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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020

 

TEMAS LIVRES

 

Crônica de uma pandemia

 

Chronicle of a pandemic

 

Crónica de una pandemia

 

Chronique d'une pandémie

 

 

Talita Rodrigues de Oliveira

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Médica assistente do Núcleo Técnico de Humanização do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Membro do Grupo de Psicoterapia Dinâmica Breve do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP. São Paulo / talitaoliveirapq@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo a autora relata suas percepções e experiência participando de rodas de conversa com equipes de saúde responsáveis pelo enfrentamento da covid-19 no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: pandemia da covid-19, grupos terapêuticos, rodas de conversa


ABSTRAT

In this article, the author reports her perceptions and experience with therapeutic groups with health teams responsible for coping with covid-19 at Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Keywords: covid-19 pandemic, therapeutic groups, circles of conversation


RESUMEN

En este artículo, la autora informa sus percepciones y experiencia con grupos terapéuticos con equipos de salud responsables de hacer la covid-19, en el Hospital das Clínicas de la Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Palabras clave: pandemia de covid-19, grupos terapéuticos, círculos de conversación


RÉSUMÉ

Dans cet article, l'auteur rapporte ses perceptions et sa expérience avec les groupes thérapeutiques avec des équipes de santé chargées de faire face au covid-19, à le Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Mots-clés: pandémie de covid-19, groupes thérapeutiques, groupes de parole


 

 

Saio do prédio onde moro, em direção ao trabalho. Ao avistar o primeiro transeunte, me lembro do que já deveria ser um hábito: esqueci minha máscara. Volto, entro no prédio, subo até meu apartamento, álcool em gel nas mãos, pego a máscara, desço, ganho a rua novamente.

Estou com mais sono que a média das manhãs, mas não deixo de notar o movimento da Dr. Eneias,1 mais cheia que a média das últimas semanas, todos usando máscaras. Agora há também um homem as vendendo ao lado da banca de jornal, e a senhora vendedora ambulante voltara, depois de semanas sem aparecer. Sigo caminhando. Me esquivo de um jato d'água que o funcionário da Prefeitura lança contra o chão e contra qualquer um que estiver no caminho, em uma das medidas de higienização na rua do HC. De um alto-falante ouço as orientações do hospital, ditas em voz robótica: usem máscaras... distanciamento social... ambulatórios cancelados por conta da covid-19... é isso mesmo o que é falado? Não tenho certeza. Lembro-me do susto que tomei quando ouvi pela primeira vez o alto-falante preso em uma pequena plataforma metálica em frente ao Instituto Central. Me remetera imediatamente às sociedades distópicas dos livros e dos filmes, um clima opressivo e persecutório, e senti angústia. Quando ouço a voz do alto-falante, pontualmente às 8 h, não presto atenção no que ele diz. Estou atrasada. Dobro a esquina e sigo até o prédio da administração.

Trabalho no Núcleo Técnico de Humanização (NTH), setor responsável por criar projetos de cultura de humanização no complexo do HC. Houve uma grande demanda por cuidados em saúde mental para equipes de saúde durante a pandemia, sobretudo para aquelas que estão na linha de frente da covid-19. A exemplo do que ocorreu em outros países, houve um aumento expressivo de casos com demandas psiquiátricas, o que nos levou a implementar um projeto de apoio psicológico em um formato de rodas de conversa2 às equipes de enfermagem.

Esse projeto em particular me faz refletir sobre como oferecer um espaço para a subjetividade em um ambiente institucional. Acrescente a isso, um momento de grande perturbação, causada por uma pandemia, gerando uma grande sobrecarga de trabalho e os medos do contato presencial.

Assim, diante de dificuldades diversas, que frequentemente impedem a ocorrência dos grupos, surge outra questão, não menos complexa: como utilizar elementos da técnica psicanalítica, adaptada à realidade que se interpõe?

Sigo para o Instituto Central, para coordenar um grupo do projeto. Abro a porta, e me pergunto se alguém virá. Desejo, sobretudo, que as pessoas venham. Com álcool em gel nas mãos e máscara cirúrgica no rosto, começo a organizar as cadeiras, em uma tentativa de tornar o ambiente mais acolhedor. Uma pessoa se aproxima da porta, vacilante, e me pergunta, mostrando um pedacinho de papel na mão direita:

- É aqui o treinamento?

Fico feliz por alguém ter chegado, mas também um pouco desapontada: treinamento?

- É aqui, sim...mas é um treinamento bem diferente... entra, fica à vontade!

Ainda que fosse um espaço de acolhimento para as pessoas, e ainda que fossem da área da saúde, sentia que era muito difícil para elas entender o que era uma roda de conversa ou um grupo terapêutico. Apesar das lideranças da enfermagem compreenderem bem e solicitarem ativamente nossa intervenção, ao longo da comunicação ocorre uma deformação até ela se reduzir ao termo "treinamento" às equipes. Talvez isso ocorra justamente para garantir que a pessoa vá, pois assim seria uma "obrigação", ou, ainda, para facilitar a comunicação e evitar explicações maiores.

Depois de alguns minutos, outras duas colaboradoras aparecem, e agora, contando comigo, somos quatro pessoas. Após explicar do que se tratava o grupo, pareciam mais relaxadas, e uma delas começou a ficar com os olhos marejados. Silêncio. Aguardo com alguma tensão o que irá surgir, resistindo aos olhares curiosos e ao desconforto que surge ao depararmos com o silêncio.

- Puxa... está muito difícil... Sabe, ver tanta gente morrendo... sem nem poder se despedir da família... é muito triste - lágrimas escorrem do rosto - Soube hoje que um paciente meu que foi para a UTI faleceu. Aqui é toda essa tristeza. E, em casa, fico com medo de contaminar minha família, meu pai é cardíaco. Quando chego em casa, tiro a roupa toda na lavanderia e já coloco para lavar. Deixo um spray com álcool lá mesmo para limpar o tênis e a mochila. Daí vou direto para o chuveiro, sem encostar em nada. Eu fico com medo, né? Se meu pai pega... é perigoso... E tem todas essas notícias... me deixam mal, fico angustiada...

Uma participante parece incomodada, se remexe na cadeira e diz:

- Eu nem assisto mais a televisão, eles só mostram desgraça! Não mostram quem ficou bem, tem um monte de gente que sai bem, que sai de alta. E em casa faço bolo, faço exercício, danço, não fico parada, não, que não é bom. Sabe o que eu acho? Quem fica com medo dessa doença é quem pega, várias pessoas que conheço que pegaram estavam com medo. Eu não tenho medo de pegar. Claro, fico com medo de os meus familiares pegarem, mas eu pegar - diz, balançando o indicador em negativa -, não, não tenho medo.

A terceira mulher olhava atenta ao que as outras duas diziam. Um pouco tímida, diz:

- Meu marido pegou covid... ele está bem agora, não precisou de internação, nem nada, mas fiquei com medo. Fiquei pensando se não fui eu que passei para ele... apesar de todo o cuidado, né? Também tomo cuidado quando entro em casa. Queria saber se fui eu que passei para ele. Ele pode ter pegado em qualquer lugar... no ônibus... na rua... não sei. Mas acho que fui eu mesma... eu queria muito saber se fui eu que passei para ele.

Conversas como essa têm sido comuns nos grupos: o medo de contaminação, ou, mais frequentemente, de contaminar. Muitos relatam que deixaram os filhos com os avós ou que passaram a dormir em quarto separado do cônjuge. Tenho a impressão de que, numa situação em que se perde muito da previsibilidade da vida, se tenta controlar o que ainda é possível.

A terceira mulher continua:

- A gente tem medo, mas, sabe, está sendo bom trabalhar no covidário... tem dias mais difíceis, sim, é cansativo, mas me sinto bem quando o paciente sai de alta. É emocionante.

- É, não é só tristeza mesmo... - responde a jovem dos olhos marejados - é bom mesmo quando a gente vê que fez alguma diferença para o paciente. Quando acontece, é bom.

O clima mudou, está menos triste. E, em meio ao sentimento de impotência, se percebe que ainda existem muita potência e desejo de trabalhar naquelas enfermarias. Comunico essa percepção, e elas me olham com alguma surpresa, mas confirmando em seguida minha fala.

- É triste mesmo tudo isso, mas vamos enfrentando, né? - diz uma delas, ao final do encontro.

Voltando para casa, não penso muito enquanto caminho. Me sinto sem energias e ainda com sono. Estou atrasada, e tinha os pacientes de análise do consultório, agora virtual, para atender ao longo da tarde. Parecia que o tempo estava comprimido diante de tantas coisas a fazer. Passando em frente do ponto de táxi, ouço um fragmento de conversa:

- Na minha rua morreram três.

Ao que o outro homem responde:

- Tem que usar cloroquina...

Fico perplexa com a banalização das mortes. Três. Um número. Três pessoas morreram na rua dele, centenas no HC, milhares no Brasil, e o número de mortos continua subindo, enquanto se acredita em um remédio milagroso. Sinto cansaço, raiva e tristeza. Um menino vem correndo em minha direção, vestido de bombeiro, e quase tromba em mim. Avisto o pai o chamando, correndo atrás dele, e o imagino a sorrir debaixo da máscara.

O elevador do meu prédio estava quebrado, subo os sete andares até meu apartamento. Chego ofegante. Sedentarismo? Máscara? Covid? Em algum momento teria a resposta, mas hoje não. Álcool em gel nas mãos, abro as cortinas e a janela da sala. Procuro nos prédios e no céu. Lá estão eles. Dois urubus voando gloriosamente em um céu azulzíssimo, em meio aos prédios, seus reflexos nos vidros das janelas, fazendo uma curva e pousando em um prédio pequeno, em frente ao meu.

Notei-os pela primeira vez no final do ano passado, e achei graça, era uma cena pitoresca, no mínimo: dois urubus, um casal, suponho, em meio aos prédios de uma cidade grande. Com o passar dos meses, notei uma periodicidade: sumiam a semana inteira, para voltarem às quintas-feiras, com poucas exceções. Quando a pandemia veio, achei aquela visão lúgubre. Lembro ter visto em um documentário que quando os urubus veem um corpo parado lá do alto, eles ficam voando em espirais cada vez menores, cada vez mais próximos do corpo, até terem certeza que ele está realmente morto.

Olho para baixo, para a calçada. O pai e o menino-bombeiro saem da loja de doces e caminham juntos, de volta para casa, imagino. Bombeiros, enfermeiros, médicos... penso nos profissionais da saúde, tantas vezes aclamados como heróis da pandemia. Um rótulo que acaba por desumanizar essas pessoas, pois desconsidera suas histórias, suas angústias, necessidades e fragilidades.

Ainda um pouco ofegante e cansada de pensar em morte, olho de volta para os urubus. Um deles estava voando em espirais sobre os prédios, sobre o hospital, sobre todos nós. O outro ainda estava no prédio da frente e me observava tranquilo. Então ele me diz - hoje não.

 

 

Recebido em: 31/5/2020
Aceito em: 21/6/2020

 

 

1 Rua Dr. Eneias de Carvalho Aguiar, rua em que está a frente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
2 Esse projeto se chama "Enfermagem que Acolhe", e foi desenvolvido pelo NTH em 2016. Se trata de rodas de conversa de apoio mútuo, que visam o fortalecimento do indivíduo e das equipes de enfermagem.

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