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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

DIÁLOGO

 

Almeida Prado, compositor, mente de principiante: comentário à entrevista de Almeida Prado

 

Almeida Prado, composer, beginner’s mind: comment to Almeida Prado’s interview

 

Almeida Prado, compositor, mente de principiante: comentario a la entrevista de Almeida Prado

 

 

Ignacio Gerber*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Comento duas vertentes que me chamaram mais a atenção ao longo da entrevista. A primeira refere-se à liberdade criativa do músico, do artista, do psicanalista, diante das imposições das instituições e do público. A segunda tem a ver com as relações entre a linguagem musical e os sentimentos que ela propicia em nós. Mais além das palavras, a música deflagra proto-sentimentos no âmago do ser.

Palavras-chave: Música; Som; Silêncio.


ABSTRACT

I comment the two main pathways that called my attention the most during the interview. The first one refers to the musician’s creative freedom as well as the artist’s, the psychoanalyst’s whenever imposed by institutions and the audience. The second one concerns the relations between musical language and the feelings it triggers in us. Beyond words, music lightens protofeelings within the human being’s nucleu.

Keywords: Music; Sound; Silence.


RESUMEN

Comento dos vertientes que más me llamaron la atención a lo largo de la entrevista. La primera se refiere a la libertad creativa del músico, del artista, del psicoanalista, delante de las imposiciones de las instituciones y del público. La segunda tiene que ver con las relaciones entre el lenguaje musical y los sentimientos que él nos proporciona. Mas allá de las palabras la música deflagra proto-sentimientos en el amago de su ser.

Palabras clave: Psicoanálisis; Música; Sonido; Silencio.


 

 

A mente do principiante tem muitas possibilidades. A mente do “conhecedor” tem poucas possibilidades.

Shunriu Suzuki, Mente zen, mente de principiante

 

Shunriu Suzuki não menospreza absolutamente o conhecimento. Ao contrário, ele o valoriza tanto, que sugere (como lemos na frase em epígrafe) mantermos sempre viva nossa “mente de principiante”, sempre aberta para conhecer o que é novo, aquilo que ainda não sabíamos no instante imediatamente anterior; por maior que seja nosso cabedal de conhecimentos, não nos saturarmos dele desconhecendo que o conhecido é inevitavelmente uma pequena parcela do desconhecido que o contém. Nesse sentido, o conhecedor de poucas possibilidades – “conhecedor” – seria o arrogante que acha que não tem mais nada – ou muito pouco – a aprender de alguém outro. Já o Conhecedor com mente de principiante se abre humildemente para as infinitas possibilidades daquilo que não conhece – no limite, se abre para o inconsciente. Penso que quanto a isso Shunriu e Bion estariam de pleno acordo.

No encontro que tivemos, José Antonio de Almeida Prado, pianista consagrado, professor e compositor, nos demonstrou ao vivo que cultiva uma privilegiada “cabeça de principiante”, através de sua fala sofisticadamente simples, do seu bom humor e da sua ironia matreira, inclusive em relação a si mesmo. Fico matutando se a transcrição inevitável para a letra escrita conseguirá transmitir ao leitor o encanto afetivo da conversa ao vivo. Imagino que a essa altura ninguém mais consideraria irrelevante a presença de um músico na Revista Brasileira de Psicanálise. Pois bem, através de sua trajetória, vivida entre a segunda metade do século passado e o início deste século, em plena transição da Idade Moderna para a pós-moderna, Almeida Prado se oferece como um modelo exemplar do desenvolvimento possível de um músico, de um artista, de um ser humano, e por isso interessa a todos nós, qualquer que seja a nossa área de atuação na infinita matriz do conhecimento – e interessa particularmente a nós psicanalistas.

Extraímos de sua biografia musical alguns fragmentos: “Em 1986 defendeu sua tese de doutoramento, Cartas celestes: uma uranografia sonora geradora de novos processos composicionais. [...] Seu estilo é múltiplo, vindo do nacionalismo de Villa-Lobos e Guarnieri, passando por fase pós-serial atonal, o transtonalismo de Cartas celestes, o misticismo da Missa de São Nicolau, das cantatas Adonay Roy, Yerushalaim Nevé Shalon, e ao pós-moderno dos Poesilúdios e Prelúdios para piano. Vem seguindo a linha tonal livre [grifos meus]”.

Almeida Prado nos dizia que sempre se sentiu prisioneiro de limites dogmáticos impostos por uma determinada escola. Aprendeu muitíssimo e é grato por isso a Camargo Guarnieri, nosso grande compositor da escola nacionalista, mas quando sentiu que este “castrava” (palavra de Almeida Prado) sua abertura para outras possibilidades, partiu para novas experiências no exterior, significativamente compartilhando os ensinamentos de dois mestres em permanente conflito de idéias: Nadia Boulanger e Olivier Messiaen. Almeida Prado experimenta o serialismo e vai continuamente expandindo suas fontes até o transtonalismo e o misticismo de suas obras recentes – uma linha tonal livre, que se abre para as surpresas do futuro.

Parece-me que os obstáculos que ele teve de enfrentar para preservar sua liberdade criativa são comuns a tantas outras carreiras – à psicanálise, por exemplo. Muitos de nós passaram pela cobrança de uma lealdade absoluta a um “nacionalismo psicanalítico”, o que implicaria um olhar desconfiado para as contribuições de outras áreas do conhecimento que teimam em cruzar nossas infinitas fronteiras abertas. Passamos também pela dogmatização de sistemas estruturais, muito interessantes no diálogo com outros sistemas, mas paralisantes quando fechados em si mesmos. Relembro o assim chamado “princípio de Tarski” do pensador Alfred Tarski: “Nenhum grupo fechado de seres humanos pode alcançar uma visão objetiva e não preconceituosa de suas próprias idéias”; é indispensável um olhar estrangeiro para enxergar seus “reducionismos militantes”, feliz expressão que fala por si mesma do neurobiólogo Steven Rose. Penso que tudo isso aponta para o fim da “era das escolas” na passagem da era moderna para a pós-moderna, ou “modernidade líquida”, como propôs Zigmunt Bauman. Líquida porque encara o conhecimento como tendo a fluidez da água. Vivemos os estertores das certezas modernas – ou seja, mais ou menos antigas –, demolidas pelas teorias da relatividade de Einstein e pelo princípio de incerteza de Heisenberg na física, pelo teorema de Gödel na matemática e, last but not least, pela revolução freudiana. Por outro lado, a transdisciplinaridade, uma nova maneira de pensar o conhecimento, se propõe a dissolver as fronteiras rígidas entre as disciplinas e a pesquisar o que elas têm em comum e que as transcende. Momento de afirmação da singularidade da prática pessoal de cada um de nós, prática informada por todas as nossas experiências vividas.

A música clássica (no sentido amplo e usual do termo) contemporânea tem passado por um distanciamento orgulhoso e letal de seu grande público, como diz Almeida Prado na entrevista: “Era para não entenderem mesmo”. Parece-me que agora ela se reconcilia com os ouvintes incorporando as mais diversas tendências através das sínteses pessoais de tantos compositores. Como assinala Almeida Prado, é interessante notar a presença mística tanto em suas obras como na de vários outros compositores atuais que se reencontram com o grande público musical: Arvo Pärt, John Tavener, Gorecki, Corigliano, entre tantos. Obras desses e de outros compositores contemporâneos começam a ganhar um lugar entre as peças românticas usuais nos concertos sinfônicos, conquistando com sua beleza um público já não tão tradicional. Me ocorre às vezes, em devaneio, que se Winnicott vivesse hoje apreciaria bastante John Tavener, essa mescla mutante de anglicano e ortodoxo bizantino.

Entre os inúmeros temas abordados na entrevista, interessa particularmente aos psicanalistas a linguagem musical. Confesso que para mim é incompreensível que Freud, menino judeu criado na Viena das luzes, se declarasse pouco sensível à pura linguagem musical, carente de palavras. Em nota do editor da edição Standard, Strachey sugere que talvez a atitude de Freud em relação à música não fosse tão negativa quanto ele fazia parecer – torço para que seja verdade. Por outro lado, na correspondência com Romain Rolland, Freud confessa nunca ter sido tomado por um “sentimento oceânico”. Talvez, algo a ver com essa estranha dificuldade de se entregar à música. Hoje se tornou lugar-comum em nosso meio a expressão “ouvir a música atrás das palavras”; penso que para isso é preciso também tentar ouvir as palavras atrás da música. A linguagem musical desperta emoções e sentimentos em estado latente dentro de nós. A música brinca com nossos sentimentos. Ela evoca sentimentos sem conteúdos, virgens de representação, ou mesmo proto-sentimentos, sentimentos não nomeáveis que habitam no âmago do ser, no inconsciente radical, não simbólico ou, como chamaram outros, o protomental, o pré-simbólico, zona de não-representância, zona de não-resistência, o infinito escuro e informe. É nesse domínio de fantasias silenciosas que vai ecoar o silêncio pleno, que pode se revelar no timbre, na dinâmica, no ritmo, na humanidade da voz do analista. A música transcende o tempo. imagino Pitágoras tangendo a música das esferas nas grandes cordas vibráteis da física – e da alma.

Falou-se na entrevista da conotação emocional propiciada pela música em modo maior e modo menor. Ao menos na tradição ocidental, desde a Renascença, sentimos alegria, elevação, ao ouvir músicas em tom maior (terça da tônica aumentada) e nostalgia, tristeza, ao ouvir música em tom menor. Com raras exceções, esse clima emocional induzido em nós pela música é praticamente universal, mesmo para pessoas de outras culturas que têm o primeiro contato com a música que nos é habitual. Ou seja, a questão ainda em aberto tem a ver com as relações entre a linguagem musical e os sentimentos que ela propicia em nós. Por exemplo, a tonalidade implica uma nota básica, a tônica, que representa o conhecido, um porto seguro do qual partimos e para o qual retornamos em busca de segurança, de pacificação. É essa segurança que o serialismo ameaça com a igualdade entre todas as notas, mas essa divisão matematicamente proporcional acaba limitando suas possibilidades emocionais. Sugiro ao leitor uma experiência emocional de audição musical: a interpretação do cellista Yo-Yo-Ma da peça de John Tavener Wake up... and die (cd The Protecting Veil). Nesta, uma belíssima melodia tonal é invadida recorrentemente por um arpeggio ascendente que se prenuncia tonal nos graves e que se eleva numa virtuosidade vertiginosa até explodir numa quebra harmônica em superagudo. Nesses momentos, sempre que ouço sinto uma sensação lancinante nas vísceras, e cada vez que a passagem se repete esse sentimento vai se tornando quase insuportável. A certa altura, o compositor inverte o arpeggio do superagudo dissonante para um grave tonal reconfortante que me tranqüiliza: Tavener e Yo-Yo-Ma brincam com meus sentimentos.

E o silêncio? Dizia o grande pianista Arthur Schnabel: “As notas, eu não as toco melhor do que tantos outros pianistas, mas as pausas... Nelas reside a arte!” Podemos pensar a música como sons sobre um fundo de silêncio – ou pausas, silêncios, sobre um fundo de som! Ou até metaforizar o silêncio como a união de todos os sons, a cor branca dos sons. Silêncios tensos, silêncios pacíficos, silêncios bonitos, silêncios feios. Na entrevista, faltou-nos tempo para falar do inconsciente – ou aconsciente –, embora ele estivesse presente em tudo o que foi falado. Proponho, para futuros encontros, que certamente acontecerão, pensar se nossa capacidade de apreender uma polifonia sonora de quatro, oito ou mais vozes, harmonizadas por sistemas tonais ou atonais, não se deve em grande parte à nossa capacidade inconsciente de processar infinitas informações simultâneas. Reparem que, se concentrarmos nossa atenção consciente, podemos isolar determinada voz da massa sonora de uma orquestra com coro e solistas – por exemplo, um soprano, as trompas ou os contrabaixos –, relegando o resto da orquestra e o coro a um discreto baixo contínuo. Em sentido contrário, se nos desconcentramos dos detalhes e nos entregamos à totalidade da música, nós nos aproximamos da captação inconsciente. Eis aí uma agradável maneira de exercitar diferentes desproporções no campo contínuo dos nossos modos de ser consciente e inconsciente. Assim como a escuta psicanalítica, a escuta musical não admite regras dogmáticas. O conhecimento expande as possibilidades estéticas da nossa experiência, mas a síntese final é prerrogativa de cada um de nós.

Minha vivência musical começou muito cedo, como um dos milhares de garotos judeus presumidamente herdeiros de Jascha Heifetz. Do violino aos cinco anos até o violoncelo de agora, passando pelo canto, fui adquirindo razoáveis conhecimentos de teoria musical, história da música etc. Já faz um tempo, porém, que tenho incrementado em mim uma cisão saudável entre o meu ser conhecedor e o meu ser principiante. Venho me dedicando a deixar-me tomar pela música com o mínimo possível de mediações. Me permito ouvir como se fosse a primeira vez, me permito não comparar com outras interpretações, não lembrar quem é o autor, desconhecer o nome do intérprete, não classificar. Em suma, procuro abrir os canais que deságuam no oceano de sentimentos para ouvir a música que ali ressoa ao sabor das ondas, ventos, tempestades e calmarias. Quando consigo, sinto que essa música não tem nomes nem categorias, não tem dono nem exclusividade; ela é de todos nós inclusive minha, uma criação da humanidade; a música de Bach também é minha por direito de ser humano comum que sou. Estou certo que minha vida seria bem mais pobre se ela não existisse, mas felizmente, assim como o sol, sua inexistência para mim é impensável.

Voltando à minha dúvida inicial, se a palavra escrita transmitiria ao leitor o calor da palavra falada de Almeida Prado, ocorreu-me uma conciliação através da música: sugiro ao leitor que coloque como fundo musical de sua leitura da entrevista de Almeida Prado, o cd Microcosmos sonoros, contendo várias de suas belas composições para piano, interpretadas lindamente por Maria Thereza Russo. Experimentem.

Pós-escrito: Eis algumas definições extraídas do livro Fundamentos de um novo pensar musical, de H. J. Koellreutter – pequena homenagem póstuma:

Música: Arte que se serve de um sistema de signos sonoros, ou seja, linguagem como meio de expressão.

Tonalidade: Princípio de estruturação musical que relaciona os signos musicais com um centro de convergência denominado tônica.

Atonalidade (alfa privativo): Princípio de estruturação musical que transcende o da tonalidade, ou seja, que integra o princípio tonal em uma ordem sintática mais ampla.

Aconsciente (alfa privativo): Princípio de estruturação lógica que transcende a do consciente, ou seja, que integra a lógica consciente em uma ordem sintática mais ampla [paráfrase minha].

Serialismo: Técnica de estruturação musical; maneira de estruturar a composição baseando-se na ordenação serial de um ou mais parâmetros musicais utilizados na obra.

Música silenciosa: A música que não desvia a atenção do ouvinte da vivência daquilo que não soa.

 

 

Endereço para correspondência
Ignacio Gerber
Av. Brig. Faria Lima, 2121/64 – Jd. Paulista
01451-925 – São Paulo – SP
E-mail: ignaciogerber@terra.com.br

 

 

* Membro efetivo e professor assistente da SBPSP.

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