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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.99 São Paulo jul./dez. 2020

 

OS VEIOS DE OURO DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA

 

Solilóquios com um fósforo queimado: notas do cafezinho

 

Soliloquies with a burnt matchstick: notes from the coffee break

 

Soliloquios con un partido quemado: notas de café

 

Soliloques avec une allumette brûlée: notes de café

 

 

Mario Luiz Prudente Corrêa

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Ribeirão Preto / marioprudentecorrea@uol.com.br

 

 


RESUMO

As intuições originais de Freud se verticalizaram em aprofundamentos teórico-clínicos e se horizontalizaram tornando-se populares. Em ambos os sentidos, o movimento trouxe novos desafios para a comunicação, tanto em sentido alongado, com o grande público, como em sentido lateral, de diálogo entre pares. Apreensões que privilegiam disjunções, e não cesuras entre novos desenvolvimentos epistemológicos e teorias consagradas, podem contribuir para um sentimento de expansão dispersiva do universo de discurso em psicanálise. Por fim, analisa-se o desafio que representa a vulgarização de formulações geniais, passíveis de um processo de kitschização epistemológica, com subtração de seus aspectos subversivos.

Palavras-chave: gênio, mito social, establishment, metapsicologia, kitsch


ABSTRACT

Freud's original intuitions became vertical in theoretical-clinical depths and horizontalized becoming popular. In both directions, the movement brought new challenges for communication, both in an elongated sense, with the general public, and in a lateral sense, of dialogue between peers. Apprehensions that privilege disjunctions, and not caesuras between new epistemological developments and established theories can contribute to a feeling of dispersive expansion of the universe of discourse in psychoanalysis. Finally, we analyze the challenge that represents the vulgarization of brilliant formulations, subject to a process of epistemological kitschization and subtraction of its subversive aspects.

Keywords: genius, social myth, establishment, metapsychology, kitsch


RESUMEN

Las intuiciones originales de Freud se volvieron verticales en profundidades teórico-clínicas y se horizontalizaron volviéndose populares. En ambas direcciones, el movimiento trajo nuevos retos para la comunicación, tanto en sentido alargado, con el público en general, como en sentido lateral, de diálogo entre pares. Las aprehensiones que privilegian las disyunciones y las no vacilaciones entre los nuevos desarrollos epistemológicos y las teorías establecidas pueden contribuir a un sentimiento de expansión dispersiva del universo del discurso en psicoanálisis. Finalmente, analizamos el desafío que representa la vulgarización de formulaciones brillantes, sometidas a un proceso de kitschización epistemológica y sustracción de sus aspectos subversivos.

Palabras clave: genio, mito social, establecimiento, metapsicología, kitsch


RÉSUMÉ

Les intuitions originales de Freud sont devenues verticales dans les profondeurs théorico-cliniques et horizontalisées devenant populaires. Dans les deux sens, le mouvement a apporté de nouveaux défis de communication, à la fois dans un sens allongé, avec le grand public, et dans un sens latéral, de dialogue entre pairs. Les appréhensions qui privilégient les disjonctions, et non les césures entre les nouveaux développements épistémologiques et les théories établies peuvent contribuer à un sentiment d'expansion dispersive de l'univers du discours en psychanalyse. Enfin, nous analysons le défi que représente la vulgarisation de formulations brillantes, soumises à un processus de kitschisation épistémologique et de soustraction de ses aspects subversifs.

Mots-clés: génie, mythe social, établissement, métapsychologie, kitsch


 

 

Introdução

Aproveito o ensejo proposto pelo Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise para trazer, com poucas alterações, apontamentos há muito realizados durante a ocasião de minha formação no Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São oito reflexões na época anotadas. Elas pareciam relevantes no passado, e dão ares de serem presentes ainda hoje.

1.

O grupo proseava de modo descontraído e animado, no cafezinho do evento. Alguém acabara de dizer: "Achei X interessante." X era o convidado palestrante do evento. Outro emendava: "Se bem que meio freudiano, né?". Depois de alguns dias, porém, observei que esse fragmento de bate-papo retornava à mente reunindo curiosidade, e refleti a respeito. Havia no fragmento de memória uma riqueza de elementos, característica de quando algo importante está sendo comunicado. Um algo oferecido de maneira fluida e tão desembaraçada, que parecia conter os elementos de um mito "socialmente compartilhado". Mas qual seria o mito em questão?

Em uma espetacular cogitação, Bion sugere associações livres como um instrumento de investigação aos mitos. Então lembrei não ser incomum o uso da palavra "freudiano" de modo derrogatório como referência à doutrina "oficial", ortodoxia e arcaísmo; ou, ainda, como identificação de idólatra do mestre fundador. Alguém retido em um universo historiográfico e obsoleto. Pensando bem, a contraposição entre oficial e livre já era contemporânea a Freud, como descrito por ele em "História do movimento psicanalítico" (1914/1987c, p. 65). Adiante com associações, veio-me a imagem de um fósforo queimado, já utilizado, antes de seu óbvio e iminente descarte. Refleti que, como grupo, estávamos possivelmente lidando com o mito de um deus morto ou oráculo decadente, e a imagem visual do fósforo queimado poderia ser entendida como um pictograma que o capturasse, representando sinteticamente esse mito. O presente texto reúne algumas reflexões a respeito.

2.

Freud, um gênio (místico), não existe mais. Um outro Freud não pode ser criado não importa o quão essencial ele possa ser.

(Bion, 1970, p. 87)

Sabemos que Bion empregava "gênio", "místico" e "messias" como termos intercambiáveis, porém, diante da epígrafe acima, indagamos: afinal, o que há de "excepcional" no indivíduo excepcional, e o que diferenciaria o gênio (messias ou místico) do talento?

No passado, talvez, o gênio tenha sido o geômetra. No antigo Egito, o Nilo transbordava suas margens a cada ano e as inundações simbolizavam para os egípcios o retorno cíclico de um primigênio caos aquoso. Quando as águas se retiravam, começava a tarefa de redefinir e restabelecer os lindes para o plantio. Esse trabalho nas fronteiras era a geometria,1 considerado como o restabelecimento do princípio da ordem e da lei sobre a terra. A Grécia herdou esse estudo, e no Mênon de Platão, vemos quando Sócrates, traçando no solo formas geométricas, mapeia novos campos de conhecimento ao escravo. Uma nova forma de linguagem e libertação do caos - cativeiro. Já nos tempos cristãos, há representações medievais em que se vê a figura de Cristo segurando um compasso entre o coração e o umbigo, como se reorganizasse um tumulto interior de energias vitais.2

São exemplos separados historicamente por milhares de anos, mas algo se mantém: o gênio mapeia aspectos do desconhecido. Forçoso seria justapor a isso o caso de Freud. Investigador das frestas e dos espaços-limite, desde seus primeiros estudos, entre estruturas pesquisou inervações; entre resistências e facilitações, supunha catexias; entre a vigília e o sono, indagou sobre o sonho; entre manifesto e latente, concebeu o pré-consciente como uma tela, a ligar e separar o consciente dos processos inconscientes. Também, como um geômetra das fronteiras, Freud concebeu lindes a unir e separar conhecido e desconhecido.

Acompanhemos um exemplo desse trabalho nas fronteiras:

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pen- samentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem pela natureza das coisas ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio. (Freud, 1900/1987e, p. 482)

Freud demonstrava que associações livres funcionam como uma sonda com a qual nos aproximamos dos pensamentos oníricos, mas há um ponto máximo de aproximação - o umbigo do sonho - a partir do qual as associações se retroalimentam e ultrapassam os pensamentos oníricos, sem atingi-los. Como se associações ao sonho se tornassem associações de associações, que passam a se afastar dos pensamentos oníricos. O sonho noturno recua, na obscuridade, e o que emerge em seu lugar é um recente e atual sonho diurno, como uma trama a ramificar-se em todas as direções, sem fim definido. São os limites do que nos é dado conhecer, e finito e infinito se bordejam.

3.

O fato de que Freud tenha tomado emprestado modelos de diversos campos do conhecimento é indício de que para ele se tratava de mapear um território que desbordava o conhecimento sistemático. É singular a descrição de Freud ao dizer, por exemplo, que a psicanálise se utilizava de "palavras inventadas para atender as suas próprias necessidades" (1914/1987c, p. 41). E nossa alusão anterior ao trabalho nas fronteiras é de fato uma referência à autoanálise de Freud, e que seria mais bem descrito como um itinerário de percurso, do que uma atividade do entendimento intelectual.

Um brevíssimo, mas significativo, exemplo desse itinerário nos é fornecido por um trecho da carta a Fliess n. 65, datada de 1897, em que Freud retrata esse período: "Acredito estar num casulo, e só deus sabe que tipo de fera sairá dele". A psicanálise se encontrava incubada em Freud, e a expressão dessa experiência vem na forma das imagens visualmente poderosas do casulo e da fera - união entre a interpretação (♂) e o interpretado (♀). Dessa crise, segundo Jones (1953/1989) "a maior delas", e sem exclusão de "pavorosas dores do parto" (Roth, 1998/2000), surge o trabalho sobre "A interpretação dos sonhos".

Em um trabalho posterior, "Uma dificuldade no caminho da psicanálise", Freud retrata com maior distanciamento retroativo as dificuldades e descobertas resultantes daqueles anos de crise e autoanálise. Sua primeira observação surge como um aviso: não se tratava de uma "dificuldade intelectual", mas "afetiva" (1917/1987a, p. 171).

Segundo sua apresentação, implacavelmente densa e precisa, sentimo-nos superiores dentro da própria mente. Mas, ao contrário de algo simples, a mente conteria instintos que não podem ser inteiramente domesticados por processos mentais que são, em si, inconscientes - hierarquia de instâncias superiores e subordinadas. Um labirinto de impulsos antagônicos que se esforçavam no sentido da ação, em que pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem o que se possa fazer para afastá-los: "estranhos hóspedes" (Freud, 1917/1987a, p. 176). Nas palavras de Freud: "O ego diz para consigo: 'Isto é uma doença, uma invasão estrangeira'. Aumenta sua vigilância, mas não pode compreender por que se sente tão estranhamente paralisado" (1917/1987a, p. 176).

Seria a psicanálise a encarregada de informar ao indivíduo sobre o equívoco essencial: nada de fora lhe havia penetrado, mas o que está contido no mental não coincide com o que é consciente. A inteligência, normalmente suficiente, falha! Freud termina seu artigo com uma exortação de apelo contemplativo: "Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! ... O ego não é o senhor da sua própria casa" (1917/1987a, p. 178).

Ora, tal missiva não seria recebida pelo grupo sem resistências, e já no seu "História do movimento psicanalítico" menciona o "silêncio" e o "vazio" (1914/1987c, p. 32) formados em torno dele em função do conteúdo de suas descobertas.

4.

A institucionalização da psicanálise requer um grupo psicanalítico que tem o "establishment" como uma de suas funções.

(Bion, 1970, p. 85)

Havia, no entanto, uma dificuldade que aguardava no caminho da psicanálise, e que não dizia respeito ao conteúdo, mas a sua transmissão. Freud se referia a isso como "dificuldades particularmente grandes ligadas ao ensino da prática da psicanálise responsáveis por grande parte das dissenções" que viriam a ocorrer (1914/1987c, p. 37).

Rompido o período em que Freud retrata seu estatuto pessoal como um "splendid isolation"3 (1914/1987c, p. 33), a partir de 1902 um pequeno grupo se forma em seu entorno. Nos próximos cinco anos esse grupo se amplia, e não demora tornarem-se grandes as tensões em meio a esse primeiro establishment primitivo. Os relatos denotam um período saturado de messianismo e competição por prioridade em relação ao mestre. Buscava-se extrair significações açambarcadoras que entravam em discordância com as ideias originais de Freud, e que muitas vezes resultavam em hipérboles de algum aspecto da teoria ou da técnica analítica. Foi assim com Wilhelm Reich e a função do orgasmo; Otto Rank e a questão do traumadonascimento e renovação da técnica analítica com preconização de tratamentos curtos e limitados previamente no tempo; Alfred Adler e seu ponto de vista biológico do hermafroditismopsíquico e protestomasculino; Ferenczi e a contratransferência bem como a técnicaativa e análisemútua; assim, também se deu com Jung, Stekel e tantos importantes colaboradores de Freud. Um exame desses decorrentes estaria fora de nosso escopo.

Também no Brasil, o título do primeiro livro sobre teses freudianas, publicado ainda em 1920 pelo psiquiatra Franco da Rocha, intitulava-se A doutrina pansexualista de Freud (Russo, 2002), evidenciando o caráter precário e entrecortado da compreensão do pensamento de Freud. Hoje, distorções reducionistas e exageros continuam ocorrendo. Segundo Peter Gay (1989), "é difícil para o mais frio dos historiadores defrontar-se com esses anos heroicos da vida de Freud sem cair em hipérboles".

5.

Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular.

(Freud, 1914/1987c, p. 56)

Se a transmissão das intuições de Freud no primeiro establishment representava um teste para os pilares da metapsicologia que se tentava construir, fosse por resistências internas do próprio grupo, ou pela formação de "jargões" e "sistemas" simplificadores (1914/1987c, p. 66), a posterior horizontalização e popularização dessas intuições traziam um desafio de proporções ainda maiores. Em certa medida, porém, isso se deveria à própria metodologia pela qual esses pilares eram construídos.

Como dito anteriormente, o território mapeado por Freud desbordava um conhecimento sistemático de forma que a psicanálise empregava termos do senso comum com intuito de postular "descritivamente estados psicológicos" (1914/1987c, p. 41). A ideia era de que o processo resultasse na decantação de conceitos mais claros e depurados. Por ocasiões, esse processo podia ser, numa expressão de Freud, arruinadopeloêxito sendo distorcido pela franca utilização.

Isso ocorreu, por exemplo, com o conceito de "complexo". Sua construção é atribuída à Escola suíça de psicanálise, decorrente dos estudos de associação de palavras, mas já havia sido utilizada pelo próprio Freud no caso Frau Emmy von N., nos "Estudos sobre histeria"4 (1893/1987b). Mas o fato é que Freud lamentava a popularização generalizada e mal aplicada do termo, mesmo entre analistas, que começaram a "falar entre si de 'retorno de um complexo' quando queriam dizer um 'retorno do reprimido' ou adquiriram o hábito de dizer 'tenho um complexo contra ele', quando a expressão correta seria 'uma resistência contra ele'" (1914/1987c, p. 41). Observemos que no zigurate de conceitos psicanalíticos, a babélica confusão de línguas será possibilidade sempre presente.

O exemplo a seguir aborda também a dificuldade na recepção e divulgação de conhecimentos em psicanálise, mas seu tom anedótico se deve, evidentemente, à disposição estética de Freud para o humor. Não é sem certo assombro que percebemos quão atual e corrente nos parece o relato ocorrido, embora tenha um passado de mais de cem anos. Ouçamos o relato de Freud:

Uma vez, um assistente da clínica de Viena, em cuja Universidade eu dava ciclos de conferências, pediu-me permissão para frequentar o curso. Prestava muita atenção, mas não dizia nada; depois da última conferência ofereceu-se para acompanhar-me. Enquanto caminhávamos, disse-me que, com o conhecimento de seu chefe, escrevera um livro combatendo os meus pontos de vista; lamentava muito, contudo, não haver antes se informado melhor acerca dos mesmos através de minhas conferências, pois nesse caso teria escrito o livro de maneira bem diferente. Chegara a perguntar na clínica se não seria melhor ler antes A interpretação de sonhos, mas aconselharam-no a não fazê-lo - não valia o esforço. (1914/1987c, p. 33)

Terminasse aqui, o caso de Freud seria já ilustrativo de que, na diáspora psicanalítica, os movimentos de expansão e dispersão estão permanente e fundamentalmente acasalados. Mas o caso prossegue: "Então ele próprio comparou a estrutura da minha teoria, até onde a compreendia, com a da Igreja Católica no tocante à consistência interna. No interesse da salvação de sua alma, acredito que essa observação implicava certa dose de simpatia" (1914/1987c, p. 34).

O relato, obviamente, ganha o aspecto de um chiste por conta de seu desastroso desdobramento final.

6.

É essencial preservar a linguagem. Para tanto, fazem-se normas que utilizam palavras de definições. O Dicionário Oxford, a filosofia linguística, a lógica matemática representam comprovações do trabalho que, sem cessar, prossegue nesse propósito. Nele, homens e mulheres comuns, com habilidade comum, acreditam executar tarefa que de outro modo só pessoas excepcionais realizariam. Graças a Faraday e outros cientistas pessoas comuns podem iluminar uma sala com o toque de um interruptor; graças a Freud e colaboradores pessoas comuns têm a esperança de com a psicanálise se ilumine a mente.

(Bion, 1970, p. 89)

A obra Atenção e interpretação nos parece indispensável para o entendimento abrangente daquilo que envolve a circulação e transmissão de conceitos em psicanálise. Já em suas primeiras páginas, Bion (1970) ilustra com sutileza penetrante a necessidade de Freud "isolar-se" para trabalhar, e o inconveniente do isolamento para aquilo que se deve estudar - o grupo. E, nesse espírito, lê-se no subtítulo: "o acesso científico à intuição em psicanálise e grupos". No texto o aspecto grupal é enfatizado, e faz-se uso de modelos com clareza e didática generosas. A preservação da linguagem em psicanálise seria um meio pelo qual indivíduos de talento comum poderão receber, compartilhar conhecimento psicanalítico e se beneficiar de experiências que, de outro modo, só o indivíduo excepcional alcançaria. Um establishment institucional é o encarregado da tarefa "controvertida", segundo Bion, de promulgar estatutos - um substituto para o gênio, místico ou messias - de maneira que por outorga ou concessão possam usufruir de um sentido de participação na "temível experiência de sertornado O" (1970, p. 63).

Bion chamava atenção para a necessidade de comunicação entre analistas: "A maioria dos analistas por algum tempo sente que o 'universo de discussão' da psicanálise se expande tão rapidamente que não mantemos mais o que para o soldado é a 'comunicação lateral'" (1970, p. 96).

A comunicação exitosa não se deteria em decifrações de códigos saturados incapazes de relacionamento, mas tentaria comunicações mais próximas do campo de realização, oferecendo-se como prelúdio de ação transformadora.

Parafraseando, então, a epígrafe acima, poderíamos afirmar que, ao tocarmos o interruptor, o "gênio" de Faraday (♂) penetra uma cesura temporoespacial e provoca a ação que ilumina a sala (♀). Uma questão crucial e espinhosa seria esta: pode o texto freudiano atravessar a massa de compreensões compartimentadas e jargões ossificados e tornar-se o meio de uma ação aqui e agora? O problema é demonstrado pelo místico Angelus Silesius (1986), quando, em um poema potente, dirige sua indagação em primeira voz, direta e certeira, a Gabriel,5 que poderia ser formulada deste modo: "você trouxe o espírito a Maria; se lhe pedisse o mesmo, a mim você faria?". O místico investiga, portanto, se aquilo "lá e então" Anunciado pode ser de consequência no "aqui e agora". A reflexão seguinte seria algo assim formulada: na leitura que fazemos de Freud intuímos as realizações que tornariam possível identificar o Freud pós-freudiano, implícito em sua obra?

Há leitores para os quais apenas disjunções têm appeal, interesse, visualidade. E, aqui, tomamos auxílio do filósofo e teólogo francês Antonin Sertillanges, para quem o indefinido alongamento acerca das diferenças entre grandes gênios é investigação vã e infecunda. Perdemo-nos em labirinto de ideias em que se combate com "espírito de panelinhas" em processo de exclusão sumária de autores (2010, p. 133). Sentido inverso, aqueles afeitos não apenas a ideias, mas a verdades e penetração, se interessarão pelos pontos de contato e ligações ocultas entre grandes autores. Sertillanges coteja grandes textos de maneira a esclarecê-los um pelo outro; aponta o essencial entre eles, de maneira que a verdade se reconstrua e se alongue. Ele cita Goethe: "O indivíduo não criador tem um gosto negativo, restrito, exclusivo, e consegue despojar de sua energia e de sua vida o ser criador" (2010, p. 133).

Sim, e o que faz o gênio criador? Certamente não se trata de exegese idealizada e dogmática do texto canônico, mas algo como uma incursão generosa ao seu interior, trazendo as "heresias" que renovam e fertilizam a tradição "oficial". Bion considerava que a psicanálise havia passado por desenvolvimentos técnicos, e ainda iria se desenvolver, e não podia ser considerada como condição estática. Ao mesmo tempo, seria inadequado o descarte de "teorias estabelecidas" (1965, p. 4) por parecerem inadequadas para uma contingência particular, o que favoreceria a formação de teorias ad hoc: "É, então, aconselhável se preservar uma atitude cautelosa para com teorias largamente aceitas, mesmo que se torne claro a necessidade de ajustes" (Bion, 1965, p. 4).

A palavra "ajustes" é importante aqui, pois alguns de nós entenderão o termo como sinônimo de "conserto". Como se os postulados de Bion litigassem, relegando-as à obsolescência, em vez de ampliarem, as ideias Freud. Esse modo de apreensão vê disjunções epistemológicas que separam ideias como incompossíveis, e não cesuras que ligam o corpo de intuições persistentes entre grandes autores. Um resultado desse modo de compreensão estanque tem ao menos dois decorrentes. O primeiro é a criação de um futuro para desenvolvimentos epistemológicos tecido de objetos "neoantigos", que parecem flutuar no espaço, sem que se possa identificar relacionamentos e conexões.6 O segundo é um fenômeno de efeito curioso, no qual se vê a obra original de Freud como se sob o efeito de lembrançasencobridoras no qual substituímos o que é mais importante, retendo o irrelevante. Essa mira epistemológica vê um Freud "determinista", de interpretações definitivas ou decifradoras, construídas de símbolos e sistemas preestabelecidos, e não chega a encontrar o substrato pós-freudiano implícito na própria obra.

7.

Como sabemos, em "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", Freud propunha aos futuros psicanalistas uma atitude subjetiva, que descreveu alinhavando termos do senso comum, como "atenção uniformemente suspensa" (1912/1987f, p. 150).7 Era uma vanguarda epistemológica que preconizava a suspensão momentânea da lógica, censura, e atenção focalizada, assim descrita por Jones: "À primeira vista, o passo dado podia parecer curioso; significava deslocar uma pesquisa sintomática e resoluta que tinha em vista um objetivo conhecido e dar lugar a uma deambulação aparentemente cega e descontrolada" (1953/1989, p. 250). Segundo ele, esse foi o passo mais decisivo na vida científica de Freud. O investigador, assim como alguém artificialmente cego, alcançaria um estado similar à hipermnésia dos sonhos, com acesso a conhecimentos e lembranças que nem está ciente de possuir. Um meio não linear e primário de contato com o "não conhecido" (unbewusste).

Ainda assim, como vimos há pouco, e diversamente do imaginário popular, a sonda epistemológica proposta não conduziu a interpretações finais, explicativas ou objetivantes. Como diz Freud, o desejo, o umbigo, a origem, a fonte da pulsão (Triebquelle), em suma, aquilo que gerou o sonho, não pode ser conhecido, e jaz atrás do emaranhado de pensamentos oníricos fora do alcance interpretativo.

Bion reformula e estende as aplicações clínicas das observações de Freud sobre os processos oníricos e o trabalho do sonho - eles ocorreriam durante o dia e não somente à noite -, ressalta a importância da capacidade de o analista "sonhar"8 a experiência emocional em curso. Mas conclui: "Os fatos absolutos da sessão não podem jamais ser conhecidos, e estes eu denoto pelo sinal O" (1965, p. 141). Bion esclarece que vínculos como K, L ou H seriam inadequados a O, tal como Freud havia exposto sobre a inadequação de associações livres para os pensamentos oníricos. A confluência entre ambos aqui tem também um caráter prático para a clínica psicanalítica: a incerteza acerca da realidade psíquica, embora ela exista.

Note bem: não se trata, para Bion, de simples resistência ao caráter numinoso de O; como, para Freud, não se trata de resistências aos conteúdos reprimidos do sonho. O que há, em ambos os casos, é a impossibilidade de acesso a certezas absolutas. Diz Bion:

Minha teoria poderia parecer implicar um hiato entre fenômeno e a coisa-em-si-mesma, e tudo que disse não é incompatível com Platão, Kant, Berkeley, Freud e Klein, mencionando alguns, para mostrar a extensão daqueles que acreditam que uma cortina de ilusão nos separa da realidade. (1965, p. 147)

Há algo que se entremeia e une grandes pensadores: são as intuições persistentes! Elas parecem mergulhar e desaparecer, para reaparecem, anos depois, em outro período ou corpo de ideias científicas, artísticas ou religiosas.

8.

Para concluir, a suspeita inicial era de que o bate-papo no grupo durante o cafezinho teria acolhido provisoriamente um "mito" socialmente compartilhado, e o pictograma fósforo queimado o teria representado. Supomos haver relação entre esses dois elementos. Adiante, segue uma revisão sumária de como entendemos essa interação.

A intuição original de Freud se horizontaliza em grupos cada vez maiores, se institucionaliza e se populariza. A expansão do instrumental teórico e clínico em psicanálise também inclui o viés de dispersão. À medida que seu universo de discurso é desgastado por disjunções reducionistas, produzimos desenvolvimentos epistemológicos estanques, "neoantigos".

Na instituição psicanalítica, ideias ou conceitos científicos, artísticos e religiosos são recebidos e transmitidos. Equivale dizer que são consumidos e compartidos. A depender da produção, consumo e descarte, arriscamos produção análoga a um "kitsch metapsicológico".

O termo kitsch, como exposto na formidável obra de Moles (1971/2001), surgiu em Munique por volta de 1860, e define um fenômeno social universal, e um sistema estético de cultura e comunicação de massas. Há um estilo, uma atitude, um espírito kitsch, inerentes a toda cultura que consome. Pela cópia, esteriliza e condena ao ordinário-transitório seus produtos de caráter autêntico e subversivo. O espírito kitsch pretere o gênio e escolhe o talento. Segundo Moles, o kitsch ama o conformismo e o meio-termo. Ele é o modo estético e a "psicopatologia da vida cotidiana" (1971/2001, p. 221).

Há um kitsch epistemológico pelo qual afirmaremos que o inconsciente freudiano se reporta ao reprimido, alheio ao exposto por Freud em "O Inconsciente" (1915/1987d). Uma de suas extensões viria assim: o inconsciente freudiano se limita ao reprimido, enquanto o inconsciente bioniano é infinito, cujo fundamento pode ser mais bem localizado no problema das tensões intragrupo. Outro kitsch epistemológico assegurará ser o sonho "a via régia para o Inconsciente", desatento ao fato de que Freud não pretendia dizer que o inconsciente possa ser conhecido em si mesmo, e evitava "cuidadosamente a tentação de determinar [uma ] localização psíquica como se fosse anatômica" (1900/1987e, p. 491). A afirmação de Freud seria: "A interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anímica" (1900/1987e, p. 550, grifo nosso). Pode ter contribuído para esse exemplo de "kitsch freudiano" o fato de em o índice remissivo geral do volume 5 da Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud constar exatamente o exposto acima por razão de espaço, favorecendo o engano.

O kitsch é popular, é de fácil uso e instantânea captação. Ele poderá se instalar na própria formulação de "freudiano". Há o kitsch de vanguarda, que é a moda, e nesse caso estará nas trocas sociais, onde pode alcançar qualquer grande pensador. Ouvimos a voz do "kitsch bioniano" no convite a "sonharmos juntos a experiência emocional em nosso Grupo de Trabalho", indiferente ao fato de que lá se vão três formulações de enorme complexidade, cujo âmbito e circunstâncias de ocorrência ainda pouco se conhece.

A sedução kitsch é insidiosa e penetrante. Une e nos envolve a todos! Não há quem a desconheça, ou não a tenha, por vezes, abraçado e praticado. O kitsch é intuitivo e, no dizer de Moles, ama o "conformismo, o meio-termo e a l'art du bonheur" (1971/2001, p. 75). E, abraçados a ele, somos capazes de ler penosamente o capítulo vii de A interpretação dos sonhos, e fazer de Freud um excesso de meios em face das necessidades. Um processo de kitschização nos faz ler o texto de Freud sem esperar muito dele.

O "algo" que nunca virá não deixa de ser uma modalidade de "esperança messiânica", proposta por Bion (1970), em que o real é idealizado e a realização é irreal: "Quando o reino virá?", perguntavam os discípulos a Jesus. A resposta era enigmática: "O reino... o fim do mundo, está por vir." Porém, na versão do divergente e Quinto Evangelho de Tomé, herdeiro das palavras secretas de "Jesus, o Vivo" dirigidas a um círculo restrito de discípulos, retirado em 1945 das ruínas do velho cemitério de Nag Hammadi, e quase ignorado pelos quatro Evangelhos largamente conhecidos, se responde: "O reino do Pai não virá por expectativa. O reino do Pai está disseminado pela terra, e os homens não veem" (Rohden, 2001).

 

Referências

Bion, W. R. (1965). Transformations: change from learning to growth. W. H. Medical Books.         [ Links ]

Bion, W. R. (1970). Attention and interpretation. Tavistock Publications.         [ Links ]

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Recebido em: 15/11/2020
Aceito em: 6/12/2020

 

 

1 "Medida da terra".
2 Um exemplo dessas representações pode ser encontrado na obra de Lawlor (1982/1996).
3 O anglicanismo no emprego de Freud possivelmente se refere ao termo cunhado por George Eulas Foster, em 1896, como referência à prática diplomática inglesa de se manter isolada dos conflitos da Europa continental.
4 Onde se pode ler "complexo de representações" e "compulsão à associação" (Freud, 1893/1987b, p. 96).
5 Gabriel é um dos anjos de mais destaque na literatura extracanônica. É um dos quatro anjos próximos do trono de Deus a quem intercede em nome dos que são oprimidos pelo mal. É mensageiro divino e intérprete de sonhos (Metzger & Coogan, 2001/2002).
6 E aqui somos brindados pela carta-convite do Jornal de Psicanálise, 53(99), ao trazer um exemplo do fenômeno: "A formulação original do 'pensamento onírico de vigília', por exemplo, muitas vezes é atribuída ao modelo bioniano, mas trata-se de um dos aspectos centrais da primeira tópica freudiana, como referido pelo próprio Bion em seus enunciados".
7 Aqui, vale lembrar que a palavra alemã comumente traduzida para o português por "associação livre" é Einfall (Hanns, 1996).Ein indica algo que "entra", "penetra". A palavra Fall significa "queda". Einfall significa "ideia que ocorre", "invasão" e em certas frases evoca a imagem de um despencar para dentro. Esse despencamento não é aleatório, mas segue os caminhos de um desfiladeiro já aberto pelas leis do inconsciente - condensação, deslocamento etc.
8 Bion também emprega termos mais abstratos como "função α", ou próximos à experiência como reverie, e os relaciona com "atenção livremente flutuante" (1992/2000, p. 216).

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