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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Amor primitivo, amor verdadeiro

 

Amor primitivo, amor verdadero

 

Primitive love, true love

 

 

Alda Regina Dorneles Oliveira*

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inspirada nas idéias de Bion a respeito do ser – a realidade última, algo que não é um fenômeno mental e que o autor representa na escrita pelo símbolo O –, a autora propõe que, no início da vida, os seres humanos são amor e no desenrolar do ciclo vital poderão desenvolver a capacidade de amar. Reflete sobre essa capacidade, bem como sobre aquelas de depender e de perder, observando duas formas básicas de amar e denominando-as respectivamente forma primitiva e forma verdadeira. Discute essas duas modalidades e a capacidade de amar em suas origens valendo-se das concepções teóricas de Bion, Meltzer e Winnicott. O tema é ilustrado com os filmes Sylvia: Paixão além das palavras, de Christine Jeffs, e Mar adentro, de Alejandro Amenábar. A autora estabelece ainda uma relação com o trabalho analítico, principalmente em seu término, quando analista e paciente necessitam elaborar o encerramento dos encontros reais, e finaliza citando um diálogo sobre o amor entre Rosemery e P. A., personagens criados por Bion em Memórias del futuro: El pasado hecho presente.

Palavras-chave: Formas de amar; Amor primitivo; Amor verdadeiro; Capacidade de amar; Processo analítico.


RESUMEN

Inspirada en las ideas de Bion con respecto al ser – la realidad última, algo que no es un fenómeno mental y que el autor representa en la escritura por el símbolo O –, la autora propone que, en el principio de la vida, los seres humanos son amor, y al transcurrir el ciclo vital podrán desarrollar la capacidad de amar. Reflexiona sobre esta capacidad, así como sobre aquellas de depender y de perder, observando dos formas básicas de amar, denominándolas respectivamente forma primitiva y forma verdadera. Discute estas dos modalidades y la capacidad de amar en sus orígenes valiéndose de las concepciones teóricas de Bion, Meltzer e Winnicott. El tema es ilustrado con las películas Sylvia: Pasión más allá de las palabras, de Christine Jeffs, y Mar adentro, de Alejandro Amenábar. Finalmente, la autora establece una relación con el trabajo analítico, principalmente a su término, cuando analista y paciente necesitan elaborar el cierre de los encuentros reales, y concluye citando a un diálogo sobre el amor entre Rosemery y P.A., personajes creados por Bion en Memórias del futuro: El pasado hecho presente.

Palabras claves: Formas de amar; Amor primitivo; Amor verdadero; Capacidad de amar; Proceso psicoanalítico.


ABSTRACT

Inspired on Bion’s ideas regarding the being – the ultimate reality, as something which is not a mental phenomenon and which Bion represents in written form by the symbol O –,the author proposes that in the beginning of life human beings are love, and along their vital cycle, they may develop the capacity of loving. She reflects on that capacity, as well on those about depending and losing, observing two basic ways of loving, calling them primitive and true ways of loving, respectively. She presents the theme discussing both ways and the capacity of loving in its origins, using the theoretical conceptions of Bion, Meltzer e Winnicott. The theme is illustrated by the films Sylvia, by Christine Jeffs, and The Sea Inside, by Alejandro Amenábar. Finally, the author establishes a parallel with the analytical work, especially by the end of it, when analyst and patient need to elaborate the closure of the real encounters, and she ends up quoting a dialogue of love between Rosemary and P.A., characters created by Bion in A Memoir of the Future 2: The Past Presented.

Keywords: Ways of loving; Primitive love; True love; Loving capacity; Analytical process.


 

 

Introdução

Neste trabalho pretendo apresentar algumas observações e reflexões a respeito da capacidade de amar, de depender e de perder no desenrolar do ciclo vital, constituindo-se no que chamo formas de amar. Destaco duas formas básicas através das quais vejo o ser humano aproximar-se do outro: com capacidade de amar de forma primitiva e com capacidade de amar verdadeira, sem pretender com isso excluir outras formas descritas por outros autores. O termo “verdadeiro” aqui significa que, para o self, o outro existe de verdade, com necessidades próprias, e é reconhecido, respeitado, considerado.

Inspirei-me em Bion (1970/1974) e suas idéias a respeito do ser – a realidade última ou essencial, infinito, verdade última, o incognoscível, divindade, algo que não é um fenômeno mental e que o autor representa na escrita pelo símbolo O –, por ele introduzida em Transformações (1965/2001) e mantidas ao longo de sua obra, ao pensar que no início da vida somos amor. Meltzer (1988/1995), ao tratar do conflito estético, descreve com que força a beleza, no encontro do bebê com a mãe, contido pelo pai, estimula sua nascente capacidade de amar. A visão de Winnicott (1945/2000a) sobre o amor primitivo ajudou-me a compreender que, no início, a capacidade de amar somente pode ser primitiva; a reação possível da mente/corpo incipientes do bebê frente ao sentimento de amor, com o cortejo de intensas emoções que desencadeia, não pode ser senão primitiva.

Inicialmente apresento o tema através de comentários sobre a capacidade de amar, depender e perder. Esses comentários, embora já se constituam em frutos gerados do contato com as idéias de autores que vou citando – Bion, Meltzer, Winnicott – e de muitos outros não explicitados, visa pontuar o tema com uma visão pessoal. A seguir, procuro especificar o que penso ser amor primitivo e amor verdadeiro, estabelecendo as características que os diferenciam e o possível funcionamento que move cada forma. Da mesma maneira, tento investigar as origens do amor e, ao final, estabeleço algumas considerações. Ilustro o tema com personagens dos filmes Sylvia: Paixão além das palavras, de Christine Jeffs (2003), e Mar adentro, de Alejandro Amenábar (2004).

 

Apresentação do tema

Parto do princípio de que, ao nascer, o ser humano é amor. Ainda pobre em representações mentais, somente existe. Além de amor, ele é agressividade. Mas ainda não ama nem odeia. Se nessa fase do desenvolvimento perder a agressividade, segundo Winnicott (1950-55/2000b), haverá perda na capacidade de amar. Ele é a semente humana; depende absolutamente das condições do meio para sobreviver e, por isso, não está capacitado a perder. O desabrochar das próprias capacidades – entre outras tantas, a de amar –, para que possa dar conta de quem ele é, resultará de um complexo processo físico e mental.

A construção gradual do psiquismo começa em algum momento já na vida intra-uterina. Após o nascimento, o conjunto mente/corpo se expressa aos nossos olhos basicamente através do corpo, destacando-se a participação da musculatura. Aparentemente a sensibilidade mais desenvolvida nesse momento inicial da vida é aquela dos órgãos dos sentidos; outras formas – sentimentos – que requerem representações com significados, não conseguimos ainda avaliar se já estão desenvolvidas. Porém, a força do potencial que ali está, o alto grau de condensação daquele pequeno ser, nos causa um profundo impacto. Sua capacidade de relacionar-se, posta em funcionamento imediatamente, desenvolve-se a cada instante. Isso tudo se dá na interação do bebê com o meio ambiente, de início a mãe – cuidador principal. Esta, com sua capacidade afetiva, é quem poderá captar as proto-emoções do seu bebê, bem como investi-lo com seu afeto, com sua vida emocional.

Ela pode carregar, por assim dizer; fazer pulsar o potencial inato, despertar a semente. E, o que julgo fundamental, o bebê humano tem potencial para pegar o modelo, apreender como se faz isso ao longo de repetidas experiências de interação e, assim, desenvolver seu psiquismo. A mãe pode fazer isso com seu bebê porque um dia sua mãe o fez com ela. Esse é um modelo que possibilita aos pais compartilharem com o filho a sua vida emocional, permitindo que apreenda os sentimentos (Bion, 1962/1997). É uma aprendizagem cognitivo-afetiva, que se estabelece durante e por meio desta primeira relação interpessoal. Após sua instalação, ele estará disponível para funcionar ao longo da vida. Também a forma predominante desta relação interpessoal, que será depois marca singular de cada pessoa, vai se estabelecendo nesse início e revelará no futuro a capacidade de lidar tanto com as frustrações quanto com as realizações. Este complexo desenvolvimento do psiquismo, portanto, se constrói na identificação do bebê com o que ele capta da forma de amar da mãe.

O sofrimento daqueles que procuram tratamento com freqüência está ligado aberta ou veladamente ao amor. A perda de um amor ou dificuldades em tolerar o sofrimento decorrente das frustrações das expectativas em um relacionamento amoroso no qual haja uma dependência exagerada, por exemplo, costumam motivar a busca de um tratamento.

A perda de um amor é um esvaziamento. Assim, quando os encontramos, os pacientes costumam estar estagnados, queixosos, almejando reaver o que perderam ou buscando uma compensação. Mesmo quando a perda já é admitida, geralmente ainda não há questionamento a respeito do que pode estar se passando com a própria capacidade de amar. Observo que descobrir-se nesse sentido tem aberto para alguns pacientes um acesso mais livre às suas emoções e sentimentos, ampliando-lhes as possibilidades de influir sobre eles, refletindo-se em seus relacionamentos.

Tolerar a dependência, mesmo uma dependência natural, é uma capacidade que o ser humano pode alcançar somente com o desenvolvimento dos sentimentos – experiências emocionais com significado. No início da vida mental, a vivência da necessidade, da falta, do não ter, por si só gera dor psíquica no rudimento mente/corpo. Esse sofrimento aciona a busca de atendimento pelo outro, despertando-lhe, entre outros sentimentos, amor que gera cuidados e assim inaugurando as relações interpessoais. Cria-se uma dependência do outro, embora ainda não seja possível ao psiquismo incipiente reconhecê-la, portanto há nele uma ilusão de que não depende.

Nesse momento, em que há um estado de fusão, a perda do amor que interrompa os cuidados pode levar à morte, se for radical, ou levar a uma desilusão precoce que será registrada como perda – uma perda precoce da ilusão de onipotência, que vai demandar defesas narcísicas e marcar a personalidade. Marcará a busca de um amor primitivo, com necessidade de fusão, talvez na tentativa de continuar o processo interrompido.

Salienta-se aqui o componente agressivo, na busca de ser atendido pelo outro a qualquer preço. É uma forma de amar na qual se destaca a intensa dependência. Pode até ser discutível se é uma forma de amar ou mais propriamente de ser amado. Ao contrário, quando não há a perda do amor e cuidados e sim a experiência de sermos correspondidos, o apego se fortalece e vai contribuindo positivamente para o desenvolvimento do potencial inato. O desenvolvimento leva à descoberta de si e do outro com consciência da separação e da dependência. Quando já existe esse funcionamento mental e ocorre uma ruptura do vínculo amoroso, essa perda precipitará uma outra dor psíquica, diferente da anterior: é uma perda real que envolve os dois mundos, porque houve o reconhecimento da participação efetiva do externo. Quando chegam ao nosso consultório, os pacientes se debatem, envolvidos em algum nível nessas redes – as de seu mundo interno e as das relações interpessoais.

No decorrer da existência, à medida que vai sofrendo experiências e desenvolvendo capacidades, o ser humano poderá desenvolver e agregar outras formas de depender, de amar e de perder e sofrerá uma transformação no seu todo, mantendo, porém, a forma inicial.

 

O amor primitivo

“Meu predador das trevas, um dia ele causará minha morte…”, escreveu Sylvia Plath quando se apaixonou por Ted Hughes, em Cambridge, em 1956, época de grande crise econômica. Ela é uma jovem poetisa norte-americana; ele também um jovem poeta que acabou de lançar um livro. A paixão é recíproca e os leva ao casamento. Residem os primeiros tempos nos Estados Unidos, onde Ted é advertido pela sogra da frágil saúde mental da esposa, ao contar-lhe um episódio de sua infância: Sylvia escondeu-se no porão da casa e ali permaneceu sem fazer um ruído sequer, durante alguns dias, após a morte do pai. “Não queria ser encontrada”, disse-lhe. “Tem pessoas que querem ser encontradas, Sylvia não…” Vai se desdobrando a história da vida dessa jovem sensível tendo como centro sua forma de amar. Conta ao marido que era feliz até os nove anos, período coincidente com a morte de seu pai; desde então vive em luto. Podemos perceber como se agarrou a Ted, desenvolvendo intensa dependência. Dedica-se aos cuidados da casa, leciona para que possam sobreviver e não consegue escrever por longo período.

Por volta de 1960, já de volta a Londres, eles têm um grande desentendimento motivado pela depressão e ciúmes paranóides que Sylvia desenvolvera. Na reconciliação, diz ao marido: “Nunca me deixe…” com a gravidade de uma ameaça. Nasce seu primeiro filho, uma menina. Aos cuidados com a casa e o lecionar, soma-se o cuidar da menina. Consegue publicar seu livro The Colossus, que recebe críticas desfavoráveis e a deixa mais ferida em sua auto-estima. As brigas do casal se repetem e os reencontros são também carregados de emoção. Ela se torna gradativamente mais perturbada; a inveja do sucesso profissional do marido e os ciúmes coincidem ou contribuem para sua dificuldade em escrever e a transformam, fazendo aparecer outra Sylvia pela dissociação. Sua percepção tem base nas reais traições do marido que são negadas por ele.

Certo dia em que o marido chega em casa depois de ter estado com outra mulher, ela lhe diz: “A verdade vem até mim; a verdade me ama”, demonstrando sua capacidade de se identificar projetivamente com ele. Divorciam-se. Sylvia recomeça a escrever e produz muito nos últimos meses de vida, dizendo sentir-se livre. Percebemos a riqueza do seu mundo interno e também a autodestrutividade em constante ronda. Parece que uma grande capacidade de amar permaneceu enclausurada, um potencial a ser libertado, a escoar através das frestas sob forma de poemas densos, cheios de dor e agressividade. Após esse período, novamente torna-se deprimida e suicida-se em 1963, aos trinta anos: “Sinto que eu não sou sólida, sou oca, o negativo de uma pessoa, não há nada por trás, só escuridão e silêncio…”, descreveu-se, mostrando-se esvaziada com as perdas e a grande dependência do marido.

Essa síntese revela o amor existente entre Sylvia e Ted, sua força, possessividade, sinceridade, talvez ingenuidade, beirando o que, para nós, é uma patologia. A forma de amar primitiva tem seu espaço no desenvolvimento normal do ser humano, diz Winnicott (1945/2000a), somente nos estágios iniciais do desenvolvimento psíquico, quando ainda não há preocupação com as conseqüências dos atos. Para ele, depois da fase do concern (concernimento), equivalente à posição depressiva, somente é possível viver essa forma de amor utilizando-se do mecanismo de dissociação. Observando-a no limite entre a saúde e a doença, como neste exemplo, nosso olhar fica mais aguçado e capta-lhe melhor as diferenças.

 

A capacidade de amar em suas origens

Quando Meltzer (1988/1995) agrega ao conhecimento psicanalítico a dimensão estética aos investimentos primários, descreve com poesia o encontro do bebê com sua mãe e o amor que brota na interação. Considero essa uma excelente descrição clínica da origem da capacidade de amar. Fala-nos de uma mãe que, embora comum, é sentida pelo bebê como um objeto complexo, mobilizando-o tanto no nível sensorial quanto infra-sensorial. Ao ver o lindo e comum exterior da mãe, o bebê é, ao mesmo tempo, bombardeado por mensagens com intensa carga passional e complexidade, principalmente através do olhar e do funcionamento dos mamilos que experimenta ao sugar. Intui que há algo lá dentro, porém com significados que não pode compreender, porque não pode ver com clareza, só indiretamente: as emoções “passam como sombras de nuvens sobre a paisagem” (Meltzer, 1988/1995, p. 44).

Considero fundamental quando Meltzer salienta que, no mesmo instante em que se conhece a beleza desse objeto, percebe-se a possibilidade de sua destruição. Portanto o impacto da plenitude do amor e da dor pela possibilidade de seu desaparecimento permanecerá como um enigma a ser resolvido.

Penso que, na aproximação dos seres mãe e bebê em estado de emoção pura, despidos de suas defesas, cada qual o mais próximo possível de O, ativa-se a sensibilidade estética. Porque acredito que, especialmente, essa sensibilidade se manifeste no contato com a verdade, mesmo que nosso contato com ela seja sempre parcial. São momentos de verdade máxima, difíceis de suportar. Efêmeros, porém essenciais para o desenvolvimento da vida emocional. Encontros que vamos repetindo ao longo da vida nos relacionamentos íntimos.

Em termos de metapsicologia, tomo as primorosas idéias de Bion (1962/1997). Para ele, a construção e desenvolvimento da mente se fazem a partir da experiência emocional, que no seu todo é cognitivo-afetiva. Segundo escreve Rezende (2000), para Bion tudo começa com os cinco sentidos reunidos em funcionamento experimentando algo, sendo coordenados por um sentido interno chamado sinestesia, já com participação do cérebro, produzindo os elementos alfa, que ainda são objetos sensoriais. Estes, por sua vez, são elaborados pelo processo que Bion (1992/2000) denomina trabalho de sonho alfa, continuado pela rêverie, quando esse conteúdo sensorial se impregna de afeto, de significado, construindo-se assim os primeiros objetos psíquicos, os pensamentos oníricos. Parecem elos que, encadeados, construirão os mitos e daí todos os demais pensamentos que formarão as pré-concepções e, estas, as concepções e, estas, os conceitos. Nessa evolução vão se formando pensamentos cada vez mais precisos, com o significado cada vez mais condensado até o cálculo algébrico, última categoria incluída por Bion (1963/2000) na grade.

Essa experiência emocional é o reflexo, a tradução possível do cruzamento da mente humana (neste caso a do bebê) com a realidade última, O (neste caso a mãe com seus sentimentos) e poderá evoluir, conforme a grade, fazendo esse caminho em direção à formação de conceito (Bion, 1965/2001). Alcançado este conceito, estará preenchido pela intuição – quer dizer, estará carregando o significado.

Compreendo intuição como Rezende (2000), quando escreve que a palavra significa “Estou percebendo o que está presente”, estabelecendo sua diferença com alucinação. E, mais adiante acrescenta: “[…] embora reste ainda dizer quais as formas dessa presença [da realidade última]” (p. 55). Quando Bion (1965/2001, 1970/1974) nos conduz à noção de realidade essencial, não estamos mais naquilo que é o inconsciente freudiano – a realidade psíquica. Nesse ponto, uma mudança de vértice nos possibilita uma abertura ao infinito, à realidade última (Rezende, 1994).

Inicialmente a mãe faz o trabalho de dar significados pelo bebê, o qual depende totalmente dela. Embora o bebê bioniano nasça com pré-concepções em sua mente, parece-me que ainda não é capaz de exercer sozinho a tarefa de simbolização. Depois esse modelo de funcionamento (rêverie) é introjetado da relação com a mãe e o bebê identifica-se com ele. A rêverie

é aquele estado anímico que está aberto à recepção de qualquer “objeto” do objeto amado e é, portanto, capaz de receber as identificações projetivas do lactante, que sejam sentidas pelo lactante como boas ou más […] é fator da função alfa da mãe (Bion, 1962/1997, p. 74).

Mais tarde, quando esse acontecimento de interação do self com seus objetos internos funciona satisfatoriamente, vai provocando a expansão da mente, sempre mais e mais a desenvolver e armazenar significados. Para que possa prescindir da mãe, o bebê precisa tê-la introjetado, para isso precisa ter aceitado perdê-la, o que me lembra o poeta Mário Quintana (1961) quando escreve: “Só é nosso o que está perdido para sempre” (p. 130). Este nível de funcionamento envolve várias capacidades: agressividade para efetuar a separação, suportar a inveja e os apelos do amor primitivo, buscar a aproximação, a troca, sentir gratidão e amor verdadeiro. Aqui, nesse circuito, foi dado um grande passo.

Quando a experiência emocional não consegue ingressar num continente – e isso também ocorre comumente –, não entrará na mente nesses termos antes mencionados e não chegará a pensamento e conceito com intuição; permanecerá como carga emocional, elementos beta, coisa-em-si. A fracassada busca de ingresso de uma experiência emocional num continente pode aumentar a necessidade deste, a sua dependência, e assim promover uma relação amorosa que permanece primitiva. A identificação projetiva vai aumentar sua força, talvez fazer-se intrusiva, lembrando as idéias de Meltzer (1992/1994) sobre a formação do claustro, denominação que dá ao continente quando alvo da identificação projetiva intrusiva. O continente, que nesse caso não funcionou para simbolizar o conteúdo da experiência emocional e assim devolvê-lo, será reintrojetado, compondo um conteúdo que é um conjunto destruído e destrutivo – destroços de continente/conteúdo.

Acredito que esse continente destroçado e com funcionamento alterado passa a ser o alvo do amor primitivo na patologia. Essa relação destrutiva estabelecida e mantida é o modelo do que seja amar e ser amado neste caso. Sigo pensando que essa relação, considerando o conjunto dos vínculos, ocorre sob a égide de -L, -H e -K e não é amor – é destruição. Se eu dissesse que é amor, estaria fazendo uma falsa relação com O. Essa falsa relação, esse engano é que é mantido na patologia. Concluo que, quando a forma de amar primitiva predomina após o período em que é natural, contrariando o desenvolvimento, sugere a permanência desse aspecto da mente num claustro (Meltzer, 1992/1994).

Portanto, sustentando a capacidade primitiva de amar, estarão os processos de identificação projetiva utilizados na construção das defesas narcísicas. Não podendo suportar o impacto do sentimento de amor com seu cortejo de intensas emoções, no qual se inclui a noção de que eu não tenho e dependo do outro que tem, torna-se necessário aliviar a mente utilizando esse nível de defesas. Identificação projetiva foi a expressão cunhada por Melanie Klein (1946/1982) para especificar um conjunto de processos da identificação nos quais o ódio para com aspectos do eu dirige-se à mãe com o objetivo de causar-lhe dano e controlá-la, constituindo o protótipo de uma relação objetal agressiva. Aqui a dependência é intensa e não se abre possibilidade para perdas.

Por outro lado, para que se sustente um amor verdadeiro, a capacidade de identificação introjetiva precisa ter sido alcançada. De acordo com as idéias de Meltzer (1978/1997) a respeito de identificação introjetiva, quando o self se equipa com as qualidades boas dos objetos internos, estes estão livres, podem ir e vir à vontade, servindo sempre mais como fonte de inspiração e identificação. Aqui a dependência é relativa e a perda aceita e recompensada pela introjeção.

Grotstein (2000), interpretando Bion, observa formas diferentes de o sujeito apreender o objeto em sua mente. Em um sistema (equivalente à posição esquizo-paranóide), o objeto está na mente do sujeito sob forma icônica – sob forma de imagem – que é o modo de registro feito pelos sentidos, o que permite uma fantasia inconsciente concreta, “imag(em)-inação” (p. 470), na qual o sujeito acredita que tem o objeto (quer dizer que, possuindo a imagem e não discriminando o objeto dela, tem o objeto). Em outro sistema (posição depressiva),

[…] a técnica icônica é suplantada pela indéxica ou simbólica, na qual o sujeito, agora separado do objeto, pode permitir que o objeto vá embora e pode ser capaz de evocar sua imagem simbólica internamente na ausência do objeto (Grotstein, 2000, p. 470).

Sua idéia parece-me combinar com as formas de amor primitivo e verdadeiro. Conforme o conhecimento a partir de Melanie Klein (1946/1982), para quem o desenvolvimento se dá em fases, haveria no início da vida mental uma sucessão das etapas na ordem de PS para PD; considerando a formulação de Meltzer (1988/1995) no que diz respeito ao conflito estético, a ordem seria PD para PS. Segundo minha interpretação do autor, a vida começaria estimulando também a capacidade de amar; não somente a necessidade de receber amor. Se esta se constitui em condições de corresponder, desencadeia-se o desenvolvimento normal; caso contrário, inicia-se a patologia.

Bion desenvolve as idéias de Klein concebendo a mente sempre em oscilação entre PS e PD. Neste seu modelo, a mente consegue desprender-se partindo para além da imagem em ação, além mesmo dos sentidos, quando acrescida da intuição, os olhos que vêem com amplitude e antecipação. Melhor equipado, o aparelho psíquico poderá captar experiências emocionais mais próximas da realidade última, ultrapassando o domínio da realidade psíquica (Bion, 1970/1974; Rezende, 1994). Para este autor, a realidade última ou essencial é o próprio desconhecido, porém penso que, no momento em que ele nos leva – psicanalistas e psicanálise – pelo menos a esta sua concepção, já nos ajudou a dar mais um passo, afastando um pouco mais o desconhecido. Esse continuará sendo sempre o lugar de onde vem a criatividade; nós somente conseguimos avançar nosso conhecimento consciente em mais uma Parada na viagem rumo ao infinito. Como escreve Christlieb (1994), estamos no “último milímetro do mundo” (p. 30) conhecido; caso avancemos, estaremos perdidos até que consigamos conhecer uma nova Parada.

Considerando a tarefa de desenvolver o mundo interno a partir do nascimento, quando somos amor, até a aquisição da capacidade de amar, quando somos amor e capazes de amar, percorremos uma longa jornada. Evoluímos? Tornamo-nos melhores do que antes? Tendo desenvolvido capacidade de gerar amor, podemos agora fabricá-lo e assim aumentar sua quantidade na realidade última? Quiçá seria essa uma importante participação nossa como seres humanos?

Do contato com a obra de Bion, autor sintonizado com psicanálise e filosofia, tão sensível, capaz de escrever o que lhe ocorre sem compromisso com idéias vigentes que lhe obturem o pensamento, investigando-se profundamente, ficou-me uma espécie de alerta quanto a um possível processo evolutivo que talvez ocorra periodicamente na História em movimentos de vai-e-vem, feito culturalmente pelo homem e no homem.

Nesse processo evolutivo a que me refiro, penso que vivemos hoje um momento em que o homem veio conhecendo de O para K, até chegar ao momento atual, no qual K se desprendeu de O. Quero dizer que, depois de alcançado o significado, depois de concretizada uma descoberta que surgiu de uma fonte original, esta deixa de ser considerada, e o conhecimento (K) gerado passa a ser usado desconsiderando e atacando a fonte geradora. Como filhos que nasceram da relação de um casal e depois desfazem, anulam, atacam justamente essa relação que os gerou. Como um bebê que, tendo nascido com a pré-concepção edípica, depois tentasse negá-la. A idéia, K, foi usada para negar a verdade, sendo representada então pelo símbolo -K, na linguagem usada por Bion (1963/2000) na grade, coluna 2.

Assim sendo, no momento há no mundo um patrimônio de conhecimento altamente valorizado e disputado. Ele se reflete na excepcional tecnologia aplicada a todas as instâncias da vida que passou a valer mais do que o ser humano seu criador e o ameaça como um robô que adquiriu vida própria. Sem nada mais a ver com a essência do humano que o gerou – a capacidade de simbolização gerada na rêverie, que nasce no encontro amoroso das mentes –, dirige-se a outros interesses. Assim, esse conhecimento robotizado não é mais sensível às delicadas e singulares necessidades emocionais humanas. E vejo aí uma mensagem de alerta para que se retome a possibilidade do caminho de volta para O – não para voltar ao começo pura e simplesmente, mas para permanecermos num processo de O??K, que se traduz como a fonte geradora de autêntica criatividade e do amor verdadeiro.

 

O amor verdadeiro

“Olhe… a pessoa que realmente me ama será aquela que me ajudará a morrer. Isso é me amar, Rosa. Isso é me amar”, disse Ramón a Rosa no filme Mar adentro, de Alejandro Amenábar (2004). Ramón, em sua juventude, ao se jogar ao mar de um penhasco, sofrera uma lesão na medula e ficara tetraplégico, confinado ao leito durante vinte e oito anos. Embora fosse uma pessoa com rica vida afetiva, buscava na justiça seu direito a não mais viver na condição em que se encontrava, a pôr um fim em sua vida. Como não podia matar-se por si só, tinha amigos que, ao administrar-lhe cada um uma dose de cianureto de potássio, não seriam acusados de homicidas. Faltava uma pessoa, contudo. É quando Rosa entra na história.

Tendo tomado conhecimento da existência e situação de Ramón através da televisão, Rosa vai conhecê-lo. Encanta-se com ele, apaixona-se e, nesta forma de amar (primitiva), o quer para si e não concorda em participar de sua morte quando ele solicita seu auxílio. Ao longo desse filme comovente, Rosa vai se modificando, porém. Em Coruña, enquanto ela o conduz em sua cadeira de rodas em um parque, após o julgamento de sua causa, quando fora negado seu pedido de direito à eutanásia, eles mantêm um diálogo.

Rosa lhe diz que o ama e ele sorri ironicamente, duvidando. Ela continua, dizendo que não estranha sua reação, porque está acostumada a ser tratada assim pelos homens. Ramón se desculpa. Rosa prossegue: “Ninguém pode se apaixonar por um tetraplégico? É algo tão estranho?” A importância do assunto vai crescendo e ele acrescenta: “Bem, é melhor esclarecermos algumas coisas. Ainda mais se falamos de algo tão complexo como é o amor”. Rosa se espanta: “Complexo?” “Sim, complexo”, responde Ramón, “por mais que você me diga agora que me ama, eu não posso ter certeza se é amor de verdade ou fantasia sobre o homem com quem sonhou, mas nunca encontrou. Ou não durou”. Novamente ela se choca: “Do que está falando? Não me confunda. Ou ama ou não ama. Não é possível racionalizar o amor”. E o diálogo continua, ambos revelando-se mutuamente a partir do que sentem e vivem. As diferenças se fazem mais e mais nítidas. Ramón lhe pede:

Não aumente minha responsabilidade, Rosa. Você chama isso de amor? Prender-me contra minha vontade? Olhe, a pessoa que realmente me ama será aquela que me ajudará a morrer. Isso é me amar, Rosa. Isso é me amar.

Mais adiante, ambos já em sua rotina de vida, há um outro diálogo entre eles, também desenvolvido com igual sensibilidade pelos atores. A cena se passa no quarto de Ramón, ele em seu leito. Além da janela cai uma chuva forte e Rosa tem os cabelos molhados. Fala e percebemos que mudou, está tentando que ele lhe confirme seu desejo e intenção de morrer, disposta a ajudá-lo, já que esse direito lhe foi negado pela lei. Porém ele ainda não se deu conta e pergunta-lhe: “É isso que a preocupa? Que eu faça o que quero? Mas não se preocupe. Você será a última pessoa a saber”. Ela caminha até a cadeira a sua frente enquanto se olham e todo o seu corpo expressa o que diz:

Ramón, é que finalmente me dei conta. Sabe, entendi o que me disseste em Coruña: “A pessoa que realmente me amar me ajudará a morrer”. Eu tenho certeza do que sinto, Ramón. Eu amo você. Quer que o ajude?

A relação desenvolvida entre eles permite-lhe a transformação de seu amor possessivo inicial e ela pode, por fim, ajudá-lo a morrer.

Para haver um desenvolvimento emocional razoavelmente pleno, não há necessidade de ser esta – a verdadeira – a única forma de amar, mas é necessário que tenha sido alcançada e que predomine. Não é necessário teorizarmos que o amor primitivo sofreu uma transformação; podemos teorizar que havia um verdadeiro que evoluiu enquanto o primitivo ali permanecia.

Em termos de conflito edípico, seria possível dizer que, ao ser alcançada a capacidade de amar, este estará satisfatoriamente solucionado e a posição depressiva terá sido alcançada. Porém, nesse amor que chamo de verdadeiro, é necessário que o outro exista verdadeiramente. Conforme já escrevi, o termo “verdadeiro” aqui significa que, para o self, o outro existe de verdade, com necessidades próprias, reconhecido e considerado. Com Melanie Klein (1946/1982), aprendemos que o objeto somente bom e amado é parcial, é idealizado (embora a emoção ligada a ele seja intensa e total), bem como o somente mau; o objeto total tanto é amado quanto odiado, numa harmonia que relaciono ao amor verdadeiro. Seguindo Bion (1962/1997), penso que, em termos de vínculos, +L, +H e +K estão presentes no amor verdadeiro; nele a mente se voltará para a realidade última com encantamento e preocupação.

Trago novamente a imagem do bebê cheio de vida ao nascer, sendo amor verdadeiro. Ele não pode se conter; precisa que a mãe testemunhe tudo o que ele é e que vá lhe contando aos pouquinhos. O vértice F, de fé, trazido por Bion (1970/1974) para a psicanálise, permite-nos abarcar, via intuição, esse campo que se estende além dos sentidos. A mãe vê o bebê também com seu equipamento intuitivo. O autor parte de Freud, que escreveu sobre tornar-se artificialmente cego para poder ver melhor o que é exclusivamente psíquico. Ao excluir ao máximo a memória e os desejos, Bion (1970/1974) nos conduz ao vértice que permite captar esses aspectos que são (O) e me permitem dizer que um bebê é amor. Suas necessidades físicas e mentais imediatamente se mostram ao ambiente onde está sua mãe (cuidador principal), que vai corresponder a elas. Começará então a se desenvolver agora, propriamente, a capacidade de amar. Iniciamos amando de forma primitiva e continuamos a expandir mais ou menos essa capacidade, assim descobrindo e desenvolvendo a forma verdadeira.

Havia em Rosa a capacidade de amar verdadeira, que evoluiu no sentido dado por Bion em Atenção e interpretação: algo aflorou de seu interior e revelou-se ante seus olhos, trazendo-lhe nesse movimento toda a beleza de um nascimento. Esse sentimento inconsciente evoluiu até que suas qualidades secundárias foram captadas pelos sentidos e tornou-se conhecido através delas (transformações em K). Quando Rosa comunica a Ramón o que descobriu dentro de si, a emoção nos invade, em comunhão com o que se passa no filme – o aflorar do verdadeiro amor – que permite agora a Rosa estar acompanhada dentro de si mesma e aceitar que a vida de Ramón possa cessar. Ele é, no filme, um ser humano amoroso que a desperta; ela estava quase pronta e o recebe. Semelhante às transmissões que as mães fazem aos filhos e a outras tantas. Momentos inesquecíveis da vida, nos quais se salta a outro patamar. Ramón podia partir, havia terminado. Despedindo-se, diz a ela: “Não esqueça de uma coisa: vou estar em seus sonhos. Obrigado, Rosa, de todo o coração, obrigado.” Continuava-se de certa forma em Rosa, nesse ciclo sem fim.

 

Considerações finais

Ao pensar em formas de amor, capacidade de amar e sentimentos de amor primitivo/verdadeiro, utilizo a noção de vértices ou perspectivas e cesura. Um vértice aparece, outro desaparece e vice-versa. Bion (1965/2001) usa o termo “vértice” como contraponto mental dos sentidos, observando que o prefere a “ponto de vista”, pois este está comprometido com o sentido da visão.

Denomino verdadeiro ao amor estabelecido na relação com algo existente fora do self, relativamente independente deste. Denomino primitivo ao amor relacionado a algo que é uma posse do self, indiscriminado deste, ao com memória e desejo, ao registro feito pelos sentidos (Grotstein, 2000). Penso que passamos de um estado mental a outro sem perder a continuidade. Talvez não ocorra a transformação de um estado mental em outro, mas estar no primitivo e logo estar no verdadeiro, podendo a qualquer momento mudar novamente de estado dependendo do grau de estabilidade da personalidade. Por isso o pensamento psicanalítico bioniano a respeito do que seja estarmos em diferentes vértices ou perspectivas, juntamente com a noção de cesura, que implica continuidade (Bion, 1977/1982). O que é coerente com a noção de Winnicott (1945/2000a) de que, após o concern, há uma dissociação a separar amor primitivo de verdadeiro, há uma cesura e uma continuidade separando os vértices.

Em nosso viver finito, quando nos apaixonamos, nós nos situamos naquele momento do amor em que nos sentíamos um com nossa mãe, preenchidos pelo sentimento cósmico do amor infinito. A beleza nos inunda, sua força nos preenche, e talvez por isso cada um de nós queira sempre voltar àquele momento primordial quando não amávamos, mas éramos amor. Porém, quando conseguimos desenvolver a capacidade de amar, passando por longo processo de crescimento de outras tantas capacidades mentais, somos amor e capazes de amar então.

Haverá diferença entre os seres humanos: sermos amor é comum a todos, porém as capacidades de amar diferem muito. Quando capacitados a amar, conseguimos estabelecer relações que geram amor na natureza viva que nos cerca. Como esses sentimentos se dão numa relação, torna-se implícito que somos correspondidos de forma suficiente tanto no mundo interno quanto no externo. Penso que, dentro desse estado mental, já não importa especificamente eu ou o outro, mas que o mundo exista em harmonia, mesmo quando não tem a ver diretamente comigo. Até porque, sendo parte das coisas do mundo, estarei indiretamente participando dessa harmonia. No envelhecimento e na aproximação da morte, muito nos ajudará essa capacidade de amar. Tranqüiliza-nos poder pensar que, após a nossa morte, o mundo que amamos continuará a existir. E mesmo pensar que ele é eterno, embora o tempo inexista na eternidade; para pensar assim, teríamos de abandonar o pensamento racional, do limite da física convencional, e entrar no místico. É aqui que Bion tenta ir além, com a noção da diferença entre realidade psíquica e realidade última, ingressando na chamada fase estética ou mística para alguns.

O amor consegue ser simples quando o sentimos e complexo ao tentarmos descrevê-lo. Ele envolve a dependência e a possibilidade da perda. Tanto nos apanha em seus braços fortes e nos carrega rumo ao encantamento, como nos permite o contato com intensos sofrimentos. Sylvia e Rosa nos mostram essa força poderosa em diferentes espaços: presa na fusão self/objeto, primitivamente escravizada, ou livre, fluindo e conectada à realidade última.

No dia-a-dia em nossos consultórios, vivemos a cada instante, com cada paciente, essas formas de amar. Nossa capacidade de analistas é muito solicitada por aqueles que nos procuram, conforme referi, enredados por suas formas de amar nas malhas criadas em seus mundos interno e externo. Considerando somente essas formas de amar, que é o propósito deste trabalho, a forma primitiva será a geradora da necessidade de tratamento. Quando a capacidade de amar estiver suficientemente desenvolvida, dá-se o momento da separação definitiva, se a relação alcançar esse nível evolutivo. À semelhança do que nos mostra o filme – o final do relacionamento real, com a morte de Ramón e a forma como Rosa o recriou dentro de si – quando o paciente não mais compartilhar sua vida com o analista, ali termina a análise. Ambos, analista e paciente, aceitam que o relacionamento não mais existirá na dimensão real de suas vidas. E começa aí o desdobramento num processo interminável.

Porém, no tempo real quando os encontros se sucedem, há o derradeiro momento, com as últimas palavras e o último olhar. Depois, o que foi vivido nessa dimensão externa desprende-se e retorna ao interno – lugar de onde aflorara sob forma de ilusões –, carregando a realização, riqueza real conquistada nesse percurso. Muitas viagens dessas geram uma bagagem grande de amor. Quando partes nossas mergulham em outra dimensão, desaparecem para os nossos sentidos. Em nossa existência real, há o que pode ser captado pelos sentidos. E isso que veio e se foi? Isso se foi, desapareceu, deixando sua marca na palavra mistério (inconsciente?).

Acredito que, nos momentos mais analíticos de uma relação analítica, estamos debruçados nas margens do desconhecido, na realidade última, trazendo significados para a realidade psíquica. Esse é o trabalho por excelência da análise, mas não é o único, nem sempre o mais importante em dado momento. Precisamos também cuidar do que já é realidade psíquica e do mundo externo. Mas expandimos a mente somente a cada vez que a ela aportamos significados formados a partir da experiência emocional com o desconhecido (Bion, 1962/1997), o mais próximo possível de O.

Para finalizar, um pequeno trecho retirado de Memorias del futuro: El pasado hecho presente (Bion, 1968-1979/1991). Rosemary, mulher ferida e desiludida no amor, questiona P.A., personagem psicanalista, em suas idéias sobre esse sentimento. Através desse diálogo, vemos a diferença que Bion faz entre ser amor, coisa-em-si, “parte do ser”, e “algo que trata sobre o amor”:

Rosemary: Você é um preciosista no uso de um inglês correto. Como você define o amor?

P.A.: Não o defino. A palavra, tal como a ouvi aqui, está conjugada constantemente com várias características, frases, emoções e experiências, mas isso é somente uma parte da atividade verbal. O “amor”, na medida em que está relacionado com o passado, é um espectro de uma memória; e, em relação ao futuro, é uma esperança que molda sua sombra antecipadamente. A “coisa-em-si”…

Rosemary: Sim, eu já sabia que você chegaria a ela…

P. A.: Tenho que te desapontar. Como psicanalista, não posso aspirar a ter sucesso ali onde os Santos, os Filósofos e os Artistas de todo tipo não o tiveram.

Rosemary: Pode tentar…

P.A.: Sei o que quer dizer, mas não é um terreno em que possa se aplicar o esforço. Sei que “não é dado aos mortais dominar o sucesso”, e isso pode ser certo para o Amor; mas este é parte do ser.

Rosemary: Acha que a humanidade o conseguirá algum dia?

P.A.: Não tem nada a ver com o Passado, o Presente ou o Futuro. O “amor” tem existido sempre, existe e existirá. Nem a psicanálise nem os sermões nem a pintura nem a música são o “amor”… São algo que trata “sobre” o amor (p. 452; tradução da autora).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Alda Regina Dorneles Oliveira
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Recebido em 19.4.2007
aceito em 18.9.2007

 

 

* Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPdePA.

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