariamente ser encontrada no quarto da Cena Primária, mas na sala de parto socrática. O artista precisaria da presença de uma parteira acolhedora que provesse as condições necessárias, dentre algumas dores de parto inevitáveis, para que o bebê nascesse. Nesta função, ela seria similar ao psicanalista oferecendo aos seus analisandos um setting terapêutico seguro - ou, na realidade, a qualquer pai que facilitasse para suas crianças a exploração do espaço transicional onde o brincar real é possível. A original contribuição de Winnicott a esse respeito, o senhor irá concordar, não pode ser superestimada. De fato acho que suas ideias podem ser mais ampliadas pela sugestão que o espaço do brincar não é apenas aquele localizado entre o indivíduo e seu meio-ambiente, entre o polegar e o ursinho de pelúcia, mas também entre diferentes aspectos do self - o emocional, o físico, o intelectual - que iriam então encontrar um novo, mesmo que precário, equilíbrio em cada obra de arte. Nesta busca por equilíbrio podemos nos deparar com uma manifestação comum de narcisismo, conhecida como perfeccionismo. Enquanto em doses moderadas (perfeccionismo na sua forma imperfeita, como se fosse) poderia facilitar a criatividade, tão logo seja levado para uma qualidade mais obsessiva, ele se torna um obstáculo. Muitas pessoas potencialmente criativas nunca produzem precisamente nada porque estão muito preocupadas em corresponder a seus próprios padrões irreais. Para elas, ser "bom o suficiente", não é bom o suficiente.

Eu, pelo menos, quase não escrevia esta carta para o senhor! Mas então o fiz, e agora me ocorre, caro Professor, que ela já deve ter levado cinquenta minutos para que o senhor a leia. E que uma das minhas razões para escrevê-la foi, talvez, uma tentativa mal disfarçada de ter uma sessão psicanalítica com o senhor - a qual, por sinal, tem algo em comum com a atividade de escrever cartas, e talvez com a criação artística, que é um tipo de monólogo na presença do outro (o destinatário, o analista, a plateia). Ou, em vez disso, um diálogo que acontece na solidão da mente de cada um. Por isso, talvez, essa fundamental, insolúvel, se não confusa mescla, de amor e narcisismo que esta carta - eu agora percebo - tentou comunicar.

Em outras palavras, agora é hora de eu parar. Devo lhe poupar e a mim também das formalidades usuais. Não preciso lhe dizer - caro, caríssimo professor Freud - que eu continuo a ser para sempre sua criança questionadora e agradecida.

 

 

À memória de meu pai, Emílio (1911-2004)
Tradução de Ana Cláudia Zuanella
Andrea Sabbadini. 38 Berkeley Road, London N8 8RU. a.sabbadini@googlemail.com
* Publicado em Psicanálise em Revista,5/6 (2-1) 87-96, 2007/2008.
1 Em italiano no original. (N. da T.)
2 Idem.
3 Idem.
4 Godlessness no original (N. da T.)
5 O senhor ficaria surpreso, eu acho, com a sugestão de que todo o corpo da literatura psicanalítica equivalha a algumas notas de rodapé em seus próprios trabalhos.