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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

TEMÁTICOS

 

Sobre instituições, inclusive as nossas

 

Acerca de las Instituciones, incluyendo las nuestras

 

On Institutions, including ours

 

 

Plinio Montagna1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor discorre sobre aspectos dinâmicos e operacionais de funcionamento das instituições, fatores de resiliência e a oposição indivíduo/grupo dentro da estrutura organizacional, ocupando-se, a seguir, de especificidades desses aspectos nas instituições psicanalíticas, tal qual existem hoje.

Palavras-chave: instituição psicanalítica; resiliência; identidade; cisão; formação psicanalítica; oposição indivíduo/grupo.


RESUMEN

El autor discute aspectos dinamicos y operativos del funcionamiento institucional, de los factores de la resistencia, e la oposición individuo/grupo dentro de la estructura de la organización, ocupandose de las especificidades de aspectos en las instituciones psicoanalíticas, tal como existen hoy.

Palabras clave: Institución psicoanalítica; identidad; resistencia; oposición individuo/grupo; entrenamiento psicoanalítico.


ABSTRACT

The author discusses dynamic and operative aspects of institutional functioning, resilience factors, group/individual opposition within the organizational structure, and then the specificities of the psychoanalytical institutions, as they exist today.

Keywords: Psychoanalytical institution; identity; resilience; splitting; group/individual opposition; psychoanalytical training.


 

 

I

O termo instituto, a partir do francês no fim do século XVIII, passou a significar "uma organização que promove uma causa ou uma finalidade particular (Ayto, 2008). Originase do latim statuere, pôr de pé, estabelecer, levantar, erigir, construir, resolver, decidir, cujo particípio passado é statutum + o prefixo in, que indica: em, dentro de, à maneira de, conforme. Aparentado etimologicamente tanto a prostituta – estabelecer diante de, em frente, em público – a idéia de sexo por dinheiro não está na origem da palavra, nesta se afirma mais a exposição pública – como a estatuto, estátua, próstata. Instituição é o ato de instituir, criar, ou então a própria criação, estabelecimento. Trata-se de uma associação de caráter social, científico, religioso, educacional, filosófico etc. Pressupõe certa permanência e é identificável por seus códigos interiores. Tem como ação alguma ordenação das condutas dos indivíduos que a compõem, ou eventualmente a sociedade como um todo. Organiza interações e implica estruturas e mecanismos.

As instituições operam como continentes de contidos diversos, sendo que a qualidade da interação dialética entre ambos, na vigência da necessidade de mudanças, configurará seu modo de permanecer. Uma estrutura/função continente pode ser suficientemente sólida para albergar um amplo espectro de movimentos do contido (eventualmente pulsionais também), mas será instada a mudanças se a pressão do contido for muito forte, ou se este fizer transbordar, ultrapassar a possibilidade de conter do continente. Estará em jogo a plasticidade da estrutura/função continente. O raciocínio se inverte se tomarmos a instituição como contido e os indivíduos como tendo que dar continência a ela. É interessante também utilizar esse raciocínio para a configuração da relação de cada uma de nossas sociedades psicanalíticas com a IPA, de modo que ora uma, ora outra, funcione como continente ou contido. Também é interessante que, se frequentemente a IPA esteve ou está a reboque dos avanços societários, o contrário também pode suceder, não apenas na teoria como na prática propriamente dita do exercício institucional.

Esses dois conjuntos, indivíduo – instituição (e, nas instituições psicanalíticas a que pertencemos, sociedades componentes – IPA), inserem-se num metaquadro sociocultural que da mesma maneira mantém relações de continente/contido, de duas vias, com eles. Kaes (1997) sugere que a instituição precede a seus integrantes, inscreve-os em suas malhas e discursos; com isso descentra o sujeito, afetando seu narcisismo e, por outro lado, este estabelece um tipo de relação com ela que ajuda a sustentar algo de sua identidade. Essa duplicidade supõe que ao lidar com ela enfrenta, ao mesmo tempo, fatores constitutivos de identidade e de alienação, já que partes do self "estão fora de si mesmo", como diz ele, de modo que ao mesmo tempo que engendra identidades, a instituição dessubjetivisa, dispersa, aliena, exteriorizando um espaço interno, fazendo-o germinar fora do sujeito. Para esse autor, isso é necessário para a realização das funções capitais dessa instituição, que é fornecer matrizes comuns e identificadoras, dar status às relações das partes e do conjunto, unir estados não integrados, indicar limites e as transgressões, dramatizar movimentos pulsionais.

A meu ver, esse engendrar/descentrar identidades constitui, a rigor, o paradoxo maior das instituições e das relações interpessoais dentro dela. Decerto surgirão individualmente núcleos anti-institucionais a serem trabalhados. Este paradoxo também afeta o entorno institucional, fora da instituição propriamente dita ou de suas extensões. Na psicanálise, ainda que um indivíduo tenha um percurso de formação fora da instituição (eu me refiro a um instituto ligado a uma sociedade da IPA), ele provavelmente se relacionará a esta, que sem dúvida é referencial na área.

O "descentrar alienante" do indivíduo pela instituição inclui ação de restos superegóicos e pulsionais e toda e qualquer espécie de fragmento projetado no sistema social, aliado aos mesmos elementos e os egoicos das demais alteridades. Opõe-se a uma autonomia à medida que "forças obscuras que em mim dominam, agem por mim, "atuam-me", como pontuou Groddeck (1923). Castoriadis (1975, p. 124) contrapõe a autonomia ao discurso do outro. Aqui, "meu discurso toma o lugar do discurso do Outro, de um discurso que está em mim e me domina". É preciso destacar, como aponta ele, que o Outro de início é o casal parental. Para esse autor, este é um discurso que serve à instituição social, de modo geral.

Penso que o "ego institucional" é mais amplo que a instituição propriamente dita. Assemelha-se ao espaço do "si mesmo corporal", tão enfatizado pelo psicodrama. Se por exercício alguém se aproximar de nosso corpo e ficarmos atentos ao momento em que nos sentimos tocados ou invadidos pela presença corporal alheia, verificamos que este momento dar-se-á antes de haver um contato real no corpo propriamente dito, ou seja, há uma zona externa ao corpo que tomamos como delimitação de nosso espaço corporal, ou nosso si mesmo corporal (ou self corporal).

Freud, em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/1961), afirma: "A oposição da psicologia individual à psicologia dos grupos, que pode nos parecer muito significativa à primeira vista, perde sua acuidade quando examinada mais profundamente" (p. 69). Seguindo, ele afirma que a psicologia individual só raramente, em condições excepcionais, consegue abstrair as relações do indivíduo com outros indivíduos. N a vida psíquica, diz ele, "o outro intervém regularmente, como modelo, aliado e adversário e é por isso que a psicologia individual sempre foi desde o início uma psicologia social, nesse sentido ampliado, mas totalmente justificado".

De todo modo, há uma contradição inevitável, nas instituições entre a instituição e as individualidades que a compõem, e isto é aguçado nas instituições psicanalíticas, particularmente na formação, à medida que a psicanálise se refere à radical busca do singular, implicando isto também na singularidade ímpar de cada psicanalista. Para isto, é preciso que se estimule a liberdade e a criatividade, a busca pelo novo em cada percurso, em cada psicanálise individual. Há que se cultivar a instituição como auxiliar do ego, não como estrutura superegoica. Para isto operar de modo mais produtivo, é necessário eclipsar a instituição dentro de cada um de nós. Isto só pode se dar, de fato, com o desenvolvimento integrado, saudável, de uma identidade psicanalítica própria. Ou, em outras palavras, na ótica winnicottiana, é preciso matá-la para poder utilizá-la com propriedade.

 

II

É interessante estender a observação sobre funcionamentos institucionais.

Se um grupo está operando cooperativamente com uma finalidade comum, preservando primordialmente a tarefa para a qual ele está constituído, com a capacidade de estabelecer contato com a realidade, com vistas a seu desenvolvimento, ele está, naquele momento, funcionando tal qual Bion (1961) descreveu como grupo de trabalho. Ele opera centrado na tarefa, de modo análogo ao ego, como postulado por Freud (1911/1961). A comunicação verbal impera e seus métodos são racionais.

Mas, como diz Bion (1961), "a atividade do grupo de trabalho é obstruída, desviada (e ocasionalmente ajudada) por outras atividades mentais que possuem em comum o atributo de poderosos impulsos emocionais" (p. 134). Aí ele pode estar controlado pelo que o autor chama de "suposições básicas", caso em que se configura um outro tipo de funcionamento, dominado por essas "complicações" involuntárias, inevitáveis e automáticas. N esse funcionamento, Bion propõe três tipos de configurações usuais: os supostos básicos de dependência, luta e fuga e acasalamento, dependendo do tipo prevalente de emoções presente, as quais agem como um "cimento" que mantém o grupo unido. N esses casos, o grupo funciona com algumas características da posição "esquizoparanoide". O grupo funciona a partir de preconceitos específicos que obstaculizam seu desenvolvimento.

A tarefa aí é procurar trazer de volta o grupo a um funcionamento operativo. N a prática grupal ou institucional, é frequente a observação de fenômenos afetivos que podem emperrar um desenvolvimento de trabalho. Sonegação de informações, evidente dificuldade ou negatividade a se entregar, rancores e ressentimentos, temores fundados ou infundados, não verbalizados, modos dúbios de comunicação etc., podem ser paralisantes.

Uma das angústias mais fundamentais do ser humano, como sabemos, está relacionada à polaridade inclusão/exclusão. Isto é tão marcante que são descritas mortes concretas, algumas vezes, posteriormente a mortes sociais por exclusão grupal. Esta é também uma das questões mais fundamentais na relação dos indivíduos com as instituições e notadamente com as instituições psicanalíticas. Tanto na formação como na dinâmica da pertinência a uma instituição que por muito tempo primou pela normatização, facilita condutas muitas vezes de primazia superegóica, e não egóica, de características de falso self e não de verdadeira expressão de si mesmo, de identificações orbitais e não de incorporações nucleares, conforme a descrição de Wisdom (1961). Automatização e pasteurização de condutas são fenômenos frequentes. Um interessante trabalho de Sandler (2001) postula o binômio "alucinose de exclusão/pertinência" como um quarto pressuposto básico, agregando-o aos três originais de Bion. Pode-se dizer que também para as instituições, para usar o objeto, é preciso "matá-lo" para assim fazer uso dele como um objeto externo, com o qual a relação permanece viva.

Para a existência de uma área institucional de segurança e conforto que dê suporte a movimentos conjuntos expansivos, vitalizantes, outro fator grupal é a confiabilidade. A confiança na instituição e entre seus membros é da maior importância para coesão e crescimento, manifesta-se liminar ou subliminarmente ao exterior dela, transcendendo os limites da instituição, como uma vitrine da própria confiabilidade institucional. Isto se dá porque confiabilidade deve parear comunicações verdadeiras.

Nessa condição, o lúdico terá espaço natural. Por outro lado, um dos fatores mais frequentes e desgastantes nas relações intrapessoais dentro de uma instituição se refere à ideia de que aquilo que é dito não é exatamente aquilo que a pessoa está pensando, querendo, que existe um jogo por trás de uma afirmação, de forma que o que se oculta é o que, a rigor, importa e corresponde à verdade. A presunção de ocultamento e de mentira, de engodo, de que o não dito é mais real do que o dito, torna-se causa de paranoias institucionais bastante deletérias. Este tipo de asserção se assenta em qualquer situação em que um jogo político está em questão, mas por outro lado, um entendimento só pode ocorrer caso se tome aquilo que se coloca na mesa como algo confiável. N essas situações um tanto paranoides, quando elas existem, é uma suposição de que aquilo que não é dito é deliberadamente ocultado por intenções outras do interlocutor. É claro que o tipo de liderança pode contribuir para acentuar ou diminuir uma qualidade paranoide na atmosfera institucional.

Sob outra ótica, os elementos referidos relacionam-se também a maior ou menor grau de fundamentalismo da instituição em si, de grupos dentro dela ou de membros com influência marcante. Do mesmo modo que no exemplo acima de limite de ego corporal, todos nós temos um sistema de valores, crenças fundamentais, hábitos, que, caso ameaçados, nos perturba. Atravessado esse umbral, não há discussão ou racionalidade possível. Isso se dá com qualquer pessoa e se refere a qualquer que seja o tipo de valor ou crença que lhe seja fundamental. É um espaço religioso, dependendo do modo como usamos o termo. O fundamentalismo propriamente dito, assim como costumamos concebê-lo, é o indivíduo que acredita, literal ou metaforicamente, na infalibilidade literal da sua escritura (Phillips, 2008). Mas, a rigor, este difere em grau e não em qualidade daquele que não consideramos fundamentalista, por exemplo um democrata, o qual também não negocia seus princípios. Desse modo, discorre aquele autor, o fundamentalista e o não fundamentalista acreditam que o outro se recusa a ver aquilo que ele considera verdadeiro.

A amplitude do espaço não fundamentalista, que a meu ver em parte coincide com o espaço lúdico, numa instituição, bem como numa relação bipessoal nos trocas intrainstitucionais, oferece a margem de segurança no funcionamento das instituições. Nesse sentido, a negação da pluralidade no campo psicanalítico e a noção de que há apenas uma psicanálise verdadeira e uma forma de difundi-la e organizá-la nega a possibilidade de reflexão e reflexividade transformadoras, próprias de uma sociedade aberta (Leal, 2001).

Espera-se de uma instituição equilibrada, na área psicanalítica, que congregue recursos humanos e outros, devidamente organizados, para a promoção de desenvolvimento de seus membros, contatos com informações necessárias e interações humanas dentro de um marco de cooperação, num movimento de sinergia que confere aos participantes algo que não seria possível de outra maneira.

As estruturas institucionais, então, não são externas aos indivíduos, à medida que esses é que as compõem e que as modelam. Mas como o todo é maior do que as partes componentes, o que ocorre é esse movimento de duas vias, de ir e vir, entre os indivíduos e a estrutura gestalticamente diferente da soma deles, de modo que nesse interjogo se constitui a identidade institucional.

A resiliência das instituições psicanalíticas pode ser vista como a capacidade de permanecer viva como organismo, confiável como elemento de referência científica e de atendimento, preservando suas finalidades diante das transformações macro e microculturais e sociais com que tem que se deparar, enfrentando crises sem se fragmentar. A capacidade de lidar com o imprevisto, com crises, faz parte dessa perspectiva. Temos discutido informalmente com colegas, particularmente Alfredo Colucci (2009) e Humberto Menezes (2009) algumas noções institucionais e finalidades que hoje em dia se colocam como missão da Sociedade. Pensamos que a finalidade (missão) precípua de uma instituição psicanalítica é "favorecer as melhores condições a seus membros para a prática de psicanálise". Isto inclui aspectos científicos, institucionais, profissionais, relacionais etc. É importante tentarmos conciliar as demandas dos membros sem perder o foco, e levando em conta a necessidade de se tomar decisões em situações de incerteza, riscos, procurando alguns parâmetros para enfrentar os desafios.

Reason (2001) descreve fatores que contribuem para a resiliência institucional, por exemplo, de companhias que têm que preservar uma cultura de segurança, e propõem o compromisso, o conhecimento e competência como fatores que se entrecruzam com princípios, filosofia, procedimentos e prática para a navegação num espaço que minimize vulnerabilidades de todos os âmbitos.

Uma outra ameaça potencial, que põe à prova a resiliência das instituições psicanalíticas é o risco de cisão. Atualmente, estuda-se na IPA, a criação de um comitê que possa trabalhar nas sociedades quando houver indícios de uma dinâmica nessa direção, ainda em estágio inicial e se houver solicitação. A detecção precoce do potencial fragmentador pode evitar desagregações.

As motivações para as cisões em instituições são várias. É melhor pensá-las como somatória, conjunto em que há um ou diversos fatores predominantes. Sempre se trata de movimentos complexos, de pluricausalidade. Disputa por poder, líderes carismáticos e/ou autodestrutivos, fundamentalismo de uma facção, incompatibilidade teórico-conceitual, lideranças narcísicas, questões de realidade externa tais como econômicas, discordâncias ideológicas, políticas, éticas, ações desastradas da própria IPA no passado, necessidades de buscar novos espaços, oxigenação de ideias e horizontes, busca de espaço próprio etc., podem estar em jogo. Combinações múltiplas de todas as anteriores estão em questão. Um outro fator a ser levado em conta é a impossibilidade de suportar, dentro da instituição, o crescimento, vivido como ameaça de catástrofe. Descrita por Bion em diversos momentos, a mudança catastrófica é uma mudança que desarranja os estados anteriores, provoca profunda mobilização de inúmeras emoções, tais como raiva, dor, tristeza, frustração, alegria, perplexidade, culpa, remorso, euforia, orgulho, e representa uma espécie de traição ao status quo anterior. A origem do termo vem de cata (novo) estrofe (estrofe), que era uma cena nova àquela apresentada pelo coro no teatro grego (Rezende, 1993). Às mudanças, existem sempre resistência que podem emperrar o desenvolvimento, ou podem favorecer a perspectiva de uma ação levada a cabo num marco de pensamento, de exame mais minucioso da propriedade das modificações. Princípios como verdade, bondade, utilidade, são bons referentes (Lisondo, 2004). Verdade e utilidade seriam parâmetros dentro de perspectivas diversas, moral, ética, religiosa, mística, ideológica.

 

III

Eventualmente uma instituição não resiste e se cinde. Há cisões benignas ou malignas, separações que favorecem ou dificultam o crescimento das partes.

Às vezes não é tão fácil distinguir entre aquelas em que predomina Eros ou, ao contrário, Tanatos. Vou dar um exemplo simples, a partir de uma vivência curiosa. No encontro dos presidentes de sociedades no último Congresso da IPA de Chicago, este foi o tema em discussão. Três trabalhos em plenária – Aisenstein, 2009; Perdigão, 2009; Ungar, 2009 –, iniciaram o encontro, que seguiu com a reunião de três subgrupos compostos pelos presidentes presentes. Participei de um deles. Após as apresentações iniciais, passamos a discutir experiências próprias ou não de cada sociedade sobre fatores que podiam levar à cisão, além de o que ocorria após a cisão. A discussão corria ainda em fase inicial, vinte ou 25 minutos de encontro, quando um dos participantes, um colega de uma sociedade europeia, pequena, apontou que aquele grupo, composto de 25 pessoas, não teria um tamanho bom para a discussão. Disse que ganharíamos muito se nos dividíssemos em dois subgrupos menores, aí sim de tamanho que favoreceria o aprofundamento da discussão. Eu me surpreendi com essa fala, ponderei que esta era uma proposta curiosíssima face ao tema da discussão, e que talvez fosse o caso de, em vez de elencarmos fatores de cisão em nossas experiências em cada instituição de origem, poderia ser interessante nos dedicarmos àquela situação grupal naquele momento. Confesso não ter recebido nenhum apoio naquele momento, fora um esboço de apoio por parte de uma colega americana, embora mais adiante dois ou três outros participantes retornaram a esta fala para concordar que de fato era curioso o fato e que poderíamos ter tomado aquele rumo. Mas o que seguiu foram argumentos a favor e contra a divisão propriamente daquele grupo. Alguém observou que não haveria outras salas vagas no local do Congresso, ao que se respondeu que, sendo aquela sala bem grande, cada subgrupo poderia ocupar uma extremidade dela e conversar sem que o som perturbasse o outro. Afinal o grupo decide votar. Curiosamente, por 13 votos contra 12 o grupo decide se manter como está, sem se dividir. Uma discussão de splitting na qual em vinte minutos, quase dá-se um splitting grupal. Pode-se conjeturar muitas possibilidades, mas ali uma consideração óbvia na votação era: onde estaria o lado mais construtivo operativamente? Ou, talvez, qual seria a decisão a favor de Eros e qual aquela a favor de Tanatos? Treze a 12. Ganhou Eros? Às vezes, na vida, numa psicanálise ou nas instituições, só temos uma apreensão mais ampla de uma situação quando ela ocorre em seu limite. Situação-limite é um termo utilizado por Karl Jaspers, e ultimamente por Roussillon (2005), para se referir a uma situação "que funciona como reveladora da experiência. Ou de questões que não são apreensíveis em sua plenitude existencial a não ser num modo certo de passagem no limite. Reciprocamente, ela permite recuperar de outro modo certos registros de funcionamento mais ‘típicos', ou considerados como tais, dos quais faz aparecer alguns aspectos mantidos em estado latente nas situações normais" (p 257). Mais do que um après coup, esta noção lembra nosso vivenciar do tempo presente, a rigor apreendido também por retrospecção (Montagna, 2008) .

Numa instituição, as situações-limite podem se dar tanto numa dimensão de expansão quanto de encolhimento. Se excessiva pode estourá-la e, ao contrário, se retrativa, pode "murchá-la". Este é também um dilema de nossas instituições, que precisam funcionar num espaço de segurança, mas que deve ser povoado por tensão suficiente para seus movimentos vitais. É como uma corda de violão: há que haver tônus para a música soar, tensão muito grande a rompe, muito pouca resulta em frouxidão que não toca. É a questão do fazer analítico também. Tanto os polos do positivo como do negativo estão em pauta.

Nas mudanças, cria-se um espaço "trans", por vezes muito difícil de ser atravessado sem grandes perdas. Por outro lado, pode ser um momento ímpar para aprendizado comum, e, se o grupo sobrevive, pode ter amadurecido com as turbulências. Por outro lado, o encolhimento pode levar à burocracia, e este limite de sinal menos (–) cai, por vezes, na burocracia.

O conflito dentro da estrutura da IPA tem sido forte entre esses dois polos, sendo que a adoção dos três modelos de formação abriu espaço para uma expansão, a meu ver, de outras funções com mais vigor, que vão muito além da normatização. A pertinência à IPA passa hoje também por discussão das subjetividades.

A IPA, sabemos, é o corpo por excelência regulatório e de acreditação para a psicanálise. Sua missão é assegurar vigor e desenvolvimento da psicanálise, por meio de atividades em várias áreas e serviços a seus membros. Para brevemente mencionar sua história cronológica, seguirei três categorias de informação, tal como propõem Young Bruehl e Dunbar (2009). Fundada em 1910, com a reunião de um grupo de psicanalistas em torno de Freud, compôs-se, até 1914, de cinco sociedades-chave (Viena, Budapeste, Berlim, Londres e N ova York). "Em moratória" (sic) durante a primeira guerra, ressurgiu com força nos anos 1920, acompanhando a obra de Freud, expandindo-se dentro da Europa, fundando-se uma sociedade no Japão em 1928, e no Brasil a primeira tentativa de se fundar uma sociedade se deu com Durval Marcondes, em 1928, que fundou a Sociedade de Psicanálise de São Paulo, a qual foi vingar na segunda metade da década de 1930, formando-se como grupo de estudos da IPA na década de 1940, e oficializando-se como sociedade em 1951. Na década de 1930, na América Latina, fundou-se a Associação Argentina. Com a morte de Freud em 1939, a primazia de aceitação daquilo que seria ou não psicanálise passou a caber à instituição e não mais a um indivíduo.

Ao aproximar-se o fim do século XX, a coexistência da pluralidade de doutrinas deflagra a discussão, a partir de Wallerstein (1988, 1990), da discussão sobre o que seria o campo comum da psicanálise. Um vivo interesse por encontrar "aquilo que nos une" prevaleceu sobre a ameaça de que as diferenças seguissem na linha da desagregação.

Otto Kernberg (1993) publicou um artigo que marcou época, comparando elementos técnicos comuns e divergentes nas diversas correntes psicanalíticas. Ele detecta, por exemplo, áreas de convergência técnica entre kleiniano, britânicos independentes, psicologia do ego, corrente principal francesa (não lacaniana), interpessoais e psicologia do self. Ele verifica, por exemplo, como convergentes: uma menor ênfase na centralidade dos sonhos e maior na interpretação cedo da transferência etc.

No momento atual da IPA, seu presidente, Charles Hanly (2009) propõe aos membros a tarefa de procurar encontrar modos de contribuir para a integração da teoria psicanalítica, à medida que o conhecimento confiável da realidade psíquica possibilite isso. Seu propósito é tentar esclarecer as diferenças teóricas onde existam diferenças logicamente irreconciliáveis e buscar caminhos para buscar resoluções disso, e apontar onde existe uma efetiva concordância.

 

IV

Assim, a IPA é uma entidade plural, o que não deve ser confundido com pluralista. Há Sociedades ou grupos plurais e outros não propriamente plurais.

A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nossa instituição psicanalítica de pertinência, é também, dentro da IPA, uma sociedade plural. Hoje, 25 de novembro de 2009, congrega 762 pessoas. São 178 membros efetivos e 270 membros associados e seu Instituto de Formação conta com 316 membros filiados, nomenclatura que agora substitui estatutariamente a de candidatos. Acentuo que no dia de hoje somos 762 porque a qualquer momento poderão entrar ou sair uma ou mais pessoas, mudarem de status institucional etc.; afinal de contas, trata-se de um sistema vivo, por meio do qual ganhamos pertinência à Febrapsi, Fepal e IPA.

É certo que nós psicanalistas não somos afeitos a números. Freud, desde o "Projeto...", buscou delimitar fatores e momentos em que as intensidades, as quantidades, se transformam em qualidades. Em nossa prática lidamos basicamente com qualidades, não obstante as quantidades estejam presentes no mais das vezes adjetivando os substantivos. E isto a tal ponto que, se recorremos a adjetivos que quantificam os fenômenos que procuramos entender – por exemplo, impulso de morte excessivo, identificações projetivas maciças, muita ansiedade etc., fica por conta do ouvinte imaginar do que se trata, já que isso é muito relativo. Grosso modo podemos nos comunicar dessa maneira, podemos "intuir" o que se quer dizer, mas não o sabemos de fato, pois o muito e o pouco seguramente são medidas que em nossa subjetividade não rima com certeza, nem tampouco com precisão.

A psiquiatria atual se baliza por escalas quantitativas e nós, psicanalistas, temos clareza do empobrecimento que isso, dependendo de seu uso, pode trazer à consideração de nosso tema, a subjetividade humana. A rigor, quantidade, nas expressões acima, são para nós medidas que imaginamos existir pelos seus efeitos. Ou seja, a posteriori. Por exemplo, o resultado daquilo que se pode supor uma identificação projetiva maciça é que nos move a imaginar que a identificação projetiva tenha sido efetivamente maciça, se é que de fato sabemos do que estamos falando. A linguagem científica, particularmente a das ciências exatas, busca a objetividade concreta, ao passo que a nossa navega pela metáfora (Montagna, 2007).

As Sociedades psicanalíticas têm a característica de que seus membros chegam a ela pelo Instituto, uma vez concluída a formação. Frequentemente nela permanecem a vida inteira, embora por inúmeros motivos haja também desligamento de membros. Os estatutos de nossa Sociedade rezam que quem completa 75 anos de idade e tem pelo menos 25 anos de ligação com ela, ou seja, vinte anos após completar a formação no Instituto passa a ser isento de suas contribuições financeiras, até então obrigatórias. Isso é relevante de muitos ângulos, inclusive os administrativos.

Com as necessidades de atualização permanente, informáticas, outras, com inflação existente ao longo dos anos, em maior ou menor índice, se não nos mantivermos atentos, poderemos ter problemas. Uma avaliação precisa do número de novos membros que precisamos para preservar a saúde institucional requer expertise profissional, transcende nossa possibilidade de trabalhar essa questão sem auxílio externo. Se queremos crescer, isto acrescenta outras variáveis. Muitas vezes precisamos crescer, é nesse processo que exercitamos e renovamos nossa vitalidade.

A IPA também lida com essas questões, pois seus membros são os membros das Sociedades ligadas a ela. Seu número tem grande potencial de crescimento em países onde a psicanálise está apenas se iniciando, particularmente a China, quase "um planeta à parte no planeta Terra", por sua população monumental. N ossa psicanálise está sendo, aos poucos, introduzida lá e talvez haja uma perspectiva de crescimento considerável, dependendo também de nossos acertos e erros. Já existem grupos de estudo na Coréia, Africa do Sul, Russia, e vai-se nossa bandeira na Turquia, Líbano, norte da África, Armênia, lugares antes impensáveis e surpreendentes, além de, na América Latina, além de todos os países da Fepal, em Honduras, Panamá e Paraguai. O Brasil tem dado mostras de consistência nessa expansão, dentro do país, com a ABP, agora Febrapsi. Na década de 1990 e na virada dos anos 2000 tive a oportunidade de conhecer de perto a produção escrita de analistas de vários pontos do país, e posteriormente viajar a muitas cidades como membro da diretoria da ABP. Sempre me impressionou, da Amazônia ao Sul, o talento e a potencialidade que muitos jovens, nas diferentes latitudes, mostraram em relação à psicanálise. E quem vive de perto o Instituto de uma Sociedade como a de São Paulo, e estou seguro de que muitas outras, não pode deixar de se regozijar com a tenacidade e disposição dos que por anos a fio viajam por vezes mais de mil quilômetros por semana para levar adiante sua formação psicanalítica com seriedade e consistência. Quantidades e qualidades se encontram aqui novamente, aqui sem perturbação, uma pela outra. Mesmo porque, como psicanalistas, por mais que falemos das questões externas, precisamos manter sempre um olho voltado para dentro.

Nesse sentido, se tivermos criatividade, organização, coesão e competência, poderemos aproveitar 2010, ano do centésimo aniversário da IPA, para colocar nossa psicanálise na pauta de muitas discussões e debates cultura afora, já que cruzamos o século renovando o interesse por nossa arte, e com apelo, apesar do cerco que tentam nos fazer aqueles indispostos com nosso saber. É preciso ter claro que, se crise houve ou há, pode ser dos ou de psicanalistas, já que o corpo clínico conceitual da psicanálise se desenvolve com vigor indiscutível. É dentro da IPA que se promove a discussão maior e o crescimento de nosso saber, já que somos uma instituição de mais de dez mil membros, plural, composta por diferentes correntes de pensamento que atualmente conversam e se fertilizam mutuamente, não raro. É muito diverso o que ocorre no interior da IPA daquilo que frequentemente se dá nas sociedades monoautorais, engessadas pelas suas culturas baseadas em meros exercícios exegéticos, dispensando a aventura do novo.

É disso que não podemos prescindir em nossa instituição: do gosto pelo novo, sem, contudo, abandonar o melhor de nossas tradições.

Finalizando, enfatizo que não se pode subestimar jamais a importância do ambiente institucional na formação psicanalítica. N ão é à toa que hoje em dia circule a ideia, em vez do tripé de formação (análise didática, supervisão, seminários), a formação psicanalítica se baseia num quadripé, sendo este quarto o ambiente institucional (Montagna, 2009).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Plinio Montagna
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Gracindo de Sá, 71 – Jardim Paulistano
01443-080 São Paulo, SP
Tel: 55 11 3368-3364
e-mail: pmontagna@uol.com.br

 

Recebido em 1.12.2009,
aceito em 10.12.2009

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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