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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.2 São Paulo June 2009

 

CONGRESSO INTERNACIONAL

 

O infinito e o corpo: notas para uma teoria da genitalidade1

 

El infinito y el cuerpo: notas para una teoría de la genitalidad

 

Infinity and the body: notes for a theory of genitality

 

 

Leopold Nosek2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Depois de uma cirurgia em que extrai o útero, os ovários e as trompas, uma paciente se questiona: para onde vão os produtos do sexo, agora que sua vagina se tornou um “saco de fundo cego”? A pergunta leva o autor a rever o conceito de genitalidade e a propor uma nova articulação entre a singularidade absoluta de cada gesto psicanalítico e a universalidade do que ele chama “anseio metapsicológico”. A argumentação se apoia na noção de infinito pensada por Levinas: o infinito é um peculiar objeto de investigação, pois, se puder ser abarcado por um conceito, deixa de existir. A alteridade radical do inconsciente impõe a analogia: também ele traumatiza seu conceito. Com essa equiparação, a teoria e a clínica psicanalíticas são vinculadas a uma ética derivada não do conhecimento positivo, mas da recepção do outro em seu direito próprio – torno-me refém do infinito, permito que o outro me traumatize. Configura-se aí uma noção de conhecimento em que a ética precede a ontologia. A construção de sentido se dará na conjunção entre a atenção flutuante – essa permanente disposição ao traumatismo – e a associação livre – uma disposição a ser como não se pode ser em nenhum outro lugar. Enquanto busco apreender a alteridade, ela busca ser apreendida por mim e em mim; ela busca em mim o conceito de si. Isso corresponde à realização da ideia de infinito no finito. Podemos chamá-la de desejo – um desejo que se atira no infinito percorrendo o trajeto do trauma, o caminho sem passado, sem memória. A construção de sentido estará aqui sob a égide do genital, o único modo da sexualidade em que o desejo não abarca a alteridade.

Palavras-chave: Clínica; Construção de sentido; Ética; Genitalidade; Infinito; Metapsicologia; Trauma.


RESUMEN

Después de una cirugía en que extrae el útero, los ovarios y las trompas, una paciente se pregunta: para donde van los productos del sexo, ahora que su vagina se transformó en una “bolsa sin fondo”? La pregunta conduce al autor a rever el concepto de genitalidad y a proponer una nueva articulación entre la singularidad absoluta de cada gesto psicoanalítico y la universalidad de lo que el llama “anhelo metapsicológico”. La argumentación se apoya en la noción de infinito pensada por Levinas: el infinito es un peculiar objeto de investigación, pues, si pudiera ser abarcado por un concepto, deja de existir. La alteridad radical del inconsciente impone la analogía: también él traumatiza su concepto. Con esa equiparación, la teoría y la clínica psicoanalíticas son vinculadas a una ética que deriva no del conocimiento positivo, sino de la recepción del otro en su derecho propio – me torno rehén del infinito, permito que el otro me traumatice. Se configura así una noción del conocimiento en que la ética precede a la ontología. La construcción de sentido se dará en la conjunción entre la atención fluctuante – esa permanente disposición al traumatismo – y la asociación libre – una disposición a ser como no se puede ser en ningún otro lugar. Mientras busco aprehender la alteridad, ella busca ser aprehendida por mí y en mí; ella busca en mí el concepto de si. Eso corresponde a la realización de la idea de infinito en lo finito. Podemos – llamarla deseo – un deseo que se tira en el infinito recorriendo el trayecto del trauma, el camino sin pasado, sin memoria. La construcción del sentido estará aquí bajo la égida de lo genital, el único modo de la sexualidad en que el deseo no abarca la alteridad.

Palabras clave: Clínica; Construcción de sentido; Ética; Genitalidad; Infinito; Metapsicología; Trauma.


ABSTRACT

The author reviews the concept of genitality and, equating the unconscious to the infinite as understood by Levinas, attributes to psychoanalysis an ethics derived from reception of the other. Meaning is constructed under the aegis of the genital, the only sexual mode in which desire does not contain otherness.

Keywords: Clinic; Construction of meaning; Ethics; Genitality; Infinite; Metapsychology; Trauma.


 

 

As histórias de marinheiro têm uma singeleza direta, e todo o seu significado cabe numa casca de noz. Mas Marlow não era típico (exceto em seu gosto de contar patranhas), e para ele o significado de um episódio não estava dentro, como um caroço, mas fora, envolvendo o relato que o revelava como o brilho revela um nevoeiro, como um desses halos indistintos que se tornam visíveis pelo clarão espectral do luar.
J. Conrad, O coração das trevas

A ideia de Infinito é apenas a entrada para o abismo do Outro.
M Walter

1. Um anseio metapsicológico

O tema deste congresso – A prática clínica: convergências e divergências – me permite partir do cotidiano de quem tem como ofício a clínica psicanalítica, desse ponto de observação que redefine a cada momento o sentido da nossa teoria comum. Em trinta anos de ofício, deparei com questões que, justamente porque continuam a me pedir respostas, me fazem agradecer esta oportunidade de compartilhá-las.

O tema fundamental que gostaria de discutir me assombra desde sempre: a relação entre a singularidade radical dos elementos que afloram na prática e os necessários universais da teoria. Como articular o individual – a única coisa que existe – e a generalidade – o único lugar onde pode haver ciência? As necessidades cotidianas da clínica fazem a pergunta renascer a todo momento.

Sabemos que cada analista reúne em si uma gama específica de aptidões e impossibilidades. Sabemos que as teorias terão matizes específicos para cada um e que a personalidade constitui um diferencial que dará cor singular não só a cada enquadre teórico, mas também ao desenvolvimento desse enquadre no interior de determinada prática clínica. Sabemos igualmente que cada dupla paciente-analista terá uma história própria, que no interior desse campo construído cada sessão terá um destino único e que no interior desse encontro cada momento, em sua temporalidade vertiginosa, não encontrará repetição ou fixidez possível. Para completar um quadro já bastante complexo, será preciso considerar ainda a historicidade e as marcas da cultura que impregnam todas essas ocorrências.

Esse caráter efêmero e singular do encontro entre o psicanalista e o paciente poderia ser desdobrado ad infinitum – exatamente como as nossas divergências. Na realidade, nessa perene mutação, cada um de nós diverge até de si mesmo.

Por outro lado, justamente em função disso, penso que, em nosso campo de pensamento e prática, sobrevive como ponto de convergência o que chamarei de anseio metapsicológico – anseio presente já no próprio sentido do prefixo meta, que nos remete a um “além de” impossível de ser preenchido pelo nosso desejo: além do concreto, além da experiência singular.

A psicanálise, tal como a metafísica, se propõe questões essenciais que, de um lado, são impossíveis de serem respondidas no âmbito da experimentação e, de outro, não podem deixar de ser formuladas. Assim como nos interrogamos sobre o sentido da vida, sobre a natureza do ser, sobre a existência do divino, sobre a possibilidade de conhecer, também nos interrogamos sobre questões que estão além da psicologia. Além da nossa casa, da nossa familiaridade, buscamos a transcendência, o estrangeiro.

Não se trata de buscar uma nova ciência, de buscar conceitos mais genéricos ou abstratos. Não se trata de uma psicologia em novo formato. Radicalmente: não é uma psicologia psicanalítica. É um olhar para além. A metapsicologia é um olhar para o feitiço; ela é a nossa feiticeira, como a chamou Freud (1937/1969), é uma busca do estranho, em direção às questões últimas. Por isso ela pressupõe esse anseio, esse movimento “na direção de”. E esse anseio nos une, se fazemos nossas divergências convergirem na ideia de infinito. Usarei a ideia de infinito como um articulador para pensar nossas convergências e divergências.

Retomando, então: dada a generalidade do conceito – que fundamenta a ciência –, como lidar a cada momento com o singular – nosso objeto de investigação?

A cada momento do meu trajeto pessoal e profissional, articulei, para essa pergunta, respostas que se revelaram provisórias e sempre insuficientes para dar conta da prática cotidiana. Espontaneamente, os grupos de estudo que conduzi ao longo desses anos acabaram sempre por colocá-la no centro das discussões, ao oscilar em torno de uma questão talmúdica: afinal, o que é psicanálise?

O que vou tentar desenvolver aqui é essa dialética específica entre a extrema singularidade de cada gesto psicanalítico e a universalidade de um anseio metapsicológico, dialética que ganhará forma na aproximação entre uma concepção de infinito e uma concepção de genitalidade.

 

2. O paradoxo do objeto

Durante séculos o pensamento ocidental teve como pano de fundo a vinda do Salvador ou do Messias. O iluminismo introduziu mudanças nessa tradição. Aprendemos a valorizar o conhecimento como fonte de domínio da natureza; a luz é tomada como sede do conhecimento, da ciência positiva. Aprendemos a pensar que as trevas abrigam a ignorância e todas as formas do demônio.

Todos nós, psicanalistas, queremos ser bem recebidos nos templos do saber, e todos queremos também habitar a morada dos anjos e do bem. De que outro modo poderíamos nos apresentar diante dos nossos próximos – cientistas, psiquiatras, agentes de saúde estatais ou privados?

De fato, não podemos abrir mão da herança iluminista, mas é preciso refletir sobre ela, pois nosso objeto de estudo, o objeto que preside o nascimento do nosso saber, se desnatura ao ser exposto à luz, exposto num conceito com o qual não cessamos de duelar. Lançamo-nos à conquista do nosso objeto, queremos obter sua rendição final aos nossos propósitos: “Inconsciente, mostra-me tua face!”

Em busca dessa face – que está além –, corro o risco de afirmar que talvez só possamos conhecê-la no “modo bíblico”, lembrando que na tradição dos Antigos Testamentos o conhecimento é sexual e que o infinito, nos mandamentos, se desnatura ao ser nomeado ou figurado. Freud (1923/1969) se viu obrigado, na segunda tópica, a acrescentar ao território do psíquico aquilo que nunca chega a ser propriamente psíquico e que surge do infinito da natureza, do infinito da obscuridade das entranhas. A linguagem o persegue sem poder lhe corresponder – e nós o inquirimos sem poder conquistá-lo.

Nossa forma de comunicação é a palavra falada, a palavra tornada corpo, a “palavra pulsional” (Green, 1990). Nossa própria teoria só adquire pleno sentido quando se torna encarnada, ou seja, quando não se descobre apenas como conhecimento consciente. Assim, a transmissão do nosso saber é feita primordialmente por meio da experiência, e daí a necessidade imperiosa de análise do analista, eixo da nossa tradição, da nossa permanência, da nossa continuidade, da nossa reprodução. (Aliás, podemos especular se o controle da reprodução dos analistas por parte das instituições não está na raiz do poder mítico de que elas desfrutam e de tantas loucuras institucionais.)

Não por acaso, nossos textos costumam ser abordados em seminários íntimos para que possam trabalhar em nós – sua apreensão é fruto dessa dinâmica. Eles precisam encarnar na fala. Contudo, as divergências entre a palavra atualizada na fala e o texto escrito, que é um precipitado, implicam um risco. Saussure (1916/1971) nos advertiu: “Terminamos por dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É como se acreditássemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fosse contemplar-lhe a fotografia do que o rosto” (p. 34).

Identifico em mim certo desconforto por trazer aqui um texto que escrevi há mais de um ano. Teria preferido, talvez, me referir a preocupações e associações que correspondessem mais ao meu momento atual. De todo modo, talvez não haja alternativa senão oscilar entre a memória e o traumático (voltarei a esse ponto). Os versos de T. S. Eliot nos Quatro quartetos me confirmam:

For last year’s words belong to last year’s language

And next year’s words await another voice.

Quando a linguagem, escrita ou falada, se torna uma voz, percebemos que nossos universais, os conceitos com os quais pensamos, também se encarnam em nossa história individual, no tempo em que vivemos, no ambiente em que nos desenvolvemos, nas situações a que temos de fazer face. As anotações que fizemos à margem de um texto freudiano, quando relidas uma semana depois, perdem-se em meio a novas associações. É sempre um desconsolo constatar como falha a memória de um psicanalista clínico quando comparada, por exemplo, à memória de um leitor originário de outras áreas das humanidades.

Talvez nossa leitura seja sustentada por um outro modo de conhecer: lemos feridos pela prática clínica, expostos que estamos à angústia que nosso objeto nos traz. Nossas realizações têm de dar conta de percepções conscientes e inconscientes. Terão, portanto, uma característica que acompanha o único e o efêmero dos sonhos, das metáforas, da poesia.

Ora, se nossas percepções clínicas e teóricas são únicas e se se desnaturam com a repetição, será então o conhecimento impossível?

Não creio, pois construímos um patrimônio onírico com o qual, perante novas situações, somos capazes de criar e trabalhar sonhos adequados a um novo momento. Nosso conhecimento terá dupla cidadania, habitará dois territórios e usará duas línguas diferentes, inevitavelmente. A cada passo, terá de se mover em dois sistemas diversos. Terá de se conformar ao modo de funcionamento do consciente e ao modo de funcionamento do inconsciente. Assim, nosso modo de pensamento e de comunicação carregará inevitavelmente o caráter dos sonhos, pois estes são, por excelência, os criadores de um acordo, ainda que efêmero, entre as duas lealdades. De outra parte, para nos expressarmos, teremos também de refletir sobre a forma, como numa poética.

Entre o infinito da teoria que nos assombra e o efêmero da prática que nos assedia, nosso trajeto de escrita talvez não tenha outra alternativa senão oscilar entre a perambulação do flâneur, que constrói para si uma rede de sentidos enquanto caminha, e a peregrinação de quem não pode prescindir da esperança de visualizar um rosto.

Adorno (1958), ao refletir sobre o ensaio como forma, exaltou a possibilidade e o risco de tentarmos articular pela escrita as reviravoltas do pensamento diante do objeto quando este não é submetido de antemão a um sistema ou a um método. Por seu caráter reflexivo, essa forma foi a que melhor se adequou ao pensamento psicanalítico. A forma ensaio traz em si a esperança de que o texto permita um movimento do espírito em que o todo da reflexão ultrapasse a soma das partes e possa ferir a superfície do corpo de modo que o conhecimento encontre repouso em nossas entranhas. Permite também maior autonomia ao leitor, convidando-o a realizar seu próprio trajeto nas constelações de sentido que cada leitura propõe.

Essa ideia de constelação ajuda a compreender como a psicanálise desloca nosso saber para o continente das trevas justamente quando quer iluminá-lo. Afinal, não nos esqueçamos, a psicanálise foi buscar os sonhos no território da magia e da superstição e os trouxe para o núcleo da origem do conhecimento. Os sonhos estão sempre aí, são como as estrelas, disse Freud em A interpretação dos sonhos; para vê-los, é preciso que se faça o escuro Objeto e meio das nossas interrogações, submissos ao império da noite, infensos à captura, os sonhos povoam nosso ser e constroem sua arquitetura. O processo onírico é como o movimento do coração; vital e ininterrupto, não requer que a atenção se debruce sobre ele – é, ele também, um movimento visceral.

 

3. M e o fundo cego

Uma paciente que chamarei M, em análise há cerca de dez anos, passa a ter como eixo de sua fala as angústias que acompanham um sangramento uterino. Durante meses M apresenta suas lutas para conseguir evitar uma cirurgia. Abordamos longamente suas angústias, relacionadas à castração, à perda da feminilidade, à passagem do tempo e ao envelhecimento, à perda da possibilidade amorosa e à morte. A cirurgia, tornando-se inevitável – pois há risco de cancerização dos miomas –, finalmente acontece.

O período seguinte se caracteriza por um humor depressivo e por associações que repetem o período anterior, mas chama atenção pela imutabilidade do estado de M, o que não é o habitual. O traço marcante da paciente é uma possibilidade ampla de reflexão sobre seus estados psíquicos e uma possibilidade de mudança também pronunciada.

Essa paralisia me surpreende, e percebo que algo essencial nos escapa. Lentamente, nos meandros do discurso de M, começa a surgir uma interrogação que não encontra palavras. Pareceu-me – ou melhor, lembrou-me – as perguntas que uma de minhas filhas me fazia bem pequena, sobre um tempo anterior à existência dela: o que poderia existir se ela ainda não era? Poderia o mundo existir se ainda não existia a consciência? Minha filha obviamente não dispunha das palavras, e muito me custou alcançar alguma compreensão de suas toscas interrogações. Estas, no entanto, expressavam a angústia de um problema existencial que poderíamos chamar metafísico – ela nem podia suspeitar a enormidade da questão. Filosofamos em qualquer idade, o repertório é que se amplia.

Mas voltemos a M. A pergunta que ela balbuciava e que finalmente pudemos traduzir era algo assim: depois do sexo, o que ocorre com seus produtos? Batem contra um fundo cego? Simplesmente vão para fora? M enfim conseguiu formular: se, depois da extração do útero, dos ovários e das trompas, sua vagina se tornara um “saco de fundo cego”, então qual o sentido de fazer sexo?

De fato, M dizia que agora o ato sexual havia perdido o sentido e que deixara de ser prazeroso. É importante notar que ela nunca relatara dificuldades com o ato sexual em si e que a precariedade verbal que revelou nesse momento nunca se manifestara antes. Além disso, não seria o caso de lhe atribuir um desconhecimento sobre anatomia ou fisiologia; isso não corresponderia à sua formação intelectual.

Debatemo-nos sem êxito ao redor do tema, até me ocorrer que o útero não é apenas um continente. Essa interpretação provocaria mudanças em M – mas antes provocou em mim. Mudanças não só no modo de ver o mundo, mas, para o que nos interessa nesta reflexão sobre a prática da psicanálise, nos meus tempos e atitudes como analista.

 

4. A genitalidade como entrada do infinito

Ocorreu-me que o útero não é apenas um continente capaz de abrigar uma gravidez ou de enviar sinais do ciclo hormonal. Ele é um canal que comunica a vagina com as trompas – que não se comunicam com os ovários. As trompas mergulham no peritônio, onde se abrem para capturar o óvulo maduro que se desprende do ovário. O útero, portanto, integra uma via que, a partir do mundo exterior, dá acesso à profundidade visceral, ao infinito silencioso das entranhas.

Começava aí a se esboçar uma hipótese: sem acesso ao mistério corporal, a vagina não se ligava a nada, tornando-se praticamente um órgão externo, e, assim sendo, o intercurso sexual já não alcançaria a intimidade, não permitindo, portanto, que o encontro de duas pessoas gerasse sentido e significado.

Não seria uma organização psíquica como essa que tornaria a prostituição possível e a isentaria da angústia de lidar com múltiplos parceiros que não foram objeto de escolha expressa? Ou, ainda, não teríamos aí uma compreensão acerca da aparente facilidade com que os adolescentes de hoje mantêm múltiplas relações sexuais e do fato de que se angustiam efetivamente apenas quando as relações se tornam íntimas? Não seria uma estrutura psíquica como essa que inviabilizaria determinadas situações necessárias à intimidade de um intercurso psicanalítico e que nos colocaria diante de desafios específicos, nos quais a virtude suprema seria aguardar tempos prolongados para o surgimento de sentidos analíticos?

A pergunta de M obviamente não se referia à fisiologia, mas sim à representação psíquica da anatomia. Quando Freud (1923/1969) afirma que o ego é corporal, está dizendo que o ego se organiza a partir de como apreende, incorpora e constrói o funcionamento do corpo; essa organização retorna a seguir para o corpo, outorgando-lhe sentido. Assim, por exemplo, de início o funcionamento do aparelho digestivo é percebido como se ocorresse em partes estanques, as funções de incorporação e de eliminação sendo vistas como independentes. A reprodução pode ser atribuída ao continente digestivo e ser realizada por fantasias anais ou de outros tipos.

A partir de sua origem corpórea e agora organizadas como fisiologia do ato de pensar, essas funções ou modos do pensamento podem se deslocar para qualquer outro órgão, atividade de relação ou visão de mundo – está aí o poder da transferência, conforme a primeira definição de Freud (1893/1969). Para que isso ocorra, algumas funções corporais precisam ser capazes de atingir o aparelho psíquico e sofrer transformações que as tornem qualidades mentais. Devem ter a possibilidade de se tornar percepções e memórias.

Como exemplo inverso, lembro que não temos a representação psíquica do pâncreas e de sua função (Nosek, 1996). As primeiras representações da civilização e da criança acerca do sofrimento mental indicam sempre lugares no corpo. A depressão está no fígado, o medo está no aparelho digestivo, o amor está no coração. As marcas mentais do corpo na mente vão a seguir compor a moldura dentro da qual se organizarão as percepções futuras. Precedendo o animismo estão os modos corpóreos, dando forma à vida.

Todos temos a experiência clínica de pacientes dotados de organizações psíquicas em que, a partir de formulações como “dar é uma perda e incorporar, um ganho”, analogias primárias com funções corpóreas podem atingir algum sucesso social e econômico, em evidente contraste com o insucesso no campo amoroso.

No caso de M, em decorrência de uma experiência traumática, os territórios do corpóreo e do anímico se embaralharam. A hipótese que formulei para ela cria, no espaço analítico, outras dimensões de tempo necessárias à elaboração, possibilitando reabrir canais psíquicos de acesso ao mistério do infinito de sua natureza. É desse espaço que para ela poderá surgir o seu sentido próprio.

Volto então às mudanças que identifiquei em mim como decorrência dessa interpretação. Por exemplo, não espero mais que nenhuma interpretação seja capaz de criar a transformação necessária. Espero que, por meio de múltiplas vivências e de sua verbalização, os trajetos psíquicos possam ser refeitos. Essa compreensão, que vem da prática e se torna presente em minha reflexão teórica, em primeiro lugar dita minha forma de estar na sessão, transforma minha presença e meu olhar. Teoria e descrição – e a própria percepção do fato clínico – são definidas pela lente teórica com a qual investigamos e concluímos. Não há como separar a descrição clínica de um complexo pressuposto teórico que orienta meu olhar, mas este, ao refigurar o sentido explicitado por novas constelações, também se deixa iluminar pela prática. O sentido nasce para ambos os participantes da relação.

A rigor, neste ponto podemos evocar Freud, que já no “Projeto para uma psicologia científica” se perguntava de que maneira as estimulações quantitativas de energia que se abatem sobre o aparelho psíquico são transformadas em qualidades psíquicas. É uma questão que se espalha por toda a sua obra e da qual somos herdeiros – é uma boa pergunta que ainda acompanhará gerações de psicanalistas.

 

5. Desejo metafísico

Do exercício da clínica extrairei a hipótese de que, do infinito inacessível das entranhas, nasce, numa relação com outra subjetividade, o sentido. Sempre efêmero e insuficiente, o sentido necessitará inevitavelmente de algo mais, algo que está no próprio corpo e, ao mesmo tempo, além dele. Isso nos permite prosseguir vivendo.

Talvez se situe aí, como paradoxo, a posição sexual menos abordada em nossas teorizações: a genitalidade. Mesmo em nosso meio permanece a tendência a identificar esse termo com o concreto e a confundi-lo com a ação adulta sexual. É um equívoco, pois o pensamento também se associa a uma imagem intuitiva do funcionamento corpóreo, e, além disso, a genitalidade está presente desde o início da vida.

Aqui é preciso lembrar Bion (1962/1966) e fazer uma digressão. Para ele, o pensamento se constitui numa hierarquia de trajetos específicos que passa de elementos beta a elementos alfa, em seguida a sonhos e então ao pensamento conceitual, até chegar ao pensamento mais sofisticado, tal como o concebem cientistas, filósofos e artistas. Lembremos também que essas passagens ocorrem em relações entre subjetividades definidas por um vínculo de continente-conteúdo.

A marca simbólica que Bion escolhe para caracterizar essa relação é um ideograma masculino/feminino – um intercurso sexual –, o que evoca um modo bíblico de constituir o conhecimento: Adão conhece Eva e assim começa o trajeto humano. O paraíso é a natureza; perdê-lo se fixará na tradição como a Queda.

É esse o momento da entrada do homem na cultura, na história, no pensamento. Não temos mais instinto para nos orientar, não temos caminhos já determinados que possamos trilhar. Diante de nós abre-se o infinito – o futuro é seu território, e também no passado ele reina. O desejo, perdendo o trajeto do cio, pois já não respeitamos o calendário das estações, terá como alternativa reencontrar marcas de memória, marcas de experiências passadas. Entramos então no espaço clássico da neurose, em sua característica de percorrer reminiscências.

Outra alternativa será o “desejo metafísico” (Levinas, 1961) – aquele que deseja para além do já dado e se atira no infinito. Seu trajeto será o do trauma: caminhos sem passado, estradas por percorrer e sentidos por construir. É o caminho do terror e da generosidade. Considero ser esta a “poética” da genitalidade, do trauma e do necessário e peculiar conceito de infinito de que falo aqui. O infinito é um objeto que traumatiza seu conceito; não fosse assim – isto é, se o conceito pudesse abarcar seu objeto –, este seria destruído.

Assombro e susto são as marcas com que se apresenta o desejo metafísico. Surgindo à margem de qualquer preparação ou rotina, ao chegar ele traz o descanso de um sentido parcial e efêmero e o prazer de ter atravessado uma vereda de riscos. É a paz da sobrevivência, acrescida de um traço de visão de si, de percepção da própria humanidade. É a atividade de criar aquele sonho impossível de ser criado em isolamento: alguém sempre terá de sonhar o sonho impossível ao outro. Esse sonho terá a genética de ambos os sonhadores. Como fruto de uma relação, seu destino será trilhar um caminho próprio.

 

6. Anseios por uma clínica “bem-sucedida”

Em trabalhos anteriores, apontei a coragem necessária para que alguém se abandone a uma outra subjetividade depois de se despojar das próprias vestes e se apresentar em sua figuração básica. Corre o risco de não ser recebido pelo outro, de atravessar o perigo do prazer do encontro perdendo-se numa fusão sem volta e, por fim, de retornar ao isolamento. Às angústias próprias da genitalidade, acrescentem-se todas as ansiedades de outras fases da sexualidade, que nunca perdem a oportunidade de comparecer ao encontro.

O isolamento, o retorno a si, o repouso só se tornarão possíveis por um pequeno e volátil acréscimo de sentido. Quem correrá o risco de se despojar diante de uma subjetividade outra que se mantém protegida?

A construção de sentido numa análise não é de forma nenhuma um movimento neutro. É um movimento, como costumo dizer com alguma impunidade, que põe um gesto psíquico sob a égide da genitalidade. A própria construção merecerá interpretação, demandará que se coloque em palavras o que ocorreu entre os participantes do intercurso analítico. A “interpretação mutativa” [mutative interpretation] (Strachey, 1934) que me perseguiu no início da clínica, afinal se revelará um movimento psíquico sexual. Na verbalização, na explicitação verbal, torna-se possível a neutralidade sempre buscada por nós. A neutralidade estará não no início, mas no final de um trajeto complexo e assustador. Não será uma atitude permanente, mas uma aquisição instável. Apenas aí um descanso. (Antigamente se podia acender um cigarro…)

Contudo, a necessidade de novos sentidos logo começa a se impor: o universo visceral não interrompe seu percurso, seu horizonte é o infinito. Quantos frutos se geram numa análise? E como acompanhar seu desenvolvimento?

Todos temos a experiência de parentes e amigos, ou mesmo crianças, filhos, que entram em nossa sala de análise como se adentrassem um recinto assustador, sagrado e sexual. É uma apreensão espontânea como essa que permite aos nossos pacientes intuir a futura experiência analítica como um lugar especial, um lugar onde, como em nenhum outro, eles poderão se apresentar em sua verdade, onde o sentido próprio de cada um poderá dar mais um passo, onde eles poderão buscar seu ser próprio. Esse é o lugar – como um templo e uma alcova – onde pode nascer o verbo. Não percebendo isso, os projetos terapêuticos terão existência pobre e breve, pois pretenderão saber de antemão qual é o ponto desejável de chegada.

A mesma incompreensão pode estar também no centro da chamada crise da psicanálise, com todo o seu cortejo de intenções positivistas e pragmáticas, mera adaptação aos tempos que correm. Esses “bons propósitos” marcam nossa rendição ao mercado, assinalam o abandono da surpreendente subversão e potência do nosso conhecimento e de sua prática.

A rendição não é explícita, obviamente. Não aderimos às companhias, aos laboratórios, aos medicamentos, mas, compreensivamente, também nós queremos um lugar ao sol junto aos produtores de bem-estar e soluções. Queremos provar que possuímos um conhecimento e um domínio sobre o sofrimento – arrogamo-nos até uma certa superioridade nessa área. Queremos procedimentos, medidas, certezas. O positivismo se infiltra insidiosamente em nosso pensamento e nos expulsa de casa.

 

7. Objeto incapturável

Em 1923, Freud se pergunta como chegamos a conhecer o inconsciente. Questiona se o consciente mergulha no inconsciente ou se o inconsciente aflora nele, revelando-se assim ao consciente. Ou seja: o inconsciente seria apropriado pelo conhecimento ou se apresentaria como revelação? Como desvelamento de sua existência?

Ao escolher a resposta, Freud é firme, convicto. Opta pela negativa: nenhuma das duas assertivas lhe parece apropriada. O que lhe parece adequado é considerar que o inconsciente encontra no consciente uma configuração correspondente. Nessa passagem, teoria e prática convergem, pois a questão é tanto clínica quanto metapsicológica, e também – por que não? – metafísica. Freud nos diz que o inconsciente se mostra quando se liga a representações de palavras que habitam o pré-consciente. Em seu mergulho no infinito visceral, ele não pode ser capturado.

Nesse ponto da obra freudiana estão presentes três tipos de inconsciente. O préconsciente é o que pode vir à tona com um acréscimo de investimento. Restam-nos os outros dois tipos: o recalcado e aquilo que ainda não está ligado às representações, aquilo que ainda não existiu para o psíquico propriamente dito. Este – o recuperável – habita áreas de obscuridade, vem do infinito das entranhas e do mundo. Enquanto o recalcado se deixa recuperar, o recuperável espera que lhe deem contorno, que lhe deem representação. A segunda tópica se impõe, e os trajetos que levam à criação do inconsciente recalcado são como que trazidos à tona. A segunda tópica mostra o caminho que precede a primeira tópica – é como revisitar o “Projeto para uma psicologia científica”.

A pergunta sobre como tornamos consciente o inconsciente ganhará nesse ponto uma dupla direção. Estão em causa processos de recuperação e construção. No primeiro caso, trata-se de processos de retomada de memórias; no segundo, de formação de trajetos. Trata-se de encontrar representações no consciente que correspondam ao que se encontra esquecido ou ao que será a criação do psíquico propriamente dito. Em ambos os casos precisamos de repertório, de um acervo de memórias para dar abrigo aos dois processos de elaboração.

O esquema proposto por Bion (1962/1966) ajudará a dar conta da passagem para o pensamento conceitual, isto é, da passagem dos elementos beta, que são como que concretudes psíquicas, aos elementos alfa e daí ao pensamento comunicável, passível de ser compartilhado. Observo que Bion usa palavras novas, sem associações anteriores, para descrever um pensamento não comprometido com memórias. Implicitamente, propõe que, se quisermos ser parecidos com ele, teremos de ser completamente diferentes dele.

De todo modo, o acervo de memórias que permite esse processo se encontra – desde o início e ao longo de todo o trajeto – na cultura. Para usar a linguagem de Bion, o ser necessitará da conjunção continente-conteúdo, masculino/feminino, para realizar essa passagem; essa conjunção, por sua vez, necessitará do continente do continente, ou seja, da cultura, abrigo para os protagonistas.

A passagem do indivíduo para a cultura se fará, assim, num embate com a cultura. Na metáfora materna, a mãe precisará do pai e da cultura para mergulhar no abismo – a triangulação é inevitável. Esse esquema nos impede de gerar uma metapsicologia unipessoal, torna impossível considerar o espírito em isolamento. Seu percurso, que leva ao conhecimento de algo humano, é marcado desde o início pela genitalidade.

O que me interessa aqui, com esse encadeamento de truísmos, é a crítica à pretensão iluminista de posse e domínio do objeto por intermédio do conhecimento – pretensão que esteve presente no meu exercício da clínica psicanalítica, sempre lhe dando um matiz de insegurança e impossibilidade. Aliás, como nossa reflexão acompanha a prática, penso que essa insegurança quanto à assertividade do nosso saber talvez seja compartilhada por todos. Para mim, nunca foi apenas uma dúvida epistemológica. Foi bem mais um estado que vivi ao longo de todos os percursos profissionais.

As construções representativas são efêmeras e recebem de forma provisória seu objeto inconsciente e estrangeiro – que inevitavelmente seguirá viagem, à procura de novas hospitalidades. A afirmação de que minha prática era científica não me convencia, pois nem meu objeto podia ser bem definido, nem os universais se mantinham estáveis no confronto inevitável com a singularidade de cada análise.

Em meu trajeto, foi primeiro na estética que encontrei a possibilidade de conciliar a verdade do universal com a singularidade de sua expressão, como numa obra de arte. Também me foi útil a ideia de que cada obra de arte cria um mundo próprio, tal como o faz a adequada experiência do setting analítico. Além disso, a arte pressupõe uma autoria sempre presente na própria obra, à diferença da lei científica, na qual a ausência da autoria não interfere com a lei nem com os resultados eventualmente alcançados.

Achava que fazíamos uma peculiar arte trágica, pois em conjunto com nossos pacientes, criávamos uma obra que teria sempre apenas dois espectadores e que, se fosse mesmo valiosa, descansaria no inconsciente – seria esquecida, portanto. Para relatar essa criação, precisávamos de um dos talentos do fundador da psicanálise – o da escrita –, com o qual cada um dos dois participantes organizaria um relato próprio. Como na arte, enfim, não se tratava de capturar o objeto. A arte se contenta com construções parciais de sentido.

Tudo isso me parecia adequado para pensar a realização analítica.

 

8. Levinas: o rosto, o infinito e a ética

Surpreendentes e desafiadoras, as formulações de Emmanuel Levinas em Totalidade e infinito (1961/1988) ajudaram-me a enfrentar essas difíceis questões. Partindo do modelo tradicional de conhecimento como adequação do objeto ao seu conceito, Levinas dirá que isso equivale à tentativa de transformar o Outro no Mesmo. O que se busca no conhecimento é retirar o caráter de estranheza, de alteridade do objeto, para torná-lo possessão do sujeito. Busca-se a naturalização do estrangeiro: ele perde sua identidade e aprende a falar a língua da família que o abriga, despojando-se de sua condição de estranho, de Unheimlich.

Lembro também aqui as considerações de Adorno e Horkheimer no ensaio Dialética do iluminismo (1947/1994). Ao acompanhar a história da relação entre mito e razão, os autores mostram que o mito, normalmente associado às sombras pré-científicas, já contém um elemento iluminista, por seu caráter de domínio da natureza, e que o processo histórico de construção da identidade entre objeto e conceito, fundamento da ciência iluminista, acaba por reverter em mito. É uma crítica contundente à concepção positivista do conhecimento, que, baseada em procedimentos de separação, classificação e definição, recusa a tensão inerente à permanência da singularidade, do desconhecido.

No entanto, lemos na Dialética, “os homens pagam pelo aumento de seu poder com a alienação daquilo sobre o que exercem poder. O iluminismo se comporta em relação às coisas como um ditador para com os homens. Este os conhece à medida que pode manipulá- los” (p. 20). Assim, o ego não é somente a projeção da superfície corporal – é também a projeção de todo o corpo social. Ainda mais amplamente, é resultado da apropriação não só das relações objetais básicas, mas de todas as formas de relação social. (A ideia da física acerca da similaridade entre o muito grande e o muito pequeno tem aí uma nova e fértil possibilidade a explorar.)

Esse caráter do eu obviamente não se constitui por mimese; implica, na verdade, as infinitas variantes dos processos de criação do psíquico. Vai ter a cor do investimento pulsional a ele sobreposto. O que ocorre então não é apenas imitação; ao contrário, no próprio ato de criação já ocorrerá a transformação do criador e do criado – e surge aqui outro elemento da poética da genitalidade e de sua relação com o infinito, ou seja, uma espécie de superestrutura do corporal, tal como este é apreendido e configurado nas diferentes formas do pensamento.

O que tanto Levinas como Adorno e Horkheimer apontam, embora partindo de diferentes tradições filosóficas, é o ato de violência contra a existência da alteridade, o ato de destruição do estrangeiro que o movimento do saber traz em si. O conhecimento positivo, o saber que se formaliza e cria procedimentos, revelou-se de um poder impressionante em termos de progresso material e desenvolvimento de recursos. Contudo, ao se tornar ele próprio mito, revelou-se problemático como via de conhecimento do humano e como meio de barrar violências, as quais, simultâneas ao progresso, não param de crescer em intensidade. O iluminismo tornado mito e investido das certezas celestiais da ciência, diz Adorno, autoriza-se à violência das guerras não-religiosas em escala sempre maior.

Entre nós, possivelmente a convicção de sermos os detentores da verdade também está por trás das pequenas guerras que travamos em nossas organizações. Para mim isso é sempre motivo de perplexidade, pois estas são justamente o espaço essencial para discutirmos nossas convergências e divergências, isto é, o espaço para a reflexão dialética sobre a nossa prática – que é simultaneamente científica, porque conceitual, e concreta, porque respeita a singularidade do objeto, abrindo-se ao conhecimento do outro com a coragem de enfrentar o infinito.

Levinas propõe que diante de nós, como algo estranho, como um estrangeiro, reluz um rosto humano. O uso da palavra rosto se justifica pelo caráter expressivo, pelo movimento permanente que ela evoca. A presença do rosto nos põe diante do infinito da alteridade. O rosto – o outro, o estrangeiro – não se revela a nós e tampouco pode ser capturado. É como o infinito: não pode ser inteiramente contido pelo conceito. Na concepção de Levinas, o infinito tem origem exógena e é posto em nós. (Lembro, como contraponto, a concepção cartesiana. Para Descartes, o infinito preexiste, é endógeno, e sua presença em nós é uma das provas da existência de Deus.)

Se abrimos mão da violência do conhecimento, se a urgência da ontologia e a potência do positivismo não nos incitam, encontramos o território da hospitalidade: tratase de receber o estrangeiro como tal, em sua própria existência. Esse gesto, configurado como bondade, não me enaltece, não me exalta; seu caráter vem do infinito a ser recebido, esgarçando minhas possibilidades. Se infinito, resistirá à apreensão plena pelo conceito; se não resistir, perderá seu caráter – a identidade do infinito deriva da impossibilidade de contê-lo em seu conceito. Assim é também a alteridade, que se desnatura como tal quando apreendida.

Da mesma forma que o infinito traumatiza seu conceito, o outro me traumatiza. Recebê-lo é uma imposição – a ela me submeto. Permito sua presença, ao mesmo tempo em que abdico de catequizá-lo. Torno-me refém do infinito. Como um deus, o estrangeiro não pode ser nomeado sem que se cometa sacrilégio.

Na cerimônia da Páscoa judaica, todo ano se faz a pergunta ritual: por que estamos reunidos esta noite? Para lembrar o tempo da escravidão, do desamparo, respondemos. A pergunta nos remete ao encontro analítico: para que nos encontramos? A resposta por que tanto ansiamos estará em outro ponto da sala cerimonial. Lembremos que a tradição manda reservar o melhor assento àquele que está por vir: o forasteiro, o viajante, o estrangeiro e profeta Eliau Hanavi, o que nunca vem, o arauto do Novo, que nesta noite poderá ter acolhida.

Levinas (1961) escreve: “Chama-se Ética a esta impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem” (p. 30). A conversão não está no horizonte. Quando nos esquecemos disso?

Nesse momento, configura-se uma espantosa noção de conhecimento: o primeiro passo do saber é ético. A ética precede a ontologia. Segundo propõe Levinas, aluno de Heidegger, o ser não apenas não é capturado no saber, como não se revela na poesia, à diferença do que queria seu mestre. O ser pode, sim, “ser recebido”. Para nós psicanalistas, eis uma radical deflexão hierárquica: não mais talking cure – agora, listening cure. Podemos imaginar um analista mudo, mas não podemos imaginá-lo surdo.

Esse despojamento radical inerente ao movimento de recepção da alteridade, essa entrega de si perante o rosto me faz retomar uma afirmativa de Freud no “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895: “O desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais” – ou da ética, mais propriamente. Nesse contexto, a devoção absoluta ao outro, ao ser que emerge, ao novo rosto que traumatiza quem o recebe, é o ato ético primordial. Em sua obrigatoriedade, ele cria o humano.

Vale lembrar, Freud pensa ali nas agruras do organismo humano que ainda não tem expediente para encontrar no mundo exterior trajetos para a eliminação do desprazer e que necessita, portanto, da devoção de outro ser humano que a ele se entregue, que se deixe sequestrar para estar a seu serviço – uma ética primordial, não de linhagem superegoica, mas primária, de linhagem materna, como nas antigas religiões matriarcais. Não me recordo de outro lugar em que Freud volte ao argumento.

Laplanche proporá algo novo ao afirmar que o psiquismo da criança se organiza como resposta ao traumático da presença erótica do adulto. Nessa dupla elaboração, a marca conceitual da genitalidade mais uma vez está presente, e vemos que metafísica e metapsicologia se interligam mais estreitamente do que costumamos supor. Mais ainda: serão inevitavelmente os guias da prática.

Aprendemos com Freud que a sexualidade, em suas diferentes manifestações, configura “modos de ser”. A partir da base corporal, organizam-se diferentes maneiras de perceber a realidade e de responder a ela. Temos aí o tema clássico dos modos: oral, anal, uretral, fálico etc. Há também, como projeção sobre a psique, outros elementos corpóreos: a pele, a respiração, o ritmo – o mundo se choca com o sensório, e tudo o que é percebido como intensidade se organizará como qualidade psíquica.

Mas o que percebemos como intensidades não são qualidades físicas. São o corolário de ausências, da carência de contornos representativos. Classicamente, postulamos que a estimulação que chega ao aparelho psíquico será matizada pelo pulsional, que impõe a busca de objetos na exterioridade que a ele se contrapõe. A pulsão funciona como uma intencionalidade intrínseca, que organiza a captação e a resposta a ser dada ao que encontramos diante de nós. São os modos de organizar a experiência vivida. São constituintes, portanto, do modo primário do conhecimento, aqui necessariamente deformado e carregado de um matiz extenso de subjetividade.

 

9. O infinito silêncio das entranhas

Para conhecer e atribuir sentido, torna-se necessário um novo movimento, que pode inclusive ser simultâneo. Quero supor, nesta reflexão, que colocar outros modos sexuais sob a hegemonia do genital significa dar primazia à construção do conhecimento como forma de sentido humano. Um passo atrás e vemos que era este o destino das pulsões: serem apreendidas na sua interação com os objetos. Os objetos das pulsões estarão presentes em outra subjetividade, que se apresentará organizada no seu próprio modo sexual. O pulsional, assim, não poderá ser separado das relações objetais, nem na origem nem em sua organização final.

O modo oral se voltará para o objeto do “conhecimento” numa tentativa de incorporá- lo, de possuí-lo, de se fundir a ele. Será este o destino almejado por esse modo do desejo. Haverá ainda os modos que pretenderão eliminar o indesejável ou os restos não incorporáveis do conhecimento e ordená-los de modo que se apresentem limpos, sem as impurezas que acompanham qualquer ato de vida. Haverá os desejos de controle do objeto: gostaríamos de vê-lo dominado e submetido ao nosso poder. Pode-se querer dividir o objeto em partes, classificá-lo. No limite, desejaríamos que o objeto acabasse por se tornar parte de nós mesmos. (Temos todos a experiência de ir a um show, a um concerto ou a uma conferência e aplaudir com mais entusiasmo os velhos sucessos, aqueles que já conhecemos e já incorporamos à memória. Aplaudimos a nós mesmos.)

Uma lembrança necessária: a alteridade, impossível de ser atingida, cria em nós o movimento de identificação que vai modular nosso caráter. Todos os modos sexuais estão presentes na construção do saber. No entanto, não se diz que novos paradigmas só se estabelecem à medida que passam as gerações? Como analistas, não temos “modos” preferenciais de realizar nossa tarefa? Escolher um analista não é também uma questão de afinidades eletivas? Não deveríamos, eventualmente, levar em conta essas características, levar em conta os próprios modos sexuais do analista e, portanto, seus modos de conhecimento? Afinal, nenhuma questão sobre a analisabilidade se encerra em diagnósticos do analisado.

Todos os movimentos da sexualidade e do conhecimento a que me referi têm em comum, de antemão, a referência a si – ao Mesmo, na linguagem de Levinas. Apenas na genitalidade haverá o movimento em que o desejo se volta para o Outro permitindo que este assim permaneça. O desejo buscará o além de mim, o infinito. O objeto do desejo não completará o sujeito; melhor dizendo, ele o manterá em suspenso.

Recuperando as considerações anteriores, posso dizer então que o desejo genital possui as características da busca do que está além, tal como o desejo metafísico. Estamos mais acostumados a lhe atribuir uma qualidade lírica, poética, mas a relação com o infinito lhe dá, mais propriamente, um caráter metafísico. Este, por sua vez, trafegará pela poética, cujo caráter é inevitavelmente provisório e efêmero.

Sempre precisaremos de novos versos e canções para dar conta do amor. Capturá-lo será inviável – mas não se passa assim também com a definição de qualquer sentimento? Seja o amor ou o ódio? Seja o ciúme, a inveja, o desamparo, a saudade, a tristeza, a depressão, o medo, o horror e tantos outros de que tantas vezes tratamos com excessiva familiaridade e despreocupação? Não seria uma ousadia tratá-los como qualidades dadas e conhecidas a ponto de serem definidas em manual, o que nos autorizaria abordá-los como quem realiza um escrutínio científico?

É a presença do rosto do outro, quando este se apresenta a mim, que provocará a tentativa de captar sua realidade. Ao mesmo tempo, a alteridade busca ser capturada, ser apreendida por mim e em mim. Ela busca em mim o conceito de si. Isso corresponde à realização da ideia de infinito no finito – e podemos chamá-la desejo. Será sempre um anseio que não se realiza, mas que não pode interromper sua busca. Não encontrará jamais a satisfação, mas em seu percurso construirá sentidos, perceberá constelações capazes de iluminar atos e questões. É fator de sobrevivência e reprodução, mas também construtor da nossa possibilidade de viver e saber. Na busca perpétua se dará a presentificação do destino humano.

No modo corporal da sexualidade genital, encontramos o embrião do seu representante psíquico. Assim, uma vez mais, do silêncio infinito das entranhas nasce o sentido, em contato com outro ser que o acolhe e hospeda. Nesse acontecimento, o sentido nasce para ambos, estrangeiro e anfitrião. E, se ocorrer em mão dupla, mais complicado ainda será o processo. As funções se invertem e se intercambiam permanentemente – é a lição freudiana sobre a bissexualidade humana.

O sentido não tem uma forma de chegada. É diverso do que usualmente denominamos verdade. Não pretende a universalidade passível de ser compartilhada. Pretende uma representação própria que, por meio do autorreconhecimento, proporcionará um expediente para viver e repousar em si mesmo.

 

10. B e a fertilização sem intercurso

Uma mulher de aproximadamente 40 anos me procura para reanálise. Vou chamála B. Nos primeiros encontros apresenta-se como profissional bem-sucedida, com família organizada. Havia feito análise por muitos anos, com analistas bem orientados, e resolvera boa parte de suas questões. Na época, o que mais a preocupava era a sucessão de casos amorosos que mantinha desde a adolescência e nunca haviam posto seu casamento em questão. Eram paixões incoercíveis, de grande carga romântica, boa parte das vezes platônicas, caracterizadas pela adesividade a que se submetia e a que possivelmente submetia os parceiros. Quanto à família de origem, segundo B, era preponderante a adesão aos pais, que sempre haviam exigido dela sacrifícios elevados, situação que perdurava até o momento.

Tudo isso me foi contado de forma pausada e sensata. B disse que queria retomar a análise porque, embora se sentisse livre dos romances, percebia que lhe faltava algo. O que a perturbava era um estado que definia como “falta de sentido da vida”.

Não dispondo de horário na ocasião, propus encaminhá-la a outro profissional ou ficarmos em tempo de espera. B escolheu esperar. A demora seria de alguns meses, mas logo começaram telefonemas em que ela dizia ter urgência em iniciar o trabalho. Pelo telefone B relatava medos intensos que a impediam de dormir; vinha tendo longas noites de insônia. Esses apelos à distância continham uma intensidade de desespero que não aparecera nos primeiros encontros. Eu me sentia praticamente intimado a iniciar a análise. E assim foi.

Iniciada, a análise transcorria de maneira tranquila e adequada. B relatava situações, problemas, episódios de sua vida cotidiana, e pareceria que os compreendia e interpretava apropriadamente. Relatou inclusive melhora na insônia e no contato.

Aos poucos, entretanto, foi prevalecendo na minha percepção um estado de falta de sentido. Constatei que invariavelmente sua fala trazia acontecimentos, fossem remotos ou recentes, às vezes aparecendo também algo que B havia pensado ou sentido no caminho para o consultório. Minha impressão era a de só ter acesso a sentimentos de segunda mão – e eu lhe disse isso: que me sentia numa reação analítica do tipo brechó, na qual só lidava com sentimentos usados. B me confirmou, pois ela própria percebia sua dificuldade de compartilhar nas situações afetivas ou de estar presente nelas. Isso a desesperava; ao mesmo tempo, entretanto, havia nela o terror de abdicar desse modo de ser.

Era frequente, por outro lado, que o que eu havia dito reaparecesse nas sessões seguintes sob uma forma que indicava um razoável trajeto de elaboração. Em outros termos, os desenvolvimentos estavam em curso, B prosseguia na elaboração de seus medos, nas reconstruções de sentido de sua história, embora o clima e o modo das sessões permanecessem inalterados.

Esse peculiar modo de fertilidade da análise logo se tornou objeto da nossa investigação, o que nos permitiu ver o sentido dos nossos encontros.

Com a percepção de que nenhum evento se produzia na própria sessão, começou a se impor em mim a ideia de que certos seres têm sua reprodução garantida por uma fertilização que ocorre fora dos corpos. O masculino e o feminino depositam gametas no exterior – na água, por exemplo – e estes em seguida se encontram, dando origem a um novo ser. Nossa relação era assim: dotada de uma fertilidade sem intercurso.

Entretanto, se esse fato constituía a regra com B, não era nada raro como momento específico em outras análises. Encontramos em análise acontecimentos que se perderam em nossa evolução filogenética. Chega a ser uma situação comum na clínica, nos casos de infertilidade com posterior sucesso na fertilização in vitro e o consecutivo implante uterino. É o que testemunhamos quando a mãe, depois de parir assim, faz ou refaz os trajetos psíquicos de sua anatomia genital e engravida espontaneamente.

Essas percepções nos fizeram centrar o trabalho analítico na construção da anatomia psíquica da feminilidade e das angústias de B.

 

11. O traumático e o infinito

Hoje, passados mais de cem anos de prática analítica, nossos expedientes comuns se desenvolveram enormemente. Se no início uma análise durava semanas e se Freud podia recomendar a um paciente que se abstivesse de decisões sentimentais e econômicas durante esse processo, hoje ninguém estranha que uma análise dure anos e mesmo toda uma existência. O conhecimento no campo da psicanálise não para de se estender, como atestam nossas publicações. Se no início nossos temas podiam interessar a todos, hoje se tornam mais e mais especializados. A psicanálise, ainda que interesse a todas as disciplinas das humanidades, permanece no imaginário cultural como obra freudiana apenas.

Talvez sejamos os responsáveis por isso, pois fracionamos nosso conhecimento em especialidades e escolas. Nossos debates se tornaram disputas pela propriedade da verdade. Além disso, fracionamos nosso objeto em identidades psicopatológicas, o que nos trouxe problemas, sem dúvida – mas não só, pois ao mesmo tempo criamos um enorme acervo de procedimentos e conhecimentos práticos. Tornamo-nos mais potentes, desenvolvemos nossa base científica. Talvez, entretanto, tenhamos descurado da busca metapsicológica.

Freud nos deixa uma dupla herança: uma disciplina que põe em questão os modos tradicionais de pensar – e cujo objeto, o inconsciente, se desfaz quando exposto à luz – e um pensamento que é herdeiro da tradição e quer permanecer leal à sua origem iluminista.

Como judeu da Europa Central, Freud foi emancipado pelo ideal do iluminismo. (Lembremos que, quando os judeus foram autorizados a entrar em Viena, ele estava com quatro anos.) Os judeus, escreve Bauman em Modernidade e holocausto (1989/1998), amavam a cultura do iluminismo alemão e seus heróis: Kant, Hegel, Goethe, Beethoven e tantos outros. Amavam uma Alemanha que não existia mais e cuja atualidade não entendiam, o que os tornaria particularmente vulneráveis ao horror que se desenhava no horizonte. Bauman descreve como os judeus ironicamente se sentiam alemães, ainda que na maioria dos casos judeus assimilados convivessem apenas com outros judeus assimilados, sem obter fora do próprio meio a aceitação que tanto desejavam.

É difícil comemorar a condição de estrangeiro. Herdeiros que somos dessa tradição, não mantemos uma dupla cidadania? De um lado, temos uma disciplina eruptiva nas mãos; de outro, transigimos, tentando mostrar que nosso conhecimento habita a positividade do saber e que podemos ser recebidos pelos bem-pensantes. Definimos entidades patológicas, estabelecemos classificações, propomos estratégias terapêuticas – apenas para nos percebermos, em seguida, diante de formas universais, formas que habitam a todos. As categorias explodem, e retornamos ao infinito do nosso objeto: o inconsciente. Não temos alternativa senão voltar à metapsicologia, nossa morada, abrir suas portas e acolher, sem ilusões de dominação, o rosto do outro que dará sentido à nossa própria casa.

O paciente entra na sala: inicia-se a nossa tarefa. A pergunta poderia ser: Quem está aí? Quem sou? Estaríamos no campo da identidade, da busca da totalidade, da apropriação do objeto. Estaríamos no campo da ontologia ou do conhecimento positivo.

De outra parte, se afirmarmos que a ética é primordial, o gesto será diverso: será permitir a chegada do outro – permissão para sermos sequestrados, permissão para a existência do outro, permissão para que ele fale.

Estará incluída aí a permissão para que nos traumatizem (Quando o paciente entra na sala, dizia Bion, existem ali duas pessoas em pânico.) Isso fundamenta o convite à associação livre, a ser como não se pode ser em nenhum outro lugar. Se o paciente nada sabe de psicanálise ou mesmo se pensa saber, que misteriosa força o traz até esta sala? Talvez – à parte todos os desejos e transferências – exista nele a concepção prévia de uma possibilidade de ser. Assimetricamente, da parte do analista se espera a atenção flutuante, que também não será nenhum processo de abrigo pastoril. Será, isto sim, uma permanente disposição ao traumatismo.

Nessa conjunção, conhecer e ser conhecido faz parte de um anseio fusional, de realização de um desejo. O sentido é efêmero, será destruído por si só, deverá ser interpretado como um momento genital do encontro analítico. E, como nada é de fato apropriado, a busca permanecerá.

Ferenczi definia a busca do momento fusional como característica da genitalidade, e esse equívoco teórico talvez seja a origem dos seus equívocos clínicos. Esse momento compreensivo precisa de interpretação, para que seu caráter efêmero se explicite. Sua destruição, ou melhor, sua neutralização ou, melhor ainda, sua passagem de ato a representação permite manter a fertilidade do campo – aí a genitalidade, campo do infinito psicanalítico.

Quando comecei a receber pacientes que, vindos de análises com outros profissionais, pareciam virgens de qualquer percepção interna, eu inevitavelmente me perguntava se de fato haviam feito qualquer análise – e inevitavelmente tendia a atribuir uma superioridade aos meus recortes teóricos.

Se não foi a modéstia que introduziu a autocrítica, devo dizer que a constância do fenômeno me fez pensar que convinha procurar outra hipótese: os acontecimentos emocionais que haviam adquirido sentido ou contorno representativo desapareciam do encontro analítico; o que se apresentava no aqui-e-agora era o inevitavelmente novo – ainda não encontrara descanso numa representação.

Isso poderia ser estendido até o infinito. Em meus próprios casos, constatei que, tendo avaliado que um bom trabalho havia sido feito com aspectos recalcados e/ou cindidos, muitas vezes o que daí surgia não era alívio. Eram sintomas mais informes, psicossomáticos muitas vezes.

Sem recorrer à resposta preconfigurada da compulsão à repetição ou a uma hipotética pulsão de morte, sem transformar questões metapsicológicas em respostas pragmáticas, poderia supor, ainda me mantendo em campo clínico, que onde já não existem as memórias existirá o traumático.

Nossa tarefa, assim, seria esta: a partir de memórias desfeitas, possibilitar a existência do traumático na vida cotidiana. Nesse momento, o traumático e o infinito se apresentarão como par conceitual e par clínico. Par que tentará inevitavelmente caminhar pelos trajetos da genitalidade e do sentido – ele buscará inevitavelmente o ser ético, que lhe dará acolhida.

Não lidei aqui com a noção de infinito como o sem-limites, o desmesurado. Evitei equiparar a noção de infinito ao conceito freudiano de sobredeterminação, que contém em si a proposta de apropriação do objeto (Gabbard, 2007). Tampouco considerei endógeno o infinito, como o fazia Descartes (1641/1983) para provar a existência do divino. Acompanhei Levinas (1961/1988), para quem o infinito provém do exterior, como algo que nos interroga e nos desafia pela presença de um rosto que jamais poderá ser possuído.

No plano da inserção profissional, essa abertura para o infinito me permitirá ainda apreender nosso objeto de interrogação por novos ângulos, ao ouvir colegas que elaboram seu pensamento segundo sistemas de que discordo.

Não por acaso, mesmo quando partimos de uma experiência prática comum, podemos escolher relatos de situações clínicas muitíssimo diferentes entre si. Isso faz parte das nossas convergências e divergências, as quais garantem os sentidos da nossa conversa. E, cada um de nós possuindo recortes pessoais da metapsicologia, teremos, assim, atos infinitos contra um fundo infinito. Para o exercício da clínica, isso implica uma inversão radical: a primazia do conhecimento cede lugar ao desafio de uma ética sempre por atingir. O fundamental é dar licença para que o rosto do outro, na singularidade inescapável da situação analítica, tenha voz e fale.

A busca do que está além, o desejo metafísico, o movimento de encontro do traumático e do genital presidem a busca da transcendência e, portanto, da utopia, que estará necessariamente no horizonte do nosso saber e da nossa prática, e talvez – por que não? – das nossas convergências e divergências.

 

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Endereço para correspondência
Leopold Nosek
Rua Baltazar da Veiga, 24, Vila Nova Conceição
04510-000 São Paulo, SP
E-mail: nosek@terra.com.br

Recebido em: 8.5.2009
Aceito em: 20.5.2009

 

 

1 Conferência apresentada no 46o Congresso da Associação International de Psicanálise. Chicago, 29 de julho a 1 agosto de 2009. ipa – Psychoanalytic Practice: Convergences and Divergences.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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