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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo Jan./June 2022

 

HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO

 

O novo olhar

 

The new gaze

 

La nueva mirada

 

Le nouveau regard

 

 

Luís Carlos Menezes

Membro efetivo com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo / luismzes@hotmail.com

 

 


RESUMO

Embora a psicanálise seja uma prática e um campo do saber voltado para o irracional, o inconsciente, não há dúvida que só pôde constituir-se num estágio já avançado do saber científico e do desenvolvimento cultural e político que a precedeu. A possibilidade de sua prática depende, também, de um ambiente social em que estejam preservados os direitos civis das pessoas e em que haja uma abertura com relação à diversidade nos modos de ser e de viver. Num ambiente obscurantista religioso ou num regime político totalitário ela se torna inviável. Neste trabalho, o autor percorre algumas pistas, recorrendo a alguns autores desde a Renascença, o surgimento das ciências experimentais e as ideias libertárias, humanistas, do Esclarecimento. A revolução industrial com o surgimento do capitalismo, das ideologias socialistas e das sociedades higienistas, ciosas da ordem na virada do século XIX para o século XX, resultando nas ideologias totalitárias do século passado. A originalidade da posição ética da psicanálise é destacada na perspectiva desses movimentos.

Palavras-chave: obscurantismo, iluminismo, modernidade, liberdade, ética psicanalítica


ABSTRACT

Although psychoanalysis is a practice and a field of knowledge focused on the irrational, the unconscious, there is no doubt that it could only be constituted in an already advanced stage of scientific knowledge and of the cultural and political development that preceded it. The possibility of its practice also depends on a social environment in which people's civil rights are preserved and in which there is an openness to diversity in the ways of being and living. In an obscurantist religious environment or in a totalitarian political regime it becomes unfeasible. In this work, the author goes through some clues, using some authors since the Renaissance, the emergence of experimental sciences and the libertarian, humanist ideas of the Enlightenment. The industrial revolution with the emergence of capitalism, socialist ideologies and orderly hygienist societies at the turn of the 19th century to the 20th century, resulting in the totalitarian ideologies of the last century. The originality of the ethical position of psychoanalysis is highlighted in the perspective of these movements.

Keywords: obscurantism, enlightenment, modernity, freedom, psychoanalytic ethics


RESUMEN

Si bien el psicoanálisis es una práctica y un campo de conocimiento centrado en lo irracional, lo inconsciente, no cabe duda de que sólo pudo constituirse en una etapa ya avanzada del conocimiento científico y del desarrollo cultural y político que le precedió. La posibilidad de su práctica depende también de un entorno social en el que se preserven los derechos civiles de las personas y en el que haya una apertura a la diversidad en las formas de ser y de vivir. En un ambiente religioso oscurantista o en un régimen político totalitario se vuelve inviable. En este trabajo, el autor recorre algunas pistas, utilizando algunos autores desde el Renacimiento, el surgimiento de las ciencias experimentales y las ideas libertarias y humanistas de la Ilustración. La revolución industrial con el surgimiento del capitalismo, las ideologías socialistas y las sociedades higienistas ordenadas a finales del siglo XIX al siglo XX, dando como resultado las ideologías totalitarias del siglo pasado. La originalidad de la posición ética del psicoanálisis se destaca en la perspectiva de estos movimientos.

Palabras clave: oscurantismo, ilustración, modernidad, libertad, ética psicoanalítica


RÉSUMÉ

Bien que la psychanalyse soit une pratique et un champ de connaissance focalisé sur l'irrationnel, l'inconscient, il ne fait aucun doute qu'elle n'a pu se constituer qu'à un stade déjà avancé des connaissances scientifiques et du développement culturel et politique qui l'ont précédée. La possibilité de sa pratique dépend aussi d'un environnement social dans lequel les droits civiques des personnes sont préservés et dans lequel existe une ouverture à la diversité des manières d'être et de vivre. Dans un environnement religieux obscurantiste ou dans un régime politique totalitaire, cela devient irréalisable. Dans cet ouvrage, l'auteur passe en revue quelques indices, en utilisant certains auteurs depuis la Renaissance, l'émergence des sciences expérimentales et les idées libertaires et humanistes des Lumières. La révolution industrielle avec l'émergence du capitalisme, des idéologies socialistes et des sociétés hygiénistes ordonnées au tournant du 19e siècle vers le 20e siècle, aboutit aux idéologies totalitaires du siècle dernier. L'originalité de la position éthique de la psychanalyse est mise en évidence dans la perspective de ces mouvements.

Mots-clés: obscurantisme, Lumières, modernité, liberté, éthique psychanalytique


 

 

Assisti ao filme, Menezes. Uma bela paródia de nossa realidade

farsesca. Que humanidade tão atrapalhada essa nossa!

Rodrigo Lage Leite

Na virada do ano, numa breve troca de felicitações, mencionei para Rodrigo Lage Leite o filme Não olhe para cima. Eu o tinha assistido alguns dias antes, na Netflix, e tomei a mensagem dele - no dia seguinte - como epígrafe deste trabalho.

O filme é uma caricatura grotesca de nossos tempos: um cientista modesto e uma doutoranda descobriram um meteoro que estava vindo em nossa direção - o choque se daria em poucos meses - e, naturalmente, queriam comunicar a terrível descoberta, mas tiveram dificuldade para fazê-lo, pois todos estavam muito ocupados com coisas mais importantes.

Um alto oficial do Pentágono os acompanha à sala de espera da presidente dos Estados Unidos, ao lado do famoso salão oval. Aguarda por algum tempo, mas como está demorando, decide deixá-los... tem um compromisso. A própria presidente só consegue recebê-los no dia seguinte e mostra-se contrariada com a notícia, ocupadíssima que está com a indicação de um membro para a Suprema Corte e com a eleição legislativa a ocorrer em breve. Acaba decidindo que o assunto "o fim da vida na Terra" não era tão prioritário e decide deixá-lo na categoria de "a esperar e avaliar".

Sem sucesso na casa Branca, os dois tentam encontrar algum modo para divulgar a notícia - que a essas alturas, já confirmada por vários cientistas de renome, começara a circular nas redes sociais - alguns acreditam, outros não, na verdade, as mais variadas versões são criadas. Por um lado, as pessoas vão tomando partido por uma ou por outra, de maneira que a gravidade do assunto se dilui nessa troca febril de "ideias" e de opiniões. Por outro, é a crescente excitação - preferiria poder dizer interesse - sobre o assunto que acaba lhes dando acesso a um programa de tv, de grande audiência, voltado para fatos diversos que, tratados de tal forma, tornam-se objeto de entretenimento para o público.

Enquanto aguardam o início do programa, com os demais participantes, são informados que serão os últimos a serem entrevistados e terão 10 minutos para falar do "planeta que descobriram" (sic), pois o assunto principal seria a separação em curso de um casal de celebridades.

A "historinha" do meteoro na entrevista com o cientista e sua estagiária é tomada como uma curiosidade divertida. E, assim, o interesse do público e das redes sociais volta-se para o cientista, visto como um homem atraente, enquanto a estagiária é a "surtada" (sic) que insiste nervosamente falar sobre a gravidade do assunto, o que foi visto como algo muito inconveniente. Esse "nervosismo" deslocado pegou mal nas redes sociais, ela é tratada como a "louquinha", embora alguém dissesse que até transaria com ela.

Quando o meteoro já está se aproximando da Terra e se torna visível no céu, há uma grande mobilização política liderada pela presidente para que ninguém olhe para cima: "eles querem que vocês olhem para cima para ficarem com medo... mantenham os olhos na estrada...", diz ela.

Um expoente do poder econômico, muito influente, explicara à presidente que o meteoro era, na verdade, um belo presente para todos, já que havia nele uma imensa quantidade de metais preciosos, úteis, em especial para a fabricação de celulares. Daí a campanha de "não olhar para cima".

E é o lugar dado ao olhar cuidadoso, em princípio esclarecedor - evitado por todos no filme - que vai me interessar na breve excursão que pretendo fazer neste trabalho pinçando alguns momentos importantes desses últimos tempos da humanidade, de fato, bem atrapalhada, como disse o amigo.

Mencionar Freud e sua psicanálise para nós que estamos tão mergulhados nela pode ser até decepcionante nesse início de passeio, mas não podemos deixar de dizer que o olhar propiciado por sua invenção tem em seu centro não só o olhar da noite em que nos vemos sonhando, como os olhares perdidos e resgatados nas análises, em atos de pensamento, em vivências fulgurantes de flashes que trazem à tona um tanto de essenciais de nosso ser. Ao escapar das "recusas de olhar", das quais o recalque é o modelo, o paciente pode, com efeito, sair da posição defensiva de um evitamento sem fim que lhe está custando uma vida impedida, para recuperar uma liberdade interior portadora de novos possíveis.

E, se recuarmos alguns séculos, encontraremos um outro homem, um florentino, habitado por uma insaciável curiosidade, quer saber como são as coisas e os seres, como são construídos e como funcionam, e se detém constantemente nelas com um olhar sereno, calmo, perspicaz, detalhista, anota o que vê e o que descobre, página por página, em seus cadernos. Essas sete mil páginas, nenhuma publicada em vida, testemunham o que esse seu olhar é capaz de alcançar, já que suas descobertas em todos os campos germinariam nos séculos seguintes, mostrando-se fecundas.

Mas o tempo em que vive Leonardo é estranho, turbulento, de outro modo que o nosso, um tempo ainda carregado de crenças e do silêncio angustiante do mal onipresente. Um ambiente em que o pensamento engessado é induzido a permanecer nas trevas de um olhar intimidado pela visão religiosa, naquilo que Freud chamou de "proibição de pensar" (Denkverboten) (Freud, 1933/2010, p. 339).

Leonardo, esse "homem que acordara no meio da escuridão, enquanto os outros ainda dormiam", na bela imagem do romance de Dmitri Merejkowski, é movido, nos diz Freud, pela paixão do saber que não recua diante de nenhum limite porque é equivalente às paixões sexuais, as mais intensas, que nele estariam sublimadas. (Freud, 1910/2013, p. 197 e Merejkowski, 1902, p. 354).

Em seu prefácio à obra de Freud sobre Leonardo, Pontalis recusa a oposição entre o investigador, o homem de ciência e o artista: estas não estariam em conflito em Leonardo, uma oposição que não faria o menor sentido para ele. "A aliança entre a ciência e a arte é consagrada pela pintura, que é 'conhecimento supremo', essa é a religião de Leonardo", nos diz Pontalis.(Freud, 1910/1987, p. 23) A oposição entre o inteligível e o sensível encontra-se reduzida em seu modo de observar e de pensar e, nisso, Pontalis vê uma identificação entre os dois pensadores, apesar dos séculos e dos universos culturais que os separam. (Freud, 1910/1987, p. 26)

A propósito, é de Leonardo um "admirável elogio do olho":

por onde a alma contempla a beleza do universo e frui dela. [O olho], mestre da astronomia, autor da cosmografia, conselheiro e corretor de todas as artes humanas ... Ele é o príncipe das matemáticas. Suas disciplinas são bem certas ... Ele permitiu o anúncio de acontecimentos futuros graças ao curso das estrelas; ele engendrou a arquitetura, a perspectiva, a divina pintura. Oh, a mais admirável de todas as criaturas de Deus. (Freud, 1910/1987, p. 25)

E, Leonardo, "em certas ocasiões, sentia que se aproximava de um grande mundo novo do conhecimento, um mundo que, talvez, só seria revelado às idades vindouras." (Merejkowski, 1902, p. 352)

Um século depois, encontraremos Francis Bacon lançando as bases das ciências experimentais e questionando, em suas limitações, os conhecimentos puramente especulativos, ao afirmar que

a razão humana em geral, que utilizamos para a investigação sobre a natureza, não está bem fundamentada e corretamente construída; ela é como um magnífico palácio sem alicerces. [Impõe-se] promover uma renovação geral das ciências, das artes e de todo o conhecimento humano, a partir de fundamentos corretos. (Bacon, 1620/2014, p. 18)

Contra a obscuridade em que se movia Leonardo (séculos xv-xvi) e que não o impedia de ver tantas coisas com clareza, apresentam-se agora formulados, como conjunto de princípios metodológicos gerais, "os fundamentos corretos", a serem seguidos no esforço metódico do conhecimento da natureza, de maneira a construir um saber seguro e suficientemente claro sobre ela, com base no qual torne-se possível uma ação eficaz, previsível.

O tecido do universo, sua estrutura, para a mente que observa, é como um labirinto, onde o caminho para qualquer lado é muitas vezes incerto, a imagem de uma coisa ou um sinal é enganoso e as voltas e reviravoltas da natureza são bastante oblíquas e intrincadas. É preciso sempre viajar através das florestas dos experimentos e das coisas particulares sob a luz incerta dos sentidos, que brilha por vezes e se esconde em outros momentos...não se pode contar com a força desassistida do julgamento humano...Precisamos de uma linha para guiar os nossos passos; e todo o caminho, desde as primeiras percepções do sentido, deve ser feita com certo método. (Bacon, 1620/2014, p. 23)

O pensamento, o trabalho científico, busca o progresso, o empoderamento humano e o bem comum (Bacon, 1620/2014, p. 26), com ênfase também para o fato de que a "conquista da natureza" se fará pelo "trabalho" (Bacon, 1620/2014, pp. 26 e 29). Trata-se do árduo e humilde caminho dos experimentos científicos em que é preciso ter a capacidade de suspender o julgamento e olhar os resultados com isenção, aproximando-se deles com uma mobilidade intelectual capaz da sensibilidade para os graus de certeza possíveis de cada afirmação.

Como "o homem prefere acreditar naquilo que ele deseja ser a verdade" afirma Bacon, e nisso o "entendimento humano ... está sujeito à influência da vontade e das emoções, um fato que cria conhecimentos fantasiosos," isso terá que ser levado em conta, pois

ele rejeita o que é difícil, por impaciência, rejeita as ideias sensatas, porque limitam suas esperanças, rejeita verdades mais profundas da natureza por causa de sua superstição, mente e rejeita tudo que não for ortodoxo por causa da opinião comum. (Bacon, 1620/2014, pp. 57-58)

A proposição de obter, pelas ciências experimentais, um conhecimento até então não alcançado sobre as forças da natureza, é um movimento ousado de emancipação, de libertação dos obscurantismos religiosos, mas a realidade do poder da Igreja e da mentalidade dominante precisam ainda ter a sua parte. Cito aqui o autor numa passagem em que podemos ver isso com clareza:

Nós também oramos humildemente para que o ser humano não ofusque o divino e que, a partir da revelação por meio dos sentidos e das chamas mais brilhantes da luz natural, a escuridão da descrença em face dos mistérios de Deus não surja em nossos corações. [O autor parece vislumbrar que isso pode muito bem vir a acontecer com o desenvolvimento das ciências!] ... Ao contrário, nós oramos para que, a partir de uma compreensão clara, livre de fantasias e vaidade, mas sujeita aos oráculos de Deus e inteiramente comprometida a eles, possamos dar à fé tudo o que pertence à fé. (Bacon, 1620/2014, p. 48)

Ao assinalar esse momento extraordinário da grande virada, com o engendramento do pensamento científico que não tardará a triunfar, subvertendo radicalmente a realidade social ao trazer extraordinários avanços tecnológicos bem como e juntamente com eles, as mais brutais e inesperadas contradições de que é feita nossa modernidade, quero mencionar, antes de prosseguir, René Descartes, contemporâneo de Francis Bacon (século XVII) e seu Discurso do método, cujo título completo é mais longo e vale a pena ser mencionado: Para bem conduzir sua razão e buscar a verdade nas ciências.

Escrito em primeira pessoa, num estilo confidencial saboroso, do qual vou apenas citar essa passagem singela: "Eu sempre tinha um extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso para ver claro em minhas ações e andar com segurança nessa vida" (Descartes, 1639/1959, p. 72).1

O movimento, voltado para o entendimento científico da natureza, ao dar ao homem o poder de intervir diretamente a seu favor pelo conhecimento científico, também o torna menos dependente das forças superiores, das divindades e de seus representantes. Na mesma linha emancipatória, é levado, igualmente, a lançar um "novo olhar", esclarecedor, laico, sobre as relações sociais de poder. Bacon, lembro, já vinculava as conquistas que viriam com as ciências ao "progresso e o bem comum".

A primeira postulação de Jean-Jacques Rousseau em Do contrato social (1762/2013), é de que a ordem social sendo "um direito sagrado, sobre o qual se fundam todos os outros", "esse direito não deriva de modo algum, da natureza; funda-se, portanto, em convenções," nas quais, de alguma forma, o homem está ativamente implicado. Parte da premissa de que o homem nasce livre, afirmando que: "o homem nasceu livre, porém, por toda parte, encontra-se sob os grilhões"; daí decorre que, num dado contexto social dominado pela força, o autor pode afirmar já na primeira página:

enquanto um povo é obrigado a obedecer e obedece, faz bem; assim que puder sacudir o jugo e o sacode, age melhor ainda; porque, ao recuperar a liberdade pelo mesmo direito pelo qual a tomaram dele, ou ele tem o direito de retomá-la, ou esta não lhe podia ser negada.

(Rousseau, 1762/2013, pp. 17-18)

Ou seja, a sua liberdade lhe pertence de direito, embora possa estar comprometida de alguma forma nas relações com os outros. Embora o pensador esteja nos introduzindo ao campo das relações sociais e das transformações históricas decisivas pelas quais estávamos em vias de passar - penso na revolução americana, na revolução francesa e nos avanços já conquistados na Inglaterra, não posso deixar de pensar, com o meu olhar pós-freudiano, na pertinência dessa afirmação para os enredamentos em que somos pegos em nossos conflitos neuróticos, vistos à luz do trabalho psicanalítico. À propósito, nessa perspectiva, não deixa de ser contundente a afirmação de Rousseau de que

mesmo que cada um pudesse alienar-se não poderia alienar seus filhos, posto que eles (os filhos) nascem homens livres; sua liberdade lhes pertence, e ninguém, além deles (os filhos), tem o direito de dispor dela. (Rosseau, 1762/2013, p. 22)

Sem perder de vista que na base de seu pensamento está a distinção entre "a liberdade natural", "que o homem perde pelo contrato social", uma liberdade "que não tem por limites senão as forças do indivíduo" (a lei do mais forte) e a "liberdade civil, que é limitada pela vontade geral". Entre "as vantagens do estado civil" (penso em civilidade), está "a liberdade moral que torna o homem verdadeiramente senhor de si; pois o impulso do mero apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreve é liberdade", (Rousseau, 1762/2013, pp. 31-32). A psicanálise (assim como Nietzsche) têm um tanto a dizer sobre isso.

Vamos nos limitar a dizer que para o olhar do filósofo sobre o político, associar-se a outros para somar forças no campo social, criando uma grande "força comum" para "defender e proteger a pessoa e os bens de cada associado" é um ato de cada um, que "ao se unir a todos, somente obedeça a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes." Por isso, o contrato social só faz sentido se estiver voltado para o bem comum, qualquer quebra desse propósito é uma ruptura do contrato como ato de força, exercido com base na "liberdade natural" - em que só conta o indivíduo - e não a "liberdade civil" (Rousseau, 1762/2013, p. 27).2

Para concluir o que o autor chama de Livro Primeiro, há uma afirmação importante quando se tem em mente o alcance dessas novas maneiras de ver as coisas, desses ideais gestados no século XVIII e das profundas transformações sociais realizadas em consonância com eles:

em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade que a natureza poderia ter imposto aos homens, os quais podendo ser desiguais em força ou gênio, tornam-se todos iguais por convenção e direito. [Em nota de rodapé, acrescenta] ... Sob os maus governos, essa igualdade é somente aparente e ilusória; apenas serve para manter o pobre na miséria e o rico em sua usurpação. As leis são, de fato, sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada têm. Segue-se, portanto, que o estado social somente é vantajoso aos homens se eles tiverem alguma coisa e alguns entre eles não tiverem demasiado. (Rousseau, 1762/2013, p. 34)

Os pensadores do século XIX, com a plena expansão do novo sistema econômico, surgido com a revolução industrial no século XVIII e que trazia em sua essência o excesso, o "demasiado", não poderiam mais ver, como Rousseau, o vantajoso e o desvantajoso, como sendo causados apenas por "maus governos": o "estado social" simplesmente implode no ritmo vertiginoso e ilimitado da indústria e da circulação acelerada de mercadorias mundo afora.

O aumento astronômico da capacidade de produção e da circulação de bens que poderia ser entendido como expressão direta de um aumento benéfico para as pessoas, graças às novas capacidades tecnológicas possibilitadas pelas conquistas das ciências, da razão científica, como queria Francis Bacon e outros pensadores do Iluminismo, surpreendentemente, parece ser movido, ao contrário, por uma profunda irracionalidade no que diz respeito à busca do "bem comum", já que é impulsionado pela busca desenfreada e ilimitada de lucro, que se encontra na lógica de todos os empreendimentos.

Descrevendo a "explosão" - é assim que se manifesta essa "revolução", cujo início o historiador Eric Hobsbawm situa entre 1780 e 1800, quando

todos os índices estatísticos relevantes deram uma guinada repentina, brusca, quase vertical para a "partida". A economia por assim dizer, voava. ... Sob qualquer aspecto, este foi provavelmente o mais importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção da agricultura e das cidades. (Hobsbawn, 1977/2020, pp. 59-60)

A intensidade, o descontrole, a celeridade são características das radicais inovações no modo de produção e no funcionamento da economia, com mudanças não menos radicais no campo social, no que foi convencionado chamar de capitalismo. A revolução industrial uma vez iniciada, diz o autor, jamais cessaria. Começou na Inglaterra e se estendeu por todos os continentes. Essa força "demoníaca", que poderíamos chamar, com um linguajar freudiano e um pouco de humor, de "pulsão do lucro", era como um gênio que escapara da garrafa desafiando a razão dos pensadores Iluministas e a preciosa perspectiva humanista que nos legaram.

Na verdade, na busca do lucro, do ganho, própria de toda atividade comercial, não havia, enquanto tal, nada de novo ou de inquietante. O inimaginável era, no entanto, a escala em que as coisas passaram a acontecer numa economia em que as forças produtivas, fortemente alavancadas por máquinas movidas a novas formas de energia como o vapor e, depois, a eletricidade, afetaram as relações sociais e as condições de vida das pessoas em todo o mundo.

A revolução francesa, até certo ponto, triunfara ao tirar o poder dos clérigos e aristocratas, em nome da igualdade e da liberdade para todos. Só que grande parte da população não terá outra escolha senão o trabalho forçado nas fábricas, em troca de salários no limite do necessário para a subsistência física e, portanto, numa perspectiva de desigualdade crescente e não o inverso.3 Além do que, o homem que dera um grande passo, desde a pré-história, ao aprender a usar instrumentos, agora se tornava um acessório das máquinas nas linhas de montagem.

O conhecido livro de Edmund Wilson, Rumo à estação Finlândia, escrito em 1940, remete a uma descrição bastante expressiva das massas pobres em Londres, nas primeiras décadas do século XIX, feitas por um jovem intelectual alemão, F. Engels, filho e neto de proprietários de uma indústria têxtil alemã:

No aglomerado humano, "o maior que já conhecera", escreve ele, "as pessoas pareciam átomos". Essas centenas de milhares de pessoas

não eram seres humanos com as mesmas capacidades e faculdades, e com a mesma vontade de serem felizes? ... E assim mesmo acotovelam-se como se nada tivessem em comum, como se um nada tivesse a ver com o outro ... e jamais ocorrer a ninguém a ideia de conferir a um de seus semelhantes um olhar que seja. A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um em seus interesses pessoais é repulsivo ... e ofensivo." (Wilson, 1940/2020, p. 163)

O romance com uma jovem irlandesa, operária de sua fábrica, Mary Burns, leva Engels a conhecer de perto as condições em que viviam os trabalhadores. Ele os via

amontoados como ratos em suas moradias apertadas ... às vezes morando em porões úmidos ... sem esgotos ... as crianças, que começavam a trabalhar nas fábricas aos cinco ou seis anos de idade, recebiam pouca atenção das mães, que passavam o dia inteiro na fábrica, e nenhuma instrução de uma sociedade que só queria delas que executassem operações mecânicas. Quando as deixavam sair das verdadeiras prisões que eram as fábricas, as crianças caíam exaustas... (Wilson, 1940/2020, p. 161)

Também nas minas de ferro e carvão, mulheres e crianças juntamente com os homens, passavam a maior parte de suas vidas rastejando em túneis estreitos debaixo da terra... Para Engels, parecia que o servo medieval, que ao menos estava fixo na terra e ocupava uma posição definida na sociedade, estivera em melhor situação que o operário industrial... Nos anos de depressão, o superávit de mão de obra... era despejado nas cidades.

Thomas Malthus afirmara que o aumento da população estava sempre pressionando os meios de subsistência, de modo que era necessário que grandes quantidades de pessoas fossem exterminadas pela miséria e pelo vício...(Wilson, 1940/2020, pp. 161-162)

Na afirmação de Hobsbawn de que: "Os deuses e os reis do passado eram impotentes diante dos homens de negócios e das máquinas a vapor do presente." (Hobsbawn, 1977/2020, p. 95), vejo um desencanto com o novo mundo e com a nova classe dominante, a burguesia, mercadores cujo horizonte existencial e cultural não precisa ir muito além das cifras de ganhos alcançados em seus investimentos.

Ainda que, por outro lado, o próprio Marx reconheça que o sistema capitalista corresponde a um "desenvolvimento histórico indispensável para o progresso da humanidade", (Wilson, 1940/2020, p. 338) no qual se alcançou efetivamente um domínio sobre a natureza num grau até então inimaginável, levando inclusive - hoje podemos afirmar - a um aumento da longevidade média da vida das pessoas, como se nem tudo fosse decepção para o que esperava, em sua ousadia, "o novo olhar" emancipatório do homem. Em um livro recente, A loucura da razão econômica - Marx e o capital no século XXI, D. Harvey, ao referir-se ao capitalismo dos últimos 40 anos, depois de reafirmar a produção de cada vez mais desigualdade social inerente ao sistema, faz uma ressalva semelhante:

há elementos de resgate nas dinâmicas do capitalismo que apontam numa direção diferente. Por exemplo, a expectativa de vida dos trabalhadores tem aumentado em diversas partes do mundo. O estilo de vida do trabalhador médio - ao menos em algumas partes do mundo - não é inteiramente de miséria apocalíptica. (Harvey, 2017/2021, p. 38)

No Manifesto comunista, os autores escrevem que

A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário... Foi a primeira (a burguesia) a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas...A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais...Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar... (Marx e Engels, 1848/2010, pp. 42-43)

Palavras que não deixariam descontente um Francis Bacon e, cuja justeza - escritas em 1848 - é inegável, a prova é, entre outras, a revolução tecnológica mais recente, a da cibernética, cujos desdobramentos também estão na origem do tema deste número do Jornal, em 2022!

O fato é que, sob o fundo da deterioração da qualidade da vida e das relações humanas nas sociedades, ao menos para uma grande parte da população, embora, como disse, contrabalançada de maneira significativa pelos ganhos trazidos pelo progresso industrial, se tem um progresso, finalmente, tão em contradição, tão aquém do esperado pelos ideais humanistas no plano social.

Contra isso surgiram os movimentos comunistas e socialistas do século XIX. Entre estes sobressai, de forma inequívoca, a obra de Marx e de Engels com a categorização de classes sociais definidas precisamente pelo lugar ocupado por elas no sistema de produção econômico, destacando-se, para eles, a categoria do proletariado - dos que só tinham o seu trabalho para vender, e as oposições irredutíveis na forma da luta de classes como motor da história.

A possibilidade de abordar os acontecimentos históricos, tendo como base a dinâmica da luta de classes, deu consistência para as análises de Marx e Engels, a ponto de fundarem um pensamento socialista que se pretendia "científico" como saída para os impasses do capitalismo.

Para Wilson, tanto Marx quanto Engels,

sempre tiveram à sua frente o homem ideal renascentista... do tipo exemplificado por Leonardo ou Maquiavel, que tinha cabeça tanto para as ciências quanto para as artes, que era ao mesmo tempo homem de ação e pensador ... e um de seus principais argumentos em favor do comunismo era o de que ele voltaria a produzir homens "completos", em contraposição aos especialistas das sociedades industriais. (Wilson, 1940/2020, pp. 250-251)

Além disso, Wilson vê em Marx um

herdeiro do Iluminismo do século XVIII, com fé algo semelhante à de Rousseau no valor fundamental da pessoa humana ... No entanto o próprio Marx passaria o resto da vida afirmando que todo ser humano era dotado - para usar a terminologia de um outro expoente da filosofia do século XVIII, Thomas Jefferson - do direito à "vida, à liberdade e à busca da felicidade". (Wilson, 1940/2020, p. 349)

Qualquer que seja o valor e a força dos fundamentos postos por Marx para abordar a história e, principalmente, a do capitalismo no século XIX, este postula, com base no "materialismo dialético", que o antagonismo entre burguesia e proletariado será ultrapassado pelo triunfo do proletariado que tomará o controle dos mecanismos do estado burguês, instaurando a ditadura do proletariado para vencer a resistência da burguesia, classe destinada a desaparecer.

Seria uma revolução que beneficiaria o conjunto dos seres humanos, pois o proletariado não tendo nada a perder, também não pretenderia nada além de relações sociais harmônicas, agindo "sempre em prol do bem da humanidade", "a classe dominante da ditadura do proletariado jamais pensaria em abusar de seu poder"(Wilson, 1940/2020, p. 346).

Embora, em Manifesto comunista, Marx e Engels, iniciem afirmando que "A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes", há uma nota de Engels, na edição de 1888, em que limita essa afirmação à história escrita pois, com base em trabalhos de etnólogos - ele cita em particular Lewis H. Morgan, teriam existido sociedades comunistas primitivas, sem classes em conflito. Isso lhes dava uma base para crerem que, no futuro, depois do triunfo do proletariado sobre a burguesia, voltaria-se a uma sociedade fraterna, sem classes. Wilson se pergunta, cético quanto a isso, sobre "porque devemos supor que os impulsos brutais e egoístas do homem hão de desaparecer numa ditadura socialista?" (Wilson, 1940/2020, p. 348) Freud, alguns anos antes, também a considera como "uma ilusão insustentável" (Freud, 1930/2020, p. 365).

Marx e Engels estavam vivos para ver o cruel massacre à rebelião popular, conhecida como comuna de Paris, em 1871 (Marx, 1871/1969), mas o que teriam dito da revolução bolchevique liderada por Lenin, na Rússia, em 1917, e cujo slogan "todo o poder aos soviets" - conselhos de operários, soldados e camponeses - levou, na realidade, à tomada do poder pelos bolchevistas e seu partido, construído e liderado por Lenin, partido único que não admitia facções, divergências, oposições?

Fora previsto, desde o Manifesto comunista, que a revolução para a instalação da ditadura do proletariado teria que ser feita sob a liderança de "intelectuais burgueses revolucionários", categoria em que estavam os dirigentes do Partido. Lenin faleceu seis anos depois da tomada do poder e Stalin o sucedeu.

Wilson acrescentou à uma nova edição de seu livro, escrito em 1940, um posfácio bastante significativo, em 1971:

Este livro parte da premissa de que um passo importante foi dado, que uma "ruptura" ocorreu, que nada na história da humanidade jamais seria como antes. Nada me levava a desconfiar que a União Soviética viria a tornar-se uma das mais abomináveis tiranias que o mundo jamais conhecera e que Stalin seria o mais cruel e inescrupuloso dos implacáveis czares russos...O que houve na Revolução de Outubro de valor permanente - seja lá como essa expressão for entendida - é uma questão na qual não entrarei. (Wilson, 1940/2020, p. 548)

Em uma obra escrita por H. Arendt em 1949 e revisada posteriormente, As origens do totalitarismo, a autora caracterizou uma forma de poder opressivo num grau que, no entender dela, nunca existira antes e que teria como modelo a União Soviética a partir dos anos 1930 até a morte de Stalin, em 1953 e a Alemanha nazista, de 1938 até o final da guerra. (Arendt, 1949/2006)

De novo os sonhos da razão humanista e o novo olhar voltado para o bem comum, enriquecido pelo gênio dos pensadores do século XIX, é brutalmente contrariado por uma realidade de trevas, trazendo grande sofrimento e opressão para os seres humanos que queriam beneficiar.

Como disse Hobsbawn, a revolução industrial nunca mais parou, tendo demonstrado, até mesmo, muito mais fôlego do que Marx pôde imaginar e o capitalismo, apesar de ter encontrado freios e transformações graças à luta dos trabalhadores e das populações por direitos sociais, conseguindo nas democracias europeias um certo lastro de políticas de proteção social, é um sistema econômico que não favorece em nada as expectativas de mais igualdade, pelo contrário, tende sempre, paradoxalmente, a uma crescente capacidade produtiva, incluindo inovações tecnológicas revolucionárias e um pobre poder distributivo.

Mesmo que as ideologias totalitárias tenham se revelado desastrosas, não podemos, de forma alguma, perder a expectativa e o desafio de alcançar avanços sociais na distribuição de bens para que toda a população disponha de condições básicas satisfatórias de vida material, intelectual e de lazer, de maneira a que possam tornar-se cidadãos livres.

Dois filósofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, embora se digam convencidos de que "a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor" - o novo olhar - diagnosticam um movimento autodestrutivo nele, um "germe para a regressão, que hoje estaria presente por toda parte", que estaria "no próprio conceito desse pensamento... nas formas históricas concretas, as instituições da sociedade com os quais está entrelaçado...", e é aí que os autores veem "o elemento destrutivo do progresso". (Adorno e Horkheimer, 1944/2021, p. 13). Penso que já poderei fornecer mais elementos que darão ao leitor a dimensão do problema posto aqui e que vínhamos assinalando.

"O esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo..." afirmam eles, no sentido de não perdermos o que ganhamos com ele. (Adorno e Horkheimer, 1944/2021, p. 14) E, devo citar ainda o que segue, para reencontrar o fio do que vinha dizendo:

A naturalização dos homens hoje não é dissociável do progresso social. O aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado. (Adorno e Horkheimer, 1944/2021, p. 14)

O que há de problemático nas ciências é que elas produzem saber que é poder sobre a natureza, o que é bom, mas que é também poder sobre os outros, sobre as populações, o que é no mínimo problemático. Pedro Leite dedicou um longo e denso trabalho ao tema do uso abusivo, por certas empresas e governos, das modernas tecnologias cibernéticas, hoje amplamente difundidas, usadas intensivamente por centenas de milhões de pessoas e inseridas em seu cotidiano para todos as formas de comunicação, até mesmo nas "redes sociais", sem perceberem que essas manifestações fornecem informações sobre si mesmos que são comercializáveis e manipuláveis. (Leite, 2021). E onde fica o indivíduo em sua privacidade, em sua singularidade, para ficarmos com a questão que preocupava seriamente Adorno e Horkheimer, já em 1944?

O desenvolvimento das ciências, das tecnologias e do humanismo da razão foi ocorrendo em contextos "históricos concretos", imbricados com formas de poder político que incluem a administração planificada das sociedades, dos grupos humanos, das cidades. O esclarecimento leva a separar o joio de trigo no mundo das ideias, o certo do errado, próprio do método científico e racional, que exclui e invalida o que não é comprovado e comprovável, as crenças, as ideias de senso comum, os preconceitos e, nesse sentido, Adorno e Horkheimer são levados a afirmar que "o esclarecimento é totalitário." (1944/2021, p. 19).

O fato é que a mentalidade científica tornou o Estado moderno especialmente preocupado em valorizar políticas planificadoras que se pautam constantemente pela busca da ordem, o que escapa à ordem é tratado como resíduo a ser eliminado. O filósofo Z. Bauman nos mostra em que extensão esse modo de ver estava presente não somente entre governantes, mas também no modo de pensar de intelectuais e cientistas de grande renome, no final do século XIX e início do século XX. A metáfora da jardinagem era frequente - belos jardins requerem a eliminação das ervas daninhas, pessoas todas interessadas na saúde, no bem-estar e na dignidade humana das pessoas.

Como K. Lorenz, prêmio Nobel de 1973, declarava em 1940:

Há uma certa similaridade entre as medidas que precisam ser tomadas quando traçamos uma ampla analogia biológica entre corpos e tumores malignos, por um lado, e uma nação e os indivíduos que nela se tornaram antissociais devido à sua constituição deficiente, por outro lado... (Bauman, 1995/1999, p. 37)

H. G. Wells, liberal e socialista, contrário à religião, ao nacionalismo, e a tudo que cheirasse uma era pré-científica, defendeu a eugenia muito ativamente durante toda a sua vida. Para ele, havia a urgência de substituir a desordem pela ordem e de pôr agências de planejamento científico no controle do desenvolvimento social. O seu "socialismo" requeria planejamento coletivo e rechaçava o "desordenado esforço individual, cada um fazendo o que lhe agrada". (Bauman, 1995/1999, pp. 42-43)

T. S. Elliot, "romântico e conservador", que tinha divergências com o socialista Wells, mas convergia com ele no desejo de uma sociedade harmoniosa, esteticamente agradável e limpa, onde "um espírito excessivo de tolerância deve ser reprovado." (Bauman, 1995/1999, p. 43)

A conclusão a que chega Bauman é terrível para a nossa já longa trajetória desde o surgimento da perspectiva Iluminista, pois nos leva ao eugenismo generalizado e aos genocídios.

Ele afirma que

os casos mais extremos e bem documentados de "engenharia social" global da história moderna (aqueles presididos por Hitler e Stalin), ... não foram explosões de barbarismo ... foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição... Nem a visão nazista nem a comunista destoavam da audaciosa autoconfiança da modernidade; meramente propunham fazer melhor o que outros poderes modernos sonharam e talvez tenham tentado e fracassado em realizar. (Bauman, 1995/1999, p. 38)

Para concluir, podemos nos perguntar sobre como situar a psicanálise nessa perspectiva da busca pelo conhecimento, pelo saber. Embora Freud entenda que ela encontra-se no terreno das ciências, o que podemos dizer, nesse contexto, é que ela trabalha à contracorrente da lógica da jardinagem, pois o que lhe interessa são os refugos da vida psíquica, com o que nela falha, com toda a sorte de ervas daninhas que possam ser encontradas, sem excluir as eventuais lindas plantas. Tanto "o pior" como "o melhor" do ser humano são, igualmente, objetos da psicanálise, são apenas configurações e estados dos mesmos materiais. Além do que, "ela não reivindica ser totalmente coesa e constituir um sistema" (Freud, 1933/2010, p. 354).

As racionalidades e as racionalizações são acolhidas com paciência, em grande parte como engodos necessários nos movimentos defensivos do paciente em análise. Já a razão tem o seu lugar - nas suas fontes - lá de onde surge alguma inteligibilidade passageira acolhida pela feiticeira que inspira a imaginação metapsicológica na qual se movimenta o pensamento de Freud e dos psicanalistas. Ela jamais ignoraria os mitos, os romances familiares, as crenças, as histórias, pouco se importando se são verdadeiras ou inventadas. E, mesmo os sonhos, essas historinhas vividas no sono do corpo e da razão, são para a psicanálise a "via régia" que podem propiciar o acesso do sujeito em análise a alguma verdade nele.

A psicanálise é, sim, fiel ao esclarecimento naquilo que ela encontra no sono da razão. Curioso lugar em que nos encontramos, com um Freud em que Leonardo está por ali, de alguma forma presente.

É notório que tanto as filosofias do Esclarecimento como as ciências experimentais - estas desde Francis Bacon - como os grandes ideais e ideologias políticas que se sucederam nesses séculos, suas realizações grandiosas ou terríveis malfeitos, a constante é que queriam redimir e salvar a humanidade. Já a psicanálise tem uma ética diferente pois promete, no máximo, a liberação - sim - da miséria neurótica, para que o paciente possa viver a própria vida... "na infelicidade comum".

Sem poder oferecer qualquer forma de garantia para a vida em sociedade, na mesma, linha, Freud afirma:

Então, falta-me a coragem para me erguer diante de meus semelhantes como profeta e curvo-me diante de sua repreensão de que não sou capaz de lhes trazer nenhum conforto, pois é isto que, no fundo, todos exigem, o mais selvagem revolucionário não menos apaixonadamente do que os mais obedientes devotos piedosos. (Freud, 1930/2020, pp. 404-405)

E, depois de um último parágrafo sobre a luta entre Eros e as pulsões de destruição, conclui de novo como alguém que, com a sua "ciência", decididamente, não tem como oferecer uma resposta providencial, deixando a questão em aberto: "Mas quem pode prever o êxito e o desfecho?" (Freud, 1930/2020, pp. 404-405).

Tendo em vista a injunção dos autores de A dialética do esclarecimento de que "o esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo" talvez, quanto a isso, a psicanálise não esteja tão mal posicionada.

E quanto à "humanidade atrapalhada" do filme com que começamos, devo dizer que a reconheço nessa frase de Adorno e Horkheimer: "A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo" (1944/2021, p. 14).

 

Referências

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Recebido em: 21/3/2022
Aceito em: 16/04/2022

 

 

1 Et j'avais toujours un extrême désir d'apprendre à distinguer le vrai d'avec le faux pour voir clair en mes actions et marcher avec assurance en cette vie.
2 Em "O mal-estar na cultura", Freud reafirma essa oposição entre o "poder da comunidade" - da maioria que se reúne contra a força bruta do indivíduo, entendido como "o Direito" que condena, em nome de todos, a "violência" do indivíduo (Freud, 1930/2020, p. 344). A "liberdade individual" está também, para ele, ligada à cultura, ou seja, na linguagem de Rousseau, ao "contrato social" como condição da "liberdade civil". Freud, ao afirmar que o que se manifesta como "ímpeto de liberdade" muitas vezes é a revolta contra uma injustiça social existente - a injustiça entendida como "quebra do contrato" e de seu compromisso com "o bem comum" - me parece convergir com a afirmação de Rousseau ao aprovar a revolta contra uma situação de força, ou seja, de quebra do respeito ao bem comum. Somente Freud, no entanto, afirma que a liberdade individual pode surgir também como hostilidade ao processo cultural enquanto tal, com condutas e ações antissociais contrárias ao bem comum (Freud, 1930/2020, p. 345). Na afirmação enfática de Rousseau de que, na "liberdade civil", ao se unir aos outros, o indivíduo permaneça tão livre quanto antes - poderíamos ver uma condição ideal para cada um, pois na associação com os outros ele permaneceria plenamente responsável por seus julgamentos e por seus atos. Como se houvesse uma distinção a ser feita entre o laço social e o laço de massa, apenas esse último implicando na "massificação" do indivíduo (Menezes, 2006).
3 Hannah Arendt, em um escrito encontrado recentemente, em 2018, distingue nos levantes revolucionários e nas tensões sociais, os que lutam pela liberdade política e os que estão bem aquém, numa realidade social em que, privados nas necessidades as mais básicas, vivem em tais condições de carência material e educacional que não têm a liberdade de (querer) ser livres, pois são reféns da necessidade. "A liberdade de ser livre" e lutar contra a opressão e a injustiça supõe uma condição para além disso. É o que a faz dizer que, embora a revolução francesa não tenha conseguido alcançar a igualdade humana, "ela liberou os pobres da obscuridade, da invisibilidade", tornando-os todos cidadãos, o que seria um ganho significativo. Refere-se ao que Kant, nesse contexto, chamou de uma nova dignidade do homem. (Arendt, 1949/2006, pp. 60-61)

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