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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.40 no.121 São Paulo Jan./Apr. 2023

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20230010 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Representação de professoras em Mário de Andrade: Loucura e velhice

 

Representation of female teachers in Mário de Andrade: Madness and old age

 

 

Marco Antonio de Santana

Doutorado em Educação - Universidade Federal de Uberlândia; Membro do Grupo de Pesquisa "Estudos interdisciplinares em História da Educação (fontes, teoria e metodologia)" do PPGED UFU; Mestrado em Direito Público - PUC Minas; Graduação em História, Pedagogia e Direito, Uberlândia, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo busca analisar as representações de professoras presentes no conto "Atrás da Catedral de Ruão" (1947) e no romance Amar, verbo intransitivo (1944), ambos de Mário de Andrade, com ênfase nas questões insertas sobre a noção de velhice e loucura. São textos escritos sob a égide do Modernismo e que tematizaram as respectivas práticas pedagógicas, mas ressaltam também as angústias de mulheres trabalhadoras e itinerantes, que são malvistas por exercerem funções de natureza pública em espaços privados. Se por um lado era emblemático o fato de ser mulher, por outro, eram ainda mais acentuados os destaques feitos pelo escritor, pois a idade estava à mostra e a loucura era vista como condição inata de um gênero supostamente inferior. A literatura no presente estudo significou importante artefato cultural, também serviu como peculiar fonte para interpretação pelos historiadores do presente, de modo que o método aqui utilizado foi aquele sintetizado na noção de operação historiográfica preconizada por Michel de Certeau (1975/2020).

Unitermos: Amar Verbo Intransitivo. Atrás da Catedral de Ruão. História da Educação. Velhice e Loucura.


ABSTRACT

This paper analyzes the representations of female teachers in the short story "Behind Ruão's Cathedral" (1947) and in the novel "To Love, intransitive verb" (1944), both by Mário de Andrade, with emphasis on the questions about the notion of old age and madness. These texts were written under the aegis of Modernism, and they thematize the respective pedagogical practices, but also highlight the anguish of working and itinerant women, who are disliked for performing public functions in private spaces. If on the one hand it was emblematic that she was a woman, on the other, the writer's highlights were even more pronounced, for age was on display and madness was seen as an innate condition of a supposedly inferior gender. Literature in the present study meant an important cultural artifact, and also served as a peculiar source for interpretation by historians of the present, so that the method used here was that synthesized in the notion of historiographical operation advocated by Michel de Certeau (1975/2020).

Keywords: To Love, Intransitive Verb. Behind Ruão's Cathedral. History of Education. Old Age and Madness.


 

 

Introdução

Tanto o romance Amar, verbo intransitivo, adiante designado apenas Amar, quanto o conto "Atrás da Catedral de Ruão", doravante "Ruão", são textos literários e artefatos culturais que, além de serem pensados/escritos na mesma época, resultam do esforço de Mário de Andrade em produzir uma estética dinâmica sob o manto do Modernismo brasileiro do início do século XX. São obras que reúnem unidade temática educacional por terem agentes da educação doméstica, sujeitos e objeto pedagógico.

Como principal articulador, Mário de Andrade escreveu tais obras sob pressupostos de novas ideias, as quais foram vertidas em uma fase inspirada nas vanguardas europeias que, em síntese, preocupavam-se em romper com estruturas do passado, passavam pela atualização intelectual, pelo experimentalismo, pela pesquisa estética e pela liberdade das formas.

No presente artigo, colocamos em evidência que Amar e "Ruão" foram escritas tendo como base o emprego de simbologias, exposição de angústias humanas, embates subjetivos, valores humanos e denúncias sociais. Nisso, a velhice aparece nos textos como emblemático desafio social. De um lado, a professora Fräulein, que aos 35 anos de idade, era vista com suspeição, apesar de sua performance profissional e vigor sexual necessário ao serviço para o qual foi contratada; de outro, temos Mademoiselle, também educadora, aos 43 anos de idade, mas que vivia dramas em sua sexualidade latente, cuja ausência de experiência prática foi externalizada em alucinações e desvarios, escancarando o ocaso associado à loucura.

Se a velhice no sentido biológico é algo incontornável e implacável, apesar dos mecanismos que empurram tal fase para um tempo adiante, ao mesmo tempo destoa da aposta para o futuro esperada e reservada aos jovens e nos leva a compreender que envelhecer para homens e mulheres não é a mesma coisa, no sentido do que representa tal fase da vida. Assim, a velhice é, sobremaneira, uma questão de gênero, e o que ela representa decorre da construção social, do mesmo modo que a ideia de loucura e o nervoso foram postos como parte da essência feminina.

Resta ver, portanto, como se deram tais construções simbólicas e o que essas professoras contidas em Amar e "Ruão" podem nos revelar sobre o envelhecimento e o significado da femme fatale.

 

A ordem médica como signo da modernidade a partir de Amar e "Ruão"

Na virada do século XIX para o XX, as capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo se tornaram efervescentes com as novidades tecnológicas que se apresentaram. Começaram a ser experimentados, nesse contexto, como explicou Sevcenko (1983/2014), diversos novos hábitos físicos, sensoriais e mentais nos espaços públicos, como as confeitarias, os chás e os cinemas, sem contar as danças, a moda, os entorpecentes e o esporte, que deram o tom às sociabilidades urbanas.

Parece que se começa a questionar um mundo pré-regulado decorrente da lógica tradicional dos papeis e dos hábitos sociais, o que, de algum modo, impõe refletir sobre as indagações: o que vem a ser moderno? E para quê ensinar questões comportamentais urbanas e de higiene para os jovens? É nesse ponto que a ciência se apresenta como importante voz a tentar estabelecer respostas conclusivas acerca do domínio da natureza, dos equipamentos utilitários inventados e, mais importante que isso, dos modos de convivência social e dos anseios de modernização e de saúde. Por esse protagonismo que se destaca o papel do médico.

Engel (1997/2017) e Herschmann (1994) explicam que o médico era considerado cientista social e opinava sobre demografia, estatística e se constituía um verdadeiro planejador urbano. Mas tal ingerência, então oportuna ao campo da medicina, perpassava a mera questão do olhar sobre a geografia das cidades e a organização dos espaços públicos, já que, na perspectiva das ciências sociais aplicadas, o saber médico também exercia forte influência.

Assim, Costa (1983) esclareceu que a higiene, inclusive mental, estava na moda, preocupando-se com as taxas de incapacitados, mendigos, criminosos e "anormais" de todo gênero, sendo todos esses tidos como pesos ao Estado, pessoas que estariam a onerar a parcela produtiva da população. Ademais, por ser um planejador do espaço urbano, o médico, segundo Batista (2016), partia do estranho pressuposto de que os crimes eram transmitidos por contágio, como se fosse um vírus altamente transmissível, razão pela qual o tratamento passaria pela lei penal.

Ora, se está a se falar de patógeno, isso se trataria com remédios, logo, em lugar do cárcere, medicamentos ou outras intervenções testadas pela ciência. Contudo, esse conhecimento passou a influenciar cada vez mais as decisões urbanísticas e criminais, por ser o médico considerado intelectual prestigiado dotado de conhecimento regenerativo e pacificador. Esse prestígio sustentava a autoridade do discurso médico que ultrapassava o atendimento clínico, sendo uma espécie de megaespecialista, conforme infere Bomeny (2015).

Interessante notar que Donzelot (2001) explica que a Igreja mantinha ingerência na sexualidade, no casal, no regime de alianças, na pedagogia e na adaptação social, e a medicina só começa a se interessar pelas questões de sexualidade a partir do século XVIII. Entretanto, a aproximação se dava mais pelas questões físicas que pelos fluxos sociais. Somente a partir do século XIX começam a tratar em seus compêndios as questões relacionadas ao onamismo1 e à amamentação materna. Todavia, a partir do final daquele século, o higienismo da sexualidade passa a constar de forma contundente nos manuais de medicina, no sentido de prevenção de doenças venéreas, tuberculose e alcoolismo, denominadas "doenças sociais".

A ideia era, conforme explica Jacques Donzelot, civilizar o instinto sexual com vistas a eliminar a sexualidade não reprodutora, tida como doença, e, nisso, estruturas jurídicas fortes poderiam contribuir de forma decisiva para manter o mecanismo familiar protegido, haja vista que o Direito é dotado, sobretudo, pela primordial função conservadora que consiste em manter as coisas como estão a partir das regulações.

Quando analisado o romance Amar, não passou in albis a tormentosa questão, ainda atual, de qual seria o melhor lugar para a educação sexual daqueles em idade púbere: em casa ou na escola. Aqui, convém lembrar que a questão tão controvertida, tanto no tempo de Mário de Andrade quanto nos dias atuais, foi objeto de reflexão de Donzelot (2001, p. 185) em "Sexo: objeto de instrução ou de educação?", destacando que há quem sustente que não é um esporte que se aprende num estádio ou que necessita de vigilância desde criança, contra toda e qualquer forma de corrupção e iniciação.

Importante destacar, a partir dos estudos de Susan Besse (1999), que a educação sexual na década de 1920 era vista pelos médicos como necessária, mas entendiam que as famílias não tinham condição de proporcionar diretamente tais saberes e, por esse motivo, deveria ser objeto de abordagem nas escolas para crianças a partir de 11 anos de idade, mas "na verdade, a educação sexual nunca foi instituída nas escolas, graças à posição tanto dos pais quanto da igreja" (Besse, 1999, p. 141). A Igreja considerava que a pedagogia sexual seria incapaz de conservar a inocência e de exigir castidade daqueles que fossem despertados nesse tipo de educação.

Sem pretensão de encerrar o debate aqui resgatado, Donzelot (2001) sustenta que não se trata de fazer oposição à escola, mas jogar seu jogo, aumentando o papel da família como objeto de missão, apoiada nas exigências escolares criadas a partir de dados científicos. Nesse contexto, Facchinetti & Carvalho (2019) explicam que, ao longo do século XIX, o olhar médico sobre o sexo passou a dar maior legitimidade a discursos penosos à mulher. Dessa forma, baseado na essência biológica feminina, põe-se em evidência que sua única função social era gerar filhos, ao passo que a considerava como ser vacilante e esse espírito perverso poderia comprometer seu instinto maior, já que, nas teses médicas, a mulher era tida como mais sensível que o homem, extremosa e impressionável.

Por supostamente ser assim, ela não era considerada confiável, pois, inerente à sua natureza, estava a grande possibilidade de transgressão, tendo-se, portanto, a representação da mulher como vulnerável e, por essa razão, seria necessário buscar mecanismos que permitissem trazê-la ao curso da normalidade, o que quer dizer: manter os papeis sociais estáveis em razão do sexo.

 

A loucura associada à mulher: aproximação sucessiva e tormentosa

A ideia da loucura associada à mulher é algo que vem desde a mitologia grega e, nesse domínio, pode ser tratada e interpretada por vias diversificadas e complementares, como pistas fornecidas para variadas interpretações (Brunel, 2005; Eliade, 1972; Sevcenko, 2005). Na Grécia, Medeia de Eurípedes (431 a.C./2010) foi considerada tresloucada, malvada e traidora, situação decorrente da sua própria natureza. Era uma mulher que demonstrava, na aparência, boa convivência com seu marido Jasão, mas tal o amor era capaz de adoecê-la. O texto que discorre sobre o mito fala de uma mulher vingativa, cujo comportamento dá enorme giro entre o cinismo e a capacidade de matar os próprios filhos, pois não admitia o divórcio, tido como sinônimo de fracasso e desonra social. Por isso, a mulher agita o coração e a bile, o primeiro, enquanto órgão central da circulação; e a bile como substância produzida no fígado, todos eles vulneráveis às emoções, principalmente a raiva2.

Tal condição faz lembrar a reflexão de Gilles Lipovetsky (2000), ao sustentar que, tradicionalmente, a mulher tem sido apontada como mais passional que o homem, o que também dialoga com estudos de Priore (1997/2017), no ensaio "Magia e medicina na colônia: o corpo feminino", no qual explica que as doenças consistiriam advertência divina, e que o corpo feminino era lugar nebuloso e lacunoso, mas que não passava de mecanismo criado divinamente, com única função de reproduzir, de modo que doenças como a Loucura seriam claros sinais de supostos demônios, por contrariar essa função natural. As compreensões religiosas e mágicas sobre essas questões demoraram ceder à fisiologia.

Dito isso, no plano teórico, que paralelo é possível fazer? Considerando o Brasil da Belle Époque tardia se, por um lado, o modelo de saúde masculino centrava-se na figura do trabalhador, do provedor e bom pai de família, de outro, a mulher trabalhar fora de casa poderia colocar a família em perigo, por vagar por espaços públicos destinados aos homens e por lá serem atraídas ao trabalho com prostituição e serem despertadas a outros maus costumes degenerativos. Fräulein e Mademoiselle, por essa lógica, representavam uma liberdade maléfica e tormentosa.

Facchinetti & Carvalho (2019) salientam que, ao observar relatórios médicos do início do século XX, fica evidente o discurso de que a maldade e a psicopatologia da mulher eram frutos da rebeldia inata, que se manifestava como resistência ao seu destino natural, de modo que a desobediência, a irritabilidade e a sexualidade de desejos excessivos seriam frutos de uma educação viciosa e, quanto mais as mulheres lutavam contra sua própria natureza para se igualar aos homens, mais doentes ficavam.

O uso de roupas masculinas por parte das mulheres ou o desejo de exercer "trabalho de homem" sinalizavam a moléstia mental por apontar a uma vida irregular e a fuga dos freios necessários aos instintos sexuais da mulher. É nesse ponto que a educação se tornaria forte ferramenta para recolocar a mulher nos trilhos da normalidade, passando pelo tratamento médico preventivo, a fim de conservar os sexos em seus respectivos papeis. No caso da mulher, formar lares fecundos, sendo que a reprodução só seria saudável no sagrado casamento, pois nele se combateriam as doenças venéreas, a prostituição e o fantasma da emancipação feminina.

Costa (1983), em sua obra dedicada a compreender a Ordem médica e norma familiar, explica que a mulher nervosa foi uma criação médica, servindo como pretexto para implantação do higienismo, mas não só, pois, quando a mulher estava insatisfeita com suas obrigações sociais e domésticas, tinha ataques de nervos. Não bastasse, explica Jurandir Freire Costa, a mulher, quando estava insatisfeita com as privações sexuais, apelava ao nervosismo e se valia dessa doença para se defender dos homens tidos como opressores e, sobretudo, era o argumento utilizado para agredi-lo.

Além dos autores supracitados, demonstra-se a evidência da questão da sexualidade e da loucura das mulheres na literatura e na imprensa. As figuras abaixo (Figura 1) foram extraídas do jornal "Correio Paulistano", de 21 de julho de 1912, e dizem respeito às propagandas de produtos que prometiam normalizar o nervosismo da mulher, vejamos:

A chamada do primeiro anúncio traz a imagem da mulher com um semblante abatido, associando o nervosismo a um desarranjo orgânico natural que não pode ser curado, mas aliviado. Já o segundo, é dotado de maiores detalhes ilustrativos e o que nele se destaca é a "cura do desejo". Interessante notar que o recipiente se trata de um frasco de perfume dando forma ao busto de Baco, cuja cabeça está ornamentada com galhos e frutos da videira. Conforme Brunel (2005), Baco é o deus do vinho, ligado à boemia e à festa, também protetor da fertilidade e remete ao que é perigoso, tentador e incerto, assim como a mulher, que era considerada um ser inconstante, vacilante e fatal.

Parece haver uma ironia entre o que Baco representa e a mensagem que ele traz, estampando o produto anunciado: "levanta as forças" diz respeito ao vigor no trabalho doméstico necessário à mulher; "tonifica o coração", órgão que representa a sede das emoções, normalizando o equilíbrio do viver; "promete cura ao histerismo", ou seja, eliminar os sintomas do descontrole emocional, dos gritos, das convulsões e dos desmaios; "produz bom sono", indicando que o medicamento natural induziria à calma e produção de melatonina, bem como à tranquilidade e à cura da alma. Observemos que o subtítulo do anúncio diz respeito "a providência dos nervos" e que tal produto seria capaz de recolocar a mulher na normalidade que a sociedade da época lhe prescreveu.

É, pois, uma propaganda direcionada à mulher inconstante como Medeia, que na ilustração se aproxima do busto daquele que representa a fertilidade, a tentação e o perigo, para dizer que a vida sexual da mulher poderia sim ser intrigante e proveitosa, desde que se desse em função da procriação.

Na literatura, temos produções que descreveram ficcionalmente o lado tido como sombrio da natureza feminina, do nervosismo e do histerismo. Em "Ruão", a preceptora de francês de uma rica família paulistana, já aos 43 anos de idade, ainda virgem, passa a conviver com duas alunas adolescentes espertas e que a todo tempo fazem troça e a provocam. Tomando-se por base o conceito de representação colocado por Chartier (2002), bem como a explicação dada por Pesavento (2014), de que a representação não é uma imitação do real, mas uma edificação feita a partir dele, a figura de Mademoiselle fala da sexualidade, mas também trata de suposta loucura que Costa (1983) chama de "nervoso".

Nessa dimensão, ao analisar a figura da preceptora na literatura inglesa do século XIX, Monteiro (2000) percebeu que a associação da professora que atuava nas casas como louca era uma maneira de negar a possível entrada da mulher no espaço social, assim, "ser, então, louca ou prostituta significa, nesta conjuntura, categorizar a mulher como o excluído [sic]" (Monteiro, 2000, p. 15). Partindo da ideia que sustentava que as mulheres eram rotuladas como irracionais, infantis, instáveis, e que a loucura era transmitida de forma hereditária apenas na linhagem materna, Elaine Showalter (1987) expressou-se dizendo que essa crença foi bastante utilizada para afastar as mulheres de atividades laborativas, de negação de direitos políticos e civis, numa lógica que protagonizava discursos não só da família, mas do Estado.

Mademoiselle é caracterizada com ingredientes adicionais pelo autor, como o fator idade, já que era considerada velha nos anos 1920, dada a baixa expectativa de vida então medida estatisticamente. Não bastasse, a professora não se encaixava bem na fôrma considerada normal às mulheres, a de ser casada e mãe. Mademoiselle era uma solteirona virgem que vivia afrosamente:

Nos seus quarenta e três anos de idade, Mademoiselle estava tomada por um vendaval de mal de sexo. Não se compreendia, nunca tivera aquilo em sua virgindade tão passiva sempre. Amara sim, duas vezes, mas nunca desejara. Agora, as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle. E Mademoiselle estava... só um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava: Mademoiselle estava no cio. (Andrade, 1947/2017, p. 49)

O autor modernista, embora apresente uma personagem atípica aos padrões, revela simplesmente uma mulher que carregava todas as características doentias inerentes a esse gênero. A professora tinha sensações estranhas motivadas por um vendaval sem nexo, tinha atos falhos até mesmo com elementos objetivos do seu ofício de ensinar língua francesa, ao confundir as simples palavras mal (modo ruim) com mâ-le (macho), ou ainda dar sentido erótico ao verbo frôler (roçar), associando ao toque ligeiro de corpos, contrastante com a blusinha alvíssima professoral, saturada de rendas crespas que emoldurava sua aparência.

A preceptora tinha sonhos, mas também vagava nos delírios do nervoso, a ponto de achar ser real a perseguição por parte de um violentador, atrás de uma catedral na capital paulista, mas achando que estava na Normandia francesa, terra de Joana d'Arc. Nos seus 43 anos de idade, Mademoiselle passava por um vendaval e, após tal episódio que finda o conto marioandradiano, a professora desmorona, sucumbe de si mesma, agradece a bonne compagnie dos seus supostos violadores e volta para casa. "Subiu as escadas correndo, foi chorar" (Andrade, 1947/2017, p. 64).

No que concerne aos casos de neurastenia/histeria daqueles tempos, talvez seja o caso de desenvolvermos o dilema vivido pelo poeta negro Cruz e Sousa (1861-1898), que passou pela experiência do adoecimento de sua mulher Gavita, após três anos de casamento. Repentinamente, a loucura se manifestou em Gavita e tal drama deixou Cruz e Sousa bastante aflito, como pode ser visto no trecho abaixo, de carta endereçada a seu amigo Nestor: "[...] minha mulher está acometida de uma exaltação nervosa, devido ao seu cérebro fraco que, apesar das minhas palavras enérgicas em sentido contrário e da minha atitude de franqueza em tais casos, acredita em malefícios e perseguições de toda a espécie" (Cruz e Sousa, carta, 18 março 1896/2000, p. 830).

É necessário ter em mente o contexto que o casal vivia. Eram negros, sem contar com qualquer benefício social após a abolição; sendo abandonados à sorte própria, sentiam-se (e eram) desvalorizados e considerados perigosos, inúteis, um peso social. Considerando que na perspectiva da Nova História Cultural o corpo também é histórico (Sant'Anna, 2021), infere-se que no corpo de Gavita foram escritos os sofrimentos escondidos pelas estruturas de poder político, social e econômico. Socorrendo-se em um médico de onde a esposa foi criada, foi dado o seguinte diagnóstico:

creio que a moléstia da Gavita é devida a anemia profunda, estado que é quase crônico nela. / É de supor que os trabalhos e as preocupações da maternidade tenham acentuado esse estado, num organismo já anteriormente enfraquecido, resultando daí uma explosão de fenômenos nervosos, sob a forma de excitação maníaca, com integridade da inteligência, mas apresentando certo grau de incoerência dos atos, sem alucinações auditivas ou visuais. / Nestas condições o que convém é levantar as forças do organismo, por meio de uma alimentação reparadora, baseada em leite, ovos, carnes, e um vinho tônico fosfatado com arsênico cuja receita vai junta, e reprimir a excitação cerebral que se traduz na incoerência dos atos, por meio da Bromidya [...]. Ao lado disso, deve-se poupar ao cérebro toda excitação exterior, fazendo ao redor dela uma atmosfera tranqüila, evitando as visitas, principalmente de pessoas mais íntimas, de modo a proporcionar ao seu cérebro uma dieta psíquica, tão necessária à inteligência, como a alimentar ao corpo [...] (Vítor, carta, s.d./2010, p. 134)

O diagnóstico central encontrado diz respeito a uma mulher acometida pela excitação maníaca, sendo necessário combater tal moléstia com dieta alimentar e psíquica para recompor suas forças esgotadas com a preocupação da maternidade. Esse estado de coisas remete à constatação feita por Besse (1999) e Lipovetsky (2000), quanto à prevalência, desde Aristóteles, da tradição de sátiras e desconhecimento em relação às mulheres, associando-lhes à inconstância, ao perigo, à femme fatale. Por essa razão, historicamente, foram relegadas a atividades sem brilho e pouco valorizadas.

Por essas linhas, demonstra-se que as questões relacionadas à suposta loucura das mulheres decorreram de construção simbólica, a partir do conhecimento médico, para legitimar o higienismo. Tal constatação aparece nos prontuários, nos discursos, nos autos de processos judiciais, na literatura e na imprensa, a demonstrar, mais uma vez, que às mulheres foram reservados lugares muito particulares de existência.

 

Em Amar e "Ruão" a velhice é também questão de gênero

Se em 1927, com Amar, Mário de Andrade pôs em evidência a temática da mulher, dos estrangeiros e da educação não escolar, ao concluir "Ruão", em 1944, o autor prosseguiu com tais temáticas. Todavia, o elemento velhice em Amar teve abordagem secundária, ao passo que, em "Ruão", foi associada à ideia de dramática fase da vida, expondo os efeitos sociais da passada idade. Ora, se no início do século XX já era difícil a condição social, política e financeira das mulheres de classe sociais inferiores, somar a elas o fator velhice tornava a sobrevivência ainda mais penosa. Isso remete ao que Campos (2009) classificou como quadro moralista, cuja voz higieniza e organiza o mundo ao prescrever a exclusão daquele que é velho e/ou gordo.

Enquanto no romance há registro da idade da preceptora Fräulein: "[...] sou séria. E tenho 35 anos, senhor" (Andrade, 1927/1995, p. 49), em "Ruão", a educadora é adjetivada como pertencente a uma faixa etária que denotaria desilusão, cansaço e tristeza: "E se resfriava inda mais, devorando homeopatias. Nos seus quarenta e três anos de idade [...]" (Andrade, 1947/2017, p. 49); "[...] e a professora envelhecida ficara muito reta na cadeira, envergonhada do arroubo anacrônico [...]" (p. 46); "[...] sem se decidir a perguntar se aquela velhota quer alguma coisa. Pode estar doente, pedir auxílio, perdiam tempo" (p. 56); "Os homens tiveram que parar, espantados, ante aquela velhota luzente de espirro e lágrima [...]" (p. 64).

Tal constatação não foi posta por acaso em Amar e "Ruão", bastando lembrar que nos anos 20 do século XX a expectativa de vida no Brasil era de apenas 35 anos de idade, como pode ser observada na tabela abaixo. Por esse prisma, as duas preceptoras, 35 e 43 anos de idade, respectivamente, já eram consideradas velhas.

Oportuno enfatizar que, tanto em Amar quanto em "Ruão", as professoras são marcadas pela contingência da "idade já passada" na conjuntura apresentada na Tabela 1. São, portanto, personagens que representam mulheres atravessadas pela mistificação da sexualidade inoperante na velhice. Todavia, paradoxalmente, na professora do romance o vigor físico ainda operava, tanto que utilizava seu corpo como meio de sustento. Essa mistura, segundo Affonso Sant'Anna (1992), fala da ideia da "branca vovozinha", como aquela mulher que não representa mais ameaça, já que nessa idade ela não teria sexo, só carinho, ilustração esta que Simone de Beauvoir (1970/2018) tentou desmistificar ao enfrentar a temática da velhice.

Interessante que as figuras da velha e da prostituta "de domicílio" estão postas lado a lado em Amar. A primeira, considerada como inofensiva e sem sexo; e a segunda, igualmente inócua, pois nesta o sexo fora exercido sob vigilância, de maneira programada e sem causar apego, justificando Fräulein ser a escolha estratégica por reunir características confluentes para fazer a iniciação sexual do filho Carlos, longe dos perigosos lupanares.

A questão da velhice sempre despertou debates, reflexões e angústias, como podemos observar, ao menos, desde a obra Saber envelhecer, de Cícero. Em forma de diálogo, para indagar o que reprovaria na velhice, Catão, aos oitenta e quatro anos, viu pelo menos quatro razões para que se achasse a velhice detestável: "1) Ela nos afasta da vida ativa. 2) Ela enfraqueceria nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproxima da morte" (Cícero, 44 a.C./2002, pp. 16-17). Para cada uma dessas hipóteses foram por ele apresentadas refutações, entre as quais se destacam a sabedoria e a autoridade advindas com a passagem do tempo e que, quando postas a serviço do Estado, resultariam em ganho público e coletivo, e isso não significa fazer nada, pelo contrário, é possível realizar várias tarefas, como tomar parte de assuntos públicos.

Em sequência, Catão argumenta que embora lhe faltasse muita destreza física, ainda lhe restaria a voz, que seria útil à instrução de adolescentes, não havendo tarefa mais bela e agradável que essa: estar cercado de estudantes, conferindo-lhes oportunidade de ter novos rumos na vida pela educação. Concluiu dizendo que os frutos desse tempo são todas as memórias e que "os velhos não devem nem se apegar desesperadamente nem renunciar sem razão ao pouco de vida que lhes resta" (Cícero, 44 a.C./2002, p. 56). Isso se alinha também ao discurso bíblico contido em Salmos 92:15, que indica que os velhos, no serviço de evangelismo, "dão fruto mesmo na velhice, são cheios de seiva e verdejantes4 [...]" (Bíblia, 2020, p. 962). Contudo, como infere Zerner (2021), a própria ideia de encarnação cristã parece tornar miúdo esse encorajamento salmista, pois revela o corpo como sujeito à implacável temporalidade e perecimento.

As reflexões em Cícero (44 a.C./2002), de algum modo, dialogam com Michele Perrot (2019) ao sustentar que, tanto no século XIX quanto no início do XX, a ideia que se tinha do velho era relacionada aos predicados de sabedoria, serenidade, sobriedade e respeitabilidade, além de autoridade, mas isso sofre alterações, como explicaram Campos (2009), Debert (1999) e Goldenberg (2013), ante à lógica organizacional que passou a excluir os sujeitos dessa faixa etária no Brasil. Tal ocorrência se deu, também, segundo as autoras, pela transformação do papel social e pelas atribuições privadas e públicas que passaram a operar com a urbanização, colocando os velhos como problema social. Como sustentá-los? Quem deveria cuidar e sob qual teto?

Os predicados tão firmes antes indicados passaram a resvalar nesse tormentoso problema urbano, doravante ampliado em compasso com os novos números de esperança de vida medidos pela estatística. Esse novo estado de coisas com relação à velhice, "[...] também paulatinamente se alterou o significado da morte, que passou a ser entendida menos como sinônimo de passagem espiritual de um estágio existencial para outro, e mais como de apodrecimento do corpo" (Campos, 2009, p. 159), ou seja, a velhice marcaria a fase do excedente da vida, do que é inoperante, imprestável e o que torna a morte próxima.

Por falar em esperança ou expectativa de vida, tais palavras nessa dinâmica parecem melhor combinar com a intensidade da força da juventude do que com a serenidade ou sabedoria daqueles que o vigor do corpo pode pouco, o que, segundo Jurandir Freire Costa (1983), tem a ver com o estatuto ao qual os velhos passaram a ser associados ao menosprezo físico e moral, incompatíveis com a aposta no futuro.

Sant'Anna (2021) esclarece que, considerando que em 1921 a expectativa de vida não chegava aos 40 anos, circulava a compreensão de que os velhos brasileiros seriam mais moços que os velhos europeus, por isso viviam menos, mas, no Brasil, a velhice poderia ser "prematura", decorrente de erros de registro; "repentina", em razão de doenças e; "natural", associada à perda das energias físicas com o passar do tempo. Dessa forma, segundo a autora, a juventude tendia a ser curta, mas os homens pareciam "envelhecer melhor", razão pela qual sobre elas recaiam diversas piadas5.

Esse envelhecer em melhores condições assinalado por Denise Sant'Anna não se trata apenas de razões biológicas decorrentes do climatério ou da andropausa, trata-se da diferença que Campos (2009), Lipovetsky (2000) e Schpun (1999) sintetizaram, de que velhice é, sobremaneira, "uma questão de gênero". Basta ver que, não obstante a depreciação da velhice no tempo da escritura do Amar e "Ruão" tão presente no discurso médico, os homens poderiam ocupar espaços de destaque na sociedade, como ocorrido, por exemplo, com o jurista Rui Barbosa, que aos 72 anos de idade exercia mandato de Senador, e Washington Luís, que aos 57 assumia a Presidência da República. Para estes, o fator idade não era determinante, podendo permanecer à frente de gestão de negócios, bem como opinar nas rodas de conversas políticas etc.

Nisso, segundo Campos (2009), enquanto os homens velhos poderiam ostentar utilidade longeva, restava às mulheres a solidão ou a caridade, se fossem viúvas ou solteiras. Curioso nisso tudo é a constatação da autora de que os corpos femininos envelhecidos passaram a ser vistos como incapazes de abrigar mentes intelectualmente saudáveis ou produtivas, o que contrasta com os argumentos idealizados de Catão, contidos em Cícero (44 a.C./2002).

Mas, independentemente do gênero, em que pese o otimismo bíblico e filosófico já citados, as rugas deveriam servir não somente para anunciar por onde passaram lutas, mas também sorrisos. No entanto, não é bem isso que normalmente ocorria, e de certa forma permanece, pelo fato de que as pessoas nunca vivem em total estado natural, nem na infância, nem na velhice, tampouco em qualquer idade, já que o estatuto que as molda é aquele construído socialmente.

Importante notar que, no conto, o autor não se referiu à Mademoiselle como idosa, e sim como velhota, conotação negativa ligada à ideia de defasada, inativa e pobre. Ainda que sejam termos equivalentes, a ideia que se passa é de que, com o tempo, o uso da expressão idosa, ao invés de velha, serviu para amenizar os receios de tratar o tema. No conto, observa-se que a professora é mostrada como possuidora de vida sem graça, mesquinha, de pão incerto, revelando que, embora estrangeira e culta, Mademoiselle não tinha vida fácil: "As meninas estavam mocinhas, carecendo mesmo de alguém, quase uma preceptora que as acompanhasse em festas, visitas, lhes tomasse conta da educação. E assim ajudavam Mademoiselle, coitada" (Andrade, 1947/2017, p. 46).

Quanto à defasagem, ela aparece claramente em "Ruão" no seguinte trecho: "Além do inglês e do alemão em que Mademoiselle nem de longe podia agora competir com elas, voltavam falando um francês bem mais moderno e leal que o da professora, estagnada no ensino e nas suas metáforas suspeitas" (Andrade, 1947/2017, p. 44), demonstrando que os conhecimentos da docente já estavam ultrapassados e revelando que envelhecer se traduziria em perder valor numa sociedade em que a juventude não era apenas uma fase da vida, mas uma aposta no futuro.

Nas linhas de Mário de Andrade, a questão da aparência física das personagens femininas não foi esquecida. Em Amar, enquanto a esposa dona Laura era: "Meia mal-acabada. Era maior que o marido" (Andrade, 1927/1995, p. 55); a professora foi caracterizada como desprovida de beleza: "Fräulein não é bonita, não. Porém traços muito regulares, coloridos de cor real" (p. 58). A seu turno, em "Ruão", o autor mostrou que Mademoiselle estava "destratadinha" (Andrade, 1947/2017, p. 46). Dito isso, embora se vislumbrem elementos alusivos à aparência, tais especificidades não são aqui centrais à discussão, mas podem ajudar no contraponto com a velhice.

Nesse sentido, convém pensar que o conceito de beleza, conforme infere Sant'Anna (2021), varia no tempo. Se no início do século XX, em razão da subjetividade, era difícil explicar o verbete, nos dias atuais isso se torna bem mais penoso, já que beleza é também vaidade, mas não deixa der ser saúde, alimentação e necessidade. Ora, beleza sempre foi objeto de preocupação, principalmente das mulheres, aliás, a mulher se mostra socialmente como representante da beleza, algo que parece lhe ser inerente, mas, no Brasil, sobretudo a partir da República, a preocupação com tal assunto se expande, haja vista o quantitativo de anúncios de produtos cosméticos na imprensa. Essa questão faz alusão aos estudos de Gilles Lipovetsky (2000), para quem o corpo feminino sempre foi educado para ser belo, ou seja, sedutor, meigo, atraente, belo sexo.

Mas como permanecer sempre joviais e quando isso se tornaria maior preocupação? Em primeiro lugar, conforme explicam Corbin et al. (2021a, 2021b), a aversão à velhice atravessou muitas culturas, e no Brasil isso se tornou mais forte na década de 1940, o que tem a ver, em Sant'Anna (2021), com o novo modo que as mulheres passaram a viver em relação ao exercício da liberdade sexual, com a possibilidade de novos relacionamentos conjugais, com poderem trabalhar mais tempo e, principalmente, tem a ver com a ampliação da expectativa de vida, que avançou quase nove anos (apenas se forem tomados os anos 1910 a 1940).

Sendo assim, a preocupação com o envelhecimento tornou-se obsessão crescente, podendo ser observado nos esforços científicos de promover a desaceleração do processo biológico do envelhecimento com cosméticos, medicamentos e procedimentos cirúrgicos. Como explicam Prost (1989/2020) e Sant'Anna (2021), o antigo medo do envelhecimento não terminou, mas agora se torna mais incontornável, em razão da expectativa de vida cada vez maior, impondo reconhecer que envelhecimento não é algo facultativo.

Voltando à obra em análise, Mademoiselle representa uma mulher que se esforça para ser útil, a despeito do tempo, das rugas e da cor dos cabelos, ao passo que sua permanência na casa mostra uma acolhida não necessariamente em função do resultado pedagógico que possa entregar, mas para tê-la por perto como companhia das filhas adolescentes de Dona Lúcia em troca da subsistência, considerando que a preceptora era imigrante e não sujeita a benefícios previdenciários, na forma da chamada Lei Eloy Chaves6, a primeira regulação protetiva brasileira de 1923.

Noutra direção, considerando o vigor modernista no qual "Ruão" está inserido, convém registrar que, da forma com que Mário de Andrade construiu a personagem Mademoiselle, ela representa não só um tipo de pessoa que é professora e tem sua idade à mostra, mas remete, nos seus caracteres, a um passado que necessita de ruptura, a começar pela francofonia7 vazia, tão em uso na literatura moderna anterior ao autor. Tomada como veículo clássico de construção poética, para o intelectual, a francofilia8 diz respeito a uma velha imagem da literatura que precisava ser superada, de uma literatura métrica e gélida que não cabia mais no quadrante que o modernismo propunha. É o projeto de brasilidade, um desafio para construir algo novo, para desmontar a ideia que a língua francesa proporcionaria uma experiência literária superior àquela produzida em língua portuguesa.

Nesse sentido, tal novidade fala de rompimento, e a preceptora do Amar remetia ao arcaico, à continuidade, já que

Fräulein, a alemã não admite inovações. Para ela, a filha tem que sair igualzinha a mãe. É o mito do eterno retorno. Quem está em cima fica em cima, quem está em baixo continua embaixo. A mesma lei para as classes sociais e os povos. (Schüler, 1992, p. 121)

Assim, a literatura por ele pretendida dependia dessa ruptura9 com as velhas formas e os cânones desgastados, para que acontecesse o novo. Mário de Andrade é o poeta do novo10 (Boaventura, 2008; Brito, 1976, 1978; Miceli, 2012; Tércio, 2019), razão pela qual declarou durante sua vida tamanho amor pelo Brasil, por acreditar ser aqui o lugar que efetivamente reside a novidade, e não na Europa. A confirmação dessa ideia está no trecho de carta abaixo transcrito, em que fica evidente a sensação do "ai que preguiça" de Mário de Andrade, com mentalidade daqueles que só enxergavam excelência nas produções vindas da Europa.

Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila Precisam (Andrade, carta, 15 novembro 1923/2001, p. 79)

Perceba-se que na carta de 15 de novembro de 1923, o modernista exorta Tarsila do Amaral a retornar ao Brasil, a ter a experiência de construir e viver o novo no Brasil. Ao mesmo tempo, é latente que a noção de ensino para o autor é bem mais ampla do que simplesmente a figura de uma professora daquele tempo, não obstante a importância social representada pelas personagens Fräulein, do Amar, e Mademoiselle, do "Ruão".

O compartilhamento desse entusiasmo e desejo de engajamento de seus pares foi registrado em cartas, como a enviada à Tarsila do Amaral em novembro de 1923, lembrando que, conforme estudo desenvolvido por Marilda Ionta (2007), denominado As cores da amizade, cartas para Mário de Andrade não eram meros expedientes para recados, contrariamente, eram espaços de manifestação privada para demonstrar sentimentos, refletir sobre a sociedade de seu tempo a inquietar seus interlocutores.

 

Considerações

Como visto, as duas obras aqui lidas analiticamente mostram mulheres contratadas por algumas famílias ricas paulistanas, cativadas pelo glamour representado por serem professoras requintadas em razão da origem europeia. Nos dois textos marioandradianos percebemos a contingência da idade das professoras Fräulein e Mademoiselle e seus respectivos comportamentos, considerados como socialmente anormais, mas supostamente inatos às mulheres, como a histeria e a loucura.

Tais características teriam o condão de ofuscar os talentos, os dons e as habilidades das mulheres por serem de um gênero vacilante. Todavia, tais inconstâncias estariam em função de esforço e reforço para colocá-las em um patamar inferior, se comparado aos homens, razão pela qual os espaços privados lhe eram reservados, pois os sítios e as funções públicas não podiam ser ocupados por elas. Nesse passo é que as professoras causavam enorme choque social, já que, por um lado, estavam arraigados os estigmas inferiorizantes e, de outro, em nome da educação da polidez, eram toleradas na atividade laborativa, ainda que significasse elemento de liberdade contrastante com a ideia de rainha do lar.

Envelhecer, portanto, como um processo natural da vida, tornou-se artificial, a depender do gênero. Enquanto o fator idade não configurava empecilho aos homens para ocuparem espaços sociais, às mulheres restavam as suspeições: velhice e nervoso como construções saturadas de fábulas que escondem enormes perversidades.

 

Apoio Financeiro

O presente artigo é fruto de pesquisa de doutorado do autor finalizada em 2022 e contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

 

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Endereço para correspondência:
Marco Antonio de Santana
Programa de Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Uberlândia
Av. João Naves de Ávila, 2121 - Bloco 1G - Campus Santa Mônica - Uberlândia, MG, Brasil - CEP 38400-902
E-mail: bh.santana@yahoo.com.br

Artigo recebido: 19/12/2022
Aprovado: 3/3/2023

 

 

Trabalho realizado no Programa de Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil.
Conflito de interesses: O autor declara não haver.
1 Palavra derivada do nome Onã [ou Onan], um personagem bíblico que após a morte de seu irmão mais velho Er teve que se casar com a viúva, sua cunhada Tamar. Entretanto, pela "lei" do levirato então vigente, se Onã viesse a ter filhos com ela, esses seriam atribuídos ao de cujus por presunção legal, causando implicações que lhe prejudicariam no direito sucessório. Assim, Onã praticava coito interrompido com Tamar, razão pela qual Deus o teria feito morrer por considerar pecado tal prática, conforme Gênesis 38:9-10 (Bíblia, 2020, p. 84). Logo, onamismo tem a ver com o ato de autogratificação sexual que, segundo relatos de Jacques Danzelot (2001), era considerado pela medicina como "pequena epilepsia" causadora de mau humor e fraqueza, prejudicando a plena capacidade laborativa. Referida prática não escapou da atenta abordagem do romancista, ao relatar a passagem em que "[...] Carlos se larga todo em beata prostração" (Andrade, 1927/1995, p. 70).
2 Isso diz respeito à teoria dos humores, para a medicina grega, na qual eram considerados quatro humores: sangue, bile amarela, bile negra e fleuma, que compunham um sistema para compreensão tanto da saúde quanto da doença, de modo que a acumulação de algum desses elementos dos humores resultaria na prevalência de algum efeito, como a bile amarela, relacionada à amargura, ao rancor e à ira do indivíduo (Bynum, 2011).
3 Os registros estatísticos divulgados pelo IBGE referentes ao período de 1910 a 1960 não possuem diferenciação de longevidade por sexo, que só passou a constar a partir de 1980. Embora a delimitação temporal do presente ensaio seja de 1923 a 1944, chama a atenção o fato de que os dados sequenciais, de 1960 para 1980, tiveram um salto que destoa do padrão da regularidade de crescimento da expectativa de vida ao longo do tempo, explicada pela mudança de metodologia e critério da coleta e tratamento de dados.
4 Na versão Nova Tradução na Linguagem de Hoje consta "Na velhice, eles ainda produzem frutos; são sempre fortes e cheios de vida" (Bíblia, 2012, p. 840).
5 "O professor - Que idade tem hoje uma pessôa nascida em 1894? O aluno sabido - Conforme... E´ homem ou mulher? [sic] (Careta, 1940, p. 12).
6 Trata-se da primeira lei brasileira em matéria previdenciária, mas abrangeu apenas os ferroviários com a criação da Caixa de Aposentadorias e Pensões para trabalhadores dessa categoria (Decreto nº 4.682, 1923).
7 Ato ou efeito de adotar a língua francesa como sistema de signo de cultura (Houaiss, 2004, p. 1386).
8 Admiração ou paixão por tudo aquilo que é expresso na língua francesa (Ferreira, 2010, p. 981).
9 Não obstante tenha reconhecido a importante contribuição de mestres do passado como Olavo Bilac (1865-1918), que ousou discutir temas variados sem sair do parnasianismo, como por exemplo, no poema "Oração de Cibele"; e Machado de Assis (1839-1908), escritor dotado de enorme sensibilidade, ao assimilar que "a literatura não é uma ferramenta inerte com que se engendrem ideias ou fantasias somente para a instrução ou deleite do público. É um ritual complexo que, se devidamente conduzido, tem o poder de construir e modelar simbolicamente o mundo [...]" (Sevcenko, 1983/2014, p. 284).
10 Conforme Brito (1976), em Mário de Andrade a arte não tinha o papel de refletir o passado, um mundo que agonizava, mas devia abrir-se para absorver aquele que estava surgindo, que tinha aptidão de ser promissor, dinâmico, ainda que viesse a ser complexo e problemático.

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