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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

CONEXÕES

 

Cartas

 

 

Natalia Timerman

Médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela USP. Publicou Desterros - histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), a coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti, e o romance Copo vazio (Todavia, 2021). São Paulo / natimerman@gmail.com

 

 

A mensagem dele é a oitava da pilha que se acumula em seu WhatsApp. Arrasta-a para a direita, clica em fixar mensagem - agora não há tempo de responder como gostaria, e, num dia corrido como este, ou como quase todos, é capaz de esquecê-lo entre os grupos da família, as solicitações do trabalho fixo, as do freela e as meninas comentando sobre o fim de semana (o grupo ainda se chama almocinho de fim de ano, tendo sido criado para organizar um encontro em 2019). Ele já uma vez se incomodou quando ela adormeceu, depois do remédio, sem tê-lo respondido, esquecido em vigésimo segundo na pilha. Você pode fixar até três conversas, avisa o WhatsApp. Decepcionada, um pouco impaciente, ela move para cima a tela, perguntando-se que raios de pendências fixou antes - Raíssa, para se lembrar de mandar o e-mail com as fotos em alta resolução; Ernesto, para se lembrar de emitir a nota fiscal; Jonas, que ainda espera sua confirmação do almoço na semana que vem. Ah sim.

Nenhuma dessas pendências é passível de ser resolvida agora, quando ela aproveita a demora na sala de espera do cartório para responder às mensagens que parecem jamais cessar de chegar. Com receio de que a dele se perca, ou talvez para resolver um assunto a mais, aproximando um pouco mais o aplicativo do pacífico e raro momento em que não haja conversas não lidas (ainda que, quando esse momento chegar, ela o vai ocupar verificando se chegaram novas mensagens), digita

Oi Leo, bom dia

Eu também

I

A escrita da linha seguinte é interrompida quando o som metálico da voz chamando o número 336 vai, do fundo da sua cabeça atribulada,

ganhando nitidez, e ela percebe que há algum tempo chegou a sua vez de ser atendida.

Senta-se no guichê número cinco, entrega a senha à atendente e tem instantaneamente uma ideia, que não sabe de onde surge, para o texto que precisa entregar em três semanas. Um texto sobre amor.

Estende o envelope à atendente e desbloqueia o celular para anotá-la, já aprendeu que não pode confiar em sua memória.

Notas -> Pastas -> Ideias para o texto sobre amor

Encontro - onde?

Conflito: ele foi estudar fora, conheceu-a duas semanas antes de ir

Alguma demora nas respostas - outro tempo?

Leo e Eula se falam há quatro meses, mas só se viram poucas vezes. Ela esgarça a memória do último encontro sem muito esforço, foi realmente prazeroso, bem acima da média, ele tem um senso de humor raro, uma leveza e uma espontaneidade incomuns, faz ovos mexidos para o café da manhã e também gosta de torrada com requeijão e geleia. Falar com ele virtualmente também é bom, o humor se mantém, embora tenha que, de alguma forma, fazê-lo entender, convencê-lo de que não o está enrolando, de que está mesmo atribulada com uma imensidão de trabalho e, se conseguisse, o veria de fato com mais frequência. Quando chegam as mensagens dele, por um lado se alegra, sente que algo se aquece em sua região torácica, onde habitualmente se localiza uma espécie de ardor, um pequeno nó de angústia fomentado dia a dia pelas pendências com que precisa lidar, mas se vê simultaneamente aflita, pois a mensagem indica que agora é sua vez de responder e não deixa, então, de ser também uma pendência para se somar às outras, mais um fio para apertar o nó.

E ele sempre responde muito rápido. Gostaria, talvez, que ele demorasse um pouco mais; não porque não goste das coisas que ele diz, nada disso; gostaria, sem conseguir elaborá-lo tão especificamente, sem entendê-lo com tanta clareza, de ter a oportunidade de não converter tão imediatamente as mensagens dele em tarefas. Gostaria de manter o quente, de que houvesse para isso o tempo, senti-lo amornar aos poucos, para que escrever de volta fosse não mais uma peça num jogo saturado, mas uma convocação, o seu impulso no pêndulo.

Notas -> Pastas -> Ideias para o texto sobre amor

Encontro - app?

Amigos em comum? Festa de despedida de um dos amigos que viajaria pelo mesmo programa de pós-graduação. Relação que começa fadada a terminar. (Como todas rsrs)

Alguma demora - outro tempo? Cartas??

Uma relação epistolar???

Ele sempre responde muito rápido. No ônibus, saca o celular da bolsa e lá está o aviso de mensagem, antes que ela pudesse teclar a que não havia chegado a enviar, complementando as duas últimas linhas escritas ainda no cartório. Sem o complemento, releu-as agora, soam meio secas. Ainda assim, Leo não se deixa abalar e quer encontrá-la, e ela de novo vai precisar dizer que não pode, que esta semana não dá, olha mais uma vez a agenda repleta de reuniões, compromissos, prazos, não dá mesmo, diz mentalmente a si mesma como se fosse para ele.

Pasta de documentos

Personagens: Leonardo e Clarissa

Carta número 1

Ela passa 28 minutos elucubrando consigo mesma como se escreve uma carta. Uma carta que chegará depois de um tempo, dias, até semanas mais tarde. Como começar, sabendo que a pessoa vai ler tudo e só depois responder? Como engatar um assunto no outro sem o enviar instantâneo? Como viver sem esperar a resposta, ou melhor, como esperá-la diluidamente, uma espera semeando os dias, paralela ao comum de sua passagem?

Como esperar?

Leo, juro que não tô te enrolando
Te mostro minha agenda
Tá demais essa semana
Vou bloquear um horário à noite pra gente na próxima
Vamos na próxima? Quarta?

Dessa vez, a resposta dele demora. Eula, enquanto isso, faz um esforço de imaginação. Na sua infância ainda havia cartas; recebia algumas da Soraia nas férias, quando ela ia para Vitória com a família. Reconhecia o envelope com as bordas verde-amarelas, que confundia com alguns que chegavam para outras pessoas da casa. O envelope com seu nome aportava raríssimas vezes, mas ela o procurava como se fosse algo habitual, como se receber uma carta uma vez instaurasse definitivamente a possibilidade de receber cartas sempre.

Era reconfortante, lembra-se, desamassar as páginas, passear os olhos pela caligrafia que conhecia do colégio, quase uma extensão de Soraia; fazia parte das próprias férias imaginar o tempo da amiga à distância, e depois dobrar as páginas de novo, e desdobrá-las ainda uma vez, ao lado da página em branco que escreveria ela de volta. Ir aos correios acompanhada da mãe, a fila, o retorno para casa deixando na beira da memória aquela correspondência, pano de fundo para a passagem do tempo.

Na tela do celular, o relógio mostra que está três minutos atrasada para a reunião e que Leo milagrosamente ainda não respondeu.

Pasta de documentos

Leonardo,

Eula estranha o vocativo. Precisa elaborar melhor alguns aspectos da relação entre seus personagens. Já se chamam por apelido? Duas semanas de convivência seriam suficientes para entabular a intimidade de um apelido, ainda mais duas semanas de conexão amorosa, como a que pretende que seus personagens tenham.

Pasta de documentos

Leo,

Desde que você foi

Muito brega. A impossibilidade de comunicação imediata empresta uma solenidade às palavras com a qual Eula tem muita dificuldade de lidar narrativamente.

Pasta de documentos

Leo,

Checa a tela do celular. Nada do Leo ainda.

Como é difícil escrever uma carta.

Pasta de documentos

Leo,

Parece que foi ontem. Parece que foi em outra década. Te conhecer cindiu o tempo

Não, parece mensagem de WhatsApp. Eula não sabe como continuar.

Checa de novo as horas, mensagem do trabalho fixo, nenhuma mensagem do Leo. Desbloqueia o celular, entra no WhatsApp. A mensagem ainda não chegou, só um tique ao lado do seu convite para a semana que vem, enviado duas horas atrás. Será que aconteceu alguma coisa?

Responde às demandas do fixo, depois do que a preocupação com o Leo já havia se diluído. Com o Leo da vida real. O do texto, continuava atormentando-a com os prazos. Que ideia, a de escrever cartas. Impossível.

No banho, entre um pensamento irrastreável e outro, conclui que, na era do WhatsApp, não haverá mais livros de correspondência entre escritores. Todo um campo interessante da literatura perdido entre bites e respostas instantâneas.

Na tela, mensagens das amigas e do freela. Chega a cogitar que o Leo da realidade, cansado das evasivas que ele acredita fictícias, a tenha bloqueado. Entra de novo no aplicativo, um tique só, a mensagem ainda não chegou (faz oito horas do envio), mas a foto dele ainda aparece. Ou seja, é um problema com o celular. Percebe, no lugar do nó costumeiro no peito, um ardor diferente, mais agudo, ao mesmo tempo corrosivo e excitante, formado por uma espécie de amálgama absurdo entre a preocupação e a abstinência, um desespero pinicante no fundo do qual há, sem dúvida, algum tipo de prazer.

Quanto ao fictício, desiste. Desiste das cartas. Precisa de outra ideia. Precisa da noite, do sono, mas o remédio não funciona desta vez. Dobra a dose. O que aconteceu com o Leo?

Não têm amigos em comum para perguntar.

Revira na cama. O escuro da madrugada. Assalto? Hospital?

Morte?

Sonha que está em Paris, fazendo pós-graduação, e que seu celular quebrou (o sonho não lhe contou como). Alguém uniformizado lhe entrega uma pilha de envelopes com as bordas que alternam o verde e o amarelo. No destinatário, seu nome com a letra da Soraia, mas desperta ao perceber que o remetente, com caligrafia idêntica à da amiga, é o Leo.

O celular brilha no escuro da noite.

Fiquei sem cel o dia todo, caiu no chão

Aí resgatei um velho que estava em casa

Quarta tá ótimo

Eula consegue voltar a dormir. Amanhã precisa dar um jeito no texto.

Pasta de documentos

A mensagem dele é a oitava da pilha que se acumula em seu WhatsApp.

Arrasta-a para a direita,

 

 

Recebido em: 3/3/2022
Aceito em:5/3/2022

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