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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

TEMA: TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E A ANÁLISE DA INSTITUIÇÃO

 

Entrevista: Howard B. Levine1

 

 

As construções do analista e o modelo transformativo

Jornal2 - Poderia nos contar como o senhor se interessou pela psicanálise e como se deu sua formação?

Levine - Quando eu estava no segundo ano da faculdade, fiz um curso em história cultural e intelectual e tive a oportunidade de ler Darwin, Nietzsche, Freud e James. Eu me interessava muito por ciência e física, e havia entrado na faculdade com a intenção de tornar-me físico ou engenheiro nuclear. Era 1960, e a energia nuclear e a bomba atômica faziam parte da consciência coletiva na cultura norte-americana. Mas achei que o estudo da física era muito abstrato e muito carente de contato humano. Eu era uma pessoa um pouco tímida e retraída a essa altura da minha vida e me dei conta de que a combinação das duas coisas não daria certo. Foi quando li Freud e aquilo me envolveu completamente. Conversando com um amigo, eu lamentava o fato de todas as boas ideias já terem sido descobertas, e ele me disse: "do que você está falando? Freud iniciou a psicanálise, ainda existe muito espaço para descobertas!". E pensei comigo mesmo que talvez isso fosse algo que eu gostaria de fazer. Naquela época, nos Estados Unidos, era preciso fazer medicina para depois entrar na formação psicanalítica. Então mudei de direção e, por acaso e boa sorte, acabei em Boston, na Tufts University School of Medicine, cujo Departamento de Psiquiatria era um dos melhores e mais psicanaliticamente orientado do país. Do diretor do departamento para baixo, quase todos meus professores foram analistas, ou eram candidatos na época. Isso não existe mais nos Estados Unidos. Na residência em psiquiatria o currículo contemplava uma média de 30 horas de psicoterapia psicanalítica por semana, por três anos. Após terminar a residência, enquanto fazia a formação em psicanálise, fui professor associado da Boston University Medical School, e, ao deixar o Departamento de Psiquiatria em meados de 1980, os residentes de psiquiatria faziam uma média de três horas de psicoterapia psicanalítica por semana, por apenas um ano. O campo psiquiátrico tinha mudado, não havia mais uma orientação psicanalítica, portanto já não era mais do meu interesse.

Fiz minha formação em psicanálise no Instituto Psicanalítico de Boston. Isso ocorreu em uma época em que as ideias dominantes nos Estados Unidos, então também em Boston, eram as da psicologia do ego. Descobri que, em minhas mãos, a psicologia do ego funcionava relativamente bem para trabalhar com pacientes neuróticos, mas eu atendia basicamente transtornos primitivos de personalidade, borderlines e pessoas psicóticas. Fazia o que tinham me ensinado e tinha aprendido, e rapidamente encontrei seus limites. Por sorte eu tinha alguns amigos que estavam fazendo a formação em Londres com o grupo kleiniano. Suas referências, seus professores, o material que eles estudavam e a maneira como estavam pensando era muito diferente dos meus. Descobri que eles estavam indo tão bem com seus pacientes, de maneiras diversas, como eu estava indo com os meus. Fiquei curioso em conhecer outras escolas de psicanálise, essas escolas que alguns de meus professores estavam denegrindo e aconselhando para não prestar atenção. Tínhamos uma orientação bem positivista, no sentido filosófico; muito diferente de agora.

Então fui confrontado com problemas clínicos e limitações. Uma dessas questões, que escrevi a respeito, era que, naquele tempo, havia supostamente indicações muito claras para uma análise. Se o paciente tinha um diagnóstico, era analisável, mas se tinha aquele outro diagnóstico, não era. Eu estava aprendendo isso com os analistas da psicologia do ego, no Instituto Psicanalítico de Boston. Ao mesmo tempo, eu tinha seminários clínicos, e o que percebíamos nesses seminários era que não havia correlação alguma entre diagnóstico e resultado. Mesmo com pacientes psicóticos: alguns estavam conseguindo uma boa análise, apesar de seus diagnósticos, e estavam mudando e melhorando. Por outro lado, colegas que tinham um paciente histérico ou obsessivo-compulsivo, que supostamente seriam analisáveis, não estavam chegando a lugar algum. Parecia haver algum problema nesse sistema, pois simplesmente não fazia sentido.

O que galvanizou ainda mais tudo isso foi que comecei a analisar vários pacientes que tinham sido abusados sexualmente quando crianças. Assim, seus tratamentos não se encaixavam dentro dos contornos esperados pelo paradigma da psicologia do ego. Pode ter sido uma falha em meu estudo da psicologia do ego, não sei, mas simplesmente não funcionou para mim. Por exemplo, um dos princípios básicos dessa teoria é que tudo está sempre registrado na mente. Se o paciente não fala a respeito de algo é porque isso está profundamente reprimido nele. Está organizado, existe na mente, mas está reprimido. Então é preciso analisar as defesas e assim por diante. Descobri que com esses pacientes eu poderia analisar as defesas eternamente e eles nunca falariam a respeito daquilo. A mesma coisa acontece com os pacientes psicossomáticos, eles não falam sobre sua doença. É como se houvesse um fosso ao redor deles. Também acontece com pacientes anoréxicos. Existe esse fenômeno, eles não se comportam da maneira como deveriam se comportar, e por isso a conclusão é a de que "essas pessoas não são analisáveis". Contudo outra conclusão poderia ser de que "há algo de errado com a teoria psicanalítica, pois ela não alcança essas situações clínicas".

Vou lhes contar uma história do meu passado. Eu tinha uma grande amiga do grupo kleiniano de Londres, que se tornou didata e era bem próxima de Hanna Segal. Hanna Segal, chamada de "Hanka" por seus amigos, era uma ótima pessoa, com um profundo interesse político, uma pensadora política fortemente alinhada com a esquerda, o que se encaixava muito bem com meus próprios pontos de vista. Ela iniciou uma organização chamada Psicanalistas Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear3 no final dos anos 1970, quando a ameaça nuclear era bastante aguda. O cardiologista, Bernard Lown, que mais tarde ganhou o Prêmio Nobel da Paz, estava tentando fazer a mesma coisa com os médicos em Boston, e eu me envolvi com esse grupo. Através de nossa amiga em comum, Priscilla Roth, Hanna Segal ficou sabendo de mim e eu fiquei sabendo dela. Priscilla nos apresentou, e Hanka me perguntou se eu gostaria de ser o representante norte-americano de seu grupo, e eu aceitei. Sendo o diretor científico do Instituto de Boston naquela época, organizei uma conferência sobre a psicologia da ameaça nuclear e convidei Hanna Segal para falar nela; tendo ela aceito, aproveitei para convidá-la também para apresentar um artigo científico no Instituto. Ninguém havia falado antes sobre Klein aos candidatos, fazia anos que um kleiniano não falava em Boston. Certamente nenhum desde que eu iniciara minha formação em 1972. A apresentação de Segal foi um evento "midiático" entre os psicanalistas. O salão transbordou. Outro elemento, este fortuito, foi que seu filho mais novo estava fazendo um PhD em linguística no M.I.T. naquela época, de modo que ela estava à procura de oportunidades para ir a Boston e ficar com ele. Assim, nós pudemos nos encontrar e conversar muitas vezes. Ela me apresentou a Betty Joseph, e, desse modo, comecei a trazer mais kleinianos para Boston. Achei algo no trabalho deles que falava com a parte mais primitiva e arcaica da mente das pessoas, o que começou a abrir meu próprio pensamento. Também havia algo muito diferente na atividade do analista, pois os psicólogos do ego, por excelência, aguardavam a transferência evoluir para o discurso atual do paciente, enquanto os analistas kleinianos interpretavam a transferência desde o início. Hanka me disse: "no modelo kleiniano, começamos a interpretar a transferência de imediato, com base na ideia de que a única maneira de o paciente se sentir confortável é se abordarmos sua ansiedade, e a ansiedade que queremos abordar é a mais profunda, a que está presente e manifesta na sessão. Nós não esperamos o paciente começar a falar sobre isso, porque ele provavelmente não sabe como e provavelmente está muito ansioso para falar sobre isso, mas há um grande alívio quando você o faz". Essa perspectiva realmente abriu possibilidades clínicas para mim.

Foi dessa forma, e por conta disso, que cheguei à psicanálise e me afastei dos limites da psicologia do ego. Nos anos 1970 e 1980, a psicologia do ego tradicional também estava sendo questionada por Kohut e sua psicologia do self. Também mergulhei nela por muitos anos. Nunca me tornei um adepto dessa teoria, mas a estudei para ver se poderia ampliar meu repertório e meu pensamento. Aprendi algumas coisas importantes sobre o papel do objeto e sua presença física, sobre como essa presença e a participação do objeto poderiam ajudar os pacientes a regularem a si mesmos. Ensinaram-nos que não era a presença do objeto, mas a interpretação o que ajudava a reduzir a ansiedade do paciente, e, é claro, isso é verdade. Sempre achei que além do que dizíamos ao paciente, em termos da comunicação de informações sobre o que era sua ansiedade ou conflito, existia o que hoje eu chamaria de presença do objeto. A existência material do objeto, que os pacientes particularmente primitivos ou as partes primitivas da mente usam para se autorregular.

Jornal - Nesse caso, a presença do analista seria em si mesma transfor madora, mais do que as verbalizações a respeito dessa presença e de como ela é experimentada?

Levine - Acho que ambas são. Penso que a própria presença é transformadora, no sentido de que se torna parte de uma regulação homeostática emocional do paciente. Existem muitas teorias psicanalíticas que falam sobre isso, mas a escola que me mostrou isso foi a da psicologia do self. A noção de self de Kohut como um sistema de duas pessoas é uma avenida em direção ao que hoje em dia chamamos intersubjetividade. Mas naquela época era algo totalmente novo, e a palavra intersubjetividade ainda não havia entrado no discurso psicanalítico de língua inglesa. Acho que já existia em francês, mas não em inglês. Em primeiro lugar, o analista ajuda a estabilizar o paciente com sua presença, com o nível de sua atividade e a qualidade afetiva presente em sua fala. Nível de atividade ou inatividade, porque alguns pacientes têm muito medo de serem invadidos, então, se você for comedido, eles relaxam um pouco e você lhes dá mais espaço. Outros têm muito medo de serem abandonados, então é preciso mostrar-lhes que você está lá. Estar com um objeto que ajuda a se sentir melhor estabiliza a capacidade de pensar e usar os próprios recursos, independentemente da capacidade psicológica inerente que alguém possa ter. A partir daí é possível começar a transformar-se a si mesmo. É como se a mente do paciente fosse um motor que ficou sem gasolina e a presença do analista a fornecesse para que ele possa partir para onde precisa ir. Assim, o papel de um alter ego homeostático adjunto, ou o que a psicologia do self chama de "self -objeto", pode contribuir e ajudar como base para um processo que poderá ser transformador.

Jornal - Isso parece remeter a certa tendência inata do self em direção à integração, como Winnicott e outros autores mencionam...

Levine - Sim! Isso mesmo. Bom, com os kleinianos veio uma exposição a Bion. Larry Brown e eu começamos um grupo de estudo com outros colegas e trouxemos a Boston kleinianos contemporâneos, como Betty Joseph, Rosenfeld, Britton, Feldman e Steiner, porque pensávamos que as pessoas precisavam ter uma compreensão mais sistemática e uma maior exposição a seus trabalhos. Depois de alguns anos, Larry teve a ideia de ler Aprendendo da experiência, e assim começamos a ler Bion sistematicamente. Um dos mentores importantes de Larry foi Jim Grotstein, que também trouxemos a Boston, e eu tive uma exposição ao seu pensamento que foi incrivelmente seminal e fecunda para mim, ele é um homem muito criativo. Tive também algumas influências da América Latina, como Leon Grinberg e outros.

A partir de Bion fui lançado ao Bion tardio, e isso abriu muitas outras possibilidades. Envolvi-me com as Conferências Internacionais de Bion, fiz apresentações e organizei junto com Larry uma em Boston em 2009. Então, um dia, bisbilhotando nas bancas dos livreiros na reunião da APA,4 achei o livro recém-lançado do casal Botella, The Work of Psychic Figurability. Eu o peguei e, ao começar a ler, pensei: "isso é fascinante, eles estão falando sobre o nascimento da mente!". É a peça central do pensamento de Bion, mas eles falavam em uma linguagem e desde uma orientação que eram totalmente novas para mim. Então fiz o que sempre faço quando quero ler um livro: escrevi para um dos meus amigos editores e lhe perguntei se eu poderia fazer uma resenha. Escrevi a resenha para a Psychoanalytic Quarterly, e foi uma experiência que me abriu os olhos. Esforcei-me e, mesmo não tendo entendido tudo, sabia que havia algo imensamente importante ali. Foi uma espécie de entrecruzamento de muitas coisas diferentes que eu há tempos vinha me questionando. Como um dos autores que eles usaram foi André Green, comecei a ler Orientações para uma psicanálise contemporânea e fiz o mesmo que havia feito com o livro dos Botella, falei com amigos no JAPA5 e perguntei se poderia resenhá-lo. Através disso e dos seminários de Gail Reed e Frank Baudry na APA, comecei a ler e estudar mais profundamente André Green. Escrevi um ensaio bastante abrangente sobre seu trabalho, que foi realmente uma tentativa minha de elaboração de sua obra, que serviu também para apresentá-lo ao público norte-americano. Coloquei todas essas coisas juntas: Klein, Bion, Botella, Green, Winnicott, e esses afluentes correram para esse rio e se tornaram uma torrente. É interessante, Green não faz muitas referências a Bion em seu trabalho, mas tendo feito o caminho de Bion para Green, posso sentir a presença de seu pensamento como uma influência absorvida por ele e que aparece em sua maneira e linguagem particulares. Na entrevista com Gregorio Kohon, Green fala de sua amizade com Bion, e que este era - acho que ele usa esse termo - como um "irmão mais velho" para ele. Havia um sentimento muito forte entre os dois.

Apenas para completar o círculo, voltei a Freud. E, sabe, havia aprendido Freud com a psicologia do ego. Pensava que Freud era um gênio, mas achava grande parte do seu pensamento um pouco mecânico, por conta da maneira que eu estava olhando. A partir de Green e outros autores, comecei a ter uma noção do Freud francês. Então comecei a reler suas obras de uma perspectiva totalmente diferente e me apaixonei loucamente por ele! Agora sei por que acho Freud um gênio e um grande escritor. Ensinaram-me uma espécie de Freud positivista, que tentava fazer-se consistente ao longo de seus escritos e evitava realmente pensar e lidar com as inconsistências. Em contraste, hoje penso que Freud foi uma pessoa brilhante, que estava tentando lidar com muitos problemas diferentes, e, sim, ele teria gostado de criar uma teoria consistente, mas ele a construía conforme as ideias iam lhe surgindo e de modo muito inovador. Eu sou agora tão fascinado pelas descontinuidades entre a primeira e a segunda tópica quanto eu era, quando candidato, pelas continuidades entre as duas.

Com uma perspectiva francesa há muito espaço para releituras criativas e leituras errôneas de Freud. Há um crítico literário muito famoso chamado Harold Bloom que escreveu um livro chamado A angústia da influência, um livro muito psicanalítico sobre crítica literária. Ele fala sobre a transição dos poetas elisabetanos para a geração seguinte e depois da transição dos poetas iluministas para os poetas românticos. Ele diz que cada grupo de poetas, cada geração de poetas, deve interpretar erroneamente a geração anterior a fim de criar algo novo. Ele coloca isso em termos edipianos, como uma forma de "matar o pai" e tornar-se si mesmo. Descobri que uma das dificuldades e, ao mesmo tempo, uma das coisas libertadoras foram que, por não ter feito minha formação como um kleiniano ortodoxo, como um bioniano ortodoxo nem como um analista francês, eu poderia interpretá-los mal, de qualquer maneira que fosse criativa, necessária e útil para mim, para resolver os problemas clínicos ou os problemas teóricos que eu estivesse enfrentando. Alguém poderia dizer: "ele não é um bioniano de verdade", ou "ele não é um kleiniano de verdade", ou "ele não é um psicanalista francês de verdade". Concordo, mas usar e compreender algo erroneamente, ou compreender algo com um toque diferente, cria uma nova interação. Bion escreveu sobre o conflito entre a mente criativa - que ele às vezes chamava de "o gênio" - e o establishment e de como um precisa do outro. Um dos motivos que precisam um do outro é o de se estabilizarem como dois polos de uma dialética. Precisam se contrapor e ter certo grau de conflito, e é esse conflito que mantém uma posição dialética estável, vis a vis um ao outro. Assim, quando as pessoas dizem: "ele não é um verdadeiro bioniano", tudo bem, mas eu sou um psicanalista. Não preciso ser um membro de carteirinha de um grupo ou de outro, procuro juntar essas diferentes correntes, porque elas têm sido importantes para mim. Bion também falou a respeito do que ele chamou de reversão de perspectiva e visão binocular. Ele disse que, assim que a gente tem uma ideia, uma crosta começa a se formar sobre ela, restringindo nosso pensamento. Porque, ao nos ajudar a ver certas coisas, não vemos aquilo que não vemos. E quando isso acontece, não se descobre algo novo. Existe uma tensão entre os efeitos estabilizadores necessários de se ter uma teoria que ajude a organizar o que se vê e pensa, e somos capazes de romper com isso, há uma oscilação entre esses dois pontos. Assim, em certa medida, estar fora do grupo é necessário para poder gerar novos pensamentos criativos. Tem sido uma dádiva e uma maldição. É uma vida solitária, mas estimula a criatividade.

Jornal - É algo muito libertador ter esse olhar estrangeiro para as tradi ções psicanalíticas.

Levine - Sim, mas existe o outro lado da história! Um dos primeiros artigos que apresentei, chamado The Sustaining Object Relationship, foi a partir da psicologia do self. Eu ia apresentar esse artigo na APA, e na noite anterior fiquei muito ansioso. Não foi uma surpresa eu ter ficado ansioso, mas a natureza da minha ansiedade, que era a seguinte: "oh, meu Deus, todos os meus professores da psicologia do ego vão pensar que isso é uma heresia, porque eu estou falando sobre fatores terapêuticos não interpretativos!". E depois pensei: "oh, meu Deus, todos os meus amigos da psicologia do self vão pensar que isso é uma heresia, porque este não é um artigo de psicologia do self!". E, de repente, me senti terrivelmente mal. Mas sobrevivi. Esse é o preço que se paga por não ser um membro de carteirinha de um grupo. Isso te dá uma oportunidade, mas você tem que aprender a lidar com a solidão de tentar ser um pensador independente.

Jornal - O senhor tem trabalhado recentemente com a noção de estados e áreas da mente representados e não representados como sendo centrais no trabalho analítico. Poderia nos contar o que pensa sobre como as áreas não representadas da mente do analista participam do processo analítico?

Levine - Essa é uma pergunta muito boa e muito interessante. Eu venho tentando pensar mais sobre isso, pois ainda não compreendi muito bem. No processo intersubjetivo descrito no trabalho dos Botella, eles falam sobre um conceito chamado "regrediência" (regredience). Eu o entendo como certa forma de regressão, e esta pode ser uma má interpretação minha, mas, como funciona, eu a uso. A maneira que entendo é a seguinte: quando o paciente está em uma condição em que há falta de representação, capacidade para pensar e desorganização da mente, começa a irradiar ou projetar os sinais afetivos dessa condição, que são muito poderosos e intensos. Isso provoca ansiedade no analista, uma ansiedade que pode chegar a ser desorganizadora. É através da absorção das identificações projetivas do paciente e através da identificação parcial com ele que ocorre no encontro das duas mentes que o analista começa a regredir em direção às suas próprias áreas de estados ainda não representados. E conforme possua um aparato mental mais competente que o paciente, esse movimento "regrediente" começa a estimular algo no analista para ele produzir representações.

Jornal - Para ele mesmo?

Levine - Para ele ou ela, a fim de sobreviver. Bion dizia que, mesmo a psique sendo tão frágil como ela é - e ela é relativamente frágil, pois é relativamente nova na escala evolutiva -, ela é o único recurso que se interpõe entre nós e a loucura. Para ele, viver no mundo é algo inerentemente traumático e impossível. Ele dizia que a função alfa e a psique são instâncias terríveis para confiarmos, no entanto é tudo o que temos. Foi com isso em mente que introduzi o conceito daquilo que chamo "imperativo representacional". Penso-o como um tropismo inato, enraizado biologicamente, decorrente do fato de que quando lidamos com algo sobrepujante não representado, a mente é estimulada a trabalhar. Uma máxima espirituosa para o imperativo representacional seria "representar ou morrer", porque, se não, a cabeça explode. Portanto a absorção da identificação projetiva, que significa o efeito do intenso impacto dos estados não representados do paciente, a identificação parcial e o movimento "regrediente" no analista produzem uma pressão. Freud disse que a pulsão faz uma exigência de trabalho sobre a mente. O movimento em direção ao não representado exige um trabalho da mente do analista, e esse trabalho é o da representação.

Então o analista, se a dupla tiver sorte, desenvolve uma ideia que procura conter e nomear a situação que está acontecendo entre os dois e também dentro dele. Deverá decidir se esse pensamento nomeado, que assim pode ser contido em sua mente, será usado também para outras finalidades. Inicialmente isso lhe ajuda a se estabilizar e continuar pensando e trabalhando durante a sessão. Porém depois terá que decidir se fará algo com isso, que talvez possa ser útil comunicar ao paciente, seja na forma de uma interpretação, ou de um comentário, ou, talvez, um movimento do analista a uma determinada posição em sua escuta. Ou talvez esteja relacionado com o que Bion chamou de fato selecionado, que é o ponto de organização daquele momento.

Laplanche descreveu dois tipos de transferência: a transferência em pleno e a transferência em oco. A primeira é a manifestação mais comum da transferência neurótica, da qual conversamos facilmente com o paciente: "você é como meu pai, está tentando me controlar" ou "você é como minha mãe, que me seduz e depois me abandona". Mas a transferência em oco, a transference en crue, é o espaço para o emergente, o ainda não formado, o não representado. Aqui o analista tem que andar por uma impossível linha tênue entre dizer algo que precipitará a saturação e preencherá um pouco dessa transferência em oco, o que é necessário em certa medida e em certa hora, versus manter o espaço em aberto para que o paciente possa preenchê-lo. Você já pescou truta alguma vez?

Jornal - Não...

Levine - Na pesca de truta o anzol não tem farpas na ponta, diferente da pesca em alto-mar, onde há farpas e, quando o peixe é fisgado, essas farpas prendem o anzol dentro do peixe, de modo que seja possível puxá-lo. Mas quando se vai à "pesca com mosca", não há farpas no anzol, então, se você puxar muito forte, o anzol sai pela boca e perde-se o peixe; e, se não puxar forte o suficiente, o anzol não se prende no peixe e ele foge. O problema técnico com a transference en crue é que temos que trilhar essa linha tênue entre ajudar o paciente a preencher sem sermos excessivamente atuantes, porque, se o analista preenche demais o paciente com sua ideia do que está acontecendo, encontrará complacência e criará um falso self; e, se não ajudamos o paciente a preencher, o paciente continua a girar dentro de um espaço vazio e a situação pode se tornar cada vez mais caótica. Então é como a pesca com mosca, em que você tem que ter uma mão muito sensível, ir tateando para frente e para trás e guiar-se por seu feeling e por como você está lidando com ele.

O imperativo representacional é uma forma de pensar sobre como estabilizar a mente, uma vez que estamos em contato com os estados não representados do paciente, porque estar em contato com eles nos leva às nossas próprias áreas de não representação. O trabalho de Antonino Ferro sobre a teoria do campo analítico tem sido muito importante para mim, já que me proporcionou uma maneira de pensar e falar sobre o pragmatismo de nomear coisas, saturação versus não saturação e a dialética entre ambas. Ele adiciona substância à questão de como conversar com os pacientes, quando as coisas são, como Ferro chama, "não saturadas". O não saturado nem sempre corresponde ao não representado, mas o não representado certamente é sempre não saturado, porque não existem palavras para isso, porque ainda não foi contido. Então a questão é encontrar uma maneira de contê-lo e poder falar sobre o que é impensável e indizível para o paciente. A técnica de Ferro não é a única maneira de fazer isso, é claro, mas ele sistematiza uma bela quantidade de exemplos de como lidar com isso clinicamente. Esse foi outro importante afluente na convergência de todos os pensadores e ideias que me influenciaram. Na mesma época que descobri o trabalho de Nino, ele veio para uma reunião da Associação Psicanalítica Americana e marcamos um encontro. Ele mal falava inglês, eu não falo italiano, mas passamos três horas conversando. Falamos um pouco em francês, um pouco em inglês, ele falou italiano gesticulando com as mãos e eu fui oferecendo-lhe palavras até encontrarmos as certas. Tornamo-nos amigos e, desde então, temos trabalhado juntos.

Jornal - A conferência que o senhor dará em nossa sociedade será a res peito do sonhar.6 Como a função do sonhar a sessão, pelo analista, se relacio naria a essa urgência à representação?

Levine - Nesse trabalho há uma pergunta que eu coloco e ainda não sei a resposta: o que do não representado, seja na mente do paciente ou na mente do analista, tem a ver com a produção dos chamados sonhos noturnos? Existem dois tipos de teorias da mente na psicanálise. Há uma teoria na qual tudo o que tem registro é psíquico. Eu acho que a psicologia do ego com a qual eu cresci funciona assim, e acredito que a maior parte da psicanálise kleiniana clássica também funciona assim, por causa de sua visão da fantasia inconsciente. Há outra teoria da mente que fala de registros e inscrições que ainda não são psíquicos. E aí vamos precisar de uma teoria que explique como passar do não psíquico para o psíquico. É aqui que a função alfa e os sonhos diurnos entram. Bion fala sobre pensamentos de sonho diurno e acha que sonhar é uma atividade que acontece 24 horas por dia, produto da função alfa. A função alfa toma inscrições ou registros - elementos beta, que Bion considerou basicamente não serem psíquicos - e os torna psíquicos para que possam começar a ser representados. Então o aparelho para pensar os pensamentos toma o que é psíquico e começa a costurá-lo em unidades de narrativa, em estruturas narrativas e, em seguida, os liga a outras estruturas narrativas, criando, assim, cadeias associativas.

O que acabei de dizer pode parecer uma "história de ninar" para psicanalistas. Eu não sei se isso é neuropsicologicamente verdade ou não, mas é uma metáfora heurística para refletir sobre como podemos pensar o funcionamento da mente. Permite nos colocarmos na situação clínica em um papel intersubjetivo, facilitando e catalisando esse tipo de processo. Em termos do sonhar, eu não sei o que dizer sobre o sonho noturno, mas em termos de sonho diurno e função alfa, esse é o ponto central do que venho pensando, falando e escrevendo a respeito.

Jornal - Em seus escritos, o senhor também afirma que essa presença ativa e criativa do analista inclui, por vezes, enactments de sua parte, ou mesmo diversos tipos de atuações (acting out). Nesse caso, quais seriam as implicações éticas dessa abordagem?

Levine - Bem, vocês têm em São Paulo um dos pensadores mais inteligentes e sofisticados dessa área, Roosevelt Cassorla. Além de ser uma grande pessoa, é um pensador absolutamente consumado, e a permanente evolução de seu trabalho tem sido muito importante e muito útil. Uma das implicações de uma teoria de estados não representados é que, às vezes, em vez de ser empírico e acompanhar o paciente, sendo reativo ao que ele diz e faz, o analista precisa ser intuitivo, inspirado e, por vezes, espontaneamente ativo. E, como Roosevelt descreveu de forma tão eloquente, isso às vezes significa que o analista se percebe capturado em um enactment, pois esse foi o único modo de chamar a atenção para algo que está acontecendo e não está sendo reconhecido. É como uma solda. A única maneira de ligar o não representado a algo que pode ser inscrito no psiquismo é por meio do enactment mútuo, inconsciente, espontâneo e não intencional. Uma vez que acontece, funciona como um remendo por sobre um buraco, cobrindo os furos do não representado no tecido da psique. Soldar é uma expressão de Freud que aprendi com Dominique Scarfone e que remete à ideia de que o não representado de alguma forma é coberto por algo que pode ser representado. Esse algo não se integra ao não representado, adere-se a ele cobrindo-o e funciona como uma prótese que preenche o vazio, remendando a interrupção e descontinuidade da psique do paciente.

Eticamente o problema que isso representa é que você tem que se entregar inconscientemente e intencionalmente a certo grau de atuação e enactment. É preciso manter-se dentro de limites, porque, se não, é muito destrutivo. Não podemos intencionalmente dizer: "agora eu vou atuar algo". Acontece de forma espontânea, a maioria das vezes na forma de pensamentos, desses pensamentos que vêm à mente do analista espontaneamente ou no que falamos ao paciente que normalmente não falaríamos. Às vezes, em algo que fazemos e só percebemos quando o paciente chama nossa atenção, e então nos perguntamos: "de que maneira isso tem a ver com o que está acontecendo com o paciente e entre nós?" e "podemos usar e transformar isso em uma oportunidade?".

Como psicanalistas, temos interesse em analisar o enactment desde, pelo menos, três perspectivas. Podemos analisá-lo como um elemento do campo, de modo que ele pertença tanto ao analista quanto ao paciente; ou como um movimento dramático do mundo interno, do teatro interno do paciente, do qual fomos recrutados a participar. Sobre essas duas perspectivas, temos liberdade para falar a respeito com o paciente. Assim, por exemplo, se o analista se encontra sonolento na sessão e começa a desaparecer, pode ser que ele tenha encenado o papel de uma mãe alcoólatra que está emocionalmente indisponível e abandonando o bebê. Eu certamente me responsabilizaria por minha sonolência e, nesse contexto, falaria: "vejo que posso ter sido novamente para você como tua mãe etc.". A terceira perspectiva é mais pessoal e não precisa ser compartilhada com o paciente. O analista tem que se perguntar: "o que isso tem a ver com minha própria psicologia e dinâmica?". Não apenas como um aspecto do campo, nem como uma parte do mundo e drama interno do paciente, mas "o que isso tem a ver comigo?". Para tal, requer-se análise pessoal. Assim, as responsabilidades éticas são a) manter-se dentro dos limites e b) submeter-se à análise pessoal ou supervisão, se for o caso. Então é algo muito sutil e complexo, porque o analista sabe que será recrutado dessa maneira e que precisa ser recrutado assim, a fim de criar esses difíceis pontos de encontro emocional entre a dupla. Se o analista não ocupa a transferência negativa, nunca será capaz de analisá-la; só poderá falar sobre o que Bion chamou de "boatos" (hear-say evidence) em vez de poder falar do aqui e agora, do que está acontecendo na sala de análise. No entanto, ao mesmo tempo, temos a responsabilidade de não perdermos o controle, de mantermos as coisas dentro de um equilíbrio razoável. Então essas são perturbações que não devem se tornar interrupções traumáticas nem levar à destruição da situação analítica, embora às vezes elas possam ser emocionalmente dolorosas ou irritantes tanto para o paciente quanto para o analista.

Jornal - Nem sempre é fácil manter-se vivo!

Levine - Exatamente!

Jornal - O senhor tem também trabalhado há muito tempo com a ques tão das transgressões sexuais ocorridas em análises, um assunto difícil de ser tratado dentro das instituições psicanalíticas. Poderia nos contar um pouco so bre essa experiência?

Levine - Sim, esse tema é muito difícil. Tivemos uma série de violações de limites terríveis em Boston envolvendo um analista didata muito renomado, que era o encarregado de fazer os encaminhamentos para toda a comunidade analítica. Quem precisasse fazer uma análise, passava primeiro por ele. Ele fazia 500 encaminhamentos por ano e era uma das pessoas mais importantes da comunidade. Então, quando foi descoberto que ele estava envolvido com transgressões sexuais, foi muito destrutivo para os pacientes, para a comunidade e para o Instituto. Eu colaborei para juntar um grupo de pessoas em Boston para conversarmos sobre o caso. Muitas pessoas estavam tentando intervir em diversos níveis, mas eu estava interessado em entender alguma coisa sobre a psicologia dos analistas que cometem violações dos limites sexuais. Logo descobrimos que as pessoas no grupo não podiam falar a respeito disso por conta da confidencialidade, já que muitos de nós estávamos envolvidos em níveis administrativos com as reclamações éticas e seus processos. Como as pessoas não podiam falar sobre isso, pareceu-me que a única maneira possível seria formarmos um grupo nacional. Assim, criei um grupo particular, por fora das instituições psicanalíticas, cujas reuniões aconteciam durante os encontros da APA, e tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas de diversas cidades onde havia acontecido transgressões, ou colegas que tinham se envolvido em investigações éticas e tinham alguma experiência e interesse no assunto. Iniciamos nossos encontros e conversamos sobre nossas experiências, de forma que as pessoas de Boston pudessem falar a respeito na frente de pessoas de outras cidades e pessoas de outras cidades pudessem também falar a respeito na nossa presença.

Depois, Glen Gabbard, que era um dos membros do grupo, conseguiu que o grupo se tornasse um dos grupos de estudo formais da APA. Trabalhamos como grupo de estudo formal auspiciado pela APA por mais ou menos 12 anos. Pessoas do mundo todo, não só dos Estados Unidos, se aproximaram de nós para conversar sobre a experiência de ser parte de um instituto onde esse tipo de explosão estava acontecendo. As conversas tratavam da experiência de lidar com colegas transgressores, ou de como lidar com os candidatos, ou de como fica a análise durante a formação quando isso acontece com o analista didata, ou de como lidar com o público, ou de quando o paciente que se envolveu sexualmente com o analista vem buscar tratamento. Havia, assim, diversos níveis e complexidades.

A seguir, formou-se um segundo grupo, liderado por Marvin Margolis, que conhece muito sobre o tema, e esse grupo focou particularmente nas respostas institucionais. Como a instituição processa os problemas éticos que isso levanta? Como lida com a comunidade? Como lida com a sociedade? Como lida com os candidatos? Quais deveriam ser suas instâncias institucionais e procedimentos? Qual seria a melhor prática de prevenção? Esse grupo está em vigor e vem se encontrando por aproximadamente sete anos. Alguns dos artigos que escrevi foram gerados desse tipo de experiência. Nós não temos todas as respostas, de maneira alguma, estamos tentando criar um modelo que possa ajudar as sociedades a responder quando esse tipo de coisa acontece e a se preparar para isso por meio de uma estrutura organizacional adequada. Eu acabei de aceitar uma nomeação para fazer parte do Comitê de Ética da ipa,7 onde continuarei estudando essas questões, e compartilharei agora ao nível da ipa a experiência do que aprendemos nos grupos da APA.

Jornal - Além do abuso sexual, outros tipos de abusos também acon tecem, e sabemos que de forma mais frequente do que chegam aos ouvidos públicos...

Levine - Há muitas formas de transgressões e violações de limites: existem os limites financeiros, limites sociais, limites pós-analíticos. Por exemplo, um analista didata tem a oportunidade de conhecer alguém, que é seu analisando, e que pode ser uma pessoa muito competente e criativa. Pode querer ajudá-lo a utilizar seu talento para contribuir com o desenvolvimento de sua Sociedade

7 International Psychoanalytic Association.

e pode, eventualmente, até querer trabalhar com ele, porque eles têm interesses em comum. Isso, no entanto, é muito diferente de criar uma espécie de cartel político e de fazer culto de personalidade com os que foram seus analisandos; ambas são práticas negativas e extremamente prejudiciais. Existem Sociedades onde isso acontece e é muito desagradável e inútil. Então como equilibrar tudo isso? Existem maneiras de ajudar os analistas formados a lidarem com o inevitável desconforto que surge assim que começam a interagir nos espaços sociais e na vida profissional vis a vis com seus analistas didatas? Podemos ajudar a fazer essa transição mais fácil para eles e provavelmente para os didatas também? Existem muitas perguntas sobre como cuidamos um do outro, como cuidamos de nós mesmos, como nos relacionamos com o público e como procuramos proteger e garantir a integridade da nossa profissão. Esses são alguns dos assuntos com os quais tenho me envolvido e que penso em comtinuar a desenvolver.

Jornal - É também uma maneira de cuidar da psicanálise como um todo. E já que entramos nesse assunto, gostaríamos de saber como o senhor vê a psi canálise hoje e o seu porvir?

Levine - Não conheço muito sobre a Sociedade de São Paulo. Eu sei que ela é grande, produtiva e está integrada à vida cultural e intelectual da cidade. Penso que, nesse sentido, está provavelmente quilômetros à frente de muitos outros lugares. Se estiverem conseguindo pacientes, conseguindo pacientes para seus candidatos e ainda conseguindo candidatos, então estão numa posição muito mais saudável que muitas outras Sociedades. Um sério problema que temos tratado como representantes no Conselho da ipa é que a psicanálise tem uma população de membros que está envelhecendo. Mundialmente, o número de jovens e de novos integrantes que se juntam a nosso campo é menor que o número de pessoas que o abandonam. É um desafio assegurar que a psicanálise se mantenha vibrante, saudável e relevante, pois acredito que, mesmo com todas as dificuldades, a psicanálise é a teoria de tratamento mais significativa e o tratamento mais significativo para diversos tipos de pacientes. Durante minha carreira procurei sempre fazer contribuições que ajudassem a reformular a teoria psicanalítica e o pensamento psicanalítico, de forma que se mantivessem relevantes e vitais para atender as necessidades do analista e dos pacientes que recebemos na atualidade. Por exemplo, meus escritos sobre a noção da teoria de duas vias (two-track) da psicanálise (modelo arqueológico e modelo transformativo). Não fui o único e não inventei nada, apenas encontrei uma maneira de falar sobre isso. A análise transformacional, que foi basicamente o assunto que conversamos hoje, é para mim o que há de inovador na psicanálise contemporânea. Penso que a psicanálise terá um futuro, que ela irá prosseguir. Temos que nos remodelar, não nos reduzirmos ao menor denominador comum nem tornar as coisas mais simples, rápidas, fáceis ou menos complexas. Precisamos estar atentos e procurar continuamente aperfeiçoá-la para lidar com os problemas clínicos e com os pacientes com que nos deparamos. Se fizermos isso, preservaremos algo que, sem importar quão adverso o momento histórico possa ser nas diferentes Sociedades, as pessoas voltarão a ele, porque o reconhecerão como essencial. A maioria dos pacientes que tenho recebido ultimamente tem utilizado medicamentos psicotrópicos. E, até certo ponto, ajudam, tudo bem, mas os medicamentos não tocam a alma, e é aí que as pessoas estão sofrendo. Eu gosto de lembrá-las de que "psyché" significa alma em grego.

Uma última história. Lembro-me que quando eu era residente de psiquiatria vi um quadrinho na revista New Yorker que mostrava um encanador, um cara que vestia um macacão, tinha uma chave inglesa no bolso de trás e dava para ver que era um trabalhador. Ele estava subindo as escadas de um porão. O porão estava cheio de água até a metade e havia um cano enorme. Em volta do cano tinha um pano que segurava o vazamento. Ele havia, então, selado o vazamento e, enquanto subia as escadas, pensava consigo mesmo: "em vez disso, me tornarei encanador de almas humanas...". A psicanálise é isso, temos que nos tornar encanadores das almas de homens, mulheres, crianças e adolescentes. É nesse coração que reside a força da análise. E por mais que as medicações possam ser úteis para algumas pessoas, até certo ponto e em certas circunstâncias, a alma é algo que a psicofarmacologia nunca tocará. Para mim, essa é a beleza da psicanálise e o que a torna tão excitante. É nosso presente, é onde reside o futuro e é parte da grandeza e do brilho da descoberta de Freud.

Jornal - Muito obrigado pela oportunidade, foi uma conversa muito in teressante e inspiradora!

Levine - Fico muito feliz que tenham gostado. Eu também gostei, e foi uma demanda de trabalho para minha mente. Uma demanda especialmente útil neste momento da minha vida, quando às vezes me ponho a pensar: "Quem sou eu? O que tenho feito na minha vida?".

 

 

1 Howard Levine é analista supervisor e membro do corpo docente do Massachusetts Institute for Psychoanalysis (mip) e do Psychoanalytic Institute of New England East (PINE). Autor de inúmeros artigos em periódicos e coeditor dos livros Growth and Turbulence in the Conteiner/ Contained (2012) e Unrepresented States and the Construction of Meaning (2013). O Jornal de Psicanálise teve o prazer de recebê-lo no dia 01 de agosto de 2014, por ocasião de sua vinda a São Paulo. Nesta entrevista, Levine traça, a partir da sua história pessoal, um vasto panorama da psicanálise norte-americana e da recepção das diversas tradições psicanalíticas. Fala também sobre temas que ele tem trabalhado atualmente, como a função do analista frente às áreas de não representação do psiquismo, ética e violação dos limites do enquadre analítico e nas instituições.
2 Estiveram presentes Abigail Betbedé e Alexandre Socha.
3 The International Psychoanalysts for the Prevention of Nuclear War.
4 American Psychoanalytic Association.
5 Journal of the American Psychoanalytic Association.
6 A conferência "A matéria de que são feitos os sonhos" foi apresentada na SBPSP no dia 02 de agosto 2014.

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