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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

INTERCÂMBIOS

 

Figuras da protomelancolia1

 

Figuras de la proto-melancolía

 

Figures of protomelancholy

 

 

Jean Claude Rolland,2 Lyon

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O autor expõe, nessa conferência, uma perspectiva instigante sobre a origem da melancolia e as vias de sua inseminação. A melancolia reside no cerne daquilo que move a trama edípica, humana, ou, mais precisamente, abriga o potencial aniquilador de sua própria realização. O incesto, como fonte do desejo, quando levado às suas últimas consequências, visa a abolição da alteridade dos protagonistas e suas moções, e com isso o sumiço do próprio palco da cena edípica, revertendo, assim, a tensão do desejo e sua estruturação para o da morte, almejando união no nirvana. Nesse extremo retorno nostálgico ao uno melancólico, na destruição da diferença, situam-se as psicoses. O autor inicia retomando o relato de Binswanger sobre um caso de psicose e sua interlocução a este respeito com Freud, a partir do que é inserida a criação literária, bem como material clínico do autor, utilizados para desenvolver a idéia de que todas as psicoses, sem exceção, encontram-se na filiação da melancolia. Essa abolição ou reversão no contrário, da vida em morte, é focada no seu desdobramento no campo da transferência. Nessa há a abolição de qualquer representação dessa ação de reversão, o que leva o autor a nos desafiar a poder enxergar a trama edípica. O efeito destrutivo maior se encontra aí. Das psicoses ele passa para outra série de configurações clínicas onde a protomelancolia se enuncia em estados da normalidade quando o trabalho de luto revela-se infindável devido ao impasse em poder se perder de vista do objeto que se retirou da cena. As consequências são aqui também dramáticas.

Palavras-chave: pulsão; reversão no contrário; psicose; transferência; protomelancolia.


RESUMEN

El autor expone, en esa conferencia, una perspectiva instigadora sobre el origen de la melancolía y las vías de su inseminación. La melancolía reside en el origen de aquello que mueve la trama edípica, humana, o más precisamente, alberga el potencial aniquilador de su propia realización. El incesto, como fuente del deseo, cuando es llevado para sus últimas consecuencias, busca la abolición de la alteridad de los protagonistas y sus acciones, y con eso la desaparición del propio escenario de la escena edípica, revirtiendo, así, la tensión del deseo y su estructuración para el de la muerte, y deseando la unión en el nirvana. En ese extremo retorno nostálgico al uno melancólico, en la destrucción de la diferencia, se sitúan las psicosis. El autor inicia con la descripción de un caso de psicosis por Binswanger y su interlocución con Freud, pasando a describir los suyos, y auxiliándose también por la descripción literaria para sustentar que todas las psicosis, sin excepción, se encuentran en la filiación de la melancolía. Esa abolición o reversión en el contrario, de la vida en muerte, él la enfoca en su desdoblamiento en el campo del traspaso. En ella hay abolición de cualquier representación de esa acción de reversión, lo que lleva al autor a desafiarnos en poder percibir la trama edípica. El efecto destructivo mayor se encuentra ahí. De las psicosis él pasa para otra serie de configuraciones clínicas donde la proto-melancolía se enuncia en estados de la normalidad cuando el trabajo de luto revela ser sin fin debido a la encrucijada en poder perderse de vista del objeto que se retiró de la cena. Las consecuencias son aquí también dramáticas.

Palabras clave: pulsión; reversión en el contrario; psicosis; traspaso; proto-melancolía.


ABSTRACT

The author explores, in this conference, an instigating perspective of the origin of melancholy and its routes of insemination. Melancholy resides in the core of that which drives the human Oedipal scheme or, more precisely, it contains the annihilative potential of its realization. Incest, as a source of desire, when taken to its ultimate consequences, has as its object the abolition of the otherness of protagonists and their motions and, with such, the disappearing of the very stage of the Oedipal scene. As such, the tension of the desire is reverted, along with its structure, towards death, craving union in nirvana. In this nostalgic and extreme return to the state of melancholic fusion, in the destruction of differences, is where psychoses lie. The author begins with the description of a case of psychosis by Binswanger, and the interlocution with Freud, proceeding to describe his own cases, taking support also from literary description in order to sustain that all psychoses, without exception, are found in the same frames of filiations with melancholy. The author focuses this abolition or reversal into its opposite, of life into death, in its development in the field of transference. In this, there is the abolition of any representation of the above reversal, which leads the author to defy us to detect the Oedipal scheme in the analytic dialogue. Therein lies the greatest destructive effect. From psychoses, the author goes to another series of clinical configurations, where proto-melancholy expresses itself in states of normality, when mourning is revealed to be endless due to the impasse of the subject in alowing himself to be lost from sight of the object which was driven out from the scene. Here, too, consequences are dramatic.

Keywords: Drive; reversal into its opposite; psychosis; transference; protomelancholy.


 

 

"Um pai coloca um caixão, de presente, embaixo do pinheiro de Natal para a filha que sofre de câncer"3. Esse é um dos exemplos através do qual Ludwig Binswanger, tentando fundar uma análise existencial da psicose, ilustra o exagero, a distorção que, aos seus olhos, caracteriza o modo psicótico de "ser-no-mundo". Este exemplo não é tomado de uma situação psicótica comprovada, mas envolve um homem público conhecido e tão importante que o autor omite todas as informações sobre sua estranha personalidade. Mas, escreve ele, "por estarmos situados na experiência natural, tal comportamento chega a ser um soco na nossa cara… sentimo-nos apavorados". Mas, acrescenta adiante, "a impressão que essa imagem produz em nós – quer dizer, a impressão de uma pessoa fora de lugar e distorcida em grau máximo – vale também para nossa reação ante aquela pessoa, para nossa tomada de posição em relação ao pai". É interessante observar, desde já, o avanço que Binswanger consegue ao opor a experiência "natural" (do encontro), à experiência "psicótica" e ao situar a psicose como um certo efeito ou causa de de um determinado não encontro. O interesse da fenomenologia é retificar a discriminação que o bom senso estabelece entre o normal e o patológico. Nesse ponto, ninguém se aproximou tanto de Freud quanto Binswanger.

O autor recorta os motivos, absolutamente fundamentados, que animam esse ato extravagante: em épocas primitivas – exatamente como Freud, Binswanger não consegue pensar a psicose sem recorrer a uma ideia de que essa afecção representa uma atividade psíquica fóssil – o presente mais precioso que se podia dar a um ser animado era dar-lhe sepultura adequada. Na China, até há pouco tempo, ainda era prática usual as crianças oferecerem à mãe velha um esquife, que ela expunha em sua sala à espera de nele ser recolhida para toda a eternidade. Conta-se também que se via muitas vezes pai e filho construírem, juntos, o caixão para aquele, dentre eles, que fosse condenado. Binswanger observa também que a ideia do presente [o dom] inscreve-se logicamente na ideia do Natal e do pinheiro, assim como a ideia do esquife partilha, com a ideia do câncer, a conotação da morte. Portanto, num certo nível, nada há de ilógico nem de incoerente nesse ato de amor que consiste em "oferecer algo de que a pessoa presenteada possa ter necessidade (…) a única coisa que a filha poderia ainda fazer uso, mas que só poderia utilizar depois de morta". O esquema da reflexão que o anima é o "se": "se … então" ou "se … assim". Desenvolvido tematicamente, leva a: "Se minha filha doente ainda precisa de alguma coisa, é de um esquife; então, eu lhe ofereço um". Sendo esse ato, portanto, adequado, metódico, por que ele nos parece unanimemente tão chocante e deslocado?

Para Binswanger, isso se explica porque, sob a intenção logicamente bem-intencionada, manifesta, jaz uma intenção – nas palavras dele um dessein (um projeto) – rigorosamente oposta. E lamenta o procedimento em termos tão específicos, que qualquer paráfrase o trairia. Cito-o:

Com o ato de oferecer algo no Natal, o pai inicia a comunicação com a filha, vem ao seu encontro em um ser-junto. O presente não significaria, em si, um ser comum aberto do qual se participa reciprocamente? Mas aqui – e é o que há de determinante para a distorção – o passo dado na direção de um ser junto é praticamente abolido na própria escolha do presente, não só abolido, mas revertido em seu contrário. Isso quer dizer que a participação, comum ao sentido de oferecer e receber presente, se transforma em completa não-participação da pessoa que recebe. Pior, o presente converte-se em ofensa (…). A lógica do tema "presente de Natal para a filha cancerosa" está aqui de tal forma distorcida que ultrapassa o limite onde o serjunto poderia ainda se salvaguardar.

É uma análise muito bela, com a qual o pensamento analítico tem que consentir plenamente, embora lhe tivesse dado toda outra formulação. Não são os conceitos empregados que criam as divergências teóricas, mas as referências que estes conceitos elidem ou esquivam. Vale lembrar que a conversão do desejo inconsciente em seu contrário é um dos principais determinantes do processo psicótico; e a coexistência do estado original parcialmente conservado da pulsão e do novo estado resultante da conversão basta para dar conta da ambivalência de sentimentos tão candentes nessa situação. (Freud, 1915). Apenas o pensamento fenomenológico de Binswanger permanece mudo e indiferente à questão seguinte que, para nós, salta aos olhos: o que, na natureza íntima da pulsão (do dessein), explica tal destino de reversão no próprio contrário?

É muito significativo – e por isso temos de passar primeiro por esse autor – que Binswanger não recorra aqui à teoria freudiana, apesar de conhecê-la bem, o que é evidenciado pelo laço estreito, mantido durante trinta anos entre ele e Freud, e do qual a correspondência entre eles dá prova emocionante e triste. Surpreende que o psiquiatra que Binswanger decididamente sempre foi, não perceba, como faria o analista Freud, o capricho passageiro desse pai que se conduz como se ele e a filha estivessem sós no mundo e nada lhes fosse proibido, manifestando a mesma paixão edípica que leva outros pais a consumarem um incesto que consideram como um presente feito à criança, nem mais nem menos macabro que este. Surpreendemo-nos porque, em carta datada de 2 de maio de 1909, Freud (1995), comentando um trabalho de Binswanger intitulado "Essai d'une analyse d'hystérie", escreve ao psiquiatra:

Que Irma (paciente de Binswanger) tenha perdido o pai tão cedo bem que pode ter tido grande influência na sua fixação homossexual. Os fantasmas associados a esquifes – de ser enterrada viva, ou morrer com o outro – parecem supérfluos a você, ou ainda não foram interpretados? O esquife = o ventre materno, ser enterrado vivo = a vida no útero… O terceiro fantasma: estar a dois dentro de um túmulo = deitados no mesmo leito (p. 73).

Há, sim, um tom de admoestação ou de alarme no que Freud escreve, como se lhe parecesse que seu discípulo e amigo recusasse a assumir, de início, a parte desempenhada pela sexualidade edipiana primária na gênese da afecção psicótica. Mas, naquele momento, quando a psicanálise acreditava ter vencido todos os obstáculos, e a favor da experiência adquirida, não se deve culpar Binswanger, autor de honestidade e coragem científicas indubitáveis. A recusa em Binswanger não é resistência; indica, apenas, a função outorgada à afecção psicótica de disfarçar seu fundamento edípico, de proibir, não o seu curso ou sua realização, mas a representação do que ela realiza tão totalmente. Pensar em conjunto a sexualidade e a psicose, no encontro vivido com o sujeito assim afetado, parece inconciliável ou impossível sem que "provoque a ausência" desse sujeito. Desafio qualquer um a ouvir in vivo na figura do esquife uma representação do incesto. Como se nessa situação, nós nos encontrássemos destituídos das ferramentas conceituais necessárias para pensar esse fato.

E, contudo, ao introduzir esse estranho exemplo em trabalho escrito cinquenta anos antes da carta que acabo de citar, Binswanger não estaria repensando-o, formulando-o de outro modo, dentro do papel desempenhado pela atração edípica "primária" nessa desagregação da relação com o outro que designa daí em diante como "distorção"? A paixão edípica, no teatro antigo de Sófocles, em Édipo Rei, e de Ésquilo, em Agamemnon, faz ressoar a violência irremediável e a loucura destrutiva no excesso que confere à conduta desse pai seu caráter deslocado e chocante. O corifeu anuncia em seu canto o que o próprio Agamemnon não pôde dizer a si mesmo, a saber, a cumplicidade erótica que o rei encontra na realização do sacrifício de Ifigênia, e que se exprime como segue:

E depois de ter passado sob o jugo da necessidade, as disposições de sua alma mudaram; animado por pensamento ímpio, criminal, sacrílego, ele toma uma decisão de audácia surpreendente. Porque o funesto desregramento do espírito que está na origem de nossos males torna ousados os mortais por seus vergonhosos conselhos. Ele ousou então sacrificar a filha para manter a guerra que fizera por uma mulher e assim abrir a rota à frota.

… e seu pai, depois de orar aos deuses, fez sinal aos ministros do sacrifício para que a tomassem como cabra, que a levassem sobre o altar, ela envolta em seus véus e desesperadamente agarrandose à terra, e que amordaçassem seus belos lábios para calar as imprecações contra a família com a força e a violência muda de uma rédea. Mas enquanto sua veste de cor de açafrão desliza para o chão, ela causa piedade, deitando seus olhos sobre cada um dos sacrificadores. Tem o ar de imagem de quem quer falar, ela que, tantas vezes, nos suntuosos banquetes de seu pai, cantava e soltava a voz de virgem imaculada, em um hino de guerra em honra a Apolo da terceira libação, para testemunhar-lhe o seu amor.

Há aí uma revelação que nos obriga considerar que a atração edípica, que institui o outro como objeto, procede, em seu primeiro movimento, à sua destruição, e que essa paixão, convocada depois para dar fundamento à transferência em si, antecipa o negativo – ou a recusa. "O dom edípico exige a completa não participação da pessoa que recebe" escreveu Binswanger. São os dois fios que eu gostaria de tecer juntos, aquele representado pelo fato de que a psicose onera a significação de uma realização edípica idealmente pura e o fato de que essa realização exclui esses protagonistas (do ser junto) da comunidade humana. Dois fios, aos quais gostaria de acrescentar um terceiro, relativo ao inseparável entrelaçado dessas categorias da morte, recebida ou dada, e do desejo, tal como reina nessa situação que da morte só conheceria a figura do assassinato.

No exemplo escolhido por Binswanger, não se pode excluir a ideia de que o que torna esse ato, à primeira vista, tão chocante para nós, é o fato de o dom [o presente] ser um esquife – que só fará precipitar a filha cancerosa na direção de sua morte anunciada. Essa ideia exclui o pensamento de que, no desejo sexual, haveria também a conversão no contrário. Recentemente, na minha prática analítica, passei por uma estranha experiência:

Uma mulher solicita uma análise depois de ser hospitalizada por causa de um delírio místico em vias de resolução ou recalcamento. Sua postura é francamente melancólica, e só se decidiu pela análise, que lhe causava horror, sob pressão de uma família calorosa, sobretudo da irmã que tinha feito, ela mesma, uma análise. Mostra no início grande reticência e muita desconfiança, depois se abre, senão à transferência pelo menos a um trabalho associativo a partir do qual posso oferecer interpretações que a aliviam. Seu humor melhora, sua dor tanto física quanto moral se apazigua; a rigidez corporal diminui; o corpo perde a rigidez e o imobilismo. Tudo, um pouco.

Essa etapa da melhora sintomática é sempre um momento crítico da análise, porque é nela que, em um número vertiginoso de casos, os pacientes interrompem, aí mesmo, o trabalho. Uns não voltam, com ou sem aviso; outros dizem de viva voz que nossos argumentos os fizeram mudar de ideia; outros, e é o pior dos casos, fazem grandes gestos que os põem em situação na qual ficam fisicamente impedidos de continuar.

Aconteceu com aquela mulher, que se jogou da janela do quarto andar, o que não pôs sua vida em risco, mas a incapacitou por muito tempo. Fui informado pelo marido que me contou em tom amável sobre as circunstâncias, o que as tornou ainda mais macabras, guardando espantosa analogia com o exemplo trazido por Binswanger. A família temia que ela tentasse suicidar-se e organizou-se para que sempre houvesse alguém junto dela. A filha dedicava-lhe os domingos e num fim de tarde ela se afastou por um instante para fazer um pequeno conserto no carro que se encontrava na garagem, no piso térreo. De repente confrontou-se com o corpo da mãe; caiu ali, ao lado dela.

Esse, evidentemente, foi o traço que mais me chocou nessa encenação da morte entre pais [no caso, uma mãe] e filhos. Existem grandes analogias entre a primeira concepção de Freud sobre a histeria, que depois rejeitou chamando-a de sua "neurótica", e a estrutura íntima do estado psicótico. Pela grande proximidade de afeto que circula entre pai-mãe e filho, ou por ser muito intrusivo ou muito violento (pode ser que, nesse nível arcaico do laço, a qualidade do afeto não entre em jogo, mas apenas sua quantidade, sobretudo o seu excesso), as suas respectivas identidades se tornam indiferentes e, no mesmo movimento, desaparece a distinção entre o real e o fantasma das cenas. Só contam as posições de vítima e agressor, de sedutor e perseguido, de adulto e do ser prematuro que cada um dos protagonistas pode vir a ocupar a cada momento, e na mais alta instabilidade. A indiferenciação das categorias da morte e do assassinato soma-se a essa indiferenciação primeira das identidades. Aqui, a ligação edípica tende a confundir os sujeitos em presença, dissolve as suas alteridades recíprocas, onde se constata o grau zero do assassinato. O édipo ou a barbárie.

Embora Freud (1916) não faça referência direta à psicose em seu "pequeno" texto "Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica", este pode nos abrir a porta para o que persiste tão enigmático nessa afecção. Três correntes heterogêneas de pensamento o animam, que resumo brevemente:

"O fracasso ante o sucesso", voltado para certas personalidades ou certos destinos (os dois termos aparecem estranhamente muito próximos) de pessoas que adoecem no momento em que o projeto que mais prezam começa a se realizar, antecipa o que Freud desenvolvera muito mais tarde como "reação terapêutica negativa", ou seja, a resistência que não se consegue superar e que o paciente opõe ao analista quando sente que o último aproxima-se da resolução de seu sintoma. "Fracasso ante o sucesso" é um termo menos científico que "reação terapêutica negativa", porém é mais emocionante, porque se refere explicitamente a uma intenção, a um dessein diria Binswanger.

Essa conduta chocante tem a ver com o caráter do paciente, isto é, com o elo consciente e obcecado que o sujeito estabelece com o seu sintoma, devido ao sofrimento que este lhe inflige ou, mais frequentemente, pela originalidade que o sujeito confere ao sintoma, e que parece lhe assegurar alguma espécie de superioridade sobre os demais, ou garante-lhe liberdades e gozos dos quais o homem normal se privaria. Se tal vinculação à sua condição for consciente, a ponto de o sujeito reivindicá-la em alto e bom som, os motivos, contudo, permanecem inconscientes.

A clínica analítica, e esse é um dos principais senões desse texto, informa muito mal e muito incompletamente sobre esse estado de coisas. Freud opõe-lhe, como mostrou Laurence Apfelbaum (2003), a literatura, que é repleta de ilustrações luminosas e emocionantes que revelam a dimensão trágica, o pathei mathos. Assim, o desvio para a criação literária e os respectivos comentários representa uma via lateral indispensável para que se penetre em certos comportamentos profundamente humanos aos quais, ademais, o poeta permite que nos identifiquemos. Freud funda o essencial de seu estudo sobre um romance de Ibsen e sobre dois personagens dos mais trágicos de Shakespeare, Ricardo III e Lady Macbeth. A última, de caráter emblemático, transforma a ferida de sua feminilidade em uma insígnia de poder, e depois, no momento em que o seu desejo está prestes a se realizar, faz retornar, mais uma vez, o desejo de se matar. A série dos "retornos ao contrário" que organizam o destino dessa heroína, não nascem apenas de determinações inconscientes que a psicopatologia conhece muito bem, mas também de decisões conscientes que só o dramaturgo tem condições de ler e que ele nos entrega, dotando essa personagem de uma vontade feroz.

Embora as três linhas de pensamento do texto sejam igualmente importantes para nossa reflexão, a mais útil, no momento, é a questão do caráter. Qualquer que seja a problemática própria a essa questão (automatismo mental, projeção delirante, alucinação ou, ainda, introjeção melancólica), no que diz respeito à psicose, jamais se pode dissociar o sintoma do apego que o paciente lhe devota, por razões que tentaremos esclarecer; mesmo quando este se apresenta posteriormente, depois de ter sido ressentido como uma "formação" estrangeira a sua personalidade, além de ter sido fonte de sofrimento e humilhação. "A entrada em doença" ocorre quando, de repente, o sujeito se identifica com seu sintoma, que é, de fato, um traço de caráter e o reivindica como objeto de orgulho, grandeza e fonte de gozo. Talvez essa segunda etapa definisse a loucura que compõe a parte sagrada, heróica, da psicose, revelando o desenvolvimento descontínuo do estado psicótico que é justamente comum à multiplicidade dos processos psicóticos que a ciência nosológica, que jamais se pode negligenciar, nos ensinou reconhecer. Fere e dói à psicopatologia reconhecer que, ao se centrar, como lhe é exigido, na "máquina" psíquica e nas engrenagens de seu determinismo, ela perde de vista a humanidade das artimanhas pelas quais o sujeito acomoda nele mesmo o que o afeta, e assim sobrevive. O poeta está, talvez, na posição justamente contrária.

A conversão em traços de caráter interessa também para as múltiplas figuras sintomáticas geradas pelo processo psicótico. É provável que esse mecanismo garanta uma resolução bastante radical à dor melancólica que opera nessas situações e que sua eficácia dissuada o sujeito de submeter-se aos cuidados que ele pode considerar, depois dessa experiência, perigosos ou prosaicos. Após longos anos de errância, marcados pela solidão e por fracassos de todos os tipos, e exatamente antes que se autorizasse a redigir essas duas obras capitais, que são Hypérion e A morte de Empédocles, Hölderlin faz uma confissão que testemunha, em termos com os quais o psicopatólogo não conta, no que consiste esse movimento interior que converte a dor em seu contrário, o destino:

Eu jamais havia provado tão perfeitamente a verdade dessa palavra antiga e infalível do destino, que nos diz que uma nova felicidade abre-se para nosso coração quando ele resiste e é capaz de suportar a dor da meia-noite, – essa palavra que nos diz que só nas profundezas do sofrimento ressoa em nós, divinamente, o canto vital do mundo, como o canto do rouxinol na escuridão.

O interesse na abordagem literária da afecção psicótica reside, justamente, em nos autorizar um pouco mais de distância e de achatamento. Não precisando curar aquilo que lemos e livres do papel de cuidador que nos é conferido por pertencermos à comunidade, podemos então, com mais vagar, fazer justiça à razão do autor, tolerar a vontade implacável que organiza essa lógica do destino, e compreender por que esse se recusa e escapa à nossa influência. Contornar a questão pelo estudo literário pode enriquecer o clínico e restituirlhe um fato que não lhe é diretamente acessível.

Devemos nos deter, por um instante, sobre uma das produções sintomáticas que são neutralizadas em seus efeitos de sofrimento – e, portanto, de alarme –, por essa sobredeterminação psicótica. Já me referi à violência do desejo edípico que parece predispor, em sua etiologia distante, ao desenvolvimento do processo psicótico. Em experiências precoces, pelas quais passam os sujeitos que (sempre tardiamente) manifestam essa afecção, parece que o domínio sexual exercido pelos objetos parentais foi particularmente opressivo. Ao mesmo tempo, não se abriu a possibilidade de deslocar esse afeto selvagem para objetos substitutivos pertencentes ao mundo real. Não vou me deter nas causas (múltiplas) desse entrave primário. Basta dizer apenas que a economia libidinal em vigor nessa fase arcaica do desenvolvimento é inconciliável com um processo de subjetivação. A paixão que impregna a troca entre o adulto e a criança é indiferente às posições estatutárias e geracionais de um e outro; ela ignora a oposição entre as visadas destrutiva e conservadora – só conta a satisfação de seu desejo cujo paradigma é a posse de um pelo outro, e reciprocamente. Nessa etapa, não faz diferença para o amor que ele esteja satisfeito em dar vida ao objeto amado ou em matá-lo. A mesma qualidade de êxtase será atribuída aos dois lados, que podem trocar 'de lugar' na mais perfeita inocência. A conversão no contrário, que corre livremente junto à psicótica sobredeterminação, nunca é tão ameaçadora do que quando dá lugar à reincidência da indiferenciação primeira entre vida e morte, encontrando na morte a satisfação que a vida lhe recusa.

O poeta, mais uma vez, esclarece, e muito melhor do que nós saberíamos fazer. Stéphane Zweig, contemporâneo e amigo de Freud, consagrou a Hölderlin um estudo muito belo e de grande alcance psicológico – O combate com o demônio4. A reflexão profunda e lúcida de Zweig (1974) comenta alguns versos de Hölderlin escritos pouco antes de sua submersão definitiva – que o levará a ser hospitalizado e a se chamar de Scardanelli –, versos que cito aqui.

Enquanto isso eles (as crianças da terra) têm de
Terminar por deixar a vida, esses corações ansiosos,
E ao morrer cada um volta aos elementos dos quais saiu.

Assim cada um reencontra uma nova juventude,
Como no frescor de um banho,
Os homens deveriam ter um grande desejo
De se autorrejuvenescer,

E da morte que purifica,
Desde que a escolham, eles mesmos, a tempo,
Surgem, como Aquiles do [rio] Estige,
Invencivelmente os povos.

"O pensamento da morte livremente consentida", escreve Zweig, "formula-se magnificamente nele e logo o sábio compreende o sentido sublime do falecer vindo cedo demais, a necessidade da morte: assim sendo, a vida é destruição, porque é fracionamento, esfacelamento, divisão; e a morte conserva o ser em sua pureza, ao dissolvê-lo no universo. Ora, a pureza é a lei suprema do artista; e o artista deve manter intacto o espírito, não o vaso que o contém".

Como se sabe, o próprio Zweig recorreu ao suicídio.

O recurso ao "material" clínico é uma tentativa, além de ser necessário para fundamentar e ilustrar alguns desenvolvimentos teóricos. Evocarei, com as necessárias omissões, o caso de um homem de quarenta anos, no qual se pode recuperar claramente a atração que a morte exerce sobre ele. Ele sabe e diz que não aceita "curar-se", o que eu também constato, além de ele descobrir no tratamento uma compulsão ao suicídio que não sabia que possuía. A "cura" tem para ele uma figura de espantosa precisão: ser pai, algo do qual sabe que ele não poderá escapar, mas que suscita nele uma imensa aversão. Ele opõe então ao processo analítico uma inércia, uma recusa que pesa sobre ele, sobretudo por procuração, porque ele pensa que eu serei destruído; ele imagina que eu, ao fim das sessões, levanto os olhos aos céus e agito os braços em desespero. Minha paciência, que ele julga "extrema" lhe é um enigma e uma fonte de incômodo. Mas ele não cogita suspender o tratamento, esse nunca foi o caso. Assim, por se inscrever nessa normalidade de análise, essa situação ganha todo seu relevo: a análise esclarece a contrário o conflito que ordena aos outros – sobretudo aos que classificamos como psicóticos – a interrupção brutal, inopinada, de seus tratamentos.

Porém, esse homem obstina-se em se manter na análise, sem jamais desistir de frear qualquer desenvolvimento. Suas associações amparam-se em motivos intelectuais, a voz soa muito fraca, moribunda, mas, seja como for, trabalhamos, avançamos. Depois de certo tempo, ele até se lembra de sonhos. Num desses sonhos, a mãe o chama e dá-lhe uma ordem, num tom de voz que jamais ouvira dela, senão em um momento de agonia, pouco antes de morrer – tom autoritário, de quem não admite a réplica. Um momento histórico, pois, que o sonho reatualiza.

Para mim, é uma imagem aterradora, ao passo que ele a acolhe com familiaridade serena, como uma aparição benfeitora. E é aí que o dado manifesto do sonho, suas associações e minhas interpretações nos conduzirão a um conteúdo muito diferente, muito distante do evento trágico daquela morte. Mas, afinal, essa imagem, que irrompe pela primeira vez no espaço intermediário da transferência, pungente pela presença que lhe insufla "a voz cara dos que se calaram", parece-me garantir – independentemente dos disfarces que ela autoriza, por ela mesma – uma penetração sem precedentes, organizadora da negação do luto, nas formações psíquicas enterradas nas profundezas da alma e piedosamente conservadas na sombra adocicada de sua "melancolia".

Ele foi seu único filho, amado com um amor apaixonado. A análise o conduziu, à luz de sua compulsão, a avaliar a reprodução desse mesmo laço em sua vida amorosa. A mãe amou-o com um amor exclusivo, no sentido de que ela afastou dele o pai, e também, submeteu-o a todos os ideais dela, principalmente intelectuais. Ele não se imagina tendo um filho que não poderia mostrar para ela. Nesse sentido, a recusa a curar-se não brota nele de uma resistência ao processo analítico por aversão "moral" – que é fenômeno acessível à interpretação e do qual Freud forneceu uma descrição minuciosa e quase definitiva, sob o nome de resistência da transferência ou à transferência. Aqui, essa recusa é de natureza pulsional, sua fonte é o afeto edípico que permanece ativamente ligado, "fixado" no objeto originário. O sujeito não tem, em seu equipamento psíquico, mecanismos que o autorizem ou o obriguem a renunciar àquele objeto originário, e o analista, por seu lado, na falta de qualquer envoltório de linguagem, fica, se excluir a sugestão, desprovido de qualquer meio de acesso, por menor que seja, à interpretação da recusa.

Essa corrente erótica permanece isolada na sua vida psíquica, fica excluída das instâncias mais evoluídas. Ele não se submete a perceber a realidade como a estabelecem os órgãos da percepção; por exemplo, não é verdade em seu inconsciente que sua mãe esteja morta. Essa corrente erótica não está mais sujeita ao julgamento moral como o pensamento discursivo o conduz, porque nada o proíbe de pensar que minha presença silenciosa, no plano invertido de seu olhar, não seja a presença de sua mãe, sua imagem viva invisível. A presença da mãe viva, no sonho, é signo da negação do luto; e é a conversão, na transferência, dessa negação.

Esse afeto erótico, nesse sentido, justifica plenamente as atribuições exageradamente metafóricas, sim, que para Freud qualificariam a pulsão como "selvagem", "indomável"; é um afeto que só conhece a satisfação e reencontra seu objeto em cada objeto que o mundo lhe ofereça. É indiferente às consequências gravemente destrutivas com as quais a satisfação ameaça a vida física do homem, e desencadeia, em oposição, defensivamente, nas franjas psíquicas mais adaptadas, uma angústia incomensurável.

Podemos, também, representar para nós uma primeira figura, entre outras, que geram, em alguns seres, uma atração incoercível em direção à morte (ou seu análogo, a loucura). Nossas palavras poderiam aproximá-la (porque ela não alcança em si as palavras, mas permanece radicalmente uma imagem) na seguinte fórmula: a morte ignorada em sua realidade de aniquilamento, de destruição; a morte ignorada enquanto oposição à vida. O sujeito comporta-se frente a ela como se ela fosse a forma (gloriosa) de saudação e de sobrevida. Não se trata de uma conduta inconsequente, nem intencionalmente destrutiva, mas do efeito de uma crença, no suicida, em uma vida melhor que ele obteria como prêmio por seu ato. Outro paciente, cuja atividade delirante o excluía radicalmente do mundo exterior, encontrou a fórmula perfeita para falar do valor atribuído àquele gesto. Uma enfermeira entrou no quarto no exato momento em que ele apontava um revólver carregado para sua têmpora. Imediatamente, ele disse: "Felizmente, já não serei mais desse mundo aí." Esse determinismo inconsciente pulsional, que horroriza o pensamento a ponto deste só renegar sua existência, comanda sem dúvida nenhuma também o gesto do kamikaze.

Face à atração rumo à morte, diante "dessa pulsão de morte obrando em silêncio", para retomar as palavras de Freud, vê-se que a recusa a curar-se representa uma versão ou conversão temperada que confirma a defesa e sua atualização, já que a recusa estabelece um acordo entre duas forças em presença: as que visam à autoconservação e as que visam à autoaniquilação. Nota-se também que a recusa a curar-se, opondo-se a um novo objeto (o analista), à alteridade que é irredutível às tentativas alucinatórias de se identificar com um objeto passado, assegura um primeiro deslocamento à pulsão original. Esse deslocamento é precondição necessária a qualquer posterior mobilização do afeto edípico, renunciando-se a ele e à sua troca com um objeto real e, de modo geral, à dessexualização daquele afeto. Se o movimento pulsional é ininterpretável nessa etapa, vê-se que, apesar disso, é transferível: ele faz signo, na negatividade de sua realização, que se inscreve no processo analítico e exige do analista que o acolha incluído como produção transferencial, como construção psíquica sofisticada que liga uma satisfação ameaçadora com uma defesa vital.

Não é tarefa fácil para o analista dar suporte a essa ambivalência transferencial radical. Ela exige que o analista mobilize nele disposições psíquicas tão contraditórias como o poder e a coragem de pensar sobre os meios limitados de que dispõe face a essa violência do real. Da mesma forma existe, por exemplo, o "nada é mais forte que a morte" (conforme o ditado alemão que Freud repete por sua conta em várias ocasiões), que se contrapõe ao método do analista, do qual ele é modesto servidor, ou seja, há algo na transferência do paciente que se opõe ao que (no método) lhe oferece capacidades inusitadas de transformação psíquica.

Para aceder à segunda configuração da atração pela morte, é preciso abandonar o terreno da melancolia, na filiação em que se encontram, sem exceção, todos os estados psicóticos, e voltar à questão do luto em situações de normalidade. Não temos necessariamente os meios teóricos para dar conta desse fenômeno, mas a experiência clínica o revela. Se o analisando está numa relação transferencial, e sem que haja outra intervenção pelo analista, a não ser a de suporte passivo à transferência, tudo que resta de enlutado no paciente – a sua relação com os objetos perdidos que ele simplesmente recalcou e conserva piedosamente em seu inconsciente – se põe em movimento: o paciente recoloca em trabalho um luto que poderia ter sido habilmente evitado.

Esse trabalho de luto desdobra-se segundo um determinismo psíquico e numa temporalidade que não admite qualquer variação singular. Trata-se, sempre, de o indivíduo renunciar a um objeto amado que a realidade designa como "já não existente mais"; renunciar a esse objeto contra uma tendência que ordena a toda vida psíquica conservar tudo, e nada perder. Rude tarefa, dolorosa, que só se pode cumprir progressivamente, lentamente, por etapas.

A primeira consiste em renunciar à sua voz, fazer calar, nas profundezas psíquicas, o timbre de voz em que se fecha o espírito do que foi aquele amado. Os gestos de "boca fechada", o dedo frente aos lábios, como são vistos nas nas danças do teatro grego, são as figuras através das quais a morte, silhueta de mudez, continua a acompanhar os vivos. A sedução que essa imago exerce nesses tempos do luto é passiva, ela seduz para que o vivo encontre o morto, deite-se ao seu lado. É o que acontece no analisando e aparece na inércia que ele opõe ao trabalho da palavra. O silêncio, a atonia física, manifesta, como numa imitação do que habita o morto, que o eu vivo é também o objeto morto. Porque nesse nível arcaico de expressão confundem-se, absolutamente, o valor de concreto e abstrato das figuras. Silêncio e atonia declinam ironicamente a versão minúscula e reversível dessa realidade temida.

A segunda etapa corresponde à penetração que o sujeito alcança no conhecimento do laço que o liga ao seu objeto. "É na hora da separação que a verdade explode", diz o poeta. Deixar o objeto é avaliar o ódio que sempre acompanha o amor que temos por ele e, com a morte dele, encontrou uma satisfação inesperada. A renúncia à imagem do objeto perdido, esse trabalho de "perder de vista", sobre o qual se debruçou J.-B. Pontalis, é a parte mais importante do trabalho de luto, e constitui também – na reversão do afeto que a renúncia organiza – sua etapa mais perigosa, aquela que atribui ao objeto amado e amante um valor ameaçador, uma intenção ativamente vingativa, quérulence5, que substituirá, completamente, a sedução que, antes, o objeto exercera.

O morto chama então ativamente o vivo para que se junte a ele numa "força de atração" que não está mais na ordem de uma tentação como a que a nostalgia da lembrança do morto exerce no primeiro tempo do luto, mas numa ordem de comando. Trata-se de um imperativo frente ao qual o sujeito só pode erguer defesas tão violentas quanto o evitar fóbico, a inibição psicomotora, as construções delirantes e alucinatórias – todas inacessíveis a quem não seja iniciado nesse cenário fúnebre e não tenha acesso às criptas secretas do edifício psíquico assombrado pelo espectro, aparição, do morto. Lá se chega ao absoluto da solidão individual, aos limites daquilo que se pode trocar de si com o outro, mesmo que este seja o ser mais próximo, como se o comércio com os mortos excluísse de facto qualquer comércio com os vivos. Assim, também, as instâncias conscientes do enlutado só mantêm uma relação indireta com essa experiência inconsciente, alucinatória, sob as cores do assassinato, do estranhamento, de despersonalização.

O sonho do analisando exuma, portanto, o estrato mais profundo e, sem dúvida nenhuma, o mais originário da organização melancólica. Ele atualiza na linguagem da imagem a versão protomelancólica do fantasma, em que a "sombra" do objeto, confundida com sua figura viva, toma posse do eu e ordena o autossacrifício. Se ele se suicidará ou não, dependerá da resistência que o sujeito opuser a esse apelo. Parece-me impossível excluir que um determinismo dessa ordem esteja presente e comande todas as tentativas de suicídio. Lembro ainda que eu não tivesse podido avaliar esse sonho, – ao escutá-lo, ou mais do que isso, ao vê-lo – se a poesia e a literatura já não me tivessem antes familiarizado com esse fenômeno verdadeiramente enlouquecedor.

O sonho tornou-se possível graças a certa organização e estabilidade da vida psíquica no seio da qual ele se institui como "teatro privado", o que autorizou o eu a tomar distância, como espectador, como ficção, com o conhecimento dos dramas terríveis que se desenrolavam em setores de sua personalidade que o eu não conhecia. O sonho é uma instituição psíquica que protege o ser contra a despersonalização. Quando o mesmo fantasma arcaico, devido à instabilidade da personalidade do sujeito, vem a se atualizar diretamente na transferência, sem a mediação protetora da tela do sonho, a situação torna-se trágica e ameaçadora. A dificuldade que atravessa o tratamento da afecção psicótica tem a ver com a emergência necessária, na transferência, dessa fase protomelancólica do fantasma que ameaça desfazer a alteridade do laço relacional entre paciente e quem o trata. A aterrorizante fascinação que o objeto morto exerce anula a qualidade analítica do analista, neutraliza sua capacidade de conter, faz dele uma figura tão ameaçadora como o foi o rei dos elfos para a criança doente. Ilustremos esse ponto com um exemplo.

Para esse jovem, as sessões são fonte de pânico. Transpira abundantemente e tem tremores. Creio que admiro e sou tocado pela coragem que ele manifesta ao vir à sessão. Bem rapidamente pudemos ligar o estado de pânico às muitas formas de conduta autodestrutiva que ameaçam a sobrevivência, dentre outras a ingestão de álcool e o uso de drogas que, contudo, oferecem alguma proteção contra esse pânico. Ele pinta, alcançou certa notoriedade, admiradores compram suas telas, mas essa atividade só é possível, para ele, à custa de rituais que só têm de profanos o conteúdo, que exigem tanto dele quanto os exercícios que um penitente fundamentalista se autoimpõe em tempos de Quaresma. Pouco mais tarde, revelará que está condenado a essa criação por uma "missão" – e nada mais diz, não sabe mais nada, porém entende-se que essa missão tenha a ver com a salvação dos homens e do mundo. A confissão das formações delirantes que o habitam limita-se a isso.

O medo de não poder cumprir a "missão" é o que o traz à análise. Porque, fora as horas comigo, só é tomado de pânico quando pinta. Um pouco mais tarde, recupera o acontecimento mais doloroso de sua infância, relativo ao fato, que lhe foi contado pelos pais de um colega, sobre o motivo pelo qual sua mãe o mimava tanto e o deixava tão livre. Ela perdera um primeiro filho, e ele o substituiu. Ele ligou essa informação ao que ele mesmo notou nas suas ausências psíquicas. Depois, descobriu o seguinte: quando bebe ou toma drogas, fica como um morto, sentindo-se em paz. Quando acorda, ativo, criativo, sente-se ameaçado por uma presença. Começávamos juntos a reconhecer nessa presença o irmão morto, além, também, da mãe ausente, melancolicamente voltada para e curvada sobre o paciente, quando, durante suas férias de verão, ele me deixou uma mensagem em que dizia que interrompia as sessões por algum tempo. Entendi que ele não voltaria. Porque a mãe, segundo sua crença, não suportaria que ele parasse de beber e, sobre esse assunto, ele manifestava a mesma convicção daquela a respeito de sua missão. Essa imago maternal que o impedia de não beber, de viver, é o produto de uma identificação protomelancólica a um objeto edípico, morto da morte de seu filho.

 

Referências

Binswanger, L. (2002). Trois formes manquées de la présence humaine. In L. Binswanger, Le cercle herméneutique, Chapitre "La distorsion" (pp. 60-66).         [ Links ]

Freud, S. (1915). Pulsions et destin des pulsions. Métapsychologie, Folio.         [ Links ]

Freud, S. (1916). Quelques types de caractères dégagés par le travail psychanalytique. In S. Freud, Ouevres Complètes (Vol.15, pp. 13-40). Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S., & Binswanger, L. (1995). Correspondance 1908-1938. (pp. 72-75). Paris: Calmann-Lévy.         [ Links ]

Apfelbaum, L. (2006). L'alliance de la littérature et de la psychanalyse, Passions et caractères, Libres cahiers pour la psychanalyse, 13, printemps, In Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Jean Claude Rolland
[Association Psychanalytique de France APF]
45 rue de la République,
69002 Lyon, France
e-mail: jean.claude.rolland@wanadoo.fr

 

[Recebido em 12.5.2010, aceito em 4.6.2010]

 

Tradução de Ana Maria de Azevedo
Revisão de Daniel Delouya

 

 

1 Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo no dia 5/5/2010.
2 Membro Titular da Association Psychanalytique de France. Editor, junto com Catherine Chabert, do Jornal Libres Cahiers Pour La Psychanalyse, e autor de vários livros entre eles (1998) Curar-se do mal do amor, São Paulo, Martins Fontes, e (2006) Avant d'etre celui qui parle, Gallimard, Tracés.
3 Binswanger (2002), Cap. Distorsion.
4 Há edição portuguesa: ZWEIG, Stefan, Os construtores do mundo. O combate com o demônio: Hölderlin, Kleist e Nietzsche, Porto: Ed. Civilização, 1974 (NT).
5 N.T. Original quérulence, derivado de quérulent emprestado do latim tardio querulans [que se lamenta, que pede ao tribunal]. Em psiquiatria, designa um delírio de reivindicação. A partir de um dano eventualmente real, mas não reconhecido, o doente, quase sempre psicótico, amplifica desmedidamente seu prejuízo e passa a perseguir a pessoa que considera culpado por seu sofrimento (http://fr.wikipedia.org/wiki/Quérulence).